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ESCRAVOSE | TRAFICANTES | NO IMPERIO PORTUGUES O COMERCIO NEGREIRO PORTUGUES NO ATLANTICO DURANTE OS SECULOS XV A XIX CORRIA © ANO DE 1444, UMA FROTA ALGARVIA DE SEIS CARAVELAS CHEGA A LAGOS, NO REGRESSO DE UMA EXPEDIGAO AO GOLFO DE ARGuIM (ATUAL MaurirAnta). NAQUELA MANHA QUENTE DO PRINGIPIO DE AGOSTO, DESPERTANDO 4. CURIOSIDADE DA POPULAGAO LOCAL, DESEMBARCAVA EM LAGOS UM CONTINGENTE DE 236 ESCRAVOS AFRICANOS. A NOTICIA CORRERA DE BOCA EM BOCA. TODOS QUERIAM VER O INUSITADO ESPETACULO, ATE MESMO © PODEROSO INFANTE D. HENRIQUE, QUE TINHA DIREITO A UM QUINTO DOS DESEMBARCADOS, NAO QUIS DEIXAR DE ESTAR PRESENTE. Nuo era a primeira vez que chegavam gscravos negros a Lagos. Mas nunca tinham vindo em tho grande nimere. O cronista Gomes Eanes de Zurara relata, de for- ma comovente, na sua Ordnicada Guiné, a partilha dos cativos: homens e mulheres inconsoliiveis, rostos lavados em lagrimas, gritando ¢ gemendo; tentando deses- perudamente nfo ser separados dos filhos. Deuma forma simbélica, este episodio marca o inicio do tréfico atlantico de es~ cravos. A partir de 1444, ¢ durante perto de 180 anos, os portugueses detiveram, quase em exclusivo, 0 comércio de escravos entre as margens do Atlantico. S6 a partir de 1621, com a criagio da Companhia Holandesa das Indias Ocidentais, novos concorrentes chegam em forga a este mercado. © historiador Arlindo Manuel Galdeira levou a eabo uma exaustiva pesquisa para tragar, neste livro, um retrato abrangente do trafico de escravos, da sua origem até a sua aboligho, no espago do império portugués. Um processo complexo que evoluiu ao longo dos séculos, que € aqui analisade desde a compra dos escravizados, em. diferentes locais da costa ocidental africana, a dificil travessia do oceano em navios sobrecarregados, nas condigées mais deploraveis. E possivel acompanhar depois a chegada desses escravos a Lagos ¢ a Lisboa, mas sobretudo aos portos do Brasil, em diresio ds minas ¢ As grandes plantages de agicar, de tabaco ¢ de café, onde cons- titulram « mio de obra quase exclusiva. O historiador analisa ainda, com minticia, ‘as margens de lucro deste negocio ¢ desvenda a biografia de alguns dos negociantes ¢ das principais familias que se envolveram no infame comércio>. Apesar de, em Portugal, o primeiro decreto de restri¢io do trafico ter a data de 1761, s6 em 1842 € que, de forma efetiva, a Coroa portuguesa proclamou o fim da compra ¢ venda de seres humanos e, em 1878, a aboligic da escravatura em todo o império portugués. Para a Histéria fica o poder dos numeros: entre 1450 ¢ 1860 quase 13 milhdes de africanos foram traficados no lucrativo comércio de escravos do Atlantico. Perto de seis milhdes desses escravizados foram transpor- tados em navios com a bandeira de Portugal ou do Brasil. a esfera @ dor livros ARLINDO MANUEL CALDEIRA. Licenciado em Histéria, é in- vestigador do Centro de Histé- ria de Além-Mar (Universidade Nova de Lisboa). A sua princi- pal drea de pesquisa é a Historia de Africa (particularmente An- gola e golfo da Guiné), sobre a qual tem publicado varios livros e dezenas de artigos. ESCRAVOS E TRAFICANTES NO IMPERIO PORTUGUES Arlindo Manuel Caldeira ESCRAVOS E TRAFICANTES NO IMPERIO PORTUGUES O comércio negreiro portugués no Atlantico durante os séculos xv a XIX a esfera @ dor livros A Esfera dos Livros Rua Barata Salguciro, n.° 30, 1.° esq. 1269-056 Lisboa - Portugal Tel. 213 404 060 Fax 213 404 069 www.esferadoslivros.pt Distribuidora de Livros Bertrand, Lda. 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PARTE I © trafico portugués de escravos: do inicio da atlantizagao ao final capfruLo 1 Principais areas de resgate . 1.1, Nas origens do trafico atlantico:. Arguim sae 1.2. Os tios da Guiné e 0 arquipélago de Cabo Verde . 1,3. Entrada no golfo da Guiné. . . . see 1.4, A originalidade de So Jorge da Mina . . 1.5. As ilhas do golfo da Guiné. . . 1.6. A bafa de Benim e os rios dos escravos. 1.7. O reino do Congo: apogeu e decadéncia . . . 1.8. O reino do Ndongo a que os portugueses chamaram Angola . CAPITULO 2 A dificil travessia.... 6... . 2.1. Do interior para a costa 2.2. Antes do embarque . . 2.3, Batismos emterta........... 2.4. momento da partida....... 4. 13 13 17 24 28 37 49 104 107 114 2.5. Os navios do trafico. . . 116 2.6. As tripulagdes bee 119 2.7. A sobrecarga dos navios: iiss epritica 121 2.8. As condigdes a bordo..... 127 2.9.0 problema da dgua . 130 2.10. A alimentagao. . .. . 133 2.11. Sexualidade no inferno . . . . 136 2.12. Com o padre Dionigi num navio aebetra : 138 2.13, Higiene e mortalidade. . 144 2.14, Resisténcia e revoltas . . 147 carfruLo 3 —}y Lucros ¢ perdas do trafico de escravos. . 3.1. Algumas ideias feitas .... 3.2. O Estado portugues ¢ 0 tréfico 3,3. Mercadores, armadores e contratadores : 3.3.1. Manuel Caldeira, um negreito cristéo-novo . 174 3.3.2. Francesco Carlerti, um florentino no tréfico de escravos 176 3.3.3. Gaspar Alvares, o «menino-diabo» ..........--. -. 180 3.3.4, Anténio Fernandes de Elvas ¢ a tentativa de monopolizagéo. dotrafico eee cee eee ee ees 185 3.3.5. Um mercador de escravos nas malhas da Inquisigéo . 189 3.3.6. Negociar na Guiné, enriquecer no Peru. i 197 3.3.7. Os jesuitas traficantes de escravos? . . ; 203 3.3.8, Governadores de Angola: os politicos no trafico . 211 3.3.9. Um escravo traficante de esctavos . . . . 217 3.3.10. Os sécios do marqués de Pombal 219 PARTE II O iiltimo século do trafico de escravos em Portugal e no Brasil ......... 227 CAPITULO 1 O lento proceso do abolicionismo. . 229 1.1. Portugal pioneiro?....... . : 229 1.2. Interesses econdmicos e mudanga de ativudes . vie 232 1.3. A pressdo britdnica sobre Portugal e a legislagao para inglés ver... 235 1.4. Ahora do Brasil... 0.0. c ee cc eee etter eters 244 CAPITULO 2 O trafico que resiste. 2.2... ee 251 2.4) Contas de somas: os mimeros do trafico 251 2.2. Da Africa para as Américas . 255 2.3. Os iiltimos negreiros 262 2.3.1, Francisco Félix de Sousa: africano branco, traficante de escravos 269 2.3.2. Conde de Ferreira: 0 negreico filantropo ......-- ++ 6-55: 274 Alendaria D. Ana Joaquina... 6.2... cece eee 278 |" D. Maria Correia: uma «princesa> no tréfico . 284 "'D. Ana Francisca Ubertali: de escrava.a grande senhora_. 287 "Angelo Lisboa: de Alfama ao Chiado, passando por Pernam- buc boven e288 2.3.7. Arsénio de Carpo: o traficante progressista . . . 293 213.8, Azevedinho e a formagio da «Companhia de Pernambuco» 300 9, José Bernardino de S4, o visconde negreiro. . 305 10. Os irmaos Fonseca: traficantes ¢ banqueiros.. 307 2.3.11, © barao de Agua-Izé: fama e proveito. cesses 311 2.3.12, Um dos ilrimos dos iiltimos: Francisco Ant6nio Flores... .. 314 Cronologia geral sobre 0 trafico atlantico ¢ 0 abolicionismo .. . . - even eee 319 Notas. cece eee cece eee e ee eens bebe teen eee eens . 329 Bibliografia citada no texto... 66... vee eevee telstra 357 Ilustragdes ... . pao Peete . 371 Ob trato desumano, em que a mercancia sio homens! Padre Anténio Vieira, Sermdo 27.° do Rosdrio INTRODUGAO TRAFICO E TRAFICOS Escravo, s. m. — aquele que é propriedade de outra pessoa, que exerce sobre ele um poder ilimitado. Escravatura, s. f. -o mesmo que escravidao; estado ou con- digdo dos individuos sobre os quais se exercem os atributos do direito de propriedade ou alguns deles. ‘Trifico de escravos, s. m. — qualquer ato de comércio ou de transporte de escravos. Traficante, s. 2 g. — 0 que compra, vende ou transporta escravos ou investe os seus capitais nessa atividade; pessoa dada a pratica de negécio ilicito. 1. Os navios negreiros nao param de passar ES 2008, participei num coléquio internacional em Sao Salvador da Baia sobre trabalho forcado. Tratava-se de um-congresso de Histéria, comemorativo dos 120 anos da abolicdo da escravatura no Brasil, e nao foi sem surpresa que vi, entre a documentagdo distribuida no primeiro dia, um pequeno autocolante com uma mensagem cujas palawras nao recordo com rigor, mas cujo sentido era «Diga nao 4 escravidio», autocolante que quase todos afixdmos no exterior das pastas ou no peito da camisa. E, num dos dias seguintes, circulou entre os participantes um abaixo-assinado exigindo maior rigor no combate ao trabalho escravo no Brasil. Em suma: estava vivo 0 monstro cuja data do funeral vinhamos comemorar. O Brasil praticava, na circunstancia, um ato de coragem, assumindo que a escravatura existia e que isso acontecia no seu proprio pais. Soube, alias, na altura, que o governo brasileiro aprovara nesse mesmo ano um projeto, denominado Plano Nacional de Enfrentamento ao Trdfico de Pessoas, que tinha como objetivos, além da atengio as viti- mas, a prevencdo do trafico e a repressdo e responsabilizacdo dos seus autores. O problema esta, porém, longe de ser apenas um problema bra- sileiro. Embora muitos Estados procurem ocultar essa realidade, a 14 ESCRAVOS E TRAFICANTES NO IMPERIO PORTUGUES verdade é que a questdo da escravatura e do trafico de escravos conti- nua a pér-se, nos nossos dias, a nivel absolutamente mundial, mesmo que com significativas variantes regionais. Nao tem cabimento a ideia, corrente na Europa, de que o trafico de escravos terminou quando, em meados do século x1x, teve fim o trafico transatlantico que deportou milhdes de africanos para as Américas. E certo que perdeu o carter ptiblico que tinha nos séculos xvii ou XVIII j4 nao chegam aos nossos portos veleiros carregados de lamentos e de homens agrilhoados. Mas o fantasma dos navios negreiros persiste sempre que um ser humano, seja qual for a sua cor de pele, é transa- cionado como se fora um utensflio agricola ou um animal doméstico. Nas sociedades ocidentais, onde a escravatura e 0 trafico de escravos pareciam ser, até hd pouco, coisa definitiva do passado, a linguagem corrente foi alargando o emprego do léxico associado 4 escravatura a condicées e situagdes que sé remotamente tém a ver com o seu sen- tido original, tendo ganho um significado essencialmente metaférico. Assim, é com facilidade que falamos de escravos a propésito de indivi- duos em situagdo de dependéncia de outra pessoa (escravos de amantes, de filhos, de progenitores), de uma coisa (escravos de um vicio; escravos da moda) e até de uma ideia ou de uma religiao. E também podemos ouvir autointitularem-se escravos aqueles que desenvolvem uma ativi- dade que, mesmo que compensadora, impde uma sujeigéo acima do habitual ou cuja retribuigdo nao corresponde ao esforgo dispendido. Em 2011, entre os jovens portugueses inconformados com a situagao social e politica, tornou-se quase um hino uma cangao que dizia: «Sou da geracao sem remuneracdo/ e ndo me incomoda esta condigdo./ Que parva que eu sou!/ Porque isto esta mal e vai continuar, j4 é uma sorte eu poder estagiar./ Que parva que eu sou!/ E fico a pensas/ que mundo tdo parvo/ onde para ser escravo é preciso estudar»'. Naturalmente, nao é desta escravatura metaférica que falamos quando falamos nos escravos contemporaneos. Em muitos lugares do Mundo, ha mulheres, homens e criangas cuja liberdade pertence a outros, que os utilizam para os trabalhos mais violentos ou mais igné- beis. A Organizagao Internacional do Trabalho calcula que 0 trafico de pessoas possa movimentar 32 mil milhdes de délares por ano, pelo que é apontado como uma das atividades criminosas que mais lucros proporcionam. TRAFICO E TRAFICOS 15 Mesmo na Unido Europeia, considera-se que o trafico de seres humanos est4 a aumentar nos tltimos anos, gerido por redes de gru- pos organizados provenientes sobretudo da Europa Central e de Leste. Segundo um documento oficial de 2010, as mulheres e as criancas, as principais vititnas, so, na maioria dos casos, «transportadas além fronteiras e obrigadas a prostituirem-se ou a executar trabalhos forca- dos. As criancas vitimas de trafico sao também exploradas e obrigadas a praticar a mendicidade ou atividades ilegais, tais como pequenos furtos». Preocupados com essa evolugdo, 0 Parlamento Europeu e 0 Conselho aprovaram em abril de 2011 uma nova diretiva relativa 4 prevencio e luta contra esse tipo de trafico. No resto do Mundo, a situagao é ainda mais preocupante, sendo particularmente grave no Sul da Asia e em Africa. Além do rapido crescimento de formas diversas de trabalho forgado, a que se passou a chamar «escravatura moderna», subsiste ainda, apesar de oficialmente abolida, a «escravatura tradicional». Diga-se de passagem que essa aboligao é, por vezes, muito recente: a Arabia Saudita, por exemplo, s6 o fez em 1963, e a Mauritania em 1980. Fala-se mesmo que, nos nos- sos dias, no Sudao, na Mauritania e em alguns paises do golfo Pérsico, continuariam a funcionar mercados de escravos, sobre os quais se pro- cura manter uma pesada cortina de siléncio. A Amnistia Internacional denunciava, em agosto de 2011, a priséo na Mauritania de quatro ati- vistas da recém-criada Iniciativa para o Ressurgimento do Movimento Abolicionista. Em 2005, calculava-se que existissem, no Mundo, 27 milhdes de pessoas submetidas a «escravatura tradicional» e entre 250 milhdes e 300 milhdes de menores (dos 5 aos 17 anos) obrigados a trabalho escravo (doméstico, fabril...), dos quais perto de um milhdo (raparigas na sua maioria) langados anualmente na prostituigao’. Ao longo do tempo, as organizagées internacionais tém procurado, sem muito sucesso, como se vé, acabar com o que sobra de formas tra- dicionais de escravatura ou evitar o desenvolvimento de novas moda- lidades, Em 1926, quando muitos Estados nao tinham ainda ilegalizado a compra e venda de pessoas, a Sociedade das Nacdes aprovou a Con- vencao Internacional sobre a Escraviddo. Tratava-se de um tratado internacional que se esperava que fosse subscrito por todos os paises, 16 ESCRAVOS E TRAFICANTES NO IMPERIO PORTUGUES aos quais era deixada a iniciativa de criar as medidas necessarias e sufi- cientes para acabar definitivamente com a escravatura. Essas medidas foram sendo acompanhadas e aprofundadas pela Sociedade das Nagées mas os esforgos abolicionistas acabaram por ser interrompidos com a Segunda Guerra Mundial. O facho dessa luta passard depois para as maos da Organizagao das Nacées Unidas e dos seus organismos especializados. Em 1949, a Assembleia Geral da ONU adotou a convengio para a repressao do tra- fico de seres humanos e da exploragao da prostituigdo, que, no entanto, mais de sessenta anos depois (em 2011) ainda sé tinha sido assinada por 93 paises ¢ ratificada por 80. Apesar disso, em 1956, foi aprovada uma «convencao suplementar» 4 de 1926, tendo em vista a aboligio da escravatura e do trafico de escravos e das «instituigdes e praticas andlogas a escravatura», como a serviddo por dividas, os casamentos forcados e todas as formas de cedéncia de menores a terceiros com 0 fim de os explorar. O compromisso para a erradicagdo da escraviddo foi reforgado no ano seguinte (1957) pela adocdo pela Organizacao Internacional do Trabalho (OIT) da Convengdo sobre a Abolicado do Trabalho Forcado. No mesmo sentido, a OIT adotaria, em 1999, como recomendacao a todos os Estados-membros, a «Convengdo para proibigao das piores formas de trabalho infantil e a agdo imediata para a sua eliminacdo». Finalmente, em 2000, a Assembleia Geral da ONU aprovou o «Pro- tocolo de prevencao, supressdo e punicao do trafico de pessoas, em especial de mulheres e criancas», no Ambito do combate ao crime orga- nizado transnacional. Nesse mesmo ano, no dia internacional para aboligdo da escrava- tura, em 2 de dezembro do ano 2000, estavamos quase a entrar no século xx1, o secretario-geral da ONU, Kofi Annan, que no ano seguinte receberia o Prémio Nobel da Paz, fazia assim o ponto da situagao: «HA mais de 50 anos, foi redigido o artigo 4.° da Declaragao Univer- sal dos Direitos Humanos, afirmando que “ninguém ser4 mantido em escraviddo ou em serviddo e que a escravatura e 0 trafico de escravos sero proibidos em todas as suas formas”. Apesar de todos os esforgos realizados desde entdo para abolir a escravatura “em todas as suas formas”, a escravatura ndo desapareceu. Continua a ser uma realidade TRAFICO E TRAFICOS 17 est4 mesmo a voltar a crescer em algumas partes do Mundo. A escra- ‘ vatura é uma afronta a todos os homens e todas as mulheres livres, na verdade a toda a Humanidade. Novas formas de escravidao, tais como a exploracao de criangas para fins sexuais, o trabalho infantil, o tra- balho forgado, a servidao, o trabalho de imigrantes ilegais, o trabalho familiar, a escravatura com fins rituais ou religiosos e o trafico de seres humanos, colocam outros tantos desafios que temos de enfrentar com toda a urgéncia. *, : Certamente, a comunidade internacional adotou tratados sobre a escravatura, mas muitos Estados tém ainda de ratificd-los, aplica-los e determinar o que, segundo eles, se deve fazer para eliminar a escrava- tura em todo o Mundo. Sem dtivida, chegou o momento, para todos os Estados, de se unirem com vista 4 abolicao efetiva da escravatura. Além disso, é urgente promulgar leis e tomar medidas para garantir que as novas formas de exploracdo e de opressdo a que estamos a assistir nao se transformam, a prazo, em escravatura. Mas é também urgente garantir que aqueles que se dedicam a praticas esclavagistas sero iden- tificados e impedidos de fazer o mal.» A Historia anda devagar quando se trata de garantir o respeito pelos direitos humanos. Ignorar isso € quase tao perigoso como pensarmos que nada muda. E nem a existéncia de escravatura ao longo dos tem- pos pode justificar a escravatura nos dias de hoje, nem a existéncia da escravatura contemporanea pode servir para desvalorizar a dimensdo e a violéncia da escravatura no passado. Pelo contrario, o conhecimento histérico pode e deve ser um tonico poderoso para o nosso sobressalto civico, sempre que a dignidade humana é posta em causa. 2. A componente africana do trafico Em meados do século xvi, um velho chefe africano da Costa da Mina, talvez antepassado longinquo de Kofi Annan, que nasceu no Gana, comentava para um mercador de escravos dinamarqués: «Sois vés, vés os brancos, quem trouxe o mal para o meio de nés. Sera que, se vocés ndo tivessem vindo ter connosco como compradores, 18 ESCRAVOS E TRAFICANTES NO IMPERIO PORTUGUES. nés nos teriamos vendido uns aos outros? A avidez com que procura- mos as vossas mercadorias sedutoras, 0 gosto que temos pela vossa aguardente, faz com que um irmdo nao possa ter confianca no seu irm4o, um amigo no seu amigo, e 4s vezes nem mesmo um pai possa ter confianga no seu filho. Nés tinhamos aprendido com os nossos pais que 6 os malfeitores que tivessem cometido trés assassinios eram lapidados ou afogados, mas a punigo para os delitos ordindrios era que o faltoso devia trazer, durante um, dois ou trés dias seguidos, um grande molho de lenha a casa do ofendido e pedir-lhe perddo de joelhos. Quando era jovem, varios milhares de pessoas habitavam por aqui, 4 beira do mar, e agora dificilmente chegardo a cem individuos. O pior é que vocés, os brancos, se tornaram um mal necessdrio entre nés. Se um dia partirem, os negros do interior nao nos deixarao viver mais de seis meses, virdo matar-nos e as nossas mulheres e aos nossos filhos, tal é 0 6édio que nos tém, por vossa causa. Outrora, quando sucedia alguma coisa importante, pediamos con- selho ao nosso “feiticeiro”, seguiamos o seu conselho e sentiamo-nos bem com isso.»3 Um texto deste tipo, nunca saberemos se reflete o pensamento do alegado autor do testemunho ou o daquele que 0 recolheu. De qualquer modo, sao levantadas questdes importantes a que teremos de voltar. Uma, a da atragao das comunidades africanas pelas mercadorias de origem europeia (produtos de prestigio ou bens de consumo até entio desconhecidos) e de como isso péde alterar algumas das relagdes sociais preexistentes. Outra, a da inseguranga provocada pela escraviza¢ao arbitraria por parte dos poderosos. E, também, a deterioracao das rela- Goes de vizinhanga (neste caso com os povos do interior) e a perce- Gao da quebra demografica. Sobrepondo-se a tudo isso, ha, porém, a ‘pergunta de sempre: sera que, sem a chegada dos europeus, africanos teriam vendido africanos a outros africanos? A ideia de que foram os europeus que introduziram no continente africano a escravatura e 0 trdfico de escravos, que passa ainda nalguns discursos mais ideoldgicos, nao tem, como se sabe, qualquer funda- mento. Antes da chegada dos europeus ja a escravatura estava pre- sente em todas as sociedades africanas e, quanto ao inicio do trafico com o exterior, varios séculos antes de comecar 0 tréfico atlantico ja TRAFICO ETRAFICOS 19 os comerciantes 4rabes, como veremos a seguir, transportavam escra- vos africanos em direcdo a A bacia mediterranica ¢ a Peninsula Arabica. (ae nao impédé que se reconhega a repercussdo que o comércio negreiro transatlantico teve nos circuitos internos preexistentes e no interior das sociedades de origem. Outro lugar-comum, o de que o trafico, no perfodo transatlantico, era apenas uma iniciativa e um negécio de europeus, de que os afri-_ canos, todos os africanos, eram vitimas passivas, nado tem igualmente cabimento:_Na Nao foi sob coagao que as elites locais participaram no- trafico, nem_ n tal s seria possfvel, mas de forma voluntaria, consciente, sabendo usar em proveito proprio os mecanismos de mercado e aufe- rindo lucros signifi _J ainda hoje, em textos ‘de divulgacao, a ideia da responsabilizagao , exclusiva dos brancos é levada tao longe que se fala comummente nao em comércio mas em «captura» dos escravos, no sentido de captura direta e violenta pelos europeus, sem sequer se ter em conta que perfodo esta a ser considerado. E certo que os portugueses, quando chegaram a Africa subsariana, usaram ainda, como faziam em Marrocos, raids ofensivos para a captura de prisioneiros, por vezes mulheres ¢ crian¢as, depois vendidos como escravos. No entanto, como veremos noutra parte deste livro, desde meados do século xv tais praticas foram subs- titufdas, salvo situagdes excecionais, por relacdes de comércio pacificas com os comerciantes e as autoridades locais. “Isso s6 foi possivel porque, como ja dissemos, a escravatura estava instalada na Africa subsariana antes do contacto direto com os euro- peus, tratando-se de uma instituigdo nao s6 conhecida como largamente disseminada. Segundo o historiador norte-americano John Thornton, essa difusio e o enraizamento da escravidao nas estruturas legais e ins- titucionais das sociedades africanas tinham a ver com o facto de, nao __ existindo posse privada da terra, os escravos serem «a unica forma de ropriedade | privadi Mentos», pois is podiam ser herdados e gerar riquezat, Nao admira, por isso, que a posse de escravos, além de proporcionar forga de trabalho, fosse também uma fonte de poder e de prestigio. Embora muito mal d eamentada, sabemos, ainda assim, que a rentes das coy vird a rd a ter, por Paras © escravismo na economia de onhecida | nas leis africanas que produzia rendi-" 20. ESCRAVOS E TRAFICANTES NO IMPERIO PORTUGUES plantagao atlantica. Parece seguro que em Africa, de uma forma geral, os escravos eram melhor tratados e estavam melhor integrados na_ “sociedadeé, 0 que nao impedia que lhes fossem atribuidas todo o tipo de tarefas, incluindo as mais humilhantes, e que pudessem ser também vitimas de vio violéncia. C Uma das diferencas principais talvez fosse 0 facto , pelo menos em certos casos, a situacgdo de escravo nao impedir a _ascensao social, podendo alguns “‘desempenhar importantes fungdes re8 € até politicas. Por exemplo, no reino do Ndongo (Angola), ‘antes da entrada dos portugueses, o cargo de tandala, a segunda figura do Estado, uma espécie de «vice-rei», era ocupado, em principio, por um escravo’. Esses escravos, muitos deles presas de guerra, eram também ja objeto. de compra e venda, existindo um desenvolvido comércio de mercadoria humana, 0 que pode explicar a facilidade com que os europeus encon- traram interlocutores (chefes politicos, funciondrios régios, mercado- quando quiseram comprar escravos na costa ocidental africana. "Nalguns casos, existiam j4_mercados regionais e, 4 sua chegada no século xv, os portugueses, Os primeiros a aparecer, mais nao fizeram que integrar-se nessas redes comerciais preexistentes, adaptando-lhes écnicos de que dispunham, nomeadamente em termos de maritimos. O historiador togolés Joseph Ballong-Wen-Mewuda, num artigo significativamente intitulado «Africains et Portugais: tous des négriers» («Africanos e Portugueses, ambos negreiros»), mostra como as relagdes entre portugueses ¢ africanos podiam ser muito mais complexas do que uma visao simplista quer fazer crer, podendo mesmo os africanos ser simultatieamente fornecedores e consumidores de escravos. E o que acontece na regiao da Mina. Os portugueses aproveitaram a rede inter- -regional de trocas e conseguiam, no Benim, os escravos que depois vendiam aos mercadores akan em troca do ambicionado ouro. Assu- miam, nesse caso concreto, o papel de intermedidrios, inserindo-se num tipo de trafico que era j4 anterior a sua chegada®, Num registo diferente, no interior de Angola, no inicio do século xvi, alguns comerciantes africanos apenas aceitavam vender lotes comple- tos de escravos, sem permitir escolher os bons dos menos bons. Dessa forma, os mercadores europeus ou os seus intermedidrios ficavam com alguns escravizados que nao conseguiam que fossem aceites para TRAFICO E TRAFICOS 21 exportacao. Nesse caso, vendiam-nos a familias africanas, que os utili- zavam «nas suas sementeiras»’. Situagées de tipo semelhante, que é possivel encontrar junto de dife- rentes povos da costa ocidental de Africa com os quais os portugueses e _Os outros europeus se relacionaram, mostram-nos 0 infundado das teses que atribuem 4 Europa nao apenas toda a iniciativa comercial como até a «invencado» do préprio trdfico negreiro, quando sé por absurdo se pode admitir que fosse possivel fazé-lo sem a complementaridade das sociedades locais. Na verdade, houve sempre africanos como parte jnteressada na manutengo e crescimento do trafico, estando nas suas mAos todos, ou quase todos, os circuitos de obtengdo e transporte dos escravizados até ao momento da venda nos portos de embarque. E as elites das sociedades linhageiras iriam utilizar os recursos que lhes dava a abertura ao comércio a longa distancia para consolidarem asua hege- quanto foi possivel, os europeus | aproveitaram os mercados de escravos ja.em funcionamento. No entanto, 4 medida que a procura ‘aumentou, puderam instalar feitorias nos lugares mais favoraveis a navegacdo, para onde, mercé da capaci lade de atragao das suas mer- + cadorias, se desviaram ast as tradicionais ou | foram criadas fotas totalmente novas. Uma questdo naturalmente se impde: como foi possivel aos africa- nos responderem a um aumento tao intenso da procura de mao de obra escrava como 0 que aconteceu a partir do século xvii? Embora, quando se trata de comércio de seres humanos, esta formulacdo se torne cho- cante, poderiamos perguntar de outra maneira: como reagiram os mer- cados internos a essa pressdo do exterior? ~~Aparentemente, as circunstancias que levavam a escravizacdo conti- nuavam a ser as mesmas de antes da atlantizacdo do trafico mas algu- mas delas sofreram uma clara intensificagio. Vejamos quais eram as principais modalidades de «produgao de cativos». Estando generalizada, na Africa subsariana, a inistituigo da escrava- tura, muitos eram os que jd nasciam escravos. Atendendo a que muitas . familias dispunham de plantéis de escravos em numero significativo, poderia parece: Stes, j4 descendentes de escravos, eram os primei- ros a ser vendidos. Nao era isso que acontecia e, em algumas regides de Africa, sobretudo a 1 norte do equadgr, as familias eram renitentes ss 22 ESCRAVOS E TRAFICANTES NO IMPERIO PORTUGUES em desfazer-se dos escravos da «casa», particularmente para o trafico atlantico, acabando por ser vendidos apenas quando essa ma sorte atingia os préprios donos. Uma fonte de escravizacao, e que nao era rara, podia ser a perda voluntéria da liberdade motivada pela pobreza e pela fome. A. outras calamidades naturais, provocando situagées de caréncia gene- ralizada, levavam a que 0 proprio prescindisse da sua liberdade em troca da sobrevivéncia.-Foram registados milhares desses casos por ocasiao da grande ca que assolou Angola no final do século xvi. Era também nessas circunstancias de privacdo e penuria que havia quem S vendesse familiares, nomeadamente esposas € filhos, para escapar e fazé-los escapar a a inanigao. Outra forma de obtencao de escravos tinha a ver com o pagamento_ de impostos e tributos: Estados vassalos de outros mais poderosos tinham por vezes de satisfazer obrigages em cativos. Assim, para refe- rirmos apenas um caso, entre 1730 e 1818, o reino do Daomé pagava ao império de Yoruba pm tributo de 82 escravos por ano’. Parece, no entanto, qué a maior parte dos escravizados que eram lancados no comércio a longa distancia provinha de agdes de guerra ou de incursdes pontuais para raptar homens e mulheres em territdrios yu ‘vizinhos, s, atividades que eram favorecidas pela fragmentacao dos Esta- dos e pelas diferengas linguisticas e étnicas que os separavam. Em relagdo as guerras, se muitas eram conflitos entre Estados, outras eram guerras internas, entre diferentes linhagens, nomeada- ~ etc ~ mente para resolver problemas d ‘de sucessdo, como aconteceu com > frequéncia no reino do Congo. Regides houve onde, por ambos os motivos, a instabilidade era quase permanente. Apesar de alguns autores considerarem que nado é possivel estabelecer uma relacgao direta entre a conflitualidade politico-militar e 0 trafico de escravos’, é dificil ndo admitir que ele teve um efeito catalisador nessa insta- bilidade e parece seguro que, pelo menos, uma parte dos conflitos teve como objetivo principal a obtengao de escravos para venda ao exterior. E ndo foi com certeza inocentemente que, em alguns desses confrontos, os europeus apoiaram uma das partes com armamento e, mais raramente, com homens. Por vezes, mesmo sem ser em situa¢ao de guerra, grupos organiza- dos promoviam incursées de surpresa em territérios proximos para TRAFICO ETRAFICOS 23 » raptar homens e mulheres, numa puncao permanente sobre os vizii hos mais fracos de quem nao receavam represélias. “No final do século xv1, André Alvares de Almada dizia que os man- dingas do rio Gambia vendiam muitos escravos, «uns obtidos em guer- ras € juizos mas muitos outros em furtos», e, uma dtizia de anos depois, o padre Baltasar Barreira referia os assaltos que os manes da Serra Leoa faziam aos povos vizinhos. Entretanto, na Guiné, os bijagés, habeis marinheiros, realizavam as suas incursdes por mar, para obterem escra~ vos que depois vendiam aos portuigueses?®, ~“Uma outra fonte fundamental para a «produg¢do» de escravos tinha a ver com a punicao de crimes, quer se tratasse de verdadeiros culpa- dos quer de outros a quem eram imputados delitos com pouco fun- . damento. Parece evidente que foi o incremento da éscravatura para o >) fnercado que fez crescer exponencialmente esta forma de administrar: bit) ajustica e de reinterpretar arbitrariamente normas do direito c iondrios jesuitas que, no século xvil, entraram na «terra 4 firme de Guiné» assinalaram, por exemplo, a generalizacao da pratica de ordalias, com os reis a recorrer com frequéncia 4 «prova da a \ Agua vermelha» oa pretendiam «destruir algum fidalgo poderoso 7 deo do seu reino». Na «prova da 4gua vermelha», o acusado de homicidio : jou “de outro crime era obrigado a beber uma determinada quantidade y “de um liquido téxico, preparado a partir das cascas de cor avermelhada |< de uma 4rvore, mais ou menos diluido conforme o fim que se preten- “& dia, a partida, obter. Se o suspeito_morria, era considerado culpado _ x € eram postos a venda todos os que pertenciam a sua casa: nao s6 os 3 seus escravos mas também as mulheres, os filhos e, por vezes, outros ‘tparéntes't, Alias, a venda como escravo tornou-se a pena corrente para a maio-_ ria dos crimes (roubo, feitigaria, adultério com as esposas do rei, falta _:, de pagamento de dividas...), sendo o castigo alargado a toda a familia _ & do condenado quando as infragdes eram consideradas graves. Nalguns SoEstados, a apresentag4io de uma deniincia podia ser suficiente para que 4 as autoridades prendessem e venidessem o denunciado. Dessa forma, em certas zonas de Africa, a repressao judicial, facilitada pelo cardter Kautocratico das chefias politicas, era uma das principais ou mesmo, 24 ESCRAVOS E TRAFICANTES NO IMPERIO PORTUGUES Fosse qual fosse a modalidade de escravizagdo, muitos milhares de homens e mulheres eram todos os anos encaminhados para o litoral e af vendidos aos capitaes e mestres dos navios negreiros, Esta sangria permanente ndo péde deixar de provocar uma quebra demografica que s6 no se tornou mais catastrofica devido a uma natalidade elevada e ao sistema de poligenia que permitia dispensar da procriagdo uma per- centagem razodvel dos jovens do sexo masculino. Entretanto, as camadas dirigentes africanas mostraram-se capa- zes de controlar e administrar as alteragées introduzidas pelo comér- cio a longa distancia. Os bens que os europeus podiam fornecer em quantidade e com regularidade tinham um importante valor social, destinando-os as chefias africanas nao apenas ao consumo préprio mas também ao reforgo_do seu der através de dadivas e oferendas _ — capazes, em maior ou menor grau, de se Tice ; principios da. economia de mercado. ~Yalvez agora compreendamos melhor o amargo testemunho com que abrimos 0 texto desta seccio. O velho africana, refletindo sobre os maleficios do trafico de _escravos, Tecriminava no apenas os brancos mas também as elites locais, a que ele prdprio pertencia, por nao terem sabido r resistir 4 novidade das mercadorias europeias. E 0 que mais 0 chocava era a instabilidade e a inseguranga que a arbitrariedade da justica e os cgnflitos. entre os Estados tinham introduzido num mundo que provavelmente nunca existira, mas onde, segundo ele, reinava a ordem intemporal e a autoridade consentida. 3. Os traficos orientais O volume e a violéncia do trafico atlantico, a que a campanha abo- licionista do século x1x ajudou a dar a ver a sua verdadeira dimenséo de horror, fizeram esquecer que os comerciantes mugulmanos tinham iniciado, varios séculos antes, o seu trdfico africano de escravos, trans- portando um numero de escravizados ainda hoje dificil de contabili- zar. A questo dos «traficos orientais» continua, alias, a ser polémica, TRAFICO ETRAFICOS 25 mesmo nos nossos dias, nao faltando quem afirme que chamar a aten- do para outras rotas é uma forma de desviar a atenc’o do comércio transatlantico, como se nao fosse possivel tratar todas as formas de trafico com o mesmo esforco de isengdo ou com a mesma indignacao. Os chamados «trdficos orientais» iniciaram-se no século vu, com a formagao do Império Arabe. A lei islamica nao permitia a escraviddo de muculmanos, mas aceitava a dos infiéis, o que levou a que se esta- belecesse uma rede de abastecimento que incluia a populagdo negra ‘da Africa subsariana mas também as populagées brancas dos paises “eslavos e e do C4ucaso e de outras regides fronteirigas do Império, como 08 reinos éristaos do Al-Andalus (Peninsula Ibérica). Muhammad Ibn Hawaa, um geégrafo muculmano de origem turca que viajou no século x pelo Ocidente, registou nos seus cadernos que_o_. artigo de exportagdo mais conhecido do Al-Andalus eram os escravos, rapazes € faparigas trazidos de Franca (condados catalaes) e da Gali (reino de Ledo) que eram vendidos em leildes publico: especializados (ma’rid), do tipo dos existentes nas principais cidades do Impétio Mugulmano”, Nesses pontos de venda de escravos iriam surgir, com uma frequén- cia cada vez maior, individuos negros, ditos genericamente «do Sudao». Era o resultado do trafico transariano, desenvolvido pelos mugulmanos apés o dominio politico de todo o Norte de. Africa e que lhes dava acesso a ‘mercados africanos que iam, na Africa Ocidental, até ao Norte da atual” Nigéria, é, na Oriental, até a Tanzania. “A travessia do deserto, que podia demorar cerca de trés meses, através da complexa rede de rotas caravaneiras que foram sendo cria- das, era, como se calcula, dura e perigosa, sobretudo para grandes grupos, exigindo experiéncia’ culos rigorosos sobre a duracdo das etapas, para aproveitar os raros pontos de dgua existentes nos varios percursos. Ainda assim, a “Mortalidade era muito elevada, chegando, a ultrapassar os valores que se vao registar na fatidica travessia do Atlantico. Pelas arriscadas pistas que cruzavam o Sara, os comer- ciantes ndo traziam apenas escravos mas também ouro, «pimenta da Guiné» e marfim. O destino eram os principais mercados medi- 4nicos do Norte de Africa: para leste, as as cidades egipcias, como Alexandria eo Cairo; mais para ocidente, Gadamés, Cairudo, Tunes, Marraquexe ou Fez.

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