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Os usos do argumento tanhan FE Trniilmir Stephen E. Toulmin I. O layout de argumentos Um argumento é como um organismo: tem uma estru- tura bruta, anatémica, e outra mais-fina e, por assim dizer, fisioldgica. Quando explicitamente exposto em todos os seus detalhes, um s6 argumento pode precisar de muitas paginas impressas ou talvez um quarto de hora para ser narrado; e, naquele tempo ou espago, podem-se distinguir as fases prin- cipais que marcam o progresso do argumento a partir da afirmagao inicial de um problema nao-resolvido, até a apre- sentagio final de uma conclusao. Cada uma dessas fases prin- cipais ocupard alguns minutos ou pardgrafos, ¢ representa as principais unidades anatémicas do argumento — seus “6r- gdos”, por assim dizer. E pode-se reconhecer uma estrutu- ra mais fina, dentro de cada paragrafo, quando se desce ao nivel das sentencas individuais; com esta estrutura mais fina é que os légicos tém-se principalmente ocupado. Neste nivel fisiolégico introduziu-se a idéia de forma ldgica e, afi- nal de contas, é ali que a validade de nossos argumentos tem de ser estabelecida ou refutada. Chegou a hora de mudar o foco de nossa investigagao e de nos concentrarmos nesse nivel mais fino. No entanto, nao podemos deixar de tomar em consideragao o que apren- demos em nosso estudo da anatomia mais bruta dos argu- mentos, pois aqui, como no caso dos organismos, a fisiologia detalhada se mostra mais inteligivel quando exposta contra 136 OS USOS DO ARGUMENTO um pano de fundo de distingdes anatémicas mais grossei- ras. Os processos fisiolégicos so interessantes nfo apenas pelo papel que desempenham na manutengao das fungdes dos principais érg%os em que ocorrem; ¢ os microargumen- tos (como podemos batiza-los) devem ser vistos, de tempos em tempos, com um olho nos macroargumentos em que apa- recem; visto que o modo preciso como os expressamos e expomos, para s6 falar do que € menos importante, pode ser afetado pelo papel que os microargumentos tém a desem- penhar no contexto maior. Na investigacio que se segue, estudaremos a operacdo de argumentos sentenga por sentenga, a fim de ver como sua validade ou invalidade esta conectada ao modo como os dispomos, e que relevancia tem esta conexdo com a nogao tradicional de “forma légica”. Um mesmo argumento pode, sem dtvida, ser exposto em varias formas diferentes, ¢ alguns desses padroes de andlise serio mais imparciais do que outros — quer dizer, alguns deles mostrarfo mais clara- mente que outros a validade ou invalidade de um argumen- to, e permitirdo que se vejam mais explicitas as bases em que se apdiam e a relagao entre estas bases ¢ a conclusio. Como, entao, devemos expor um argumento, se quisermos mostrar as fontes de sua validade‘) E em que sentido a acei- tabilidade ou inaceitabilidade dos argumentos depende de seus defeitos e méritos “formais’””? Temos diante de nds dois modelos rivais — um modelo matematico e um modelo jurisprudencial. Pode-se compa- rar a forma légica de um argumento vdlido de"certé modo quase geométrico, e o “desenho” de um tridngulo ou o para lelismo de duas linhas retas? Ou, por outro lado, o que esta em questo tem mais a ver com procedimentos — argumen- to formalmente valido sera aquele que tenha forma apro- priada, como dizem os advogados, em vez de um argumen- to desenhado em forma geomérrica fixa ¢ simples? Ou sera O LAYOUT DE ARGUMENTOS 137 que a nogao de forma légica combina, de certo modo, estes dois aspectos, de tal maneira que desenhar um argumento na forma apropriada exija necessariamente que se adote um especifico /ayout geométrico? Se esta ultima resposta for a certa, ela cria de imediato um outro problema para nés: ver como € por que 0 procedimento apropriado exige que se adote forma geométrica simples, ¢ como essa forma garante, por sua vez, a validade de nossos procedimentos. Supondo-se que os argumentos validos possam ser moldados numa forma geometricamente fixa, como isto ajuda a torna-los mais cogentes? Estes sao os problemas a serem estudados nesta inves- tigagdo. Se pudermos ver o caminho que seguimos para es- clarecé-los, sera bem importante soluciond-los — sobretudo para entender o que é a légica. Mas temos de comecar com cautela e evitar questées filoséficas sobre as quais espera- mos langar alguma luz mais tarde; concentremo-nos, por enquanto, em questdes mais diretas e prosaicas. Sem per- der de vista as categorias da légica aplicada — isto é, a ati- vidade pratica da argumentagiio ¢ as nogées indispensaveis para argumentar — temos de perguntar que caracteristicas deve ter um /ayout logicamente imparcial dos argumentos. Para estabelecer conclusées ¢ preciso considerar uma série de questées diferentes — de diferentes tipos —, e temos de con- siderar estas questées para analisar os aspectos praticos; nossa primeira pergunta é: que questdes sao essas e como po- demos fazer justica a todas elas quando submetemos nossos argumentos a avaliagao racional’? Duas ultimas observagées ainda devem ser feitas 4 guisa de introdugao, a primeira das quais so para acrescentar outra pergunta & nossa agenda. Temos 0 habito, desde Aristételes, ao analisar a microestrutura dos argumentos, de apresenta-la de modo muito simples: apresentam-se juntas trés proposi- gdes, “premissa menor, premissa maior; portanto, conclu- sio”. Nosso problema agora é saber se esta forma padrio é 138 OS USOS DO ARGUMENTO. suficientemente elaborada ou imparcial. E claro que a sim- plicidade é um mérito, mas, neste caso, a simplicidade nio nos tera custado caro demais? Podemos adequadamente classificar todos os elementos de nossos argumentos sob os trés titulos, “premissa maior”, “premissa menor” e “conclu- sfio”, ou sera que nos enganamos, ¢ n&o bastam trés cate- gorias? E sera que as premissas maior e menor so suficien- temente semelhantes para que possam ser agrupadas, com proveito, sob a mesma rubrica de “premissa’’? A analogia com a jurisprudéncia pode iluminar estas questées. Nesta analogia, seriamos levados a adotar um layout mais complexo que 0 costumeiro, visto que as perguntas que fazemos aqui sio, mais uma vez, versées mais gerais de questdes familiares a jurisprudéncia, campo mais espe- cializado no qual se desenvolveram muitas distingdes. “Que espécies diferentes de proposigdes”, perguntardé um filésofo do Direito, “so proferidas no decorrer de um processo legal, ¢ de que diferentes modos tais proposi¢des podem re- lacionar-se com a solidez de uma ‘causa’ legal?” Esta ques- tio sempre foi e ainda é questao central para 0 estudante de jurisprudéncia, ¢ nés logo descobrimos que sé se pode com- preender adequadamente a natureza de um processo legal se estabelecermos um grande ntimero de distingdes. As decla- legais tém inumeras diferentes fungdes. Petigdes, ‘Ao, testemunho sobre eventos em dis- puta, interpretagdes de um estatuto ou discussdes de sua validade, reivindicagio de isengfo ou de imunidade para a aplicagao de uma lei, argumentos atenuantes, veredictos, sen- tencas; todas essas classes diferentes de proposigao tém pa- péis especificos a desempenhar nos processos legais, e as diferengas entre elas, na pratica, nao sao, nem de longe, insig- nificantes. Quando nos afastamos do caso especial da lei e volta- mos a considerar os argumentos racionais em geral, imedia- tamente tropegamos na questio de saber se também eles nao O LAYOUT DE ARGUMENTOS 139 tém de ser analisados por um conjunto igualmente comple- xo de categorias. Se tivermos de expor nossos argumentos com completa imparcialidade légica e compreender adequadamente a na- tureza “do processo ldgico”, teremos, com certeza, de empre- gar um padro de argumentos tio sofisticado, no minimo, quanto é necessario em Direito. O padréo de um argumento: dados e garantias “O que, entao, esta envolvido no processo de estabele- cer conclusdes mediante a produgao de argumentos?” Po- demos — considerando em termos gerais a questo — desen- volver a partir do zero um padrao de analise que faga justiga a todas as diferengas que 0 procedimento apropriado nos impdc? Este é 0 problema que nos espera. Suponhamos que fagamos uma asserg%o e por ela nos comprometamos com a alegagdo que toda assergio envolve necessariamente. Se esta alegacdo for desafiada, teremos de ser capazes de estabelecé-la — isto é, de prova-la e de mos- trar que era justificavel. Como isto deve ser feito? A menos que a assercao tenha sido feita de modo total- mente irrefletido e irresponsavel, normalmente teremos al- guns fatos que poderemos oferecer para apoiar nossa alega- cao; se a alegacao é desafiada, cabe a nds recorrer aqueles fatos ¢ apresenta-los como o fundamento no qual se baseia nossa alegacao. E claro que pode acontecér de 0 desafiador nao concordar conosco quanto a correcéio daqueles fatos e, minho a objegao dele, neste caso, temos que afastar do c: por meio de um argumento preliminar. S6 depois de termos cuidado desta questio prévia — ou “lema”’, como os gedme- tras a chamariam —, estaremos em posicgao de retornar ao argumento original. E basta, aqui, mencionar esta complica- 140 OS USOS DO ARGUMENTO cao; supondo-se que esteja resolvido 0 problema do lema, nossa questo é como expor o argumento original o mais completa e explicitamente. “O cabelo de Harry nao é preto”, nés afirmamos. O que temos para seguir em frente?, nos per- guntam. Temos nosso conhecimento pessoal de que, na ver- dade, 0 cabelo de Harry é vermelho; este é nosso dado, a base que apresentamos como suporte para a asser¢do origi- nal. Petersen, podemos dizer, nao sera um catdlico romano. Por qué? Baseamos nossa alegagao no conhecimento de que Petersen é sueco, 0 que torna muito improvavel que ele seja catélico romano. Wilkinson, afirma o promotor pablico no tribunal, cometeu um delito contra os Estatutos do Trafego Rodovidrio; como suporte para essa alegacao, dois policiais estao preparados para testemunhar que 0 viram e que 0 cro- németro indicou que Wilkinson dirigia a 70 km/h, em area urbana. Em cada caso, uma asser¢do original apdia-se em fatos apresentados que se relacionam a ela. Ja temos, portanto, uma distingdo a partir da qual pode- mos comegar: entre a alegacdo ou a conclusao cujos méri- tos estamos procurando estabelecer (C) e os fatos aos quais recorremos como fundamentos para a alegacao — que cha- marei de nossos dados (D). Se a pergunta de nosso desa- fiante for “o que vocé tem para seguir em frente?”, uma res- posta possivel & apresentar os dados ou a informacao em que se baseia a alegagaio; mas ha outros modos de desafiar nossa conclusio, Mesmo depois que apresentamos noss\ dados, pode acontecer de nos fazerem outro tipo de pergun- tas. Pode acontecer de alguém nos pedir nao que’aérescen- temos novas informagées factuais, além das que ja apresen- tamos, mas que indiquemos a relagéo que os dados ja apre- sentados tém com nossa conclus loquialmente, esta outra pergunta pode ser formulada nao em termos de “o que de “como voc 10. yoc¢ tinha para seguir em frente?”, mas, sir chegou até af?”. Apresentar um conjunto especifico de dados O LAYOUT DE ARGUMENTOS 141 como a base para determinada conclusio especifica nos com- promete com um certo passo: e a questéo agora é sobre a natureza e justificagiio desse passo. Supondo-se que encontremos esse novo desafio, nao temos de apresentar dados adicionais — uma vez que, sobre eles, também se podem imediatamente levantar as mesmas dividas. Temos, sim, de apresentar proposigdes de um tipo bem diferente: regras, principios, licencas de inferéncia ou © que se quisermos, desde que nfo sejam novos itens de in- formagao. Nossa tarefa jd nao é reforcar a base sobre a qual construimos nosso argumento, mas, em vez disto, consiste agora em mostrar que, tomando-se aqueles dados como ponto de partida, é apropriado e legitimo passar dos dados & alegagiio ou conclusao apresentada. Nesse ponto, portanto, precisa-se de afirmagées gerais, hipotéticas, que sirvam como pontes, e autorizem o tipo de passo com o qual nos comprometemos em cada um dos nos- sos argumentos especificos. Normalmente, este processo é escrito muito resumidamente, na expressio “se D, entao C”; pode-se contudo expandi-la, com lucro, em favor da impar- cialidade, e reescrevé-la como: “dados do tipo D nos dio o direito de tirar as conclusdes C (ou de fazer as alegagdes C)”, ou, noutra formulagao optativa, “dados (os dados) D, pode-se assumir que C”. Chamarei as proposigGes desse tipo de garantias (W), para distingui-las, por um lado, das conclusdes, e, por outro, dos dados. (Essas “garantias”, vale registrar, correspondem aos padrées praticos ou-canones de argumento, menciona- dos nos ensaios anteriores.) Para acompanhar os exemplos dados: 0 conhecimento de que o cabelo de Harry é verme- Iho nos da o direito de descartar qualquer sugestao de que seja preto, por conta da garantia de que “‘se alguma coisa ¢ vermelha, nao sera também preta”. (A trivialidade dessa ga- rantia tem a ver com 0 fato de que estamos lidando, ao mesmo 142 OS USOS DO ARGU! =NTO tempo, com uma contra-assergao e com um argumento.) O fato de que Petersen é sueco é diretamente relevante para a questo de como classificé-lo quanto a religido, pois pode- se dizer que “é praticamente garantido que quem for sueco nao sera catélico romano”. (O passo envolvido aqui nao é trivial; portanto, a garantia nao é auto-autenticante.) Tam- bém no terceiro caso: nossa garantia tera de ser alguma sen- tenga semelhante a “é praticamente garantido que um ho- mem contra o qual se provou que dirigia a mais de 50 km/h, cm area urbana, cometeu um delito contra os Estatutos de Trafego Rodoviario”. E preciso perguntar imediatamente se ha absoluta dife- renga entre dados, de um lado, e garantias, de outro. Sera que sempre perceberemos claramente se um homem que desa- fia uma assergao pede que 0 adversario Ihe apresente ou os dados ou as garantias que autorizam os passos? Em outras palavras: ha meios para distinguirmos claramente entre a forga de (a) “o que vocé tinha para seguir em frente’?” e (b) “como vocé chegou ai?”. Se tivermos de trabalhar s6 com testes gramaticais, a disting%io pode parecer quase impossivel, e, em inglés, uma mesma sentenga pode servir As duas fungées, isto é, pode ser usada, num caso, para transmitir uma informagao, e, nou- tro, para autorizar um passo num argumento; e, em deter- minados contextos, talvez possa ser usada até para fazer essas duas coisas ao mesmo tempo. (Adiante, havera exemplos de todas essas possibilidades.) Por enquanto, o que impor- ta € no tratar o assunto de modo nem seco nem técnico demais, nem nos comprometer antecipadameiite’ com uma ierminologia muito rigida. De qualquer modo, temos de en- tender que é possivel, em a/gumas situagdes, distinguir cla- ramente entre duas fungées logicas diferentes; ¢ pode-se co- megar a perceber a natureza desta distingAio, se se comparam duas sentengas como (a) “sempre que A, alguém constatou B”, e (b) “sempre que A, pode-se assumir que B”. O LAYOUT DE ARGUMENTOS 143 ‘Temos agora os termos de que precisamos para com- por 0 primeiro esqueleto de um padrao para analisar argu- mentos. Podemos representar por uma seta a relacdo entre os dados e a alegagao que eles apdiam; e indicar como ga- rantia, escrita sob seta, o que autoriza a passar dos dados para a alegacao —» entio C ja que w Ou, para dar um exempl Harry € stdito Harry nasceu ] = ++ entio : nas Bermudas. | britinico Desde que Um homem nascido nas Bermudas 6 stidito britinico Como este modelo deixa claro, 0 apelo explicito nesse argumento vem diretamente da alegagado para os dados com que se contou para fundamenta-los; a garantia 6, num certo sentido, incidental e explanatéria, com a Unica tarefa de registrar, explicitamente, a legitimidade do passo envolvido e de referi-lo, outra vez, na classe maior de passos cuja legi- timidade esta sendo pressuposta. Esta é uma das razGes para distinguir entre dados e ga- rantias; recorre-se a dados de modo explicito; ¢ a garantias, de modo implicito. Além disso, pode-se observar que as garantias sao gerais, certificando a solidez de todos os argu- mentos do tipo apropriado, e, portanto, tém de ser estabe- lecidas de modo muito diferente dos fatos que apresentamos como dados. Essa distingao entre dados e garantias é seme- lhante a distingdo que se faz, nos tribunais de justica, entre questdes de fato € questGes de direito, e a distingdo legal é de fato um caso especial do caso mais geral. Por exemplo, 144 OS USOS DO ARGUMENTO pode-se argumentar que um homem sobre quem sabemos que nasceu nas Bermudas é presumivelmente um stidito bri- tanico exclusivamente porque as leis relevantes nos dao garantia suficiente para tirar essa conclusao. Outra questio geral, de passagem: a menos que esteja- mos preparados, em qualquer campo especifico de argu- mento, para operar com garantias de a/gum tipo, sera impos- sivel, neste campo, oferecer argumentos para avaliagao ra- cional. Os dados que citamos, no caso de uma alegagiio ser desafiada, dependem das garantias com as quais estamos preparados para operar nesse campo, e as garantias com as quais nos comprometemos esto implicitas nos passos espe- cificos — dos dados as alegagdes — que estamos preparados a dar e admitir. Mas supondo-se que alguém rejeite todas & quaisquer garantias que autorizam (digamos) os passos que levam dos dados (sobre o presente e 0 passado) até conclu- sdes sobre o futuro, entao, para esta pessoa, a previsao ra- cional se tornara impossivel; e muitos filésofos negaram, de fato, a possibilidade da previsio racional sé porque pen- savam que podiam desacreditar igualmente a alegagao de todas as garantias de passado-para-futuro. O esqueleto de modelo que obtivemos até aqui é sé um. comego. Podem surgir agora outras questdes, as quais tere- mos de dar atengao. Ha garantias de varios tipos, ¢ elas podem conferir diferentes graus de forca as conclusdes que justifi- cam. Algumas garantias nos autorizam a aceitar inequivo- camente uma alegagao, sendo os dados apropriados; estas garantias nos dao 0 direito, em casos adequados, de quali- ficar nossa conclusio com 0 advérbio “necessariamente”; outras nos autorizam a dar provisoriamente 0 passo dos da- dos para a conclusao; ou a sé da-lo sob certas condigdes, com excegdes ou qualificagdes — para estes casos, ha outros qualificadores modais mais adequados, como “provavelmen- te” e“presumivelmente”, Portanto, pode acontecer de nao bas- OLAYOUT DE ARGUMENTOS 145 tar que especifiquemos nossos dados, garantia e alegagio; pode ser preciso acrescentar alguma referéncia explicita ao grau de forga que nossos dados conferem a nossa alegagiio em Virtude de nossa garantia. Numa palavra, pode aconte- cer de termos de inserir um qualificador. E 0 que acontece também nos tribunais de justiga, onde, muitas vezes, nao basta recorrer a um estatuto dado ou doutrina do direito comum, mas é necessario discutir também, explicitamente, o limite até o qual se aplica, num caso determinado, uma deter- minada lei especifica; se a lei tem inevitavelmente de ser apli- cada em tal caso, ou se tal caso pode ser tomado como uma excecdo a regra, ou é um caso em que a lei s6 pode aplicar-se se for limitada a determinadas qualificagdes. Se tivermos de tomar em consideragdo também essas caracteristicas de nosso argumento, nosso modelo tera de ser mais complexo. Qualificadores modais (Q) e condigées de excegao ou refutagdo (R) sao diferentes tanto dos dados como das garantias, e merecem lugares separados em noss layout. Assim como uma garantia (W) nao é em si nem dado (D) nem alegagao (C), visto que implicitamente faz referéncia a D e faz referéncia a C — a saber, (1) que 0 passo de um para o outro € legitimo; ¢ (2) que, por sua vez, Q € R sao em si diferentes de W, j4 que comentam implicit: mente a relagdo entre W ¢ aquele passo — assim também os qualificadores (Q) indicam a forca conferida pela garantia a esse passo, e as condigdes de refutagdo (R) indicam cir- cunstancias nas quais se tem de deixar de lado a autoridade geral da garantia. Para marcar essas outras distingdes, po- demos escrever 0 qualificador (Q) imediatamente ao lado da conclusao que ele qualifica (C); e as condigdes excepcio- nais, capazes de invalidar ou refutar a conclusao garantida (R), imediatamente abaixo do qualificador. Para ilustrar: nossa alegacao de que Harry é um stidito britinico pode ser defendida, em geral, recorrendo-se a infor- 146 OS USOS DO ARGUMENTO magiio de que ele nasceu nas Bermudas, uma vez que este dado empresta suporte 4 nossa conclusao, por conta das ga- rantias implicitas nas Leis de Nacionalidade Britanica; mas © argumento nao é conclusivo por si mesmo, se nao se acres- centarem provas relativas a sua ascendéncia e A possibilida- de de ele ter ou nao mudado de nacionalidade, em algum momento da vida. O que nossa informagio faz é estabele- cer que a conclusao continua “presumivelmente” vigente, ¢ sujeita aos dispositivos apropriados. O argumento assume agora a seguinte forma. D > assim, Q, € | | jaque a menos que w R isto é Harry nasceu | Assim, presumivelmente, nas Bermudas { m p | Harry nas Bermudas é um stidito britinico Ja que A menos que | | - Um homem que Seu pai ¢ sua mae sejam nasceu nas Bermudas estrangeiros/ele tenha adotado serd, em geral a cidadania americana sidito britanico Além disso, temos de destacar outras duas diferengas. A primeira é a diferenga que ha entre uma afirmacdo de uma garantia e afirmagées sobre a aplicabilidadé desta garantia entre “um homem nascido nas Bermudas ser britanico” e “essa suposicio continua vigente, desde que seus pais nao sejam estrangeiros etc.”. A distingdo é relevante nao sé para as leis do pais, mas também para compreender as leis cien- tificas ou “leis da natureza”; é importante, de fato, em todos 08 casos em que a aplicagao de uma lei possa estar sujeita OLAYOUT DE ARGUMENTOS 147 a excecdes, ou quando o tinico modo de dar apoio a uma ga- rantia seja apontar uma correlagao geral, no uma correla- 9 absolutamente invaridavel. Também podemos distinguir dois propésitos aos quais pode servir a apresentagao de fatos adicionais; 0s novos dados podem servir para aumentar 0 numero de indicios, e podem também ser citados para con- firmar ou refutar a aplicabilidade de uma garantia. Assim, o fato de Harry ter nascido nas Bermudas e o fato de seus pais nao serem estrangeiros so diretamente relevantes para a questdio de sua nacionalidade; porém, sio relevantes de modos diferentes. O primeiro é um dado que estabelece, por si s6, a suposiciio de nacionalidade britanica; o segundo fato — ao afastar uma possivel refutagao — tende a confirmar a suposicgio que se tenha criado Teremos de deixar para mais adiante a discussdo de um problema especifico sobre aplicabilidade: quando expomos um exemplo de matematica aplicada, no qual é usado algum sistema de relagdes matematicas para langar luz sobre uma questio de (digamos) fisica, uma coisa seré a corregio dos calculos; e outra, bem diferente, a adequabilidade do exem- plo, no caso do problema em exame. Assim, perguntar “este calculo esta matematicamente perfeito?” pode ser muito di- ferente de perguntar “é este o cdlculo que interessa’ . Aqui, também, a aplicabilidade de uma garantia especifica ¢ uma ques cacao da garantia; ao perguntar sobre a corregdo do resul- tado, pode acontecer de termos de investigar, separadamente, cada uma destas questées. . 0, € outra € o resultado que obteremos a partir da apli- O padréio de um argumento: para apoiar nossas garantias Uma ultima disting’o, 4 qual ja nos referimos de passa- gem, tem de ser discutida um pouco mais detalhadamente. 148 OS USOS DO ARGUMENTO: Além da questao de se, ou em que condig¢ées, uma garantia é aplicavel num caso particular, pode acontecer de nos per- guntarem por que uma dada garantia tem de ser aceita, em geral, como garantia com autoridade. Em outras palavras, ao defender uma alegagao, apresentamos nossos dados, nos- sa garantia e as condigées e qualificacgées relevantes, e des- cobrimos que, contudo, ainda nao satisfizemos nosso desa- fiador; pois ele pode ter dividas nao sé em relagao a este argumento especifico, mas em relagao a questao mais geral de se a garantia (W) é, de algum modo, aceitavel. Pode acon- tecer de nosso adversdrio admitir nossa garantia em geral e, neste caso, nosso argumento seria, sem ditvida, impecavel — se nossos fatos D forem aceitos como apoio suficiente para nossas C, tudo muito bem. Mas essa garantia nao se baseia, por seu turno, numa outra coisa? Desafiar uma alegagao especifica pode, assim. levar a desafiar, de um modo mais geral, a legitimidade de toda uma série de argumentos. “Vocé presume que um homem nascido nas Bermudas tenha de ser considerado swdito bri- tanico” — e o desafio pode continuar — “mas por que vocé pensa assim?” Como este exemplo nos lembra, por tras de nossas garantias normalmente haverd outros avais, sem os quais nem as proprias garantias teriam autoridade ou vigén- cia. Estes avais podem ser tomados como 0 apoio (B) das garantias. Esse apoio de nossas garantias tem de ser inves- tigado com muito cuidado; temos de esclarecer precisamen- te que relagdes ha entre ele e os nossos dados, nossas ale- gacdes, as garantias e as condigées de refutagaio; pois qual- quer confus’o nesse ponto pode nos criar problemas mais adiante. Teremos de notar, em particular, o modo como varia, de um campo de argumento para outro, 0 tipo de apoio que nossas garantias requerem. A forma de argumento que em- pregamos em diferentes campos OLAYOUT DE ARGUMENTOS 149 D ——> assim, Q. C jAque a menos que w R nao precisa variar tanto quanto entre campos. “Uma baleia sera um mamifero”, “um bermudense sera um britaénico”, “um drabe-saudita seraé um mugulmano”; aqui estio trés garantias as quais podemos recorrer no decorrer de um ar- gumento pratico, sendo que cada uma delas pode justificar a mesma espécie de passo direto de um dado para uma con- clusao. Poderiamos acrescentar, sem grande diferenga, exem- plos ainda mais variados, tirados de campos da moral, da matematica ou da psicologia. Mas no momento em que per- guntamos sobre 0 apoio em que uma garantia se baseia, em cada campo, comecam a aparecer grandes diferengas; o tipo de apoio que precisamos apontar se tivermos de estabelecer a autoridade de uma garantia mudara muitissimo, cada vez que mudarmos de um campo de argumento para outro. “Uma baleia sera (isto ¢, é classificdvel como) um mamifero”, “um bermudense sera (aos olhos da lei) um britanico”, “um Arabe-saudita sera (descobrir-se-4 que é) um muculmano” — as palavras entre parSnteses indicam quais so essas dife- rengas. Defende-se uma garantia ao relaciond-la a um sis- tema de classificacao taxiondmica; defende-se outra ao te- correr aos estatutos que governam a nacionalidade de pes- soas nascidas em colénias inglesas; defende-se a terceira ao considerar as estatisticas que registram como as crengas re- ligiosas estao distribuidas entre pessoas de diferentes nacio- nalidades. Podemos, por enquanto, deixar sem resposta a questo mais controversa sobre como estabelecemos nossas garantias nos campos da moral, da matematica e da psico- logia; por enquanto, basta que mostremos a variabilidade ou a campo-dependéncia do apoio necessario para estabe- lecer nossas garantias. 150 OS USOS DO ARGUMENTO Podemos abrir espago para esse elemento adicional em nosso modelo de argumento, escrevendo-o abaixo da pura afirmagio da garantia para a qual cle serve de apoio (B): — assim, Q, C | ja que a menos que Ww R | por conta de B Esta forma pode nao ser final, mas é suficientemente complexa para 0 propésito de nossas discussdes atuais. Para tomar um exemplo especifico: em apoio a alegag3o (C) de que Harry é stidito britanico, apelamos ao dado (D) de que ele nasceu nas Bermudas, e a garantia pode entao ser afir- mada na forma “um homem nascido nas Bermudas pode ser considerado stidito britanico”; no entanto, como as questdes de nacionalidade sdo sempre sujeitas a qualificagdes e con- dicdes, teremos de inserir um “presumivelmente” qualifica- dor (Q) diante da conclusao, e notar que nossa conclusio pode ser refutada caso se verifique (R) que seus pais eram estrangeiros, ou entao que, depois disso, ele se naturalizou norte-americano. Finalmente, caso a propria garantia seja desafiada, poderemos inserir 0 apoio, com os termos € as datas de decretag&o dos Atos:do Parlamento e outros dispo- sitivos legais que governam a.nacionalidade de pessoas nas- cidas em colénias inglesas. O resultado seré um argumen- to exposto da seguinte maneira: O LAYOUT DE ARGUMENTOS 151 Harry nasceu Assim, presumivelmente. nas Samal PI | Ja que A menos que Harry nas Bermudas um stidito britinico Um homem nascido Seus pais sejam estrangeiros/ele nas Bermudas sera, s¢ tenha tornado americano em geral, siidito naturalizado britanico Por conta de Os seguintes estatutos € outros dispositivos legais: De que modos 0 apoio das garantias difere de outros elementos de nossos argumentos? Para comegar com as diferengas entre B e W: afirmagées de garantias, nés vimos, | so hipotéticas — so afirmages-pontes —, mas 0 apoio para as garantias pode ser expresso na forma de afirmagées cate- goricas de fato, como também podem ser expressos os dados invocados em suporte dircto para nossas conclusdes. Enquanto nossas afirmagées refletirem explicitamente estas diferen- cas funcionais, néo haverd perigo de confundir 0 apoio (B) de uma garantia e a propria garantia (W); estas confusdes sO surgem quando as diferengas so mascaradas pelas nos- sas formas de expressao. Em nosso atual exemplo, em todo | caso, nao ha dificuldade necessaria. O fato de os estatutos relevantes terem sido validamente convertidos em lei, e de conterem os dispositivos que contém, pode ser facilmente verificado nos Anais do Parlamento, nos volumes certos dos textos de lei € de estatutos; a descoberta resultante, de que tal e tal estatuto promulgado em tal e tal data contém um dispositive por forga do qual pessoas nascidas em colénias inglesas com ascendéncia adequada terao direito a cidada- nia brit&nica, é uma direta afirmaciio de fato. Por outro lado, 152 OS USOS DO ARGUMENTO a garantia que aplicamos em virtude do estatuto que contém esse dispositivo tem carater l6gico muito diferente — “se um homem nasceu numa colénia inglesa, pode-se presumir que seja britanico”’. Embora os fatos sobre o estatuto fornegam todo o apoio pedido para esta garantia, a afirmagao expli- cita da garantia em si € mais do que repetigao desses fatos; uma ligao moral de carater pratico, sobre os modos pelos quais podemos argumentar, com seguranga, em vista desses fatos. Também podemos distinguir entre apoio (B) e dados (D). Embora os dados a que recorremos num argumento ¢ 0 apoio que empresta autoridade a nossas garantias possam do mesmo modo ser afirmados como questdes de fato dire- as, os papéis que essas afirmagdes desempenham em nosso argumento s4o decididamente diferentes. Para haver argumento é preciso apresentar dados de algum tipo; uma concluso pura, sem quaisquer dados apre- sentados em seu apoio, nao é um argumento. Mas o apoio das garantias que invocamos nao tem de ser explicitado, pelo menos para comegar; as garantias podem ser aceitas sem desafio, c scu apoio pode ser deixado subentendido. De fato, se pedissemos as credenciais de todas as garantia: © nunca deixdssemos passar nenhuma sem ser desafiada, o ar- gumento mal poderia comegar. Jones apresenta um argu- mento invocando a garantia W,, ¢ Smith desafia essa garan- sentar um outro a vis tia; Jones é obrigado, como lema, a apr argumento, na esperanga de estabelecer a aceitabilidade da primeira garantia, mas, no decorrer desse lema, emprega uma segunda garantia W); por seu turno, Smith desafia as cre- denciais dessa segunda garantia; e pode acontecer de o jogo continuar assim, indefinidamente. Para que a discussao avan- ce € possamos continuar 0 jogo, algumas garantias tém de ser provisoriamente aceitas, sem desafio adicional; nés nem saberemos que tipo de dados sio relevantes para uma dis- OLAYOUT DE ARGUMENTOS 153 cussio — por menor que seja esta relevancia — se nio tiver- mos pelo menos uma idéia provisoria de que garantias serio aceitaveis numa dada situag&o que tenhamos de enfrentar. Temos 0 direito de dar por certo que ha consideragées tais que podem estabelecer a aceitabilidade das garantias mais fidedignas. Por fim, uma palavra sobre as diferencas entre B, Qe R Sao diferengas ébvias demais para que tenhamos de desen- volvé-las, visto que, € claro, uma coisa s4o os motivos para considerar aceitavel em geral uma garantia, outra coisa é a forga que a garantia empresta a uma conclusao ¢ uma ter- ceira coisa sao os tipos de circunstancias excepcionais que, em casos especificos, podem refutar as suposigées criadas pela garantia. Correspondem, em nosso exemplo, as trés afirmagoes, (i) que os estatutos sobre a nacionalidade bri- tanica foram de fato transformados validamente em lei, ¢ determinam ..; (ii) que se pode presumir que Harry seja stidito britanico; e (iii) que Harry, tendo se naturalizado ame- ricano ha pouco tempo, ndo estd mais protegido por aqueles estatutos. Temos ainda de insistir, de passagem, na questo de como se devem interpretar os simbolos de nosso modelo de argumento, assunto que pode langar luz sobre um exemplo um tanto quanto intricado, com © qual deparamos ao dis- cutir as opinides de Kneale sobre probabilidade. Conside- remos a seta que une D ¢ C. Pode parecer natural sugerir, a principio, que essa seta deva ser interpretada como “assim”, numa direg&o, e como “porque” na outra:-Ha,°entretanto, outras interpretagdes possiveis. Como ja vimos, 0 passo a partir da informagao de que Jones tem o mal de Bright para a concluso de que nao se pode esperar que ele viva até os 80 anos nao pode ser perfeitamente invertido. Achamos bas- tante natural dizer “ndo se pode esperar que Jones viva até os 80 anos, porque ele tem o mal de Bright”; mas a asser- 154 OS USOS DO ARGUMENTO go completa — “nao se pode esperar que Jones viva até os 80 anos, porque a probabilidade de ele viver tanto tempo é baixa, porque ele tem o mal de Bright” — nos parece pesa- da e artificial. Por outro lado, nao sentimos que haja o que objetar numa sentenga como “Jones tem o mal de Bright, assim as chances de ele viver até os 80 anos sao insignifi- cantes, assim nao se pode esperar que ele viva tanto tempo”, porque a iltima cldusula é (por assim dizer) uma cléusula inter alia — ela afirma uma das varias “ligdes” especificas que se podem deduzir da clausula do meio (que nos conta sobre sua expectativa geral de vida). Assim também no caso presente: quer leiamos ao longo da seta, da direita para a esquerda, ou da esquerda para a dircita, podemos dizer, em geral, tanto “C, porque D”, como “D; ent&o C”. Mas, pode acontecer, as vezes, que se possa garantir uma determinada conclusio mais geral do que C, dado D; neste caso, muitas vezes nos parecer natural escre- ver nao apenas “D; entio C”, mas também “D, entdo C’, entao C”, onde C’ é a conclusado mais geral garantida em virtude dos dados D, a partir dos quais nds inferimos inter alia aquele C. Nestas circunstancia, nossos “entao” ¢ “por- que” deixam de ser reversiveis; se lermos agora 0 argumen- to invertido, a afirmacéo que obtemos — “C, porque C’, por- que D” — é outra vez mais pesada do que a situagao real- mente pede. Ambigiiidades no silogismo Chegou o momento de comparar, de um lado, as dis- tincdes de importancia pratica que descobrimbs no layout € na critica de argumentos, e, de outro, a critica que se encon- tra, tradicionalmente, em livros sobre a teoria da légica. Vejamos, para comecar, como as diferencas que esta- belecemos aplicam-se 20 silogismo ou ao argumento silo- O LAYOUT DE ARGUMENTOS 155 gistico. Para os propésitos deste nosso argumento, podemos nos concentrar apenas em uma das muitas formas de silo- gismo — a que é representada no exemplo consagrado pelo tempo: Socrates € homem; todos os homens so mortais; logo, Sécrates é mortal Esse tipo de silogismo tem caracteristicas especiais. A primeira premissa é “singular” e se refere a um individuo especifico, e s6 a segunda premissa é “universal”. O proprio Arist6teles também interessou-se muito por silogismos em que ambas as premissas eram universais, visto que, em sua opinifo, era de esperar que muitos dos argumentos dentro da teoria cientifica devessem ser deste tipo. Mas a nds interes- sam, em primeiro lugar, argumentos pelos quais se aplicam proposigdes gerais para justificar conclusdes especificas sobre individuos; portanto nos convém esta limitagao ini- cial. Muitas das conclusées a que chegamos, em todo caso. aplicar-se-do, obviamente — mutatis mutandi — a outros tipos de silogismos. Podemos comegar por perguntar “o que corresponde, no silogismo, a nossa distingao entre dados, garantia e apoio’”. Se insistirmos nessa questao, descobriremos que as formas aparentemente inocentes usadas nos argumentos silogisti- cos ocultam, de fato, alguma complexidade. Pode-se compa- rar esta complexidade interna a que observamos no caso das conclusdes modalmente qualificadas; aqui, comé 1a, teremos de desembaragar duas coisas diferentes — a forga das pre- missas universais, quando consideradas como garantias, ¢ 0 apoio de que dependem para sua autoridade. Para esclarecer estes pontos, nao percamos de vista nao apenas as duas premissas universais nas quais todos os logi- cos se concentram — “todos os A’s séo B’s” e “nenhum A & 156 OS USOS DO ARGUMENTO. B” —, mas também, além destas, duas formas de afirmagao que provavelmente usamos, na pratica, com a mesma fre- qiiéncia — “‘quase todos os A’ $s” e “quase nenhum A ¢ B”. A complexidade interna destas afirmagGes pode ser ilustrada primeiro, e mais claramente, com exemplos destes dois ultimos casos. Consideremos, por exemplo, a afirmagaio “quase nenhum sueco € cat6lico romano”. Essa afirmagado pode ter dois as- pectos distintos: e pode acontecer de ambos serem operan- tes, ao mesmo tempo, quando a afirmagdo aparece num ar- gumento, mas, mesmo assim, é possivel distingui-los. Para comegar, a afirmacao acima pode servir como simples rela- trio estatistico; neste caso, pode muito bem ser escrito na forma mais longa “a proporg’o de suecos que € catdlica romana é menor que (digamos) 2%” — e podemos acrescen- tar uma referéncia, entre parénteses, 4 fonte de nossa informa- cao, “(de acordo com as tabelas no Whittaker 's Almanac)”. ‘A mesma afirmagio pode, por outro lado, servir como ge- nuina garantia de inferéncia; neste caso, 0 mais natural sera desenvolvé-la de outro modo, para obter uma afirmagao mais imparcial: “pode-se assumir com quase certeza que um sueco nao é catélico romano”. Enquanto considerarmos por si so a sentenga simples “quase nenhum sueco é€ catdlico romano”, esta diferenga pode parecer bastante insignificante; mas se nés a aplicar- mos 4 andlise de um argumento no qual a sentenga apareca como premissa, obteremos resultados um pouco mais signi- ficativos. Construamos ent&o um.argumento,.de forma quase- silogistica, em que essa afirmagio apareca na posicio da “premissa maior”. Por exemplo, o seguinte: Petersen & sueco: quase nenhum sueco & catlico romano; logo, com quase certeza, Petersen nao é catélico romano. O LAYOUT DE ARGUMENTOS 157 A conclusao desse argumento é apenas proviséria, mas, em outros aspectos, o argumento é exatamente como um si- logismo. Como vimos, a segunda dessas afirmagées pode ser ex- pandida de dois modos, e assume a forma ou de “a propor- a0 de suecos que é catdlica romana é menor que 2%”, ou, entiio, de “pode-se assumir com quase certeza que um succo nao € catdlico romano”. Vejamos agora 0 que acontece se substituimos cada uma dessas duas versGes expandidas, por seu turno, pela segunda de nossas trés afirmagées originais. Num caso obtemos o seguinte argumento: pode-se assumir com quase certeza que um sueco nao € catélico romano; assim, quase certamente, Petersen nao é catélico romano Aqui, as linhas sucessivas correspondem, na nossa ter- minologia, a afirmagdo de um dado (D), uma garantia (W) e uma conclusdo (C). Por outro lado, se fizermos a substi- tuigo alternativa, obteremos: Petersen @ sueco; a proporgio de suecos catélicos romanos ¢ menor que 2° assim, quase certamente, Petersen no é catélico romano. Neste caso, temos de novo 0 mesmo dado e a mesma conclusdo, mas a segunda linha declara, agora, 0 apoio (B) para a garantia (W), que, ela mesma, ninguém declara. Para resumir, podemos agora abreviar-ds duas versoes expandidas, e podemos obter respectivamente os dois ai mentos: (D) Petersen é sueco (W) um sueco nio ¢, com quase certeza, catélico romano; logo, (C) Petersen nao &, com quase certez e (D) Petersen € sueco; catélico romano; 158 OS USOS DO ARGUMENTO (B) a proporgao de suecos catélicos romanos é muito pequena; logo, (C) Petersen, com quase certeza, nao é catdlico romano. ja se deve poder perceber a importancia da diferen- ga entre a nossa idéia e a concepgao tradicional de “valida- de formal”. Adiante, voltaremos a este assunto. Voltando a forma “nenhum A é B” (por exemplo, “ne- nhum sueco é catdélico romano”), também se pode estabe- lecer uma distingdo semelhante. Também este tipo de afir- maciio pode ser empregada sob duas formas — como relaté- rio estatistico ou como garantia de inferéncia. Pode servir para simplesmente relatar uma descoberta feita por um estatisti- co — digamos, que a proporgao de suecos catélicos roma- nos 6, de fato, zero; e, por outro lado, também pode servir para justificar que se pode tirar uma conclusao do argumen- to, tornando-se equivalente 4 afirmagao explicita “pode-se assumir com certeza que um sueco nao é catélico romano”. E podemos fazer a mesma interpretago, se examinarmos um argumento que inclui nossa afirmagao-amostra como pre- missa universal. Consideremos 0 argumento: Petersen € sueco; nenhum sueco € catélico roman assim, com certeza, Petersen nao é catélico romano. Que pode ser entendido de dois modos; podemos eserever: Petersen € sueco; a proporgao de suecos catdlicos romanos é.zero; logo, com certeza, Petersen no é catdlico romano; e podemos também escrever: Petersen é sueco; um sueco nao é, com certeza, catélico romano; logo, com certeza, Petersen no é catélico romano. O LAYOUT DE ARGUMENTOS 159 Aqui, mais uma vez, a primeira formulagdo equivale, na nossa terminologia, a dispor 0 argumento na forma “D, B, logo C”:; ao passo que a segunda formulagao é equivalen- te a disp6-lo na forma “D, W, logo C”. Portanto, no caso de estarmos lidando com um argumento do tipo “quase ne- nhum...” ou com um argumento do tipo “nenhum...’, o modo habitual de express4-lo tender, nos dois casos, a ocultar de nés a diferenga que ha entre uma garantia de inferéncia ¢ seu apoio. O mesmo sera verdade no caso de “todos e “quase todos”; aqui, também, a distingio entre dizer “descobriu-se que todo ou quase todo A é B” e dizer “pode-se assumir com certeza ou com quase certeza que algum A é B” acaba escondida pela forma supersimplificada da expressao “to- dos os As sao Bs”. F, deste modo, pode acontecer de uma diferenga crucial na fungao pratica passar despercebida. Nosso modelo de analise, mais complexo, em compa- ragio, evita esse defeito. Ele no deixa espago para ambi- gilidade; criam-se, no modelo, lugares inteiramente separa dos para 0 que é a garantia e 0 que é 0 apoio do qual de- pende a autoridade da garantia. Por exemplo, nosso argumen- to “quase nenhum...” terd de ser exposto da seguinte maneira D (Petersen Assim Q(quase _C (Petersen nfo & sueco) certamente) & catélico 34 que romano) w (Pode-se assumir com quase certeza que um Sueco nado caiélico romano) folie B (A proporgao de succos catélicos romanos é menor que 2%) 160 OS USOS DO ARGUMENTO E devem-se transcrever, por este modelo, os outros trés ti- pos. Deve-se portanto ter em mente a mesma distingao tam- bém quando teorizamos sobre o tipo de silogismo no qual desempenham papel central as proposigdes do tipo “todos os A’s sao B’s” e “nenhum A é B”. Do modo como aparece, a afirmagio “todos os A’s so B’s” é enganosamente sim- ples; pode estar em uso tanto a forga de uma garantia como © contetido efetivo de seu apoio, dois aspectos que afloram claramente se a expandimos pelos dois modelos diferentes que vimos acima. Ela pode ser usada as vezes, se aparecer sozinha, em apenas uma destas formas; mas com bastante freqiiéncia, em especial em argumentos, nés usamos uma afirmagao para fazer o trabalho de duas ¢ assim, para abre- viar, passamos do apoio @ garantia — da informagao factual pressuposta para a licenga de inferéncia que esta informa- cao justifica que empreguemos. E possivel que haja algu- ma economia pratica neste habito e que nos parega obvia- mente interessante; mas, considerados os interesses da filoso- fia, este habito de “resumir” torna insuficientemente “neutra” (ou “imparcial”) a estrutura efetiva de nossos argumentos. HA um claro paralelo entre a complexidade das afirma- ics do tipo “todos...” ¢ a complexidade das afirmagSes mo- dais. Como antes, a forga das afirmagGes € invariante para todos os campos de argumento. Quanto a este aspecto, a forma “todos os A’s sio B’s” sempre pode ser substituida pela forma “pode-se assumir com quase certeza que algum ‘A € B’; isto sera verdade independentemente do campo e valera igualmente para “todos os suecos siio catélicos roma- nos”, “todos os que nas¢em eth coldnias’inglésas tém o direito 4 cidadania britaénica”, “todas as baleias sio mami- feros” ¢ “toda mentira é repreensivel” — em cada caso, a afirmagao geral servira como garantia que autoriza um ar- gumento exatamente da mesma forma, D — C, quer 0 passo va de “Harry nasceu nas Bermudas” para “Harry é um cida- dao britanico”, ou de “Wilkinson contou uma mentira” para OLAYOUT DE ARGUMENTOS 161 “Wilkinson agiu de modo repreensivel”. E tampouco resta qualquer mistério sobre a natureza do passo de D para C, visto que toda a forga da afirmagao geral “todos os A’s sio B’s”, entendida deste modo, esta aplicada para autorizar exatamente este tipo de passo Por outro lado, o tipo de findamento — 0 apoio — que dA suporte a uma garantia dessa forma dependeré sempre do campo de argumento; aqui se mantém 0 paralelo com as afirmagées modais. Deste ponto de vista, o que importa é © contetido factual, nao a forga das afirmacées “todos...”. Embora alguma garantia do tipo “pode-se assumir com quase certeza que algum A é B” deva continuar valendo em qualquer campo em virtude de certos fatos, a espécie de fa- tos em virtude dos quais qualquer garantia tera vigéncia e autoridade variara de acordo com o campo de argumento no qual opera a garantia. Assim, ao expandirmos a‘forma sim- ples “todos os A’s sio B's”, para explicitar 0 tipo de apoio que estiver sendo usado, a expansiio que teremos de fazer também dependera do campo em que estivermos argumen- tando, Num caso, a afirmagao passara a ser “a propor¢ao de A’s que se descobriu que sfo B’s é de 100%”; num outro, “fica fixado, por lei, que todos os A’s serao considerados B’s, incondicionalmente”; num terceiro caso, “por exigéncia de taxionomia, a classe que inclui os B’s inclui necessaria- mente toda a classe dos A’s”; e, num quarto caso, “a prati- ca de fazer A leva as seguintes conseqiiéncias intoleraveis (...)”. No entanto, apesar de haver notaveis diferengas entre elas, todas essas proposigGes aparecem expressas, em cer- tas ocasides, sob a forma compacta e simples de “todos os A\s sao B’s”. Diferencgas semelhantes podem ser estabelecidas no caso das formas “quase todos os A’s sfio B’s”, “quase nenhum A é B” e “nenhum A é B”, Usadas para expressar garantias, estas formas diferem de “todos os A’s séo B’s” em apenas um aspecto: onde antes escreviamos “‘certamente™, temos 162 OS USOS DO ARGUMENTO agora de escrever “quase certamente”, “quase certamente nao”* ou “certamente nao”™. Do mesmo modo, quando as estamos usando para afir- mar nao garantias, mas apoio; num caso estatistico, teremos simplesmente de substituir “100%” por (digamos) “pelo me- nos 95%", “menos de 5%” ou “zera”; no caso de um esta- tuto, substituir “incondicionalmente” por “exceto sob condi- ges (ou ‘em casos’) excepcionais”, “sé em circunstancias excepcionais” ou “em nenhuma circunstancia, em absoluto”: e num caso de taxionomia substituir “toda a classe de A’s” por “exceto uma pequena subclasse...”, “sé uma pequena subclasse...” ou “nenhuma parte de..””. Uma vez que tenh: mos completado assim a forma estrutural “todos...” e “ne- nhum...”, veremos, 0 mais claramente possivel, que 0 apoio de nossas garantias é campo-dependente A nogao de “premissas universais” ‘Todas as implicagdes da distingdo entre forga ¢ apoio, quando aplicada a proposigées da forma “todos os A’s sao B's, 86 ficarao claras depois de introduzirmos uma outra diferenga— a diferenga entre argumentos “analiticos” e “subs- tanciais” —, o que ainda nao temos condigées para fazer. Por ora, 86 podemos oferecer alguns sinais do quanto pode ser enganadora a formula tradicional de expor argumentos — duas premissas seguidas de uma conclusao. Muito obviamente, este modelo de andlise pode exagerar uma uniformidade apenas aparente, como entre argumentos em campos diferentes; mas também muito importante é 0 poder que este modelo tem de mascarar grandes diferencas 1. No original, certainly. (N. do T.) 2. No original, almost certainly. (N. do T.) 3. No original, almost certainly not. (N. 60 T.) 4. No original, certainly not. (N. do T.) OLAYOUT DE ARGUMENTOS 163 que pode haver entre as coisas que tradicionalmente se reti- nem sob a classificagdo de “premissas”. Consideremos outra vez exemplos de nosso tipo padrao, no qual, para justificar uma conclusao especifica, recorre-se a um dado particular sobre um individuo — a premissa menor, singular ~ aliado a uma informagao geral que serve de garantia e/ou apoio — a premissa maior, universal. Se entendermos que as premis- sas universais expressem nao garantias, mas o apoio das ga- rantias, ambas —a premissa maior e a premissa menor — sao, em todo caso, categéricas e factuais; sob este aspecto, a in- formagao de que nao ha um Unico sueco registrado como catélico romano esta em igualdade de condigdes com a in- formagao de que Karl Henrik Petersen € sueco. Ainda as- sim, dados os diferentes papéis que, no argumento pratico, desempenham os dados de uma e o apoio as garantias da outra, é muito arriscado identificd-las, as duas, com um mes- mo rétulo — “premissas”. Mas as diferengas entre premissa maior e premissa menor ficam plenamente visiveis se, em vez de lhes dar um tnico e mesmo rotulo, nés as tratamos como garantias. Uma “premissa singular” expressa uma informagao da qual tiramos uma conclusao; uma “premissa universal” ex- pressa, aqui, nado — de modo algum — uma informagiio, mas uma garantia de acordo com a qual podemos dar, com segu- ranga, 0 passo — do nosso dado para nossa conclusio. Tal garantia, por mais apoio que dé, nao sera nem factual nem categdrica, mas, sim, hipotética e permissiva. Mais uma vez. a diferenciagéio entre “premissas” e “conclustio” parece sim- ples demais e, para fazer justica a situag’o, é preciso dife- renciar pelo menos quatro elementos: “dado”, “conclusio”, “garantia” ¢ “apoio”. Ha um antigo quebra-cabega Idgico pelo qual se pode ver 0 quanto pode ser importante, para os logicos, estabele- cer uma distingao clara entre as varias interpretagdes pos- 164 OS USOS DO ARGUMENTO siveis da “premissa universal”. Debateu-se muitas vezes a questo de se a forma da afirmagao “todos os A’s sio B’s” tem ou nado implicages existenciais; isto é, a questao de se, ao fazer este tipo de afirmagiio, a pessoa que a faz compro- mete-se ou nao com a crenga de que alguns A’s existem, de fato. As sentengas do tipo “alguns A’s sao B’s” nao levaram a esta dificuldade, visto que, ao usa-las, sempre se suben- tende a existéncia de alguns A’s; em comparacao, a forma “todos os A’s siio B's” parece ser mais ambigua. JA se argu- mentou, por exemplo, que uma afirmagiio como “todos os ho- mens com pés tortos tém dificuldade para andar” nao obri- ga a inferir que exista algum homem com pés tortos; esta, diziam, seria uma verdade geral, que continuaria a ser ver- dadeira mesmo que no existisse nenhum homem vivo com pés tortos; nem deixaria de ser verdade que pés tortos causam dificuldade para andar, s6 porque, de repente, um cirurgiao habilidoso livrou da deformidade o ultimo homem com pés tortos. Mas a “solug’io” de que nossa asserg’o nao tenha ne- nhuma forga existencial néo nos acalma completamente ¢ continuamos a nos sentir desconfortaveis. Nao é claro — nés sentimos — que tem de ter existido homens com pés tortos para que nds possamos, seja como for, fazer aqucla assergao? Essa charada ilustra muito bem a fraqueza do termo “premissa universal”. Suponhamos que confiemos no modo tradicional de analisar argumentos: Jack tem pés tortos; todos os homens com pés tortos tém dificuldade para andar; logo, Jack tem dificuldade para andar Enquanto confiarmos na andlise tradicional, a mesma dificuldade reaparecerd sempre, j4 que 0 modelo de andlise nao deixa claro se a afirmagao geral “todos...” deve ser inter- pretada como garantia de inferéncia permissiva ou como OLAYOUT DE ARGUMENTOS 165 um relato factual de nossas observagées. Serd que deve ser interpretada como “um homem com pés tortos tera (isto é, pode-se assumir que tem) dificuldade para andar”? Ou co- mo “todos os homens com pés tortos de que temos regis- tros tinham (isto é, descobriu-se que tinham) dificuldade para andar?”. Nés nao somos obrigados, exceto no caso de uma longa pratica, a empregar a formula “todos os A’s sio B’s” com to- das as ambigitidades que ela envolve. Temos a liberdade de deixar de lado a formula, em favor de outras formas de ex- pressaio que sao mais explicitas, embora sejam mais pesadas; e basta fazer a troca para que o problema das implicagdes existenciais deixe de nos preocupar. A afirmaciio “todos os homens com pés tortos de que temos registros...” subentende, € claro, que, com certeza, houve alguns homens com pés tortos, visto que, se nao houvesse, nao haveria registros aos quais fazer referéncia. E claro, também, que a garantia “um homem com pés tortos tera dificuldade para andar” deixa aberta a questo existencial. Poderiamos dizer confiantemente que pés tortos seriam uma desvantagem para qualquer pedestre, mesmo se sou- béssemos que, naquele momento, todo o mundo estava deita do de costas e ninguém tinha pés deformados. Sendo as coi- sas como sao, ndés nao somos obrigados, portanto, a respon- der A pergunta sobre as implicagdes existenciais de “todos os A’s séo B’s”; sem dtivida, nds podemos nos recusar a res- ponder um claro Sim ou Nao. Algumas das afirmagGes que os logicos declaram assim, nesta forma bastante crua, tem, de fato, implicacdes exis- tenciais; outras, nao. Nao ha resposta inteiramente geral que se possa dar a esta questio, pois o que determina se em algum caso especifico ha ou nao implicagoes existenciais nao € a forma da afirmagao em si, mas, antes, 0 uso pratico ao qual serve a forma, em cada caso € ocasiao. Serd entao que se pode dizer que a forma “todos os A’s 166 OS USOS DO ARGUMENTO so Bs” tem implicagdes existenciais quando usada para expressar 0 apoio a uma garantia, e que nao as tem quando usada para expressar a propria garantia? Este é um segun- do modo simples demais de apresentar a questao. A segunda coisa que 0 excesso de confianga em “todos os A’s sio B’s” quase sempre esconde de nés sao os dife- rentes tipos de apoio que nossas crengas gerais podem re- querer, e aqui estas diferengas sao relevantes. Nao ha duvida de que a afirmagao “todo homem com pés tortos de que temos algum registro achava sua deformi- dade uma desvantagem para andar”, que citamos aqui como apoio, subentende que houve homens com pés tortos; mas também se pode apoiar a mesma garantia com outros tipos de consideragao; por exemplo, hé argumentos que explicam por que, pelos principios da anatomia, pode-se esperar que pés tortos levem a incapacidade; a anatomia explica como tal forma de pé sera uma desvantagem. Nesses termos ted- ricos, poderiamos discutir as incapacidades que resultariam de qualquer deformidade fisica que imaginassemos, inclu- sive deformidades nunca encontradas nem registradas; 0 que mostra que este tipo de apoio deixa sem responder a ques- tao existencial. Outra vez, se considerarmos garantias de outros tipos, encontramos muitos casos em que 0 apoio a uma garantia, sendo as coisas como sao, nao tem nenhuma implicagio exis- tencial. E o caso, por exemplo, de garantias apoiadas por dispositivos legais; pode acontecer de uma lei aplicar-se a pessoas ou situagdes que ainda ndo existem~ por exemplo, uma lei que se aplique a todas as mulheres casadas que che- garem aos 70 anos depois de 1° de janeiro de 2010° — ou, entio, a pessoas que podem jamais existir ou ter existido, como, por exemplo, a todos os homens que sejam condena- 5. No original, 1984. (N. do T.) OLAYOUT DE ARGUMENTOS 167 dos por dez assassinatos diferentes. Leis que se apliquem a estas pessoas podem fornecer apoio para garantias de infe- réncia, € nos autorizar a dar todos os tipos de passos no ar- gumento, mesmo que nem as garantias nem o apoio as ga- rantias deixem subentendida a existéncia das pessoas a que se aplicam. Resumindo: se prestarmos mais atengio as diferencas entre garantias ¢ apoio, entre diferentes espécies de apoio para uma mesma e tinica garantia e entre 0 apoio para ga- rantias de diferentes espécies, e se nos recusarmos a con- centrar nossa atengdo, como hipnotizados, sé na forma tra- dicional “todos os A’s sao B’s”, poderemos (1) ver que “todos os A’s sio B’s” as vezes tem, as vezes nfo tem impli- cagdes existenciais; e, mais que isto, poderemos comegar a compreender por que isso tem de ser assim. Depois de nos acostumarmos a desenvolver as senten- gas de tipo “todos os A’s sao B’s” e a substitui-las, quando a ocasiao pedir, por garantias explicitas ou afirmagdes ex- plicitas de apoio, o grande enigma a decifrar sera descobrir por que os ldgicos apegaram-se durante tanto tempo aque- le tipo de afirmagio. Estas razdes nos ocuparao num ensaio posterior; por enquanto, basta observar que eles o fizeram a custa de em- pobrecer a lingua e de desconsiderar intimeras pistas que aju- dariam a solucionar adequadamente as suas charadas. A forma “todos os A’s sao B’s” ocorre muito menos em argumentos praticos do’ que os livros didaticos de légica fazem supor. De fato, o que se tem feito é trabalhar duro para treinar os alunos, de modo que aprendam a reformular afir- macées idiomaticas as quais esto acostumados, para que 0 que dizem torne-se acessivel, em aparéncia, a analise silo- gistica tradicional. Para lamentar que as coisas sejam assim, nao ¢ preciso argumentar que o idioma seja sacrossanto, ou que, por si s6, seja capaz de nos fazer compreender coisas que 168 OS USOS DO ARGUMENTO sem ele nao compreenderiamos. Mas, de qualquer modo, encontram-se no nosso modo de falar muitos aspectos da linguagem que podem servir como pistas muito claras e que, nesse caso, podem conduzir-nos na diregao certa. Onde, no passado, o légico comprimiu sob aquela for- ma predeterminada todas as afirmagées gerais, 0 discurso pratico sempre empregou, habitualmente, uma diizia de for- mas diferentes — “todo A é um B”, “cada A é um B”, “al- gum A serd um B”, “os A’s siio geralmente B’s” e “o A é um B”, por exemplo, dentre muitas outras. Se tivessem comparado estes modos peculiares de expressiio, em vez de ignoré-los ou de insistir para meté-los num molde, os légi- cos ha muito tempo ja teriam sido levados a fazer as distin- gdes que, para mim, sao cruciais. O contraste entre “todo A” e “nem um Unico A”, por um lado, ¢ “qualquer A” ou “algum A”, por outro, aponta de imediato para a diferenca entre os relatérios estatisticos e as garantias as quais eles podem dar apoio. As diferentes garantias que se exigem em diferentes campos também aparecem no idioma. Um bidlo- go dificilmente diria “todas as baleias sio mamiferos”; mas baleias so mamiferos” ou “a baleia 6 um mamifero” sao sentengas que saem naturalmente de seus ldbios ou de sua caneta. Garantias S40 uma coisa, apoio, outra; apoio por meio de observagiio numérica é uma coisa, apoio por meio de clas- sificagao taxionémica € outra; ¢ nossa escolha de um modo peculiar de expressao, embora talvez seja sutil, reflete bas- tante cxatamente estas diferengas. Muitos antigos problémas surgiram exaldmente deste modo, mesmo num campo tio remoto como a ética filosd- fica. A pratica nos obriga a reconhecer que verdades éticas gerais podem aspirar, na melhor das hip6teses, a ter vigéncia apenas enquanto nao surjam contra-alegagées efetivas; flitos de dever sfo caracteristica inevitavel da vida moral. Onde a légica exige a forma “toda mentira é repreeensivel” on- O LAYOUT DE ARGUMENTOS 169 ou “todo cumprimento de promessa é certo”, o idioma res- ponde com “mentir é repreensivel” e “cumprir promessa é certo”. O “todo” do logico denota expectativas inadequadas que, na pratica, estiio condenadas ao desapontamento. Mes- mo as garantias mais gerais esto sujeitas, nos argumentos éticos, em situagdes incomuns, a sofrer excegdes e, desse modo, nos casos mais drasticos, s6 podem autorizar conclu- sdes presumiveis. Se insistimos no “todos”, rapidamente os conflitos de dever nos levam ao paradoxo, ¢ é preciso muita teoria moral para nos tirar deste pantano. Poucas pessoas insistem em por em pratica as conseqiiéncias deste “todos” extra e ““‘obriga- torio”, porque para fazé-lo quase sempre se tem de recorrer a medidas desesperadas; “todos” sé dé certo sempre se se adota uma posigdo moral excéntrica — como o pacifismo absoluto, tnico caso em que se admite que um principio, um unico principio, seja genuinamente universal, principio a ser defendido em qualquer dificuldade, em face de todos 0s conflitos e contra-alegagdes que, em tese, poderiam qua- lificar sua aplicabilidade. A estrada que une alguns belos pon- tos sobre Iégica ¢ linguagem ¢ os problemas mais dificeis de conduta nao é, afinal de contas, tio longa. A nogéo de validade formal Nos dois ensaios finais nos dedicaremos as principais ligdes que se podem extrair deste estudo do argumento pra- tico. Mas ha um tépico — do qual partimos neste capitulo — sobre © qual jd estamos em condigées de dizer alguma coisa: a saber, a “forma légica” e as doutrinas que tentam aplicar esta nogaio formal para explicar a validade dos argumentos. 170 OS USOS DO ARGUMENTO Afirma-se as vezes, por exemplo, que a validade dos argumentos silogisticos é conseqiiéncia de as conclusdes dos silogismos serem simples “transformagées formais” de suas premissas. Se a informagao da qual partimos, como aparece expressa nas premissas maior e menor, leva a con- clusio, ela o faz por uma inferéncia valida; isto ¢ assim (di- zem alguns) porque a conclusao resulta simplesmente de se embaralhar as partes das premissas e de rearruma-las num outro molde. Ao chegar a inferéncia, nds reordenamos os elementos dados, e as relacdes formais entre esses elemen- tos, como aparecem primeiro nas premissas e depois na conclusao, nos garantem, de um modo ou de outro, a vali- dade da inferéncia que fazemos. Como fica essa doutrina, se fizermos agora nossa dis- tingdo central entre os dois aspectos do modelo “todos os A’s sio B’s”? Consideremos o seguinte argumento X éum A; todos os A’s sao B’s; logo, X € um B. Se nés expandirmos a premissa universal desse argumen- to como garantia, ela transforma-se em “qualquer A pode certamente ser considerado um B” ou, mais resumidamen- te, “algum A € certamente um B”. Substituindo no argumen- to, obtemos: Xéum A; um A é certamente B; assim, X € certamente B. Quando o argumento ¢ posto nesta forma, vé-se que, evidentemente, as partes da conclusao sao partes das pre- missas, e para obter a conclusio basta embaralhar e rearrumar as partes das premissas. Se ¢ isto que se queria dizer quando OLAYOUT DE ARGUMENTOS 171 se disse que 0 argumento tem a “forma légica” apropriada, e que ele é valido por conta desse fato, ent&o pode-se dizer que este ¢ um argumento “formalmente valido”. Mas ha algo que é preciso perceber desde ja: uma vez que se empregue a garantia correta, qualquer argumento pode ser apresentado na forma “dados; garantia; logo, conclusao”, e, portanto, com a garantia correta, qualquer argumento torna-se formalmente valido. Ou seja, se se escolhem.as palavras adequadas, qualquer argumento pode ser expressado de tal modo que sua validade seja evidente simplesmente por sua forma; isto é igualmente verdade qualquer que seja 0 cam- po do argumento — nada muda, quer a premissa universal seja “todos os miltiplos de 2 sao pares”, “todas as menti- ras sdio repreensiveis” ou “todas as baleias sao mamifero: Qualquer premissa, assim, pode ser escrita como garantia incondicional, “um A é certamente um B”, e ser usada numa inferéncia formalmente valida; ou, para dizer as coisas de modo menos enganador: qualquer premissa pode ser usada numa inferéncia que seja montada de modo a ter validade formalmente evidente. Por outro lado, se substituirmos 0 apoio pela garantia, isto é, se interpretarmos a premissa universal de outro modo, nio havera mais nenhum espago para aplicar a idéia de va- lidade formal ao nosso argumento. Um argumento da forma “dados; apoio; logo, conclusio” pode, para propésitos pra- ticos, estar inteiramente em ordem. Deveriamos aceitar, sem hesitagdo, o argumento: Petersen € sueco; a proporgio registrada de suecos catélicos romanos é zero; logo, certamente, Petersen niio ¢ catélico romano. Mas no se pode mais pretender que a solidez deste ar- gumento seja conseqiiéncia de quaisquer propricdades for- mais das express6es que 0 constituem. Além de tudo 0 mais, 172 OS USOS DO ARGUMENTO os elementos da conclusdo e das premissas nao s4o os mes- mos; 0 passo a ser dado envolve, portanto, mais do que em- baralhar ¢ reordenar. Quanto a isto, é claro, a validade do argumento (D; W: logo, C) tampouco era de fato uma con- seqiiéncia de suas propriedades formais, mas, de qualquer modo, ainda se podia apresentar o argumento numa forma mais bem construida. Agora, isto nao pode mais ser feito; um argumento (D; B; logo, C) nao sera formalmente valido. Uma vez que revelemos de ptiblico 0 apoio de que depen- de (em ultima insténcia) a solidez de nosso argumento, perde toda a plausibilidade a sugesto de que a validade possa ser explicada em termos de “propriedades formais”. Essa discussfio de validade formal pode langar alguma luz sobre outra questao de idioma: 0 caso em que o habito lingiiistico dos argumentadores se separa da tradig&o logica. A questao surge do seguinte modo. Suponhamos que com- paremos 0 que se pode chamar de argumentos “que usam garantia” com argumentos “que estabelecem garantia”. A pri- meira Classe incluira, entre outros, todos os argumentos em que se conta com um tinico dado para estabelecer uma con- clus&o, recorrendo-se a determinada garantia cuja aceitabi- lidade tenha-se como garantida — exemplos sao “Harry nas- ceu nas Bermudas, logo, pode-se presumir (tendo as pes- soas nascidas nas col6nia o direito a cidadania britanica) que Harry é um cidadao inglés”, “Jack contou uma menti- ra, logo, pode-se presumir (sendo mentir em geral repreen- sivel) que Jack se comportou de modo repreensivel”, e “Pe- tersen é sueco, logo, pode-se presumir (j4 que quase nenhum sueco € catdlico romano) que Petersen nao é catdlico roma- no”. Argumentos que estabelecem garantia serao, em com- paragao, argumentos como os que podem ser encontrados num ensaio cientifico, em que a aceitabilidade de uma ga- rantia nova é explicitada mediante sua aplicagéio sucessiva auma série de casos em que os “dados” ¢ a “conclusio” foram \ OLAYOUT DE ARGUMENTOS verificados de maneira independente. Nesse tipo de argu- mento, a garantia, nao a conclusao, é nova e por isto esta em julgamento. O professor Gilbert Ryle comparou os passos envolvi- dos nesses dois tipos de argumento com, respectivamente, fazer uma viagem ao longo de uma ferrovia ja construida e construir uma estrada de ferro nova. Ele argumentou, de modo persuasivo, que sé a primeira classe de argumentos deveria ser citada como “inferéncias”, porque o elemento essencial de inovacao na tiltima classe nao pode ser tornado objeto de regras © porque a nogio de inferéncia envolve, em esséncia, a possibilidade de “regras de inferéncia”. ‘A questiio de lingua a ser observada aqui é que a distin- cdo para a qual adotamos duas expressbes dificeis de ope- rar — “que usa garantia” e “que estabelece garantia” — é indi- cada, em geral, na pratica, pela palavra “dedutiv: associadas e suas opostas. Fora do estudo, a familia de pala- vras “deduzir”, “dedutivo” e “dedugao” é aplicada em argu- mentos de muitos campos; a Unica exigéncia, aqui, é que os argumentos sejam do tipo “que usam garantia”, em que se aplicam garantias estabelecidas a dados novos para obter novas conclusGes. Nao faz nenhuma diferenga para o uso apropriado destes termos que 0 passo de D para C envolva, em determinados casos, uma transig&o de tipo logico — que ele seja, por exemplo, um passo da informacao sobre 0 pas- sado para uma previsao sobre o futuro. suas Sherlock Holmes, em todo caso, jamais hesitou em di- zer que deduziu, por exemplo, que um homem esteve recen- temente em East Sussex pela cor e textura dos fragmentos de solo que deixou no tapete do gabinete; e falava como personagem da vida real. Um astrénomo diria, com igual presteza, que deduziu a data de um eclipse futuro a pe tir das posigdes € movimentos presentes e passados dos corpos celestes envolvidos. Como Ryle infere, o sentido da palavra 174 OS USOS DO ARGUMENTO “deduzir™ é, efetivamente, o mesmo de “inferir”; de modo que sempre que houver garantias estabelecidas ou procedi- mentos determinados de calculo, pelos quais se possa pas- sar dos dados para uma conclusao, pode-se falar apropria- damente de “dedugdes”. Uma previsio regular, feita de acor- do com equagées-padrao da dinamica estelar, é, nesse sen- tido, uma dedugao inquestionavel; e enquanto Sherlock Holmes também for capaz de apresentar garantias sélidas ¢ bem sustentadas para justificar seus passos, podemos admi- tir que ele também esteja fazendo dedugdes — a menos que estejamos lendo um livro didatico sobre logica formal. Os protestos de outro detetive, de que Sherlock Holmes erra 20 considerar dedugdes argumentos que cram realmente indu- tivos, dio a impressao de serem vazios e equivocados. Vale a pena olhar também o outro lado dessa moeda; a saber, 0 modo como se pode usar a palavra “indugao” para referir-se a argumentos “que estabelecem garantia”. Sir Isaac Newton, por exemplo, fala regularmente de “generalizar uma proposigao, por indugdo”; com isso ele quer dizer “usar nos- sas observagées de regularidades e correlagdes como apoio para uma garantia nova”. Nos comegamos, ele explica, por estabelecer que uma relagdo especifica se mantém num determinado nimero de casos, e entio, “generalizando-a, por indugao”, passamos a aplicé-la a exemplos novos, en- quanto for possivel fazé-lo com sucesso; se, como resulta- do, acabarmos enredados em dificuldades, cle diz, temos de achar um modo de conseguir que a afirmacao geral seja “sujeita a excegdes”, isto é, temos de descobrir as circuns- tancias especiais em que seja possivel refutar as suposigdes estabelecidas pela garantia. Uma afirmagao geral em teoria fisica, como Newton nos lembra, deve ser interpretada nao como um relatério estatistico sobre o comportamento de um numero muito grande de objetos, mas, sim, como garantia em aberto ou principio de calculo; a estabelecemos por testes O LAYOUT DE ARGUMENTOS 175 em situagdes-amostra nas quais se possam conhecer, inde- pendentemente, os dados e as conclusdes; que depois sero generalizados por indugao ¢, por fim, serao aplicados como regra de deducio em situagdes novas para obter novas con- clus6es de nossos dados. Em muitos tratados de légica formal, por outro lado, Teserva-se 0 termo “dedugao” para argumentos nos quais os dados e 0 apoio impliquem positivamente a conclusao — quer dizer, argumentos em que afirmar todos os dadas e 0 apoio, mas negar a conclusao, nos levaria a contradi¢fo ou a incon- sisténcia. Este 6, é claro, um ideal de dedugdo do qual ne- nhuma previsao de astrénomo pode esperar aproximar-se; e se for isto o que os légicos formais exigem de uma “dedu- ¢40”, nao é de admirar que os astrénomos nao concordem em chamar “dedutivo” o calculo que fazem. Mesmo assim, os astr6nomos relutam em mudar seus habitos; ha muito tempo chamam “dedugées” as suas elaboradas demonstra- ges matematicas, e usam o termo para designar uma distin- ¢ao perfeitamente genuina e consistente O que devemos fazer com esse conflito de uso? Temos de admitir que se considere dedu¢do qualquer argumento que aplique uma garantia estabelecida, ou temos de exigir, além disso, que 0 argumento esteja apoiado por uma implicagio positiva? Ainda ndo estamos preparados para responder. Tudo que podemos fazer no momento é registrar 0 fato de que, nesse ponto, o idioma costumciro tende a se afastar do uso profissional dos légicos. Como veremos, esse desvio especifico ¢ apenas um aspecto de um desvio maior, que nos ocupara durante grande parte de nosso quarto ensaio, e cuja natureza poder ser mais bem esclarecida depois de estudarmos uma ultima disting&o que ainda temos de fazer. Temos de cuidar agora da distingao entre argumentos “analiticos” e “substanciais”. 176 OS USOS DO ARGUMI Argumentos analiticos e substanciais O melhor modo de abordar esta distingao é com um preambulo. Pouco atrs, observamos que um argumento ex- presso na forma “dado; garantia; logo, conclusao” pode ser exposto em forma valida, independentemente do campo a que pertenga; mas, ao que parece, o mesmo nio se pode dizer de argumentos da forma “dado; apoio para a garantia; logo, conclusao”. Voltando ao nosso exemplo de origem: se nos informa- rem sobre 0 lugar de nascimento de Harry, poderemos con- cluir sobre sua nacionalidade e defender nossa conclusio com um argumento formalmente valido da forma (D; W; logo, C). Mas a garantia que aplicamos nesse argumento formal- mente valido baseia-se para ter autoridade, por sua vez, em fatos sobre a decretacao e dispositivos de determinadas leis e, portanto, podemos escrever 0 argumento na forma alter- nativa (D; B; logo, C), isto é: Harry nasceu nas Bermuda: as leis relevantes (W)...) estabelecem que pessoas nascidas nas colonias, de pais ingleses, tém direito a cidadania britanica; logo, é de presumir que Harry é cidadao britanico Quando escolhemos esta forma, pode-se afirmar que a validade do argumento é evidente simplesmente pelas rela- coes formais entre as trés afirmagGes que inclui. Afirmar o apoio para nossa garantia, neste caso, envolve, inevitavel- mente, a meng&o a Atos do Parlamento ¢ coisas semelhantes, e essas referéncias destroem a elegancia formal do argumen- to. Também em outros campos, mencionar explicitamente © apoio para nossa garantia — quer assuma a forma de rela- trios estatisticos, apelos aos resultados de experiéncias ou referéncias a sistemas taxiondmicos — nos impedird de escre- ver 0 argumento de forma tal que ele seja evidentemente valido sé pelas propriedades formais. OLAYQUT DE RGUMENTOS 177 | Como regra geral, portanto, s6 podemos expor, de modo | formalmente valido, argumentos da forma “D; W; logo, C”; | argumentos da forma “D, B; logo, C” nao podem ser ex- pressos assim. Ha, entretanto, uma classe de argumentos bas- tante especial que, 4 primeira vista, parece quebrar esta regra geral; no devido tempo serao batizados como argu- mentos analiticos. Para ilustrar, consideremos 0 argumento seguinte: | Anne € uma das irmas de Jack; todas as irmas de Jack tém cabelos ruivos; logo, Anne tem cabelo ruivo. Argumentos desse tipo tém um lugar especial na histé- ria da légica, e teremos de prestar-Ihes muita atengdo; nem sempre se reconhece o quanto sao raros, na pratica, os argu- mentos deste tipo, com suas caracteristicas especiais. Para comegar, vamos desenvolver este argumento, co- mo ja fizemos nos outros casos. Usando a premissa maior como afirmagao de apoio, obt&m-se: Anne é uma das irmiis de Jack; cada uma das irmas de Jack tem (conferiu-se uma a uma ¢ confirmou-se) cabelo ruivo; logo, Anne tem cabelo ruivo. Por outro lado, se escrevermos a garantia no lugar do apoio, obteremos: Anne é uma das irmis de Jack; qualquer irma de Jack tera (pode-se presumir que tenha) cabelo ruivo: logo, Anne tem cabelo ruivo. Este argumento é excepcional quanto ao seguinte as- pecto. Cada uma das mogas foi conferida individualmente 178 OS USOS DO ARGUMENTO e descobriu-se que tem cabelo ruivo; em seguida a cor do cabelo de Anne foi examinada, especificamente, nesse pro- cesso. Nesse caso, portanto, o apoio de nossa garantia inclui, explicita, a informagdo que o argumento apresenta como conclusio; de fato, poder-se-ia perfeitamente substituir a pa- lavra “logo”, antes da conclusao, pela expressao “em outras palavras”, ou “‘isto quer dizer que”. Nesse caso, se se aceitarem 0 dado ¢ 0 apoio, pela mesma razao se tem de aceitar impli- citamente a conclusao; se nés enfileirarmos dado, apoio € conclusao numa tinica sentenga, acabamos com uma tauto- logia — “Anne é uma das irmas de Jack e cada uma das irmas de Jack tem cabelo ruivo e também Anne tem cabe- lo ruivo”. Assim, dessa vez, nao s6 0 argumento “D; W: logo, C”, mas também o argumento “D; B; logo C” — ao que parece — pode ser apresentado em forma légica valida. A maioria dos argumentos que usamos na pratica nao é — quase nem é preciso dizer — desse tipo. Nés fazemos alegagdes sobre o futuro, ¢ as apoiamos cm referéncias nossa experiéncia de como as coisas aconteceram no pa: do; fazemos assergdes sobre os sentimentos de um homem, ou sobre seu estado legal, ¢ as apoiamos com referéncias as suas declaragdes e gestos, ou a seu local de nascimento e leis sobre nacionalidade; nés adotamos posicdes morais, fazemos juizos estéticos e declaramos apoio a teorias cien- tificas ou causas politi apresentando em cada caso, como base para nossas conclusdes, afirmacdes de tipos légicos bem diferentes da propria conclusio. Sempre que fazemos alguma dessas coisas, nado pode haver diivida de que a con- clusao esta sendo considerada uma mera reafirmagao, em outras palavras, de algo que ja foi implicitamente afirmado no dado e no apoio; embora o argumento possa ser formal- mente vdlido quando expresso na forma “dado; garantia; logo, conclusio”, 0 passo que damos ao passar para a con- clusao, a partir da informagao que temos para nos basear dado e apoio juntos — é um passo substancial. Por conse- OLAYOUT DE ARGUMENTOS 179 guinte, na maioria de nossos argumentos, a afirmacao obti- da ao se escrever “dado, apoio; e também conclusio” esta- rd longe de ser uma tautologia — poder ser dbvia, no caso de ser transparente a legitimidade do passo envolvido, mas nfo sera tautolégica. No que se segue, chamarei desses dois tipos de argumen- tos, respectivamente, de substancial e analitico. Um argu- mento de D a C sera chamado de analitico se, e somente se, © apoio para a garantia que o autoriza incluir, explicita ou implicita, a informagao transmitida na propria conclusao. Quando isso for assim, a afirmagao “D, B, e também C” sera, como regra, tautolégica. (Entretanto, esta regra esta sujeita a determinadas excegdes que estudaremos em breve.) Quando © apoio para a garantia nao contiver a informacao transmi- tida na conclusio, a afirmagio “D, B, e também C” jamais sera tautolégica, ¢ o argumento seré um argumento substancial. A necessidade de alguma distingao dessa espécie geral é bastante ébvia, e determinados aspectos dela se impuse- ram a atengao dos légicos; no entanto, suas implicagdes mais foram resolvidas de forma consistente. Esta tarefa foi negligenciada por pelo menos duas razdes. Para comegar, a complexidade interna de afirmagées da forma “todos os A’s sao B’s” ajuda a ocultar a importante diferenca que ha entre argumentos analiticos e substanciais. A menos que tenha- mos 0 trabalho de expandir essas afirmagGes, de modo que se possa ver se afirmam garantias ou 0 apoio para as garan- tias, nio ha como perceber a grande variedade de argumentos que sc apresentam sob a forma silogistica tradicional; temos de explicitar a distincdo entre apoio e garanitia, em qualquer caso especifico, se quisermos ter certeza sobre que tipo de argumento estamos trabalhando. Em segundo lugar, ainda nao se percebeu a excepcionalidade dos argumentos genui- namente analiticos, e o quanto é dificil apresentar um argu- mento que seja claramente analitico; tivessem reconhecido estes fatos, talvez os légicos nao tivessem sido tao rapidos 180 OS USOS DO ARGUMENTO em oferecer os argumentos analiticos como modelo ao qual se deveriam adequar outros tipos de argumento. Até mesmo 0 exemplo que escolhemos, sobre a cor do cabelo de Anne, pode escapar, com facilidade, da classe ana- litica para a substancial. Se 0 apoio para nosso passo que vai do dado “Anne é¢ irma de Jack” para a conclusao “Anne tem cabelo ruivo” contiver apenas a informacao de que se observou que, no passado, cada uma das irmas de Jack tinha cabelo ruivo, entéo — pode-se afirmar — 0 argumento € substancial, mesmo na forma em que esta. Afinal de con- tas, todos sabemos do poder das tinturas... Portanto, nao seria © caso de reescrever 0 argumento de tal modo que se mos- tre abertamente seu carater substancial? Nesta interpreta- gdo, o argumento sera: Dado — Anne é uma das irmis de Jack; Apoio — observou-se, hi tempos, que todas as irmas de Jack tinham cabelo ruivo; Conclus&o ~ logo, é de presumir que, agora, Anne tem cabelo ruivo. A garantia com que se contou, cujo apoio afirma-se aqui, sera do tipo “pode-se presumir que qualquer irma de Jack pode ter cabelo ruivo”; pelas razdes dadas, pode-se entender que esta garantia estabelece, no maximo, uma suposigao: Anne € uma de Anne tem agora : fi Assim, presumivelmente, irmas de Jack | bE cabelo ruivo J que A menos que pode-se considerar que Anne tenha tingido / ficado qualquer irma de grisalha / perdido o cabelo. Jack tem cabelo ruivo | Por conta do fato de que foi observado anteriormente que todas as suas inmas tém cabelo ruivo O LAYOUT DE ARGUMENTOS: 181 Parece, entao, que s6 posso defender minha conclusao sobre 0 cabelo de Anne com um argumento inquestionavel mente analitico se, naquele exato momento, tiver a vista to- das as irmas de Jack e, assim, puder apoiar minha garantia na certeza de que, naquele momento, cada uma das irmas de Jack tem cabelo ruivo. Mas se estiver na presenga de Anne... que necessidade ha de um argumento para estabe- lecer a cor do seu cabelo? E qual a relevancia da cor do ca- belo das outras irmas? Neste caso, bastara usar os proprios olhos, sem precisar construir uma cadeia de raciocinio. Se © propésito de um argumento é estabelecer conclusdes so- bre as quais nao estamos inteiramente confiantes, relacio- nando-as com outras informagées sobre as quais temos mais convicgao, comeca a parecer pouco provavel que algum ge- nuino argumento pratico possa, algum dia, ser propriamen- te analitico. S6 os argumentos matematicos parecem totalmente se- guros; dada a garantia de que toda seqiiéncia de seis ou mais nlimeros inteiros entre | e 100 contém pelo menos um nii- mero primo, e dada também a informagio de que nenhum dos nameros de 62 até 66 é primo, posso concluir, agradecido, que o numero 67 é primo; e este é um argumento cuja vali- dade nao pode ser posta em duvida pelo tempo nem pelo fluxo de mudanga. Este carater tinico dos argumentos mate- maticos ¢ significative. A matematica pura é talvez a tnica atividade intelectual cujos problemas e solugGes estao “‘aci- ma do tempo”. Um problema matematico nao é um dilema; sua solugdo nao tem limite de tempo; ndo"éfivolve passos de substancia. Como argumento-modelo para os légicos formais analisarem, pode-se até concordar que seja elegante mente se poderia imaginar caso © muito sedutor, mas difi menos representativo. 182 OS USOS DO ARGUMENTO As peculiaridades dos argumentos analiticos Temos ainda, para o final deste ensaio, duas tarefas principais. Primeiro, temos de esclarecer um pouco mais as caracteristicas especiais dos argumentos analiticos; depois, temos de comparar a distingdo entre argumentos analiticos ¢ substanciais com trés outras distingdes cuja importancia ja vimos: (i) a distingao entre os argumentos formalmente vilidos © 0s que nao so formalmente validos; Gi) a distingdo entre os argumentos que usam garantias e os que estabelecem garantias; e (iii) a distingao entre os argumentos que levam a con- clusées necessarias e os que levam apenas a conclusdes pro- vaveis. Quanto 4 prépria natureza dos argumentos analiticos, ha duas coisas que tém de ser discutidas. Para comegar, temos de perguntar de que fundamento dependem os argumentos desse tipo, em iltima instincia, para que sejam validos; depois, temos de prosseguir e reconsiderar os critérios sugeridos provisoria- mente para distinguir argumentos analiticos de outros — uma vez que, como veremos, o “teste de tautologia” envolve, afi- nal de contas, dificuldades desconhecidas. Para ver como surge a primeira questao, temos de lem- brar que, no caso dos argumentos analiticos, a distingéio en- tre dados e apoio de garantia é muito menos nitida — a dis- tincao entre a informacao a partir da qual argumientamos e a informagao que empresta autoridade as garantias de acor~ do com as quais argumentamos. No que diz respeito a con- clus&o de que Anne tem cabelo ruivo, a informagao de que Anne é irma de Jack tem, a primeira vista, o mesmo tipo de alcance que a informagao de que cada uma das irmas de Jack tem cabelo ruivo. A semelhanga, neste caso, pode levar-nos

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