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ROCESSOS COLETIVOS Glhares 48 Palavas-chave: proces calabortv, ator iad, wig cletva +O PROCESSO COLABORATIVO COMO MODO DE CRIACAO Antonio Aratijo Doutor em artes, encenador e professor da Escola de Comunicagses Artes da USP Resumo: © processo colaberative como mode de criagio a partir da conexio entre © binémio método ¢ mode, Ahorizontalidade das fungSes criativas: atuagio, dramaturgiae diregio para a perman teatro construido de forma coletiva e democritica. nites de entrar no tema propriamente dito, gostaria de manifestar minha satisfagio fe contribuir para o primeiro naimero da revista do Célia Helena Teatro-escola, que, agora, algaacondigao de curso superior Antes de eumes- ‘mo ingressar nas trilhas da carrera académica, tive 2 oportunidade de trabalhar nessa escola durante varios anos, experiéncia esta que foi de grande im: portincia na minha formagio enguanto profes sor. Assessorado e “inspirado” pela saudosa Célia Helena ~ que além de atriz era uma pedagoga de enorme talento -, e por um corpo de professores ‘comprometido com a construgio do dislogo entre 0 ‘criar” © 0 “transmitir pude amadurecer minha pritica no trabalho de formagao de atores. Dado o rigor da experiéncia didstica ali praticada ~ elevada avante com igual seriedade por Ligia Cortez ~ pa recia natural que escola ampliasse seus horizontes ce algasse v s maiores. Que esse “passo académico” construia uma trajetéria de longa continuidade! Como alguns dos meus parceiros atisticos no “Teatro da Vertigem vieram justamente do quadro de alunos desta escola, pareceu-me oportuno tratar de certo modo de criagao compartilhada,praticada pelo grupo em seus processos de ensaio. Fruto direto da criagio coletiva das décadas de 1960 e 1970, 0 processo colaborativo constitu se numa metodologia de criagio em que todos os integrantes,a partir de suas fungdes artistas espe cfficas, tex igual espaso propositivo, produzindo uma obra cuja autoria é compartlhada por todos. Sua dinmica des-hierarguizada, mais do que re presentar uma “auséncia” de hierarquias, aponta para um sistema de hierarquias momentineas ou flutuantes,ocalizadas por algum momento em um determinado polo de criagio (dramaturgia, ence nasio, interpretagio etc.) para entio, no momento seguinte, mover-se rumo a outro vértice artistic. De maneira geral, tal processo & visto como ‘um métode, tanto por profissionais da érea quan- to por estudiosos de teatro, Ora se os métodos si0 caminhos, dretrizes operacionais, que podem ser rigidos ou abertos, enquanto 0s modos sio a ma: neira de colocar em didlogo, de interrelacionar os diferentes elementos na construgio da obra, seri que nio seria revelador pensar 0 processo colabo rativo também a partir do seu modo de fazer? Ou melhor, estudé-lo a luz desse bindmio método ¢ modo? ‘Tal perspectiva pode nos ajudar a entender por que alguns artistas advogam que processo co laborative ecriagio coletiva sio denominagées dis tintas para uma pritica que seria a mesma. Talvez a defesa da equivaléncia desses dois termos esteja baseada em um tipo de visio que os pensa enquan to método. E, de fato, por seu fazer coletivizado, por sua diretrizdialégica, pode-se, sem incorrer em certo, pensé-los de forma geminada, Contudo, se olharmes para essas duas dini- micas pelo viés do modo, perceberemos que © como se opera a inter-relasio entre os diferentes elementos de criagao produz, aqui, processos dis tintos. Por exemplo, o dislogo ocoree entre fungies jiidefinidas e assumidas desde o inicio. Q trabalho de criagio s6 se inaugura, de fato, a partir desse pacto previamente estabelecido, Ou seja, 0 grupo, pormeio de um consenso - ow endosso — definea cocupagiio de cada area artistica, segundo o interes- se ¢ habilidade dos integrantes ou convidados. E claro que, em muitas das fungGes, tal decisio nem se faz necessiria, na medida em que é comum a permanéncia ¢ continuidade dos colaboradores, eum projeto para o outro Se, em relacao as personagens, ndo é rara a existéncia de uma etapa, dur todos os atores exploram todos os papéis, o mesmo nao ocorre em relacao as fungoes. Ou seja, nao ha tum perfodo em que todos os integrantes experimen tam todasas fungies — ow em que elas io deixadas em aberto por um tempo ~ para, 6 entio, have definigio de quem fard a cenografia ou a drama! gia Sabemos, por exemplo, ue em algumaspriticas de criasio coletiva, quando ocorria algum tipo de definigio de atribuicio, la s6 se estabelecia tempo depois de iniciados os ensaios ‘Além disso, da forma como praticada pelo Vertigem até agora, a criagao nao tem se caracteri lo por uma mobilidade de fang: impede que isso acontega, Pois, se essa mobilidade Porés ocorrer de um projeto para outro ~ eno dentro de tum mesmo espeticulo ~ nio hi uma descaracteri- zasio do processo colaborative, Por exemplo, nio haveria nenhum problema de um ator do grupo, numa determinada pesa,vira se tomar o dramatur- go ouo diretor na montagem seguinte. Nem mesmo a simultaneidade ou conjugagio de funges dentro de um mesmo projeto,apesar de se constituir numa situagéo mais complexa, invia bilizara a pritica do processo colaborativo. Tudo iria depender de quais fungSes seriam assumidas pela mesma pessoa e da capacidade do grupo em gerenciar uma situagio assim, Sea horizontalidade das fungSes € uma regra bisica de funcionamento desse sistema de eriasio, €inegivel a revalorizagio do ator como um criador em pé de igualdade com o dramaturgo eo diretor. A sua fansio autoral, muitas vezes encobe res ou execusio técnica de uma determin: sonagem, fica potencializada no processo. Na , no instavel equilibrio de forgas da sala de P ensaio,a dramatargia ea diresio parecem ‘perder seu carter d ja, abrindo espago para uma interferéncia autoral forte por par te dos interpretes, Outro aspecto importante diz respeito 3 sin tese final. Se, na criasio coletiva, a autoria indivi- dual - quando ela ocorte ~ deve estar submetida a onipoténcia ¢ onisci vontade grupal, aqui ocorre um tensionamento a0 limite entre estes dois polos. Isto porque o artista responsivel por uma area tem a palavra fi cla, Partese do pressuposto, é claro, de que ee irk sobre discuti incorporar elementos, negociar com 9 co- letivo todo ~ durante o tempo que for necessério porém, no caso de algum impasse insolivel, a sin teseartstca final estard a cargo dele. Ali, toda essa dinamica de negociagoes é causa principal da dilatagio do tempo de ensao. Gasta-se ~ ¢ nao “perde-se” ~ muito tempo em de- bates ena busca de solugses em que todos se reco Ra Teno ds Verge. Drei Antonio Arai Sio Pal 2008, Fete: Nelo Kas BR. Testroda Verigem Diresio Aston Arai esam, A criasio se torna mais lenta e distendida, © que pode se tornar um elemento de desgaste nas relagoes, em longo prazo, Por outro lado, & muito dificil o am ecimento de um discurso coletiv, dle forma org Acexisténcin de um conceito individual for- ca e consciente, sem ser por essa via, te cria um importante polo tensionador em um processo marcado por inimeras interferéncias contribuicées, Ele tanto favorece a filtragem ¢ selesio do vasto material produzido quanto fun- ciona como um eixo aglutinador das proposigdes ‘grupais, Se, por um lado, age como uma bar tum limite, uma fronteira, por outro facilta e es timula a interlocugio ¢ a expansio das zonas de colaboragao, Esse polo criador ind esa — acaba ~ por paradoxal que! smbém acierando o posiciona grupal. Ele provoca uma tensio produtiva, ou até mesmo um antagonismo, que fortalece 0 proprio grupo eo conceito-geral que este tem do trabalho — ainda que por via da crise e do conflto Por outro lado, as individual lades também saem fortalecidas por essa dinimica de confrontos, dit logos e negociagses, presentes dentro do processo. Aligs, poder-se-ia pensar a “eise" no apenas como uma consequéncia a qual o grupo esti ne cessariamente fadade, mas como um mecanismo implicito e impulsionador em processos desta na: tureza. Ou seja, a sua deflagracio pode ser vista nio como uma agio transformadora, produzida pelo proprio processo. E possivel ainda anali rativo & luz dos elementos de subordin Em um teatro mais tradicional, c sar 0 processo colabo ordenas hierarquiasrigidas e bem definidas ~ mn inclusive, demarcadas por cléusula contratual relagoes internas de trabalho estio submetidas a uma pirimide de subordinagoes, Por exemple, 0 ator se submete as indicagdes do diretos, que por sua vez se submete as indicagSes do dramaturgo «, todos juntes, se submetem aos parimetros do produtor. Ou, se a0 contritio,o espetéculo orbita ‘em tomo de um determinado ator, essas linhas de dominasio se invertem, Jem um caso diametralmente oposto a esse, © da criagio coletiva, 0 que se estabelece — ou se procura estabelecer ~ é um plano de horizontal dade maximo, Ou soja, ninguém subjuga ow dite ciona ninguém, Todos estio em pé de igualdade, ‘© tempo inteizo, em relagio a todos os aspectos da ctiagao. Daf que, nos casos em que tal dinamica ¢ © projeto utépico nela embutido nado efetivamente, presenciamos uma estrutura baseada num sistema de coordenagio, No caso do processa colaborativo,o que ocor tenha funcio re é uma continua flutuasio entre subordinagio ¢ coordenacie, fruto de um dinamismo associado as fangdes ¢ a0 momento em que o trabalho se en contra. Por exemploa definisio do projeto, dos co laboradores, das téenicas a serem experimentadas ((seinamento fisico e vocal, tipo de exercicios etc), é toda decidida ou endossada coletivamente —nio raro por meio de votasio, em caso de impasse, Ou soja, essa etapa ocorte sob a égide da coordenasao, n outros momentos, como a distribuisio dos papéis esti a cargo do diretor, a delinigio final do texto, a cargo do dramaturgo, ou o desenho da luz, cargo do luminador, por mais que ocorram deba tes confiontos,o grupo acata a decisio de quem 6 responsivel por aquela funsio. Isto 6 trabalha sob um regime de subordinasio. E claro que tais definiges nio “caem de pa raquedas’ Ao contritio, io fruto de muita expe- rimentagio, de um longo amadurecimento e de constantes negociagoes entre os integrantes. Sao consequéncia, ainda, da complexa rede de inter dependéncias que marca todo 0 processo. £ muito comum, por exemplo, haver continuas mudansas de opiniio e de posicionamento em razio desses embates crativos. O ideal, porém, quando se opera numa sistemtica de subordinagio, é que ela nao ocorra no Ambito mesquinho da luta de poder ou damera demarcagio de teritério. ‘Além disso, o exercicio de acatar uma defini- io artstica alheia parte de uma escolha anterior e ctiteriosarealizada por todo o coletivo em relasioa esse “outro” com o qual se estabelece uma parceria (Ou seja,tratase de uma subordinagio que é de- corréncia de uma prévia dinamica de coordenasio. © grupo escolheu com quem quis trabalhar e nio simplesmente foi contratado para realizar um espe- téculo com uma equipe pré-definida Por outro lado, os colaboradores convidados pelo grupo também nio atuam como simples exe- ccutores.Eles patticipam e contribuem para a deli- nigio do conceito-geral do trabalho (vale a pena observar que hé uma grande diferenga entre “exer: cer uma fangio" ¢ “Ser funcionario’ ~ subenten- dendo agui, no caso deste iltime, uma submissio passivae burocritica). essa forma, 0s colaborado- res-convidados vio se inserir também nessa diné- mica fluida de coordenagao-subordinasao. E, por fim, € importante perceber que esses regimes podem ocorrer sucessivamente, num jogo de ire-vir, dentro de um mesmo momento da montagem. Por exemplo, no ambito da diresto, a materializagio das marcas ¢ das movimentayies corre desta mancira, Os atores propsem gestos ou deslocamentos, o diretor seleciona e produz uma partitura, os atores,entio, econfiguram aquele pri- meiro desenho; 0 diretor, por sua vez, determina ‘uma segunda formalizagao, e assim por diante Em todos esses casos, pode-se identilicar a existéncia de uma atitude artistica autoral, marca- dda por um intrincado jogo de dependéncia-inde- pendéncia, ¢ que oscila entre liderar e coopera, entre impermeabilidade ¢ porosidade, O que é diferente, em um processo desta natureza, de ser "Maria-vai-com-as-outras’ ou, no polo oposto, de empacar e no arredar pé antes mesmo do inicio das discussdes. Por todos os exemplos acima referidos & possivel perceber que o que est em pauta nao é a presenga ou nio do elemento dialégico ou par ipativo, mas de como ele se estabelece. Nesse sentido, pelo viés do modo, processo colaborativo € criagao coletiva nao sio a mesma coisa, nao tra- duzem a mesma experiéncia, Ea referida distingio ~ entre método € modo ~ & capaz de nos ajudar a entender a discussio, muitas vezes polémica, que cerca esses dois conceitos teatrais. ag

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