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ETNOGRAFIA DE RUA: ESTUDO DE ANTROPOLOGIA URBANA Ana Luiza Carvatho da Rocke Cornelia Eckert Resume 0 atigo descreve um estudo antropadgico haseado em narrativas etnogrdlicas e posticas visuais 10 ‘meio urhano de Porto Alegre c Paris (BrasilPranga) a patr da tenia deetmagratia ce ra que vineul utlzagao de insrumentos audiovisuais na pesquisa de campo [eimerafotogficae video) Objetiva seinvestigara dnsimica das interagGes-erepresentagbes Socials mee cereidade soba perspectivadle suas formas de vida socal visind a um repertirio mais amplo das formas de sociabilidade no meio utbano sus variagbes cultuais. Propte-se 0 exerecio de einograia do tua como forma de concebe translormagbes dos feritérios da vida urbana local investigando sobre a mena coletivae a estética urbana nas cides, Walter Benjamin (1892-1940)! inspirou-se na obra de Charles Baudelaire (1821+ 1867).* & cle Marcel Proust (1871-1922)* para falar de um estado de ser e estar no outora em Antopologia Social pela Paris V. Sorbonne. em 1994, é pesquisiora no LaboratGriv de {Anltopologia Sociale professora na Pos-sraduasio do IFCH na UFRGS. Doutoraem Antropologia Socal pol Paris V, Sorbonne, em 1992, Atua como professor. no Departamento Ue Anttopologiaw na Pés-graduagio do IFCH na LFRGS, " Referinio-nos principalmente a Das Passagen-Werk, escrito em 1939 em Paris publicado em 1982, ® Refetimo-nos hasicamente aos trabalhos Le spleen de Parise Tableaus parisien. Referimo-nos sobretudo a A la recherche dic temps perdu, 1954 ua, Campinas, 9: 101-127,2003 lor Emmagrafia de Rua: Estulo de Antropologia Urbana mundo ao refletir sobre seus deslocamentos nas cidades de Berlim ou Paris, a partir de um “trabalho” da meméria afetiva e do pensar a“si-mesmo” na paisagem urbana, personagem baudelairiano, o fldénewr, caminha na cidade: um percurso sem com- promissos, sem destino fixo, O estudo de alma deste personagem-tipo é de indiferenca, mas seus passos tragam uma trajet6ria, um itineririo que concebe a cidade, 0 movimen- {0 urbano, a massa ef€mera, 0 processo de civilizagio. Logo, esta nao éuma caminhada inocente. A cidade & estrutura e relagdes sociais, economia e mercado: € politica, est tica e poesia. A cidade é igualmente tensio, anonimato, indiferenga, desprezo, agoni, crise e violéneia a ‘Assim, a cidade do simplesmente hist6r reconhece ou se c' 10 tem ma histéria, nem a melhor nem a pior do mundo, que configuram referéncias priticas ¢ simbélicas em que se nstrange nas ruas que perambula, lugares que conhece ou desco- sam desaperce- bidos. Objetos, eventos nio verbais ou verbais, ruicos ou matérias atiram-the a atengao sensorial que delineia seu trajeto, seus atos, A cidade acolhe seus passos, e elt p cxistir na existéncia deste que vive, na instancia de seu itinersrio, um tragado que enco- bre um sentido, algo que seri desvendado ao seu final. Espagos, cheiros, barulhos, pessoas, objetos e naturezus que o caminhante experiencia em sua itinerdincia, no sem figuras pré-concebidas, Sua caminhada 6 de natureza egocéntrica, funcional, mas tam- a, fabulatéria e afetiva, e por que nao dizer, uma caminhada cosmolégica como os jogos de meméria que os tempos reencontrados proustianos encenam, Walter Benjamin, em seu texto Sur quelques themes baudelatriens (Paris, 1939), Jembra que a multidio metropolitana na formaco do mundo industrial despertava medo, repugnincia c horror naqueles que a viam pela primeira vez, Da mesma forma, o impacto das transformagGes urbanas, to bem tratadas no conjunto de autores que de modo geral sao reunides na denominaezio Escola de Chicago, id inspirar uma gerag? de antropélogos que privilegia, desde entiio (anos 1930), 0 tema do viver na cidade ‘como cena primordial de analise das mudangas e transformagées. Sob dtica destes autores, a vida citadina é, portanto, agitada, vertiginosa mesmo, ou ‘mondtona e repetitiva, dependendo da adesio ou nao dos seus habitantes os tempos © nnhece, espagos que gosta ou desgosta, contextos que Ihe atraem ou p: Ricoour, 1996 ‘at, Campinas, 9: 11-127, 20038 Ana tia C. da Roche Comelia Bckent 103 espagos vividos, ritmudos pelos movimentos incessantes das imagens de cidade que hhabitam seus pensamentos em constante mutagiin. Deserever a cidade, sob um tal ponto de vista, € conhecé-la como locus de interages socials ¢ trajet6rias singulares de grupos e/ou individuos cujus rotinas estao referidasa uma tradigiio cultural que as tans conde, Conhecer uma cidade €, assim, nao s6 apropriar-se de pate de um conhecimen- to do mundo, ou seja, os saberes e fazeres dos habitantes e 0 que conhego desta expe: rineia de pesquisa junto a eles, quanto desvendar o conhecimento na busea de situar ‘meu préprio ser'em relagdo ao ser do Outro na eid. Inspiradas nas obras cientificus® e literdrias* sobre o “passear e caminhar’ de desenvolver ethografias na rua nasceu com a proposta de projeto de pesquisa’ intitulade Estudo antropotdgico de itinerdrios urbanos, meméria coletiva e fore mas de sociabilidade no mundo urbano contempordneo, Como pesquisadoras.e desenvolvendo a atividade de formar bolsistas de iniciago cientifiea uo método antro- poldgico, propomos ao aluno tecer os seus préprios pereursos etnogrrificos na cidade de Porto Alegre, contextode uma investigagao antropoldgica sobre a dindmica das interagdes cotidianas e represemtagdes sociais “na” e “da” cidude. No decorrer desta experiéneia tetnogeifica na ma, no bairto, na cidade, a introdugiio de instrumentos audiovisuais como a camera fotogritica e/ou a cfimera de video, passam a fazer parte do seu olhuar & * Referimo-nos emire outros a Clade Lévi-Strauss, Colette Pétonnet, Pier Sans Citamos:gualmente aqui as obras Iersias de Henri Beyle Stendhal, Georges Perce tale Calvino e Emest Hemingw Projeto integrado do CNPq desenvolvido no Programa de Pis-Graduagao ei Antropotogia Social na UPRGS, desde 1997, e que alimenta eom dados de pesquisa o projeto Banco de Imagens Etetos Visuals, ‘por nés euordcnado, no-imbito do PPGAS/UFRGS, sediado no [LEN UFRGS. ea, Campinas, 9 101-127, 20038 108 Emografics de Rina: Estudo de Autvopotogia Urbana atitude de coleta de dados de pesquisa: 0 exercfeio de etnogratia de rua, inclui entao “a cient na mao”.* ‘A etnogratia consiste em descrever praticas e saberes de sujeitos & grupos s partir de técnicas como observagiio e conversagdes, desenvolvidas no contexto de uma pesquisa. Interagindo-se com o Outro, olha-se, isto & “ordena-se 0 visivel, organiza-se 1 experiéneia” conforme propde Régis Debray.” O etndgrafo descreve, tradicional- * Citamos como exemyplos os sequintes rabalhos Flavio Abreu de Silvia, “A postica do vivid: wna etnografia do cetidiano ma Cidade Baixal POAMRS'. Tiuninuvas: Sérte do Bac de Imagens e Ejeitos suas. Porio Alegre: BIEN, PPGASIUFRGS. 2000, ‘Aline Gre Buacs."Etnografia de umacatéstrofe. Estado de antropologia urbana visual sobre os desaios ‘anaturera ea sobrevivencia como modode vida entre moradores de Aguas Clas, Vaio" In: minus ‘Sovie do Banco de Snagense Efetos Visoais, Porta Alegte: BIEV. PPGAS/UFRGS, 2001. PibicfCNPq- UPRGS: Luciane Caccar,"As donas da pages antropel6xico de formas de sociabifidade na praga do mati” In: fhoninuras, Serie de Banco de nagense Rfetos Visuas, ori Alegre: BIEN, PPGAS/UFRGS, 2001, Bie Cap 1997/1999: Rafael Devos, "Da ate de dizer: pe v8 como a vida reserva tanta coisa pra “gente” In: Huminanas: Série do Hae de bnagense Efeitas Vises, oni Alegre: BIE, PPGASIUFRGS, $2000. Bie Cay 19980IK00 Jacques Xavier Jaomini,"Estudo antropeléico de umespao urbane singulas, ‘ais dn porto da eidade de Porto legre (ou da eidade que tem por até no none) In: Ihncnaras: Série ldo Banco de buacens e Ejetos Visas, Porta logee: BIEN, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic Cupg 1997/1993: Rovdigu Meccio Mello, *Moinhos de Vento: Ta lange 0 pert. quando a exclusio socal se traveste cem constrangiment, 0 vizinho no reconbecide,” In: uninaras: Série do Banco de Imagens e Efiios Viswais, Porto Alegre: BIEV, PPGASIUFRGS, 2001, Bic UFRGSICNPy 2000; Leandra Myliu “'Simifieagdes do viver na cidade: umpercursoaetivo eum olharlgico, eseigie de una etnograia de mt ‘nt Osvaldo Aranha, Baie Bontim em Porto AlegreRS". In: Ituninuras: Série do Banco de Imagens e fetes Vsues Porto Alegre: BIEY, PPGASIUFRGS, 2001, BicCnpe 1999/2001; Rosams Pinheiro Macho, “Ext antropekisic das formas desoviabildade do centr de Porto Alegre: vida de came I: Hininuns Sve ddo Baur de bnagens Efeits Vics, Porto Alege: BIEN, PPGAS/UFRGS, 200. ie Faperes 1999 2Up1; Olave Ramatha Marques, “A cidade ¢ & tempo: as tamsformagies nn censrio urbano em Porto ‘Alogi’ In: Luoinvas: Seve do Barcode faagense Eeitos Visuals Poro Alegte: BIEV. PPGAS/UFRGS, $000, Bie LFRGS/Cnpy 1999/2001: Sandro Bello illo." cidade eos seus tiscos:n viver de decientes Yisuaisem Porto Neg. In: Hminaras: Sere do Banco de Imagens Efetios sna Post Alegre: BIE! PPGASIUFRGS. 2001, Bic Faperss; Patricia Rodolpho, “Encontrando imagens na e da Rua da Praia: problemas e descobertas de uma etnogralia urbana”. fn: Hhunineras: Série do Banco de lmagens ¢ Eeitos Vissi: Porto Alegre: BIEN, PPGASIUERGS, 2000. Bit Cnpy 1997/1999: Joao de lus Sans, “Rusnas€ uagddia: um est sobre temporada em Porto Alegto”. lt: Honinuras: Série do Banca de Imagens e [jets Vsnais, Porto Alegsv: BIBY, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic Faperes ‘image ite son sens du regard, come ert dela Teeture, tee sens nes pas splat mais pratique: Seguro Dery. 1992: 56, ‘ua Campinas, 9: 101-127, 2003, Ana Luiza C. da Rocha e Commelia Eckert 10s mente em didrios, relatos ou notas de campo, seus pensamentos ao agir no tempo & espago hist6rico do Outro-observado, defineando as formas que revestem a vida coleti- va no meio urbano, A etnografia de rua, aqui, é um deslocamento em sua prépria cida- de, 0 que significa dizer, dentro de uma proposta benjaminiana, que ela afirma uma Preacupacio com a pesquisa antropol6gica a partir do paradigma estético" na interpre- lagi das figuragSes da vida social na cidade. Um investimento que contempla u reciprocidae cognitiva como uma das fontes de investigagio, a prépria ret6rica anal ca do pesquisador em seu didlogo com o seu objeto de pesquisa, a cidade e seus hal tantes, Uma vez que tal retérica € portadora de tensdes entre uma tradigto de pen: ‘mento ciemtifico ¢ as representacdes coletivas proprias que a cidade coloca em cena, © pesquisador constr o seu conhecimento da vida urbana na ¢ pela imagem que ele com-paatilha, ou no, com os individuos e/ou grupos Sociais por ele investigudos. A pretensio de aprofundar uma pritiea de “etnografia de rua” para 0 caso da pes- quisa em Porto Alegre, ou talvez fosse melhor dizer etnografia “na” rua, nfo se limita apenas aos comentirios de Walter Benjamin. A proposta singular de observation flonate, como Colette Pétonnet" denominou o exercicio de observagiio de pesquisa nna rua, encontra em ngs, uma adesiia de estilo pela forma como pensames, no refetido projeto, 0 tema da etmografia da duragdo" a partir da descrigiio etnogrifica dos itiner- rios dos grupos urbanos na cidade. ‘Segundo advogamos na pesquisa sobre meméria coletiva, narrativas e formas de sociabilidade no mundo contemporiineo, a técnica de etnografia de rua consiste na ex- Ploragio dos espacos urbanos a serem investigados através de caminhadas “sem desti- ho fixo” nos seus tertitérios. A intenedo ndo se limita, portanto, apenas a retornar olhar do pesquisador para a sua cidade por meios de processos de reinvencaof reencantamento de seus espagos cotidianas, mas capaciti-lo as exigéncias de rigor nas observagses etnogriificas ao longo de agdes que envolvem deslocamentos constantes no cenrio da vida urbana. ‘Lembanos aqui 0 trabalho de Michel Matfesoli, 1985, 8 Petonnet, 1982. " Beker e Rucha, 2000; 19-40, ees, Campinss. 9: 101-127, 2003 106 Eaografia de Rua: Estudo de Antropotogia Urbana Postulando uma carta de Porto Alegre Bairros, ruas, pragas ¢ esquinas Tomar-se “um” com 0s ritmos urbanos é perder-se no meio da multiddo, se deixar possuir por alguma esquina, fundir-se nos encontros fortuitos, mas é também localizar- conversas nipids dos habitantes Jocais, registrar piscudelas descompromissadas . rabiscar apressadamente um desenho destas experiéncias no seu bloco algumas fotos, gravar alenmas, Desenhos, croqui 2s, fotos, videos ete, No dizer bachelardiano, para se praticar uma boa etnogral te teritério como se ele fosse de rua o pesquisador precisa aprender a pertencer a sila morada, lugarde intimidade € acomodagao afetiv através dos devaneios do repou- Uma etnografia de rua propde ao antrop6logo, portant, o desafio de experienciar a ambiéneia das cidades como a de uma “morada de ruas” cujos caminhos, rufdos, ch ros € cores a percorrer sugerem, sem cessar, diregdes € sentidos desenhados pelo proprio movimento dos pedestres e dos carros que nos conduzem a certos lugares, censrios, paisagens, em detrimento de outros. Deslocamentos marcados por uma forma de apropriagao dinfimica da vida citadina, mas cuja apreensio pauta-se pela freqiiéneia sistemiitica do etnégrafo a uma rua ou tuma avenida, um bairro ou uma esquina etc. Neste sentido a etnografia “na” rua consis~ te no desenvolvimento da observacao sistemitica de uma rua e/ou das ruas de um bairro e da descrigio etnogrifiea dos cendrios, dos personagens que conformam a rotina da rua e bairro, dos imprevistos, das situagdes de constrangimento, de tensao conflito, de entrevistas com habitués e moradores, buscando as significagdes sobre 0 viver o di na cidade. Fruto de uma adesdo irrestrita do etnégrafo a uma ambiéneia urbana, escolha movida por amor ou 6Jio, & primeira vista ou no, pouco importa, a etnogratia de rua, por insisténcia recorrente & poética do andaritho, ao explorar/inventariar © mundo na insta vel de formas que tecem as bilidade do seu movimento, descobre um patriménio inta * Bachel i, 1989. ‘us Campinas, 9: LOL-127, 2008 Ana Luisa C. da Rocha e Cornelia Bekert wr interagdes sociais num lugar. Assim, o ato simples de andar torna-se estratégia para igualmente interagir com a populagio com que eruzamos nas ruas. Habitues freqiientadores, ou simples passantes, todos eles convidam o etnégrafo a perfilar perso- nagens, deserever agbes e estilos de vida a partir de suas performances cotidianas. E todos sio bons momentos para se re-tragar os cendrios onde transcorrem suas historias de vida e, a partirdeles, delinear as ambiéncias das intimeras provineias de signifieados que abrigam os terit6rios de uma cidade Através da técniea da etmografia de rua, pode-se argumentar, o antropélogo observa ‘cidade com objeto temporal, lugar de trajetos e percursos sobrepostes, urdidos numa trama de ages cotidianas. Percorrer as paisagens que conformam um tertt6rio, seguit os itineririos dos habitantes, reconhecer os trajetos, interrogar-se sobre os espagos evilados € evocar as origens do préprio movimento temporal desta paisagem urbana no espago. A cidade toma-se, assim, aos olhios do etndgrafo, um territério fluido e fugaz em alusfio “a unidade de uma stcessao diacronica de pontos percorridos, ¢ mio a figura que esses pontos formain num lugar supostamente sinerénico ou acrénico," Mas para se apreender a cidade como matéria moldada pelas trajet6rias humanas, ¢ ‘lo apenas como mero ttagado do destocamento indiferente de ur corpo no espage, & antropélogo precisa tecompor os tragos af deixados por homens ¢ mulheres. Uma etnografia de rua niio se sustenta como pritica antropoldgica de investigagao sem con- {emplar, desde seu interior, uma reflexao sobre o forte componente narrative que encer- ra os deslocamentos humanos eapaz dé metamorfosear “a articulagao temporal dos Tugares em uma seqiiéncia espacial de pontos”.'* Para se atingir um tal componente narrativo, o etnégrafo precisa contar com o tempo, como amigo. pois ele $6 0 atinge quando a densidade de sobreposicao cumulativa dos tempos vividos ao longo de um trabalho de campo, aparentemente fadiado a “perda de tempo”, se precipita diante dos seus olfios. Horas de um trabalho persistente de escritu- +a depositadas na tela do computador, fitas de video, peliculas fotogrificas ou folhus de * De Certeau, 1984, "tid uo, Campinas.9 101-127, 2003 108 Emmografia de Rua: Estudo de Antropologia Urbana papel, sempre na tentativa do investigador aprisionar 0 efémero, sto, finalmente, re- compensadas ¢ encontram, enfim, um sentido desvendado por um leque de conceitos. Sem diivida, na etnografia de ao perfil de uma comunidade, individuo efou grupo se ‘configura aos poucos, pois o etndgrafo trabalha pacientemente a partir de colagens de seus fragmentos de interagao. Isto porque uma cultura urbana se express nfio s6 por convengoes gestuais, de linguagens recorrentes, especializagdes profissionais de seus portadores, mas se apresenta igualmente através de suas priticas ordinsiias, saberes & tradigdes com as quais 0 pesquisador preci liarizar-se neste deslocamento em espagos que silo, ou ndo, 0 seu proprio lugar de origem. Na busca do encontro e didlogos menos fortuitos que aqueles que os deslocamentos ra rua permitem ao etnégrafo, a cumplicidade dos pequenos gestos, sortisos ou olhares dos habitantes da rua, moradores locais, comerciantes, freqtientadores, mendigos, ven- dedores ambulantes, menino(a)s de rua, Feirantes, pode signifiear um conyite a aproxi- magiio mais duradoura, Nestes rituais de sedueao e jogos de conquista da atengao do Outro, desvenda-se a légicn da criagio dos papeis através dos quais constroem-se 0 personagens do antropdlogo e do “nativo""® em inter Assim, ao lado das observagdes sistenxiticas dos lugares de sociabilidade de rua, das suas intensidades segundo os diferentes horarios, o comportamento corporal dos indivi- duos efou grupos nas esquinas, suas formas de interagio nos bares ¢ bancos de pracas, suas regras de evitagdes ou, ainda, as suas formas de cumprimentar ao eruzarem os olhares nas calgadas, tudo, enfim, vai criando sentido na observagie atenta do pesqui- sador & medida que ele se desloca, Esta caminhada vai sendo enriquecida em sua densidade temporal na medida em que o pesquisador consegue precisar, nas constanei- as de suas diversas idas e vindas, os aspectos de permanéneia ¢ mudanca que cara fc tertit6rio urbuno. Aos poucos, os movimnentos das lores ou passantes, se desenham em formas miliplas, mas constan- tos da propria rua observados meticulosamente pelo etnégrafo ne dio forma estética ae soas, freqiien tes, através de mit A nogiiy de “native” € 0 termo tSenieo para definir © OUTRO na interago de pesquisa de campo, nia abrigando mais os procanceios da origen histérica a nominago. -oneitual do mundo colonirad, mas aportand uma cons ua, Campinas, 9: 101-127, 2008 Ana Luiza € da Rocha e Comelia Bekert loo gragas a perspet da vida social Apesar de uma presenga freqiiente aos lugares, da insisténcia para ser visto € reco nnhecido pelo olhar do Outro, na etnogratia de rua o contato nasce sempre de um pedido de consentimento a interacao e troca possiveis que se seguem ao reconhecimento dos va comparativa de uma atenedo flutwante na observagto sistemiitiea movimentos, olhares, rufdos locais, eddigos e etiquetas a serem observadas e & aceita- io da comunicagiio solicitada Entretanto, 0 pesquisador que vivencia a dramatica da rua estd sujeito a conhecer diversidade de mieroeventos de interagdo, a qual ele proprio interage ou reage conforme a sittacdo experienciada. O contato, sempre 0 contato, expressa 0 desejo de ‘uma multiplicidade de trocas com os “nativos”, pois é a reciprocidade, sem diivid, a azo de ser e existir deste anatista da diversidade © complexidade cultural. Nesta interagdo, cle depende nao s6 do dominio da lingua do Outro para compreender 0 que & dito, mas da atengdo aos tons e meios tons, das insinuagdes e dos siléncios, dos nio- ditos ¢ refusas, Sem diivida, o contato nasce deste processo de ritualizago do estar na rua quotidianamente. Sugere-se aqui que 0s personagens do etnégrafie do“ m, ambos, muna relagiio que é construfda a partir de uma circunstineia artificial provocada, provocativa e, Por vezes, provocatsria, porque jamais natural. A construgio do cantexto do encontro einogriiico mutre-se destes etidigos apreendidos pelo antropélogo na sua observagio constante de si ¢ do Outro, muitas vezes sob o fogo eruzado da situagao de interagio tanto quanto de negociagdio de realidad. Em todas elas, os atos que unem os antrop logos aos nativos assumem formas ¢ graus diversos de sentido por suas especializags © desempenhos de papéis frente a eles. Tomando-se a pesquisa dos dramas sociais ¢ performances que encerra 0 teatro da vida urbana mediada pelo uso de recursos audiovisuais, estes cacdos Fevantados através do exercicio de etnografia de rua podem ajudar aqui na reflexao das implicagdes do §ntropélogo come intérprete de sua teia de significados. O uso da fotagratia ou do video na perspectivat do registro dramtico, e mesmo dramattirgico, das interagdes entre in viduos efou grupos na cidade permitem ao etndgrafo aprofundar o estudo das formas de iativo! ea, Campinas. 98: W1-127, 2003 0 Emografia de Rua: Estado de Amvopotogia Urbana sociabilidade no mundo contensporaineo sob at perspectiva da posesis'” que rege 0 es- tarjunto” de um corpo coletivo, a parti, portanto, da expressio compartihada de deter- minado tipo de comportamento estético entre os moradores e/ou habitués de wm 1 imo bairro, rua ou prédio de apart Em especial, o recurso sistematico do video nas etnografias de rua tem nos forgado surefletir sobre 0 papel estratégico da imagem-movimento nao apenas eomo modalidade de registro, no tempo, do proceso de insergiio do antropélogo em campo (seus dilaceramentos), mas como parte do seu processo de interpretagio dos atos de destrui- Gfiofreconstrucao das formas de vida social nas modernas cidaudes urbano-industrais, © de onde emerge a evideneia da eseritura etnogrifica como construgao da inteligéncia narrativa do proprio antrop6logo. Neste sentido, no émbito do desenvolvimento de um projeto sobre tivas como fonte de pesquisa para documentirios etnogrificos sobre a meméria coleti- va em Porto Alegre (desde 1997) ¢ em Patis (2001), a téonica de “etnogratia ha rua” como mais um exereicio que permite ao etnégrafo niio apenas reconhecer © interpretar o “nativo", mas igualmente interpretar o seu si-mesmo no contexto do didlo. go com 0 Outro. Se a etnografia de rua se ap studos de narra ia no uso de recursos audiovisuais, como cdmeras de de destaque. E se, em muitos momentos, & a situagio de interagdo que ir introduzir o uso do equipa- ‘mento audiovisual no trabalho de campo, em outros é a cfimera de video ou a méquina Fotogtifica que iri inserir 0 antropSlogo no seu lugar de pesquisa. No primeiro caso, o equipamento confirma o gesto da pesquisa naguilo que éeaptado como vivido humano no presente, seja 0 seu préprio, seja dos nativos, & mesmo de ambos. No segundo easo, as imagem registradas de instantineos, quase sempre autori- zadas, algumas até mesmo roubadas. ndo so apenas testemunhas do pasado do “ew estive 1a” do antropSlogo, Elas podem exprimir 0 desejo expresso do nativo de ver-se “jg, etenizado na imagem capturada pelo olhar do antropélogo."* video ow fotografia, o olhiar do antropdlogo por vezes assume um lag Ricoeur, 1994: $5-76 Os habitantes das grandes cidades, ¢ mesmo de certs lugares urbanos como feieas, pas te. st30 sulicicnlemente famiiarzades eo mundo teenalgicn da midis, compreendend-se cada vez maiscomo ‘tore do mundo sovial eno apenas espectadorespassivos.desenvolvendo ji alum tempo sta prpria forma de veivular imagem desi a0 ahs dos outa (pesqusadores omnalistas,eteasas et,) Pec, Camps. 9: 1HL-127, 2008 Ana Lica C. de Rocha e Camelia Eckert Ml nelusio da miquina fotogritica ou cimera de video na etnografia de na niio um ato compulsério, mas, quando for o caso, a sua adogio exige um certo conhecimento das regras dos eddigos de ética para 0 seu uso, conforme aceitagao por parte das natives, uma vez que o registro de imagens de pessoas e situagdes:no mundo urbano contemporiineo responde a direitos civis e disposigGes juridicas e legais."” Atenas d questio ética em torno da fixagao do olhar etnogrifico pela imagem foto- grifica e/ou videogriica, pode-se dizer que o uso de recursos audiovisuais durante uma etnogratia de rua uma intervengao que ora faz parte dt caminhada de reconhecimen- to do antropdlogo do seu lugar de pesquisa, ora configura-se como um momento de intervengao consemtida pelos personagens ji contatados. Sob este Angulo, o potencial interpretativo da imagem etnogeitica ja se apresenta no préprio contexto de int que cria a sua situagao de captagio, uma vez que o triunfo da imagem, fotogrifica ou videogritica, no trabalho de campo revela este frigil instante em que 0 pesquisador fousa inserever uma ruptura na interagio com 0 Outro.” Neste ponto, fica evidente que a proximidade etndgrafo/nativo na rua é possivel sem- pre que a presenga da cimera é aceita pelos sujeitos pesquisados. Nao raro, os préprios nativos sio convidados a manusear a camera (seja fotografia, seja video) registrando em imagens o mundo que the rodeia a partir de sua prépria perspectiva, dependendo, & Claro, de um tempo mais ou menos longo da equipe no contexto da pesquisa de campo. Imagem impressa num negativo, acomodida num papel ou transferida para a memé- ria do computador, fotos eoloridas ou preto e branco, decisio de enquadramentos, deli- nico da velocidade (‘empo), regulagem do diafragma etc.,a técnica exige um aprendi- zado que ni se processa sem que haja por parte do etnégrafo mediagdes conceituais, "Por exempto.i imagem de un estabelecimento comercial tom que ser anteriormente concedida mesmo «que ses Fata Fotoe a mmagem de uma peso faellmenteientificada tem que ser autoizadas. pela ‘sma. anesio queo uso desta imagem soja estritoao universe da aeaemia sem interesse comercial OU Ue mmereado, Ocorre que hoje eada vez mais os projtos “exteamuro" das universidades sio possiveis, Convite mas de TY local podem aeorter« posteriori o pesqsador tem que estar read juridicamente para a wlio das imagens produzidas no fmbito de sua pesquisa >A eoncondincia do grupo Aieites dei puta expasigesem loess palicas¢om pro sem diva, fundamental tanto quanto sua compreensio da existéneia dos cine seu seeite em asinar Uocumento pata tansmissao eventual da obra universitina ambien televisve, ‘uu, Campinas, 9: 101-127, 2003 2 Emografia de Rua: Esuulo de Antropologia Urbana Em ambos 0s casos, fotografia ou video, o processo posterior da descrigao etnografica, fn de campo, associado a0 da decoupage (ediga0 das irmagens), tormam-se um so de avaliaedo reflexiva da propria estética das imagens, distorcidas ou nao, «que habitarn os pensamentos do antroplogo em sitwagio de pesquisa de campo." Uma sintese do mundo Rue Faubourg du Temple ¢ Rue de Belleville ~ Paris A oportumidade de desenvolver um pés-doutoram 2001, eriou a possibilidade de ampliarmos para o contexto parisiense os exere‘cios de ‘etnografia de rua que vinhamos desenvolvendo em varios baitros de Porto Alegre. Em junho de 2001, dois meses apés nossa chegada a Paris © uma estada de dois meses alojadas em apartamento de amigos, no 13°" arrondissement (definigdo pelo qual a cidade de Paris 6 dividida administrativamente em bairros), mudamos para nossa mora dia alugada, um apartamento “deux pices”, situado na Rue de ft Fontaine au Roi, no 115 arrondissement, em editicio projetado pelo arquiteto Louis Fargon em 1894, con- forme esti inserito no pértico de entrada Li estivamos nds, habitando um bairro parisiense “tipico” em raziio de sustentar uma tradi¢ao pluriétnica, tal qual tinha sido nossa proposta de trabalho de pés- dontoramento estruturada ainda em Porto Alegre. Na época, a proposta era desvendar a cidade de Paris a partir de uma pesquisa etno: obre as formas tensionais de vida no seu comexto urbano, num ensaio comparativo com as situagdes por nbs pesqnisadas, no Brasil Recém-chegadas a0 bairro, € morando préximo & Place de ler Republique, uma regio considerada por muitos como territério de cruzamentos culturais os mais diver- nto em Paris, a0 longo do ano sos (0 que The ci uma feigio de desordem que nos lembra a paisagem urbana de deter- ides centros urbanos do Brasil), os primeiros dias no minadas dreas centrais dos Iocal foram de timidos passeios nas ceteanias da nova resid percorrendo iris =" Para o ease do registo em video, a equipe deve ser pequerna para que Sejapossive, no confesto da rat, “aconuista de wma proximal ints de roca do etndgrao com os ndviduas efou grupo investizados, fo que ui grande equipe no permite: oa, Campinas, 9: 101-127,2003 An Luiza C.d Rocha e Comelia Ez as suas ruas mais préximas ¢ confirmando as nossas representagdes a respeito das marcas da multietnicidade de sua paisagem, impress6es tecidas durante cinco anos, quando vivfamos em Pais (Eckert de 1987 a 1991 e Rocha de 1990 a 1994), na época de realizagao do dowtoramento, A escola de uma ruaem especial no bairro nos foi sugerida por um “nativo" francés e parisiense, A Rue de Betlevifle (derivado do nome “belavista” por situar-se na segun da maior elevagiio de Paris, apés Montmartre) nos foi apresentada como sendo uma

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