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CAPITULO VIII Apropriagao e Acumulagéio do Excedente Na formagio social capitalista tecnoburocrética em que se verifica © modelo de subdesenvolvimento industrializado o papel do Estado no sistema econdmico é fundamental. No wltimo capitulo ampliamos o am- bito de nossa:andlise para verificar que nao apenas o subdesenvolvimento industrializado mas também a tecnoburocratizagZo da sociedade ¢ parti- cularmente do Estado foi um fenémeno que se acelerou extraordinaria- mente a partir da Segunda Guerra Mundial, inclusive em paises que mal haviam safdo do tribalismo. Voltamos, a partir deste capitulo, a nos ocupar mais especificamente das sociedades subdesenvolvidas em que 0 capitalismo é 0 modo de produ¢io dominante. E em geral 0 caso da América Latina, e em particular o caso do Brasil que, por conhecermos melhor, serve como protétipo para nossa andlise. O Estado Tecnoburocrtico-capitalista tem um papel estratégico fundamental no sistema econdmico. No modelo primério-exportador 0 Estado Oligérquico Mercantil tinha um papel muito semelhante ao do Es- tado Liberal. Além de garantir o sistema de dominagdo capitalista, tinha uma fungdo adicional que era a de servir de cabide de empregos para uma classe média dependente da oligarquia dominante mas sem fungGes eco- némicas definidas. No modelo de substituicdo de importag6es o Estado vé suas fung6es econédmicas aumentarem decisivamente. Nao apenas passa a responsabilizar-se por uma série de fungdes no plano do bem-es- tar social, mas e principalmente torna-se o estimulador e 0 propiciador por exceléncia da acumulagdo capitalista, transferindo renda nessa dire- ¢ao. E o momento do Estado Populista. Estado e Subdesenvolvimento Industrializado 139 E um perjodo essencialmente de transigo, em que o Estado jé co- mega a assumir fung6es de planejamento e de interferéncia direta na pro- dugdo. Mas é no modelo de subdesenvolvimento industrializado, quando se define 0 Estado Tecnoburocrdtico-capitalista Dependente, que essas fungGes se realizam plenamente. O Estado continua a ser o instrumento fundamental da acumulagdo capitalista privada, mas agora é também o Estado planejador e investidor. E o Estado que nfo se limita a estimular e orientar o aumento da produgdo mas se torna diretamente responsdvel por ela. O Estado é agora o principal responsdvel ndo s6 pela apropriagdo do excedente pelas classes dominantes e pelos aparelhos do proprio Esta- do, mas também pela acumulagio de parte desse excedente. O Estado Desenvolvimentista O processo de aumento de participacao do Estado na economia é um fendmeno universal. Ocorre tanto nos paises periféricos quanto nos paises capitalistas centrais. Entretanto, conforme pesquisa de Glaucio Ary Dillon Soares demonstrou de forma incisiva, os padres de estatiza- ¢40 foram muito diversos em um e outros paises, Em meados do século passado os gastos piblicos representavam 7 a 8% do PNB dos Estados Unidos, em 1962 essa porcentagem havia crescido para 33,2%. No Reino Unido o setor piblico participava em 1890 em 8,9% do PNB; em 1950 ja havia alcancado 39%, Na Alemanha, onde os niveis de participagao do Estado j4 comegaram mais elevados, os postos publicos entre 1891 e 1913 representavam 13 a 15% do PNB; em 1958 essa porcentagem j4 su- bia para 44,1%. Nos paises subdesenvolvidos o crescimento do Estado ocorreu mais tarde do que nos desenvolvidos. No Brasil, depois de uma rapida ascensfo a partir de 1930, a participagdo da despesa publica no Produto Interno Bruto era ainda de 17,1% em 1947, Em 1969 jé alcan- gava 29,8%. No México, os postos piblicos representavam apenas 5% do PIB em 1900 e 6% em 1920. Em 1967-68 esta cifra havia-se elevado para 16,6%. Nessa mesma data a porcentagem respectiva para a Argentina era de 27%, para a Bolivia 22,5%, para o Chile 36,1%, para a Colombia 14,7%, para o Uruguai 27,9%, para o Equador 22,9%, para a Venezuela 22,4%. Para os demais paises latino-americanos estas porcentagens eram ligeiramente inferiores a 20%, mas revelavam todas um nitido crescimen- to em relagdo a 10 anos atrés.*® 48 Todos estes dados encontram-se em Glaucio Ary Dillon Soares (1975). Para o Brasil usamos como fonte Fernando A. Rezende da Silva (1972). 140 L.C. Bresser Pereira Entretanto, Dillon Soares subdividiu os gastos entre gastos assisten- ciais e gastos desenvolvimentistas. Os primeiros so gastos do Governo em educagdo, satide, previdéncia, enquanto que os tiltimos esto direta- mente relacionados com a acumulag4o de capital e o crescimento da pro- dugio. A partir dessa classificagao podemos verificar que enquanto os gastos governamentais nos paises desenvolvidos cresceram principalmente devido ao aumento das despesas sociais ou assistenciais, nos paises perifé- ricos em crescimento deveram-se de forma dominante as despesas orienta- das para a acumulagdo de capital. No Brasil, em 1969, o Estado, inclusi- ve as empresas piblicas, era responsdvel por 60,6% do investimento fixo no pais.4? No Chile, em 1967, 70,8% do investimento eram realizados pelo Estado.5° E conclui Dillon Soares: “Na maioria dos paises mais de- senvolvidos, o Estado nfo passou por uma etapa desenvolvimentista tao intensa, pelo menos nos tltimos cem anos... A evolugdo dos gastos publi- cos nos paises desenvolvidos, particularmente Canad4, USA, Reino Unido € paises escandinavos, durante os ultimos cem anos revela crescente prio- ridade do desenvolvimento social em relagdo ao. econémico... O projeto desenvolvimentista e a alta prioridade concedida 4 industrializagao sdo historicamente recentes e caracterizam somente o Estado nos paises sub- desenvolvidos” (1975, pp. 66-68). O Estado Tecnoburocratico-capitalista Dependente € assim, e antes de mais nada, um Estado desenvolvimentista. E o desenvolvimento que garante o aumento dos lucros dos capitalistas e os ordenados dos tecno- burocratas. Sem o répido aumento do excedente nfo é possivel reprodu- zir na periferia os padrdes de consumo do centro. A Acumulago Estatal Nesta perspectiva desenvolvimentista, a primeira fungdo do Estado é facilitar a acumulagdo capitalista através do aumento do excedente, ou mais-valia disponivel para investimentos, eufemisticamente chamado de poupanga na teoria econémica capitalista. A longo prazo, a acumulagdo de capital depende da capacidade de poupanga da sociedade. Ora, as pos- sibilidades de aumento da poupanga privada sdo muito limitadas no mo- delo de subdesenvolvimento industrializado. Como esse modelo estd todo voltado para a produgdo e 0 consumo de bens de luxo, a capacidade 49 Ver Baer, Kertenetzky e Villela (1973). 50 Ver Dillon Soares (1975). Estado e Subdesenvolvimento Industrializado 141 de poupanga da classe tecnoburocratica é muito reduzida. Os capitalistas tém, naturalmente, uma capacidade de poupanca maior, mas ndo hé ra- ‘zo para prever um aumento do percentual poupado em relagdo 4 renda. Também eles estdo voltados para o consumo suntudrio de forma muito definida. A responsabilidade pelo aumento da taxa de poupanga e de acumulacdo cabe, assim, primordialmente, ao Estado. Em caréter subsi- didrio, essa responsabilidade cabe também as empresas multinacionais. A capacidade de endividamento externo do pais é uma outra fonte de acu- mulago, a qual, aliés, € em geral dominada pelas proprias empresas mul- tinacionais e pelo Estado. Também aqui a participagfo do setor privado local é pequena. A poupanga estatal realiza-se sob trés formas principais. Em pri- meiro lugar temos os recursos tributarios do Estado, que podem aparecer sob a forma de diferenca entre os recursos orcamentdrios normais e as despesas de custeio do Estado. Os investimentos especificamente publi- cos, em estradas de rodagem, vias piblicas e saneamento bdsico, sdo fi- nanciados dessa maneira. Este apoio orgamentdrio ao processo de acu- mulagio é complementado por taxas especificas para financiar investi- mentos em energia, transportes, comunicagSes etc. E hd sempre o recur- so as emiss6es inflaciondrias, de cardter tipicamente tributdrio, quando os recursos or¢amentdrios e extra-orcamentérios ndo sfo suficientes. Uma segunda forma de aumentar a taxa de poupanga reside no re- investimento dos lucros das empresas estatais. Estas empresas, que gozam geralmente de posig4o monopolista, podem alcangar elevados lu- cros, desde que haja interesse do Estado nesse sentido. Esses lucros sio teinvestidos, contribuindo para o aumento da taxa de poupanga. A terceira forma de aumento da poupanga através do Estado esté no estabelecimento de diversos mecanismos de poupanga forgada. A emissdo inflaciondria de. moeda seria também um mecanismo de poupan- ga forgada, mas preferimos considerd-la como uma forma indireta de tri- butagdo, na medida em que através do aumento da quantidade de moeda e da sua desvalorizagdo o Estado se apropria de uma parte adicional da renda. Por poupanga forgada entendemos os diversos mecanismos através dos quais o Governo onera os salarios dos trabalhadores e, geralmente em menor grau, os ordenados, para constituir fundos de investimentos por ele administrados em nome dos trabalhadores.° 1 51 No Brasil so exemplos desses mecanismos o Fundo de Garantia de Tempo de Servico (FGTS) e o Programa de Integragdo Social (PIS). 142 L.C, Bresser Pereira A constituiggo de fundos dessa natureza deriva do fracasso de que se revestem normalmente as tentativas de criar mecanismos de captagéo de poupangas voluntarias para financiar investimentos a longo prazo. En- tre esses mecanismos, o principal é sempre o desenvolvimento de um mer- cado de ag6es, através de uma série de estimulos as bolsas de valores. Ima- gina-se que esta seja a forma por exceléncia de captagdo de poupanga nos sistemas capitalistas maduros e procura-se alcangar os mesmos resultados rios paises subdesenvolvidos. Por outro lado, a ideologia capitalista de “democratizagao” do capital das empresas através das bolsas de valores toma ainda mais prioritdrio o estimulo ao seu desenvolvimento. Na verdade, especialmente nos paises capitalistas centrais de indus- trializagdo tardia, as bolsas ndo foram nem so mecanismos muito signifi- cativos de captago de poupangas. E seu papel para a democratizagao do capital é estritamente irrelevante, mesmo nos Estados Unidos, onde é maior a dispersfo de agGes. Na verdade, elas constituem muito mais me- canismo para aumentar a liquidez dos haveres dos capitalistas do que reais mecanismos de captac4o de poupanca. Os capitalistas ativos, que dirigem suas proprias empresas, preferem reaplicar eles proprios seus lu- eros. Acumulam capital através do autofinanciamento e de financiamen- tos a longo prazo concedidos pelo setor piblico. Caberia aos capitalistas inativos (rentistas e especuladores) aplicar na bolsa. Entretanto, as pou- pangas privadas de capitalistas inativos, disponiveis para serem aplicadas nas bolsas, sio bastante reduzidas. Por outro lado, estes capitalistas hesi- tam muito em colocar seus recursos em agGes, seja porque as empresas distribuem poucos dividendos, preferindo reinvestir seus lucros, seja por- que 0 mercado de ages é sujeito a manipulagdes especulativas freqiien- tes. Tornam-se assim claras as razOes do cardter pouco significativo das bolsas nos paises subdesenvolvidos, nao restando ao Governo outra alter- nativa sendo organizar ele proprio mecanismos de captagao e distribuigdo de poupanga, através de bancos governamentais de investimento. A participagdo crescente do Estado no setor financeiro, adminis- trando mecanismos de poupanga forgada através dos bancos oficiais, en- contra efetivamente poucas resisténcias por parte do setor capitalista por uma razdo muito simples: os recursos captados sao utilizados em boa parte para financiar a longo prazo o proprio setor privado. E esses finan- ciamentos sdo muitas vezes realizados a taxas negativas de juros, dado o cardter inflaciondrio das economias subdesenvolvidas.°* $2 Quando o Estado passa a cobrar taxas positivas de juros, como aconteceu no Brasil através da introdugdo do sistema de corregio monetéria, surgem logo os pro- Estado e Subdesenvolvimento Industrializado 143 Politica de Rendas e os Sindicatos Uma segunda fungdo econémica do Estado Tecnoburocrético-capi- talista é a de formular uma politica de rendas que garanta a apropriagdo do excedente pela classe capitalista e pela classe tecnoburocrética. Esta politica de rendas tem como instrumentos fundamentais a politica sala- tial, a politica tributéria e a politica de gastos em consumo social. A politica salarial € um instrumento ao processo de concentragdo de renda inerente ao modelo de subdesenvolvimento industrializado. E certo que os simples mecanismos de mercado, apoiados em uma oferta ilimitada de mao-de-obra, e a falta de organizagao sindical dos trabalha- dores j4 tendem a manter os salérios ao nivel de subsisténcia. Mas esses mecanismos nfo sio suficientes. A propria falta de organizago sindical dos trabalhadores j4 é um produto da agdo do Estado. O sindicato, na economia do subdesenvolvi- mento industrializado, é manipulado pelo Estado. Este fendmeno j4 ocorria nos sistemas populistas, mas é muito mais acentuado no Estado Tecnoburocrdtico-capitalista. O sistema sindical é fortemente regulamen- tado e controlado. Os lideres sindicais séo reduzidos 4 condigdo de agen- tes do Estado. No caso brasileiro, conforme observa Leéncio Martins Rodrigues, o Estado “chamou a si a propria organizacdo dos sindicatos; ditou os critérios associativos segundo os quais deveriam ser formados, es- tabeleceu suas estruturas, garantiu sua subsisténcia através do imposto sindical” (1966, pp. 114-115). Com isso, nas palavras de Aziz Simfo, “a interven¢éo do Governo... promoveu ela mesma uma transformacdo da mais relevante conseqiiéncia: a passagem do sindicato marginal ao Estado para o sindicato integrado na propria instituigdo do Estado” (1966, p. 198). No México a subordinagdo do sindicato ao Estado é também mar- cante. A burocracia estatal controla os sindicatos, cuja agdo politica muitas vezes se confunde com a do partido oficial, o Partido Revolucio- ndrio Institucional. Este mantém o controle dos operdrios e camponeses através de uma enorme série de pequenos caudilhos locais, que recebem em troca favores do Estado, ou seja, participam sob varias formas do ex- cedente econémico. Observa Amaldo Pedroso D‘Horta em seu estudo testos do setor privado, que acabam levando o Estado a ceder, como também ocor- reu nesse pais a partir de 1975, com o estabelecimento de uma série de setores in- dustriais prioritdrios para os quais a “corrego monetéria” passou a ser limitada a 20%. 144 L.C. Bresser Pereira sobre o México: “A burocracia oficial divide-se em duas camadas sociais bastante diferenciadas: uma que ocupa os altos cargos do Estado e do partido, e que se ap6ia sobre outra entregue ao controle da massa de ope- rérios e camponeses... H4 assim, entre a cipula da organizacdo social mista e a sua base, uma almofada amortecedora de choque, uma brigada de capatazes sindicais que, em troca do direito que lhes é reconhecido pela hibrida elite dirigente de explorar a massa de trabalhadores sob 0 pretexto de representé-la, incumbe-se de manter a ordem social...” (1965, p. 261). Na Argentina, dada a oferta limitada de mao-de-obra, foi possivel que os sindicatos alcangassem maior representatividade e maior autono- mia em relacdo ao Estado. Por isso 0 modelo de subdesenvolvimento industrializado aplica-se mal a este pais. Isto nao significa, porém, que o sistema sindical argentino tenha escapado ao controle do Estado. O po- pulismo peronista foi a forma através da qual Estado e sindicato se asso- ciaram, Nesse processo os sindicatos desenvolyeram uma estrutura buro- crética poderosa que, apoiada no carisma populista de Peron, foi capaz de retomar o poder aos militares em 1973. A burocracia sindical, naquele momento, sobrepés-se a militar. Sua dependéncia do Estado peronista, que reassumira o poder quando nfo havia mais condigdes minimas para a vigéncia de um pacto populista, levou o sistema sindical argentino 4 crise e a perda do poder para a tecnoburocracia militar apoiada na burguesia local e no imperialismo multinacional menos de trés anos depois. Em qualquer hipétese, este sistema sindical continua a ser uma excegdo, na medida em que tem sido bem sucedido em impedir ou obstaculizar a po- litica do Estado Tecnoburocrético-capitalista de rebaixar os salérios dos trabalhadores ao nivel de subsisténcia. Polftica Salarial e Inflagao Para manter os trabalhadores com seus saldrios ao nivel de subsis- téncia, permitindo apenas a reprodugao da forga de trabalho aos diversos niveis educacionais exigidos pelo sistema econdmico, o Estado Tecnobu- rocratico-capitalista disp6e de varios instrumentos. O principal deles é a interveng4o direta nos contratos coletivos de trabalho, Os economistas oficiais latino-americanos formam-se geralmente em cursos de mestrado ou doutoramento nos Estados Unidos. Transplantam, assim, a teoria eco- némica neocldssica e afirmam que os saldrios so determinados pela sua produtividade marginal e por seu nivel de escassez relativa, Isto, entre- tanto, no os impede de interferir nas negociacGes coletivas de trabalho Estado e Subdesenvolvimento Industrializado 145 em nome do Estado e estabelecer porcentagens mdximas de reajustamen- to salarial, baseadas na taxa de inflagdo. No Brasil foi inclusive desenvolvida uma engenhosa formula através da qual a tecnoburocracia estatal pretende estabelecer a taxa de reajusta- mento salarial de uma forma duplamente “neutra”: neutra em relacdo a divisio de renda entre capitalistas e trabalhadores e neutra em relagdo 4 inflagdo. O primeiro pressuposto do qual parte a formula, entretanto, estd longe de ser dotado da pretendida neutralidade tecnocrdtica. Afir- mava-se que 0 saldrio real a ser restabelecido pelo reajustamento nfo era © saldrio do ultimo reajustamento mas 0 saldrio médio dos ultimos dois anos, considerada a desvalorizagdo havida devido a inflagdo. Os trabalha- dores poderiam, naturalmente, argumentar que o saldrio a ser restabeleci- do era o inicial e nfo esse saldrio médio ja deteriorado pela inflagdo. A partir desse pressuposto a formula propunha que se concedesse um reajustamento igual a 50% da inflaedo do ano anterior, mais 50% da inflagdo prevista para.o ano seguinte, mais o aumento da produtividade. A inflagao prevista foi chamada de “residuo” e era considerada sempre declinante. Como se tratava de uma estimativa, era sempre subestimada, resultando dai reajustamentos salariais que durante vérios anos reduzi- riam sistematicamente os saldrios reais dos trabalhadores. . No processo de “tabelamento” ou fixacZo administrativa dos sal4- tios praticado pelo Estado Tecnoburocrdtico-capitalista a justificativa sempre invocada é a de evitar que reajustamentos excessivos conseguidos livremente pelos trabalhadores provoquem inflagdo. Jamais se afirma que os objetivos reais sfo garantir uma taxa elevada de lucros para os capita- listas e ordenados crescentes para os tecnoburocratas, impedindo que os trabalhadores participem dos ganhos de produtividade. Qualquer aumen- to de precos, inclusive 0 aumento do prego do trabalho, tem, natural- mente, cardter inflaciondrio, O aumento dos precos das mercadorias é a propria inflagdo, o aumento dos salérios leva os capitalistas a aumentar os precos dos bens, para evitar a redugdo de sua taxa de lucros. E ébvio, en- tretanto, que neste modelo em que 0 papel do Estado é fundamental, o componente de poder é essencial ao problema. Se os lucros dos capitalis- tas esto muito elevados e se seu poder politico se reduzisse por algum motivo seria possivel imaginar um aumento salarial superior as taxas de inflagdo e de produtividade somadas que nfo seria inflaciondrio. ‘Na verdade, a inflagdo dificilmente é causada por aumentos salariais reais nesse tipo de modelo, j4 que os mesmos ndo sfo concedidos. Muito pelo contrdrio, a inflagdo é um outro instrumento para rebaixar os sal4- tios reais quando estes, por um fator conjuntural qualquer relacionado 146 L.C. Bresser Pereira com o aumento da taxa de acumulacdo na fase ascensional do ciclo capi-. talista, tenham subido acima do custo de reprodugao de mfo-de-obra. ~ Por outro lado, a inflagdo € uma excelente justificativa para os tecnobu- Tocratas estatais controlarem rigidamente os saldrios. Politica Tributéria A politica tributéria € uma outra forma através da qual o Estado Tecnoburocrético-capitalista realiza uma politica de rendas que garanta a apropria¢fo do excedente pelas classes dominantes. Trés sfo as estraté- gias adotadas nesse sentido. Em primeiro lugar, a divisdo da receita tributdria entre os impostos diretos, de cardter mais progressivo, e os indiretos, que tendem a taxar in- discriminadamente a populagdo, € feita com clara énfase para os ultimos. Existe, inclusive, a justificativa de que os impostos indiretos sfo mais f4- ceis e seguros de se administrar, E que é possivel tornd-los progressivos, taxando mais pesadamente os bens de luxo. Na verdade, porém, esta pro- gressividade dos impostos indiretos é muito reduzida. Em segundo lugar, os préprios impostos diretos, e especificamente © imposto de renda sfo muito pouco progressivos, quando comparados com os dos paises centrais. Esta baixa progressividade ¢ justificada em termos de necessidade de se estimular a poupanga privada. Finalmente, o sistema tributério assume um cardter nfo apenas pouco progressivo, mas claramente regressivo, quando s4o instituidos uma série de estimulos fiscais. Estes estimulos pretendem ser um ins- trumento de planejamento em uma economia de mercado. Estabelecem isengGes as mais variadas para quem investe em determinadas regides ou setores considerados prioritdrios pelo Estado. Estes estimulos s6 podem ser aproveitados pelos receptores de rendas elevadas, que passam assim a pagar imposto de renda relativamente reduzido gracas a esses beneficios, Temos assim que o planejamento econdmico, que durante tantos anos amedrontou os capitalistas pela ameaga socializante nele contida, trans- forma-se também em um instrumento de apropriagdo do excedente por essa prdpria classe capitalista e por seus associados tecnoburocratas, A légica do modelo de subdesenvolvimento industrializado é natu- ralmente contréria a qualquer politica tributdéria que desconcentre a renda ou que generalize o consumo de bens. Pelo contrdrio, a politica tributdria, além de garantir as receitas de que o Estado necessita, objetiva assegurar a concentraco da renda e garantir o consumo de bens de luxo. A receita tribut4ria do Estado Tecnoburocrético-capitalista aumenta con- Estado e Subdesenvolvimento Industrializado 147 , sideravelmente quando comparada com a do Estado Populista. Este rea- lizava os gastos, mas nfo dispunha de poder politico suficiente para au- mentar a receita tributdria. Daj-ser levado freqiientemente a emissio de moeda para financiar o deficit orgamentdrio. Jé o Estado Tecnoburocré- tico-capitalista tem poder suficiente para taxar de forma a equilibrar seu orcamento. Realiza, entretanto, esta taxagdo de forma a garantir o pa- drao de desenvolvimento modemizante em curso. Obviamente, nos termos desta sistemdtica, ndo se fala em impostos sobre a riqueza ou sobre a riqueza aparente, nem em impostos sobre ga- nhos de capital. E os impostos sobre a heranga s4o naturalmente os mais baixos possivel, na medida em que cabe principalmente a esta e ao siste- ma escolar o papel de reproduzir as relagdes de producdo vigentes. O Consumo Social Elitista Temos como terceira forma de apropriagdo do excedente pelas clas- ses dominantes através do Estado a politica de gastos piblicos. Estes gas- tos representam um consumo social. Quando o Estado constr6i estradas, asfalta e ilumina vias publicas, constréi redes de 4gua e esgotos, constréi escolas e hospitais, ele estd realizando um consumo em nome da popula- ¢4o. Aqueles que se utilizam desses servigos estardo tendo sua renda real aumentada. Ora, embora o Estado Tecnoburocrdtico-capitalista procure fazer grande publicidade dos gastos destinados as populagdes mais pobres, na verdade uma grande porcentagem dos mesmos acaba por beneficiar a mi- noria dos ricos ou remediados. Ja vimos que os Estados periféricos desti- nam grande parte de sua receita orgamentdria e extra-orgamentdria a0 projeto desenvolvimentista de acumulagao de capital, financiando a longo prazo as empresas publicas e o setor privado. Além destes gastos, que tendem a favorecer principalmente o setor modernizante da economia, o Estado realiza pesados gastos de consumo, que tendem a beneficiar prin- cipalmente as classes tecnoburocrdtica e capitalista. As estradas de rodagem asfaltadas sf0 um primeiro exemplo disto. Embora tenham como justificativa a necessidade econémica de escoa- mento da producdo, na verdade visam a facilitar a circulagdo de autom6- veis de propriedade de tecnoburocratas ¢ capitalistas. Os caminhGes que so o principal meio de transporte de carga também circulam par essas es- tradas, embora muitas vezes tenham sua circulagdo restringida nos fins de semana em beneficio dos automéveis. Alids, ndo é por acaso que o trans- porte de mercadorias nos paises do subdesenvolvimento industrializado 148 L.C. Bresser Pereira tende a ser realizado principalmente por caminhdes, enquanto que nos paises centrais e principalmente nos paises de economia planejada o transporte ferrovidrio é dominante. As auto-estradas s4o0 construidas pelo Estado para atender as necessidades de transporte individual dos proprietérios de automéveis. Em conseqiiéncia o transporte por elas é fortemente subsidiado. F certo que os baixos precos do petréleo, que vi- goraram até 1973, facilitaram esta opgdo pelas rodovias. Mas seria inge- nuidade imaginar que 0 motivo era apenas econémico. A construgdo de auto-estradas assim como as vias expressas nos cemitros urbanos sfo antes de mais nada uma forma de apropriagdo do consumo social pelas classes dominantes. : Nos grandes centros urbanos, onde os investimentos piblicos em infra-estrutura sfo macigos, encontramos outro exemplo do fendmeno que estamos examinando. Sao sempre os bairros mais abastados que dis- p6em em primeiro lugar de luz, 4gua encanada, esgotos, telefones, correio ruas asfaltadas. Em certos momentos ascendem ao governo lideres ou grupos tecnoburocrdticos que, por motivos eleitorais ou por efetiva preo- cupagdo social, decidem desviar os gastos publicos para os bairros pobres. Mas a pressdo politica dos grupos dominantes é to forte que em breve 0 projeto, se nado é abandonado, perde prioridade. Nesta mesma linha, temos toda uma série de gastos em educagfo, cultura e lazer que tendem principalmente a atender as classes mais abas- tadas. A educagfo e a cultura mereceriam um amplo capitulo. Cabe 4 es- cola nos Estados modernos o papel que cabia a Igreja nas sociedades pré- -capitalistas: reproduzir as relagdes de produgdo vigentes através nfo s6 do ensimo técnico, necessdrio 4 reprodugdo das forgas produtivas, mas principalmente através da transmissao da ideologia tecnoburocrdtico-capi- talista vigente.°* Para a realizagfo dessa tarefa o Estado deve destinar amplas verbas 4 Universidade e as demais instituigdes culturais que orien- tam sua mensagem principalmente para a juventude da classe dominante. Em relagdo as despesas estatais destinadas ao lazer a preocupacdo elitista, privilegiando os representantes da classe tecnoburocritica e da burguesia, também se faz sentir. Num plano quase anedotico merece ser citado como exemplo o caso de um grande parque publico situado junto a uma das cidades predominantemente operdrias do Grande S4o Paulo. 53 Bourdieu ¢ Passeron desenvolveram uma andlise penetrante e rigorosa do papel da educagfo ou da “agdo pedagégica” e da “autoridade pedagdgica”, de acordo com sua terminologia, como instrumento das classes dominantes para impor sua ideolo- gia ou seu “arbitrério cultural” as demais classes ¢ assim garantir a reprodugao das relagdes de produgio vigentes (1975). Estado e Subdesenvolvimento Industrializado 149 Este parque passou para a jurisdi¢fo de uma empresa publica criada pela prefeitura local. Esta empresa introduziu uma série de melhoramentos no parque e em seguida passou a cobrar uma taxa de ingresso, quando antes a entrada no parque era gratuita. Ao surgirem os primeiros protes- tos o tecnoburocrata responsdvel pela empresa publica concedeu uma en- trevista 4 imprensa na qual justificou a_necessidade da cobranga do ingres- so em fungdo das melhorias realizadas, e em seguida observou que havia outros parques e dreas publicas menos equipados que poderiam ser usa- dos pelos que nfo tinham possibilidade de pagar o ingresso. E claro que este é um caso-limite, mas ilustra bem a orientagdo geral dos gastos publi- cos destinados ao consumo social. Outra 4rea para a qual o Estado Tecnoburocrdtico-capitalista De- pende dirige seus gastos de consumo social de maneira discriminatéria é a da habitag¢do popular. Existe nos paises periféricos um deficit habitacio- nal imenso, ilustrado pelas favelas, barreadas, pelas casas de pau-a-pique do interior e mesmo por construgdes de alvenaria extremamente precd- tias, geralmente construidas em sistema de mutirdo pelos proprios traba- Ihadores. O Estado, entdo, pretende assumir a responsabilidade de resol- ver o problema e cria para isto instituig6es financeiras e imobilidrias espe- ciais. Em pouco tempo, entretanto, estas instituigdes ou limitam forte- mente o alcance de sua atividade e acabam construindo casas populares de amostra, ou simplesmente desvirtuam seus objetivos e passam a finan- ciar a construgdo de prédios de apartamentos e residéncias para os estra- tos médios.. ‘ Este desvirtuamento ocorre ndo apenas devido as presses da tecno- burocracia e da pequena e média burguesias (estratos médios) que tam- ‘bém necessitam de casas financiadas, mas também devido 4 pura e sim- ples incapacidade dos trabalhadores de pagar as prestagdes necessdrias 4 aquisi¢do da casa. Esta incapacidade decorre nao apenas do baixo nivel dos salérios dos trabalhadores, mas também do principio tecnoburocrati- co-capitalista que orienta a administragdo das instituigdes financeiras ha- bitacionais. Parte-se do principio de que as casas devem ser vendidas a longo prazo ao invés de alugadas. Desta forma, ainda que os juros reais sejam baixos e que 0 prazo seja longo, as prestagdes sfo suficientemente altas para impedir que a grande maioria da populacdo seja beneficiada. A alternativa de aluguel é desprezada, embora pudesse ser a solucdo ade- quada, desde que os aluguéis fossem realmente baixos, por diversas ra- 26es: devido ao preconceito pequeno-burgués de que todos devem ter sua casa propria, devido ao pressuposto de que partem os administradores das instituigdes de que o retorno sobre o investimento deve ser pelo 150 L.C, Bresser Pereira menos satisfatério, obrigando os aluguéis a ser pouco menores que as prestagdes, e finalmente devido aos interesses dos rentistas que alugam iméveis residenciais, os quais se sentiriam prejudicados caso fossem esti- pulados para as habitagdes populares aluguéis realmente baixos. Neste campo, como também no dos transportes urbanos eno dos demais servicos piblicos a ideologia tecnoburocrdtico-capitalista domi- nante afirma que os mesmos devem ser auto-suficientes. Os préprios usudrios, independentemente de seu poder aquisitivo, devem ser capazes de pagar os servigos que lhes sfo prestados. A eficiéncia do servico pUblico mede-se economicamente em termos de sua capacidade de auto-sustentacdo. Subsidiar servigos piblicos seria voltar as prdaticas populistas incompativeis com os requisitos de uma administra¢4o eficien- te. Nao importa a essencialidade dos servigos nem o fato de que os usuarios muitas vezes ndo tenham condigdes minimas de pagar por eles. Como conseqiiéncia temos que o Estado realiza grandes investimentos para implantar uma rede de dguas ou um sistema de iluminacdo em determinado bairro pobre. Algum tempo depois da grande alegria causa- da pela introdugdo do melhoramento temos o fenémeno da interrupga0 do fornecimento de dgua ou de luz em um grande nimero de residéncias porque seus proprietdrios ou inquilinos deixaram de pagar suas contas em dia, Em certos casos as condigdes econédmicas dos moradores sfo tao precdrias que sequer chegam a ligar o servigo em suas casas, Em apenas um setor parece no haver discriminagdo evidente nos gastos puiblicos para consumo social — o da satide. As despesas com a satde sdo realizadas pelo Estado principalmente em beneficio das cama- das mais pobres, ndo apenas devido 4 sua absoluta essencialidade, mas também porque, j4 que so altamente deficientes, nado atendem aos estra- tos médios, que preferem a medicina particular ou certos esquemas inter- medidrios de seguro-saide em que os usudrios ou as empresas empregado- ras pagam determinada quantia adicional. A discriminagdo, em termos de satide, ocorre portanto principalmente em fungdo da deficiéncia de ser- vigos, dada a parcim6nia-com que as verbas sdo alocadas para esta drea. Finalmente, temos os enormes gastos com o sistema de seguran¢a. Seu cardter discriminatério € 6bvio. O Estado Tecnoburocrético-capita- lista Dependente necessita de um aparelho repressivo poderoso para as- segurar a continuidade de um sistema que marginaliza a grande maioria dos trabalhadores dos beneficios do desenvolvimento. Necessita de for- gas armadas e de um sistema policial capazes de manter a ordem interna, O sistema repressivo tem cardter burocrdtico e é uma das bases do poder tecnoburocrdtico-capitalista. A burguesia local necessita para sua segu- Estado e Subdesenvolvimento Industrializado 151 ranga de um sistema policial forte e o apéia politicamente, acreditando que 0 risco de os militares ganharem efetiva autonomia em relagdo a ela é pequeno ou longinquo. Esta crenga tem base na realidade histérica, em- bora suas bases venham enfraquecendo 4 medida que a tecnoburocracia se transforma em uma classe social auténoma, com interesses especfficos. Em qualquer hipdtese, na alianga de classes — capitalista e tecnoburocré- tica — que caracteriza a formago social que estamos examinando, os gas- tos com seguranga tém um papel fundamental. Sao uma das bases dessa alianga e uma condi¢do da estabilidade politica do sistema. 152 L.C. Bresser Pereira

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