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Aristételes POETICA Tracugao, Prefacio, introcugao, Comentario e Apénaices de EUDORO DE SOUSA te ast Olsen ONO LaDy Estudos Gerais Série Universitaria + Cidssicos de Filosofia Aristoteles POETICA Tradu¢ao, Prefacio, Introdu¢do, Comentario e Apéndices de EUDORO DE SOUSA 4° edicao ra) foje i = j k ala } So Gi / ‘ Pele ft IMPRENSA NACIONAL - CASA DA MOEDA Estudos Gerals Sérle Universitaria + Cldssicos de Filosofia DO PREFACIO A PRIMEIRA EDICAO o original grego da Poética—eis a obra que quiséramos realizar. A obscuridade da verséo mais préxima do texto auténtico e a distancia deste a versd@o mais clara hdo-de assinalar por vezes a deficiéncia do trabalho e a faléncia do esforgo. Mas, quem se proponha vencer esta disténcia e dissipar aquela obscuridade, bem avaliardé a grandeza dos obstdculos que se nos depararam num caminho™ tanto tempo percorrido, embora t@o curto fosse. Vertido o tratado de Aristételes no idioma pdtrio, dir-se-ia, pois, que cumprida estava a tarefa de reatar, pelo menos neste ponto, o fio da tradigdéo cldssica, em Portugal entrecortado pelas inumerdveis insténcias de uma cultura demasiadamente pragmatista. E, na realidade, bom ou mau que seja o resultado obtido, a segunda inten¢éo que nos moveu foi esta: que a Arte Poética, outrora lida e relida entre nds, no texto grego original e nas famosas pardfrases latinas e italianas do Renascimento, como cédice da mais perfeita técnica da epopeia e da tragédia, voltasse agora a ser lida e relida, em texto portugués, como a grande obra de ciéncia e de erudi- ¢do que na verdade é. Que a grandeza da Poética deixou de medir-se pela vali- dez e rigor dos canones que impusera a dramaturgia humanista—eis 0 que ficou demonstrado pela “hambur- guesa dramaturgia" de Lessing e pela actividade poética de a todas as escolas romanticas. Mostrar, porém, que nas pou- cas pdginas deste livro temos de fundamentar o enunciado, e das mesmas pdginas teremos de extrair a solugaéo de alguns dos mais importantes problemas da poesia antiga — tal foi o inestimdvel contributo da filologia novecentista para a definitiva reabilitag@o de Aristételes como “fonte” da histéria da literatura grega. Pelas precedentes consideragdes se explica, de certo modo, a paradoxal estrutura deste volume. Dizemos “para- doxal”, pois que o leitor menos familiarizado com a imensa bibliografia da especialidade talvez encontre bem com- preensivel motivo de estranheza, no facto de a prdpria ver- sdo ndo ocupar metade sequer das pdginas que 4 “Introdu- ¢Go” e aos “Indices” foram destinadas; enquanto, pelo contrdrio, talvez se dé o caso de que algum mestre de filo- logia cldssica logo de inicio se detenha perplexo ante a auséncia de minucioso comentario apenso ao texto vertido. Como prévia adverténcia acerca da estrutura deste livro, a uns e outros nos permitimos dizer que, embora a leitura da Poética exija um minimo de anotagdes que esclaregam os lugares obscuros e completem as ligdes truncadas, nem todos os leitores carecem dos mesmos esclarecimentos e dos mesmos complementos. Preferimos, por conseguinte, usar de indices, a que algum leitor recorrerd, chegado ao limite da sua capacidade de esclarecer ou de completar, mediante o prdprio esforgo e os préprios conhecimentos, o sentido da ligéo aristotélica, ao emprego de “notas”, decerto utilis- simas, mas que desviam a atengdo e incitam @ divagagdo para dominios estranhos aquele em que se desenvolve o pensamento do Estagirita. Alids, a inteligencia daquela parte, por assim dizer, nuclear, e que consiste na exposigao de uma teoria de efa- bulagdo trdgica (cf. Introdugao, caps. 1 e UL), resulta sem grande dificuldade da simples leitura, atenta e meditada. Trata-se, designadamente, dos capitulos em que o Fildsofo estabelece as regras a que deverd obedecer a composicdo dos argumentos, “se quisermos que a poesia resulte per- feita”. Essas regras, se hem que jd ndo exercam a “perene ¢ 8 universal” fungdo normativa, que o Humanismo renascente Jhes atribuiu, mantém ainda, e apesar de toda a insatisfa- do e insubordinagdo das escolas romanticas e subsequen- tes, o alto valor indicativo das caracteristicas de uma época, na historia da poesia, e das determinagées do res- pectivo conceito, no sistema de Aristdteles. Através dessas regras, podemos e devemos procurar, ainda e sempre, res- Ponder as seguintes interrogagées: “Que era a tragédia no tempo de Aristdteles?” e “como via Aristételes a tragédia, no seu tempo?”. O leitor dard a sua resposta, sem que para tal necessite de mais palavras que nao sejam as do mesmo Filésofo. Por outro lado, de modo mais ou menos explicito, tam- bém se encontram entretecidos nas malhas da argumenta- ¢Go estética os resultados de uma investigagao histdrica. E néio sé entretecidos; como que anotados & margem da ligdo principal da Arte Poética, a que acima nos referimos, esses resultados sGo hoje, talvez, os que mais importa con- siderar, entre todas as fugazes indicagées que a Antigui- dade nos legou, acerca da origem e desenvolvimento da tragédia grega. Téo importante e ido considerdvel é essa ligdo “marginal”, que nenhum teorizador da literatura poderd dispensar-se de regressar ao ponto em que Aristdte- les a deixou inscrita, para tentar, depois, reconstituir os diversos momentos da sua propria problemdtica. Pode-se dizer que a data da publicagdo do Héracles de Wilamowitz, sendo a da Origem da Tragédia de Nietzche, assinala o ini- cio de uma época, que ainda nao terminou, em que todos os problemas da origem e do desenvolvimento do género dramdtico foram enunciados e resolvidos, e teréo de conti- nuar a sé-lo, em rela¢éo a Aristételes, préd ou contra o enunciado e a solugéo que o Fildsofo mal deixa enirever nas paginas da sua Poética. Eis por que dedicamos a maior parte da Introdugio ao dificil mister de apontar e sublinhar as mais viventes articu- Jag6es deste didlogo da moderna filologia com a parte do ensino de Aristételes e da sua escola, que a historia da tra- édia se refere. Decida-se 0 estudioso pela credibilidade ou 9 pela incredibilidade dos resultados da investigagao histérica inaugurada no Liceu—ndo importa; importa sim, relevar aqui outro testemunho da perene actualidade de Aristételes e outro sinal da profunda originalidade da Poética, como fonte da histéria da literatura grega. * A presente versdéo baseia-se principalmente no texto grego editado por Augusto Rostagni: Aristotele Poetica, Turim (Chiantore), 2.° ed., igualmente distante da sobreva- lorizagdo do Parisinus (Bywater) e da Versio Arabe (Gudeman). Para a tradugdéo dos passos mais dificeis e interpretagGo das ligdes dibias ou truncadas, consultdmos os trabalhos de J. Hardy, A, Gudeman, I. Bywater, M. Valgimigli e F. Albeggiani. Sempre que foi possivel utili- zdmos a andnima versdo portuguesa do século XVII. 10. POETICA INTRODUCGAO CAPITULO I HISTORIA E CRITICA LITERARIA EM ARISTOTELES. A POETICA E OS ESCRITOS CONGENERES MANUSCRITOS MEDIEVAIS. PRIMEIRAS EDICGES IMPRESSAS. Pela Idade Média, mais preocupada com problemas légi- cos e metafisicos, a Poética passou quase despercebida. Num ramo greco-semitico da tradic&o, pardfrases de Avi- cenas e de Averréis compendiam uma versio drabe, con- servada na Biblioteca Nacional de Paris (cod. ar. 882a), de Abu Bishr Matta (século XI), baseada no texto siriaco do século VII, de que resta apenas um fragmento, e num ramo greco-latino, situam-se as versdes latinas de Hermann (Hermanus Alemanus) de Toledo, feita sobre uma pard- frase de tradigéo drabe, e de Guilherme de Moerbeke, sobre um apdgrafo (perdido) daquele mesmo cédice, do qual também deriva o famoso Parisinus 1741. Jorge Valla (1498) e Aldo Manuzio (1508) serviram-se de alguns manuscritos que ainda existiam nas bibliotecas € arquivos de Paris, Florenca e Roma. As sucessivas edigdes, até principios do século XIX, pouco alteraram a A/dina. Quem se proponha confrontar com as actuais esta edicao, protétipo de todas quantas se produziram nos séculos humanistas, nem precisa recorrer ao original grego; com- 13 pare, por exemplo, a andénima versdo portuguesa, editada em Lisboa, em 1779, e a espanhola, impressa em Madrid, em 1798, da autoria de Joseph Goya y Muniain, com a inglesa de Bywater, a alema de Gudeman, a italiana de Albeggiani ou de Valgimigli, ou a francesa de Hardy, e bem avaliard as mutilagdes e as deformagées que sofrera o texto da Poética, s6 verificadas depois da descoberta do Parisinus. Colacionado por Bekker para a edigdo da Academia de Berlim, o altissimo valor deste manuscrito naéo tardou que fosse universalmente reconhecido, e¢ todas as edigées que se seguiram—as de Ritter, Susemihl, Vahlen, Christ, Bywater — baseiam-se neste cddice bizantino, que data de fins do século X, ou principios do XI. Na opiniio do Ultimo dos editores mencionados, todos os outros manus- critos seriam apdgrafos do Parisinus, e as melhores ligdes que apresentam deveriam ser consideradas como emendas ou acréscimos conjecturais dos humanistas. A reputac&o privilegiada deste manuscrito manteve-se intacta e intangivel até os primeiros decénios do nosso século. Todavia, em 1887, publicara o orientalista D. S. Margoliouth, sob o titulo Analecta Orientalia ad Poeticam Aristoteleam, 0 texto da verso arabe com a versio latina de algumas passagens, ensaiando ja a tese que, mais tarde, em 1911, no seu Aristotle on the Art of Poetry, ficaria ple- namente demonstrada: alguns dos manuscritos do Renas- cimento, considerados apdgrafos do Parisinus 1741, repre- sentam, na realidade, outro ramo da tradigéo. Com efeito, na segunda das mencionadas obras de Margoliouth, pelo minucioso confronto dos manuscritos gregos com o da ver- so arabe, imediatamente se revela a importancia excepcio- nal do Riccardianus 46, por isso que continham, tanto este como aquele, numerosas variantes que os fildlogos do século passado supunham que nado passassem de conjectu- ras dos renascentistas. Além disso, constava do Riccardia- nus um periodo que falta no Parisinus, por erro do copista, que consiste em omitir a {rase ou frases intercorrentes entre palavras iguais (“homoioteleuton”), no caso presente, o 14 vocabulo régov (“arco”). As quatro linhas ausentes do Parisinus e transcritas na vers&o arabe, cuja tradugao latina & a seguinte: “nam arcum quidem dixit, quod non posset quiqquam alius, et dixerat illud poeta, in narratione etiam quae venerat de illo narratum est de re arcus quod certo sciturus erat quod non vidisset”—correspondem aproxi- madamente a um periodo homélogo do Riccardianus, pelo que se demonstrava a independéncia desse cédice, e de alguns outros da mesma familia, em relagdo ao Parisinus, que durante um século gozara do mais incontestavel presti- gio. E este, pois, um dos mais flagrantes exemplos da dou- trina critica, segundo a qual nem sempre “recentiores” sig- nifica' “deteriores”. O Parisinus (sigla A), 0 Riccardianus (sigla B) e a Versdéo Arabe (sigla Ar) constituem, por conseguinte, os elementos fundamentais da tradigaéo manuscrita, no estado actual dos nossos conhecimentos paleograficos, embora no possamos afecta-los do mesmo coeficiente valorativo. O Parisinus é 0 cédice mais completo e menos corrupto; 0 Riccardianus, se bem que mutilado— pois comeca por alturas da pagina 1448 (Bekker), com uma lacuna de 1461 b 3 a 1462 a 17—, representa, todavia, um ramo que se insere na tradigao em data, pelo menos, trés séculos anterior 4 redacg&o do Pari- sinus, €, como dissemos, corrige-o e completa-o em muitos lugares. Quanto 4 Vers@o Arabe, o papel que ela pode desempenhar na critica textual da Poética é considerdvel: quando por mais nao seja, pela “credencial” que outorgou ao Riccardianus, pois a téo diversa indole do pensamento e do idioma, grego e arabe, decerto néo permite prosseguir no imoderado intento de Margoliouth, que pretendia, mediante a poética arabizada, atingir, quase diriamos, a Poética do Liceu. A histéria do texto impresso e das tradugdes em lingua latina ¢ em idiomas modernos divide-se também pelas trés épocas da tradig&io manuscrita, limitadas pela descoberta do Parisinus ¢ a reabilitagio do Riccardianus mediante a Versdo Arabe. 15 GRAECO-LATINA Se acaenansas TRADITIO| TRADITIO GRAECO-SEMITICA TRADITIO SEMITICO- LATINA POETICA ARISTOTELIS Guiles aX codices gravci deperditi sodex Parisinus graecus 1741 sodex Riccardianus graecus 46 ‘odex Estensis graecus 100 rodex Etonensis latinus 129 vodex Toletanus tatinus 47 10 ‘odex Parisinus arabicus 2340 sodex arabicus deperditus quo usus esse videtur Hermannuy Alemannus Hebraica Ante Saec. X Trans, Mantini See NVI Na primeira, situam-se todas as edig6es a partir de 1508, quando, em Veneza, Aldo Manuzio imprimiu o texto pre- sumivelmente estabelecido por Lascaris, até 1831, data em que foi publicada em Berlim a edigaéo de Bekker. Na segunda, sucedem-se as grandes edigées criticas, baseadas na recensio do Parisinus: além da edigéo de Bekker, contam-se, entre as mais notaveis, as de Ritter (1839), Susemihl (1865) e Vahlen (1868), sendo esta a mais valiosa, mercé do aprofundado estudo critico do cédice fundamen- tal que contém. Embora mais recente, a edig&o de Bywater (1909), por menosprezo da Versdo Arabe ¢ do Riccardianus (é 0 Ultimo testemunho de respeito “supersticioso” defronte a um “codex optimus”), agrupa-se com as precedentes. Enfim, na terceira época, iniciada pelos estudos de Margo- liouth, merecem especial mengio as edigdes de Rostagni (1.4 1927, 2.2 1945), Hardy (1932) e Gudeman (1934). As tradugées viriam a sofrer, naturalmente, as mesmas vicissitudes da tradigdo manuscrita e da edigaéo impressa. VIDA DE ARISTOTELES Embora a presente “introducg&o 4 Poética” nao seja, nem pretenda ser, uma “introdugao a Aristételes”, motivos que por si mesmos se hao-de manifestar na sequéncia nos levam a inserir neste ponto um breve escorgo da biografia do filé- sofo. Felizmente, a Epistola de Dionisio de Halicarnasso ad Ammaeum (§ 5) assinala, com louvavel sobriedade, os sucessos da sua vida, e somente aqueles que, apds o estudo tio luminosamente revelador de Werner Jager (Aris- toteles, cf. Bibliografia), nos aparecem justamente como as fases que mais importa considerar, desde que nos pro- ponhamos seguir a evolugdo interna do pensamento aristo- télico. Nascido em 384 a.C., na cidade de Estagira, colonia fun- dada pelos calcidenses da Eubeia, Aristételes era filho de Nicémaco, médico que se orgulhava de descender do pré- prio Asclépio, ¢ que ja havia assistido, outrora, a um rei de 7 Macedonia: Amintas II. Por morte do pai (366 a.C.), o jovem veio estabelecer-se em Atenas, e, ao que afirma Dio- nisio de Halicarnasso (ou a sua fonte), “recomendado a Platéo”. Mas também 6 licito acreditar que, aos dezoito anos, Aristételes jd teria atingido suficiente maturidade para se decidir entre a Academia filosdfica de Plato e a Escola retdrica de Isécrates. Em todo 0 caso, parece asse- gurado que desde aquela data até 4 morte de Plat&o (348 a.C.), isto é, durante vinte anos, o filésofo escutou as ligdes do mestre iluminado, assim como as do grande matematico que foi Eudoxo de Cnido, e as de Espeusipo, que viria a ser 0 primeiro exiliarca da Academia, por morte do seu fundador. Talvez decepcionado pela eleic¢do de Espeusipo, emigrou Arist6teles para Asso, na costa da Anatolia, onde, anos antes, se haviam estabelecido alguns discipulos de Pla- to, patrocinados por Hermias, tirano de Atarneu. Ai resi- diu trés anos, ao fim dos quais lhe foi dado assistir a um dos lances mais dramaticos da conjura macedénica contra o império persa. Hermias governava um Estado, a cujas Jeis, por sua iniciativa generosa, nado seriam estranhos os ensinamentos da Politéia ut6pica, mas ao qual, por outro lado, o Persa teria consentido em dar bastante liberdade para recensear um corpo de mercenarios relativamente poderoso. Quando o Grande Rei se apercebeu de que ali, nos confins do Império, comecava como que a guarda avancada dos exércitos da Macedonia, conseguiu apoderar-se ardilosamente de Hermias ¢ crucificd-lo em Persépolis. Mas nao obteve, nem pela tortura, que o tirano de Atarneu lhe revelasse o segredo de Filipe e de seus aliados. Nao sabe- mos que parte Aristdteles e a pequena academia de Asso teriam desempenhado na conjura, mas 0 certo é que o fild- sofo, mais uma vez, teve de emigrar, agora para Mitilene, em Lesbo, casado com Pitias, sobrinha de Hermias. Em 343 a.C., responde ao chamado de Filipe, que o elegera para preceptor de seu filho, Alexandre. E de presumir que, ja ent&o, o filésofo ganhara, por seus escritos, a notorie- dade que determinou tao honrosa eleigio. Oito anos per- maneceu na corte de Pela, instruindo o futuro dominador 18 de todo o mundo helenizado, precisamente na leitura do “educador da Hélade”: Homero. Apés a morte de Filipe e no decurso dos acontecimentos que colocaram Alexandre no trono da Macedénia com dezanove anos de idade, Aris- toteles regressou a Atenas (335 a.C.), onde permaneceu a testa do Peripato até ao dia em que o subito falecimento do real discipulo (323 a.C.) deixava o filésofo 4 mercé dos revolucionarios atenienses, que entraram de perseguir todos os acusados ou suspeitos de “colaboracionismo” macedé- nico, Refugiado em CaAlcide, na Eubeia—aquela mesma cidade donde provinham seus avés maternos—, veio Aris- toteles a falecer um ano depois (322 a.C.), com sessenta € trés anos de idade. TRADICAO ARISTOTELICA NA ANTIGUIDADE, Sobre o problema da tradigdo aristotélica, isto é, acerca dos livros que a tradigdo atribui a Aristételes, os dados de que dispomos s&o os seguintes: A) Catdlogos de escritos, que, em ultima analise, ascen- dem a Hermipo de Esmirna, discipulo de Calimaco, que, por sua vez, o foi de Praxifanes (1. Diiring, Aristotle in the ancient bibliographical tradition, 1957), ou a Ariston, esco- larca do Liceu a partir de 228 a.C. (P. Moraux, Les listes anciennes des oeuvres d’Aristote, 1951). Destas atribuicgdes podemos concluir que as obras alistadas nos catdlogos ainda existiam no século III a.C. Ora, obras tais, exceptua- das algumas (nao muitas) que se identificam com livros ou secgdes dos livros que constam do actual Corpus Aristote- licum, verifica-se pertencerem, na maioria, a duas classes de escritos; a) os “dados a publicidade” (éfwrepuxol, éxdeSouévor), como o Eudemo, o Protréptico, Da Justiga, Dos Poetas, etc., € b) os “Hypomnémata” ou “Compila- ¢6es", como Vencedores Olimpicos, Vencedores Piticos, Vitérias Dionistacas, Didascdlias, Problemas Homéricos, Constituigées, ete. 19 B) Por outro lado, com Aspasio, Atico e, sobretudo, Alexandre de Afrodisias, tem inicio no século II da nossa era aquela intensa actividade exegética sobre o texto de Aristételes, que transpés os confins da Antiguidade e da Idade Média (Commentaria in Aristotelem Graeca, ed. pela Academia Régia da Prissia, Berlim, 1882 e segs.). Mas, todos estes trabalhos incidem no texto do Corpus Aristote- licum, que ainda hoje possuimos na sua maior parte, e, como é sabido, este nio contém as obras mencionadas na alinea precedente: os comentadores antigos e medievais, mesmo os mais sabios e eruditos, pouco ou nada conhecem dos exotéricos ou hipomnematicos, e¢ 0 pouco, ao que parece, s6 por via indirecta de citagdes. Eis-nos, por conseguinte, perante duas épocas do aristo- telismo antigo, ou-——o que é mais notavel e surpreendente — defronte a dois Aristoteles: um Aristdételes da época hele- nistica (dos séculos III-I a.C.) e um Aristételes da época romana (do século II d.C, em diante), néo havendo outra inferéncia a extrair do facto, sendo esta: em incerta data, nos trés séculos que medeiam entre Hermipo e Aspasio, veio a lume uma nova edi¢do de Aristételes que rapida- mente suplantou a antiga. Cicero, cuja produtividade litera- ria se situa a meio caminho entre os dois extremos assina- lados, € a mais eloquente testemunha do acontecimento, pois, sendo certo que, em sua obra, se denunciam vestigios do conhecimento (directo ou indirecto) de escritos do Cor- pus, mais certo € que o Aristételes do grande escritor latino € o “Aristételes Helenistico”, néo aquele que, cinco gera- g6es apos, seria o tinico a dominar a tradigio aristotélica (v. O. Gigon, Cicero und Aristoteles, «Hermes», 87 [1959], pags. 143 e segs.). A Cave de Scépsis (Strab. XIII 1, pags. 608-9; Plut. Sylla, 26; Athen. 5, pag. 214 D) é a “raz&o” lendaria do inexplicavel destino dos livros aristotélicos que compdem o Corpus. Neleu, discipulo de Aristételes e de Teofrasto, que teria herdado do primeiro escolarca do Liceu todos os livros que Ihe pertenciam e, juntamente, os de Aristételes, levou-os para Menor) ¢ confiou-os a seus 20 familiares, gente rude, que ignorou o alto valor do depé- sito, até o dia em que os reis de Pérgamo os cobigaram para sua biblioteca, rival da alexandrina. Nessa altura, quando os livros de Aristételes e de Teofrasto, j4 danifica- dos pela humidade e roidos pelas tragas, mofavam na cava em que os amontoaram, surgiu um tal Apélicon, “mais biblidfilo do que filésofo”, que os comprou aos herdeiros de Neleu, por elevado prego. Mas, ao transcrever os textos, Apélicon t&o incorrectamente preencheu as lacunas ¢ emendou as corruptelas, que a sua edigdo, espoliada por Sila (86 a.C.), apds a conquista de Atenas, havia de cele- brizar o nome do gramatico Tiranion (discipulo de Dioni- sio da Tracia e, portanto, o primeiro fildlogo da escola de Aristarco, domiciliado em Roma), que, sendo veridica esta parte da Historia, decerto teria de devotar o melhor de sua vida a estabelecer um texto fidedigno dos escritos acroama- ticos. Se, efectivamente, foram Sila e Tiranion quem revelaram a Roma (e, por conseguinte, a todo o mundo antigo) os textos da Escola, no admira que escritores da época, de quando em quando, mostrem conhecer uma ou outra pagina do “novo Aristételes” — nomeadamente Cicero, que é 0 primeiro testemunho da Etica Nicomaqueia. Mas, como dissemos, até 0 século II, 0 Aristételes que predomina é 0 helenistico. Depois da noticia fugaz, inserta no de finibus (V 12), no século II Aulus Gellius (XX 5,1) nos informa mais porme- norizadamente acerca das diferengas internas entre o Aris- toteles da época helenistica e o Aristételes da época romana: “commentationum suarum... artiumque, quae dis- cipulis tradebat, Aristoteles philosophus duas especies habuisse dicitur... dkpoarikd e €€wrepicd...” Ora, na perspectiva pela reedig&o de todos os fragmentos do “Aristételes perdido” e, por consequéncia, através do reconhecimento da dicotomia — obras exotéricas ou publi- cadas, € textos ou sumarios de ligdes proferidas no mais testrito Ambito da escola, tornou-se flagrante certa opo- sigdo entre mestre ¢ discipulo, Com ito, de Platdo res- 21 tam todos ou quase todos os escritos “exotéricos” (0 que talvez néo pouco tenha contribuido para eliminar, da tradi- ¢4o, os congéneres escritos de Aristoteles); mas do Estagi- rita, salvo a Constituigdo de Atenas, s6 os “acroamaticos”. E ainda se da o seguinte: enquanto, no conjunto da obra de Platéo, se distinguem trés periodos, cujos limites a moderna critica fixou com relativa seguranca e de modo que, com raras excepgGes, ndo subsistem duvidas a respeito da atribuicéo de um ou outro didlogo a esta ou aquela época da sua vida de mestre ¢ pensador—muitas vezes é ainda questo aberta a de saber, com satisfatorio rigor, quais as obras, ou quais as partes, em cada uma das obras de Aristételes, que correspondem a um ou outro periodo do seu magistério filoséfico. Tal é, em poucas palavras, a “Questo Aristotélica”, vagamente prenunciada por Werner Jager, em 1913, no seu especializadissimo trabalho acerca da composicéo da Meta- fisica, e, dez anos depois, precisamente enunciada e amplamente divulgada, pelo mesmo autor, em um dos mais preciosos livros da inesgotavel bibliografia. do aristotelismo. CRONOLOGIA DOS ESCRITOS DE ARISTOTELES Das pesquisas histérico-filolégicas de Jager, resultaria para a cronologia dos escritos aristotélicos a articulagdo periddica que passamos a expor. 1. Periodo Ateniense ou “Académico”: Didlogos (perdi- dos), salvo 0 De philosophia e 0 Protrepticum (exotéricos); formagéo da doutrina contida nos tratados légicos e na Retorica; principios fundamentais da Fisica, consignados nos livros I, Il e VII (ideia de finalidade, matéria e forma, poténcia e acto); De caelo |; as partes mais antigas da Poli- tica (livro II cc. 2 € 3) e © livro II] do De anima. 2. Periodo de Asso, Lesbo e Macedénia: os livros mais antigos da Merafisica (1, V, X1 e XII, exceptuado o c. 8, cc. 9 e 10 do XIII € todo o XIV); De philosophia (“exoté- rico”), contemporaneo do livro | da Metafisica; Eth. eud.; 22 livros I], Ill, VII e VIII da Politica; De caelo (excepto 0 livro I) e De gen. et corrupt. 3. Periodo do Liceu ou da “organizagdo da pesquisa cientifica”, em geral, todas as obras de caracter histérico e biolégico; Meteor.; De anim. 1 e II; Parva naturalia. Nestes anos de actividade magistral, 4 frente dos filésofos, histo- riadores e naturalistas do Liceu, Aristételes estabelece as bases de uma grandiosa suma, que vemos realizar-se nos anos sucessivos, pelo menos no que concerne 4 Historia da Ciéncia (Teofrasto: Histéria da Fisica; Eudemo: Histéria da Matematica; Ménon: Historia da Medicina). E também, neste periodo, que Jager situa a revisto da teoria do pri- meiro motor, que consta do c. 8 do livro XII da Metafi- sica, e, de acordo com as novas tendéncias empiricas da escola, os livros IV, V e VI da Politica (cuja redacgao se basearia nos materiais das Constituigdes), €, por conse- guinte, também a Etica nicomaqueia, que, como “fenome- nologia da vida moral”, corresponderia 4 “fenomenologia da vida politica’, desenvolvida naqueles trés livros da Poli- tica; finalmente, os livros VII, VIII e IX da Metafisica, com o VI, que Ihes serve de introdugéo (doutrina da substancia). A ideia de “desenvolvimento interno”, que presidiu a elaboracdo desta tese renovadora, explica, com um minimo de pressupostos, inimeras contradigdes que a critica nove- centista j4 havia denunciado pela andlise do extenso Cor- pus Aristotelicum, €, em primeiro lugar, os que radicariam nas diversas atitudes do fildsofo— desde a velada oposigio até A ostensiva polémica—defronte a Platéo ou a scus sucessores na Academia. Restrigdes e objecgdes, em espe- cial as dos neo-escolasticos de Louvain, incidem com parti- cular vigor nas tendéncias que, aps Jager, vieram a lume, para demasiado evidenciar o “empirismo” do Liceu (III periodo) e, portanto, para debilitar o valor tradicional do testemunho aristotélico, quanto a perenidade da Metafisica. No entanto, é certo que nao ha pagina em seu Aristoteles, onde Jiger afirme que o filésofo alguma vez. tenha desi tido da especulagio metafisica; quando muito, o que 23 podera dizer é que, do primeiro ao Ultimo periodo, Aristé- teles se vai afastando progressivamente daquela concepg&o da Metafisica a que poderia ter chegado, se prosseguisse nas pisadas do mestre, tentando simplesmente resolver a seu modo as aporias que Plat&o deixara insolutas. Depois de Jager, apresentou F. Nuyens (Lévolution de la psychologie d’Aristote, 1948) outro critério para deter- minagao da cronologia das obras de Aristoteles. A ideia do filésofo holandés consistia em averiguar que estagios intermediarios se percorrem, através do Corpus Aristoteli- cum, desde o Eudemo, em que a alma é ainda uma subs- tancia separada, até ao De anima, em que ela é ja a entelé- quia do corpo, e, portanto, em que corpo e alma constituem uma unidade substancial. Questao seria, pois, a de classificar as obras do Estagirita em trés periodos, que se distinguiriam, o primeiro, pelo “dualismo antagénico” do Eudemo, 0 segundo, pela “natural colaboragdo” da alma e do corpo, qual é, por exemplo, a manifesta concep- ¢4o da Historia animalium, e o terceiro, pela doutrina da “alma-enteléquia”, que vemos plenamente desenvolyida no De anima. A aplicagao deste critério permitiu a Nuyens alcangar resultados que, em parte, confirmam a teoria de Jager e, em parte, a contradizem. Assim, 0 De philosophia e o Protrepticum transitam do periodo de Asso e Lesbo (II) para o periodo da Academia (1), e, portanto, também o De caelo, a Phys. 1-Vll e o De gen. et corrupt. pertence- riam ao primeiro periodo, ao passo que as obras légicas, 0 De intérpr. e Analiticos, ao segundo. A Historia anima- lium, como se disse, € caracteristica do II periodo de Nuyens (era-o do III de Jiger) e, com este tratado, seme- lhantemente se desloca a maior parte das obras bioldgicas, com excepg¢do do 6.° tratado dos Parva naturalia e do De generatione animalium. O mérito incomparavel de Jager reside, todavia, em que todas as descobertas susceptiveis de esclarecer a biografia intelectual de Aristételes se efectuam, nao em oposigaéo a esse principio do “desenvolvimento interno”, que o emi- nente fildlogo © historiador estabeleceu, ¢ ninguém pée em 24 duvida, mas, apenas, de acordo ou em desacordo com um ou outro critério classificatério da bibliografia aristotélica. Jager propunha-se distinguir as varias fases, na evolugdo intelectual de Aristételes, percorrendo uma trajectoria que parte da “Metafisica platénica” para chegar a uma “ciéncia rigorosa, assente em bases empiricas”; Nuyens julga pos- suir, no desenvolvimento da Psicologia, a chave da questao aristotélica; os resultados, por vezes tao diversos e contra- ditérios, reflectem a enorme complexidade do problema que ha mais de quinze séculos foi enunciado pelo primeiro grande comentador do Estagirita, e que, afinal, é o mdbil de todas as pesquisas neste campo da critica e da historia da tradig&o. Efectivamente, questo primacial seria a diversidade que se julga apreender pelo confronto das doutrinas do Corpus e dos Fragmentos. Alexandre de Afrodisias (primeira metade do século III d.C.) decidia-se por uma solugaéo externa: a inautenticidade dos “exotéricos”. Jager repre- senta a conciliagfo do extremismo de Alexandre, em que, alids, reincidiu o moderno editor dos fragmentos (v. Rose, Aristoteles Pseudepigraphus, 1863), € 0 extremismo de Ziircher (J. Ziircher, Aristoteles’ Werk und Geist, 1952), que, a bem dizer, mais ndo faz que prosseguir consequen- temente nas pisadas dos criticos mais recentes. De facto, segundo a tese inquietante e escandalosa de Joseph Ziir- cher, 4 obra auténtica de Aristételes pertenceriam, com raras excepgdes, apenas aqueles escritos que naufragaram na tempestuosa corrente da tradig&o, e, entre os livros do Corpus, mal se pode distinguir 0 que pertence a Aristételes © o que pertence a Teofrasto. Diga-se de passagem que as discordancias dos resultados, na aplicag&o de diversos crité- tios de divisdio cronolégica das obras de Aristételes, apon- tam para uma possivel “contaminagdo”, isto é, para uma eventual redacgaio de todos os escritos acroamaticos do Lilésofo, apds a sua morte, efectuada por algum discipulo vido de “coeréncia interna” e “imobilidade sistemd- . que nao se haja coibido de “corrigir” as mais flagran- 28 A “ARTE POETICA” E 0 DIALOGO “DOS POETAS” Se, na exposigao que precede, nao deixdmos assinalado 0 lugar que competiria 4 Arte Poética, entre os demais escri- tos de Aristételes, é porque, felizmente, neste campo, pou- cas tarefas havera tao faceis de cumprir. JA uma cronologia relativa, baseada, simplesmente, nas proprias citagdes que Aristételes faz de escritos seus (v. P. Thielscher, Die rela- tive Chronologie der erhalienen Schriften des Aristoteles nach den bestimmten Selbstzitaten, “Philologus”, 97 [1948], pags. 239 e segs.), bastaria para situar a Poética, por um lado, depois da Etica Nicomaqueia e da Politica, e antes da Retérica, €, por outro lado, apés o De anima e o De interpretatione — 0 que significa que, seja qual for o sistema de classificagao cronolégica adoptado, a data da composi- g&o desta obra recaira sempre no Ultimo periodo da vida do filésofo. Mas, aqui, a evidéncia interna é bem relevante. Se ha livro que melhor exemplifique o caracter “acroama- tico” de todos os que integram o Corpus Aristotelicum, esse € a Poética, Nenhum outro se nos afigura mais “tortu- rado” por notas marginais, express6es parentéticas e acrés- cimos sucessivos, do que este, que, certamente, foi texto para mais de uma série de prelecgées a discipulos interessa- dos na problematica da literatura e das suas implicacées antropoldgias e politicas. Além disso, quase todas as suas Pproposi¢Ges tedricas parecem reclamar os esclarecimentos que o filésofo, decerto, nao deixaria de fornecer, por via de referéncia 4 tal base empirica — no caso, os copiosos escri- tos “hipomnematicos” que iam respeito 4 materia. Mas, o principal “pressuposto” da Arte Poética ainda seria uma daquelas obras exotéricas que os seus ouvintes bem conheciam de memoria: 0 didlogo Dos Poetas. Uma alusio a Empédocles, outras aos mimos de Séfron e Xenarco, possivelmente todas as vezes que o mestre pro- nunciava a palavra “imitagdo” ou se referia 4 “catarse”, seriam ocasiio para relembrar algumas passagens desse livro, em que o assunto fora desenvolvido por todas as s' O PROBLEMA DOS “EXOTERICOS” A extrema importancia que a consideragao deste didlogo tem assumido na exegese do nosso texto e em todos os tra- balhos que se propdem resolver o problema da formagao e do desenvolvimento das doutrinas estéticas do Estagirita, assim como naqueles que visam o esclarecimento de tantas obscuridades que envolvem a hist6ria da critica literaria, através das geracdes dos gramaticos e fildlogos que sucede- ram a Aristételes —leva-nos forgosamente a retomar, neste ponto, a dificil questao dos “exotéricos”, mas, desta vez, com 0 especial propdsito de descobrir a relacio que existi- ria entre o texto perdido e o texto preservado pela tradigao. Houve tempos em que se julgou observar flagrante dis- crepancia entre os juizos que Aristételes formula acerca de Empédocles, na Poética (47 b 13, v. Indice Onomastico, s.v.) e no De Poetis (frg. 1 Ross, pag. 67); porém, mais atenta leitura basta para dissipar 0 equivoco (v. infra, com. ad locum): em ambos os lugares, o juizo é idéntico; sé as expressdes diferem, em conformidade com os aspectos sob os quais € encarada a obra do poeta-filésofo de Agrigento. Alias, onde quer que se denunciem outros vestigios de alguma referéncia ao didlogo “publicado”, 0 autor da Poé- tica fa-lo de modo que n&o é possivel qualquer hesitagao quanto ao acordo essencial das doutrinas expostas. Em relagio ao tratado acroamatico, o didlogo exotérico nao representa, portanto, uma fase de pensamento, longinqua ¢ superada, 0 que nos permite supor, ou que o sistema de Aristételes se manteve inalterado durante muitos dos seus anos derradeiros, ou que as duas obras nao foram redigidas em datas muito distantes. Mas, se optarmos, como parece mais natural, pelo segundo membro da alternativa, conclu- sfio logica € termos de recusar algumas conclusées da cri- tica hodierna e reconsiderar as opinides dos antigos acerca da diferenga entre os escritos exotéricos e acroamaticos. Segundo Aulus Gellius (XX 5,1), “egwrepixe dicebantur quae (i. ¢. commentationes) quae ad rhetoricas meditatio- nes facultatemque argutiarum civiliumque rerum notitiam 27 conducebant. dxpoazixd autem vocabantur in quibus phi- losophia remotior subtiliorque agitabatur quaeque ad natu- rae contemplationes disceptationesve dialecticas pertine- bant”. A diferenca, por conseguinte, nao se atribuia senio 4 diversidade das matérias tratadas: de modo geral, os exotéricos nao incidiam sobre problemas de ldgica e filoso- fia natural, e os acroamaticos desdenhavam de questées retdricas € politicas. Nao ha divida que, nestes termos, a distingdo proposta pelo gramatico latino anda bem longe da verdade que se depreende dos fragmentos e dos teste- munhos que possuimos acerca dos didlogos perdidos (cf. Aristotelis Fragmenta Selecta, de W. D. Ross, Oxford 1955, 2.4 ed. 1958). No entanto, é bem certo que a referén- cia a uma oposi¢ao entre as “rhetoricas meditationes” e as “disceptationes dialecticas” deve ter guiado o espirito de Bernays, 0 qual, segundo Bonitz (Index Aristotelicum, pag. 104 6), dizia estar abrangido “eo nomine (i. e. é€wrepixol Aéyor) genus quoddam librorum, quod a severa et accurata philosophicae doctrinae alienus sit”. A TESE DE WIELAND O passo mais decidido e mais decisivo, nesta linha de solubilidade do problema, deu-o, recentemente, Wolfgang Wieland, em seu trabalho “Aristdteles como mestre de Reté- Tica, € os escritos exotéricos” (Aristoteles als Rhetoriker und die exoterischen Schriften, “Hermes”, 86 [1958], pags. 323-346). O fildlogo parte da considerago mais atenta de uma passagem da Fisica (IV, pag. 217 b 29 e segs.) para concluir que as palavras “através de (escritos, discursos) exotéricos” se referem a um modo de abordar aqueles mesmos problemas, que, de outro modo, sao tratados nos escritos acroamaticos; ou antes, que os exotéricos referir-se- -iam a problemas de outra espécie, que podem surgir a propésito do mesmo objecto da exposi¢do acroamdtica. O autor cré poder afirmar que tais problemas sio “problemas de existéncia”, ¢ no, “problemas de esstncia”; so proble- 28 mas do drt, e nao problemas do é:ére (pags. 326-27). Ora a existéncia ou inexisténcia nao é susceptivel de prova apo- dictica; 0 mais que se podera fazer ¢ persuadir ou dissuadir a quem negue ou afirme que um objecto existe ou néo existe. Nao admira, portanto, que na aludida passagem da Fisica — argumentagdo exoiérica sobre a existéncia ou inexisténcia do tempo—, ocorram, nao vocabulos tipicamente cientifi- cos, como émtotHyun (ciéncia) e el’Snowg (conhecimento), mas outros termos, que provém da retérica: zlarug (crenga) e wecOm (forga persuasiva). As provas de existéncia, neste passo da Fisica, como nos demais deste e dos outros trata- dos, que incidem sobre semelhante argumento— lembra- mos, por exemplo, no inicio da Merafisica, a prova de que “todos os homens, por natureza, desejam conhecer”, e na Poética (c. IV) a prova de que o “imitar é congénito no homem” (cf. coment. ad locum)—, e ja antes em Platéo (Wieland cita as provas da imortalidade da alma, no Fédon),—as provas de existéncia, diziamos, decorrem a modo tipicamente retérico, neste sentido rigoroso de se servirem da técnica do “entimema”, que o proprio Aristéte- les designa por “silogismo retérico”. O processo consiste principalmente no acimulo de “sinais” (onpeia) e “teste- munhos” (rexy#pta)— por onde se revela quanto o racio- cinio exotérico (ou retdrico) difere do raciocinio acroama- tico (ou apodictico). Efectivamente, ao passo que em uma demonstragdo rigorosamente légica nfo tem sentido o que- rer fundamentar melhor uma cousa, pelo facto de Ihe con- ferir fundamento, de muitas e varias maneiras, do mesmo passo se apreende que a demonstragdo retérica tanto mais eficiente sera, quanto mais numerosos e diversos forem os “indicios” (sinais e testemunhos) de prova (pag. 335). E, pois, um feliz acaso, este, de se nos deparar tao cla- ramente definido 0 conceito de discurso “exotérico”, num texto acroamatico. Mas, quanto ao sentido de “exotérico”, nas passagens em que 0 termo se aplica em adjectivar um escrito, provavelmente dos “publicados” (€x6edopévor)? f neste ponto que se apresenta a tinica hipdtese de traba- Iho em causa: “a nossa suposigdo & que atrdés dos 29 éfwrepixot Aéxov se oculta a manifestagao literdria daquele tempo em que Aristételes exerceu o magistério retérico” (pags. 337-38). Nas fontes biograficas comparecem, efectivamente, indi- cios de tal magistério (pelo menos, durante a primeira esta- dia do filésofo em Atenas), actividade que lhe teria gran- jeado a antipatia e animosidade de Isécrates, chegando um discipulo do orador, um tal Cefisédoto (ou Cefisodoro) a escrever e publicar uma refutacio em quatro livros das doutrinas expostas pelo discipulo de Platéo. Wieland, que nao cré na hostilidade entre mestre e discipulo, referida pela tradic&o, interpreta os testemunhos, segundo os quais Aristételes teria aberto uma escola concorrente da Acade- mia, ainda durante a vida do seu fundador, precisamente no sentido daquela hostilidade e concorréncia a Isécrates (pag. 336), e acrescenta a verosimil suposi¢io de que os quatro livros de Cefisédoto nunca poderiam ter saido a lume, se o discipulo de Isécrates nfo houvesse encontrado suficientes referéncias em obras publicadas pelo discipulo de Plat&o. Enfim, sem que se possa dizer que 0 facto cons- titui uma prova, convém lembrar que, dos testemunhos de Cicero acerca dos “exotéricos”, muitos se encontram justa- mente no 4mbito dos estudos retéricos (cf. Ross, Fragm. Selecta, pags. 1-4). Sem divida, toda esta argumentagio mal toca o pro- blema que mais nos interessaria resolver. Com efeito, nao resta qualquer noticia acerca de um magistério retérico de Aristételes em perfodo que nao seja 0 académico, e perma- necemos na ignorancia acerca da existéncia ou inexisténcia de outro, no ultimo periodo ateniense. Ora, como disse- mos, neste ultimo periodo da vida do filésofo é que foi redigido o livro que da Arte Poética nos resta, e, pelos motivos acima indicados, nao longe dessa época, também o didlogo Dos Poetas. Wieland, porém, que escreve nestes dias, em que filélogos e historiadores cada vez mais se inclinam para nao rejeitar qualquer dado da tradicao, senio quando demonstrada a sua absoluta falsidade, ainda nos adverte, a propésito do citado texto de Gellius, que a 30. ultima palavra ainda nao foi pronunciada pela critica, acerca do ensino exotérico matinal e do ensino acroamatico vesperal do Estagirita. VALOR GERAL DOS TESTEMUNHOS FRAGMENTARIOS. Acabamos de verificar, mediante um exemplo imprescin- divel 4 economia do nosso trabalho, que a indagagao filo- ldgica se assemelha por muitos aspectos a pesquisa arqueo- légica. O leigo podera supor que, neste campo, se hajam exercido esforgos que mais bem empregados seriam no ter- reno habitualmente explorado pela historia e critica litera- ias; mas ndo chega a suspeitar de que, sem eles, nem teria historia essa literatura que tanto aprecia e admira nas obras conservadas pela tradigo. Quanto a Hélade, é certo que possuimos os poemas de Homero, didlogos de Plato, comédias de Aristéfanes, historias de Herdédoto, oragdes de Deméstenes, odes de Pindaro, tragédias de Sofocles, se nao integralmente, pelo menos de modo a que possamos discor- rer acerca da Epopeia, da Lirica, da Tragédia, da Comédia, da Retérica, da Historiografia e da Filosofia—em suma, de todos os géneros literarios cultivados pelo génio incom- pardyel da Grécia Antiga. Mas, que seria da historia desses géneros, se nao dispuséssemos também de alguns fragmen- tos de Safo e Alceu, de Arquiloco e de Siménides, de Par- ménides e Herdclito, de Epicarmo, de Hecateu...—isto é, sem a paciéncia, a argicia e 0 engenho de tantos arquedlo- ros da literatura? A cscavadores de ruinas da tradigaéo também devemos rta compensagao das injurias e mutilagdes que sofreram os escritos de Aristételes, pois, como vimos, nio quis a meret do destino repartir-se igualmente pelo mestre e pelo discipulo, Se as obras de Platéo chegaram até nds em estido de satisfatoria integridade, perante as vicissitudes dos escritos aristotélicos, pelo contrario, bem cedo foram s miiltiplos ¢ complicados problemas da épsis™ cnunciados aqui Wradigio manuscrita, Historia ou lenda, a ec de a

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