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O que é Leleura g ws AMPLIANDO A NOCAO. DE LEITURA issimos. E 0 aprendizado so ina rigida, por meio de método analftico ceracterizado polo progress asso. a asso: primeiro, decorat o alfabeto; depois, soletrar; bor fim, decodificar palavras isoladas,: frases, até Chegar a textos continuos. O mesmo metodo sendo aplicado para a escrite. Apesar de séeulos de civilizagio, as coisas hoje ‘no so muito diferentes. Muitos educadores nao Conseguiram superar a prética formalista mecdnica, enquanto para a maioria dos edlucandos \4 ( porecer @ ler se resume & decoreba de’ signos UingUsticos, por mais que se doure a pflula com Se 0 conceito de leitura estd geralmente restito Imétodos sofisticados e supostamente desalienantes, A dacitragdo. da eccrita, sua aprendizagem, no Provalece a pedagosia do sacriffcio, do aprender ° entanto, ‘ligase por tradi¢io. a0 processo de Por aprender, sem se colocar 0 porgué, como ¢ formagio global do individuo, & sua capacitacso vere qué, ‘impossibilitanda compreender vendo, ara o convivio e atuacSes social, politica, econ delramente a fungio da leitura, 0 seu papel na vide mica e cultural. Saber ler e escrever, [8 entre do individuo e de sociedade, areg0s © romanos, sigrificava possulr a5 bases de Também ¢ sabide quo nenhume metodalogia tuma educapio edequada para a vida, edticacio e alfabetizacéo, avancada ou no, leva por si 56 e558 que viswva no so 90, desonvolviments dee 4B existéncia de leitores efetivor. Uma ver alfabe- capacidades intelectuais e espirituais, como. das tizada, a maioria das pessoas se limita leitury aptiddes fiscas, possibilitando 2o cldadao integrar. com fins eminentemente pragmaticos, mesmo se efetivainente 8 sociedade, no caso a clone dos Suspeitando que ler signifies inteirarse do mundo, senhores, dos homens livres. sendo também uma forma de conquistar autono. Assim, se sabor ler textos escritos e escrever ‘mia, de deixar de ‘ler polos olhos de outrem”, Ifainda hoje € algo a que nao se tem acesso natu: LDa/_o_ habito de_ler_livios; em especial, ser [4 ralmente (0 analfabetismo persiste mesmo em ilstficado; consideraremse Gs ‘letrados os uniese Pafses desenvolvidos), entre os antigos era * Seja_de criare.compreendor_@ linguageny lute. 4 ‘Mari Helena Martins aque é Lettre 2s | artistica, seja de ditar lois, estabelecer normas ¢ ‘| valores sociais ¢ culturais. isso de fato determina J prerrogatives diffceis de se abrir mio, pois sto diferenciadoras, indicios de que se_pertence a uma elite. Cabendo'a essa minoria 0 “dircito” de dar 1 sentido a0 mundo, enquanto aos demais resta a submissio aos ditames dos que “sabem das coisas” E quando o intelectual se debruga sobre o iletrado ara auxilié.lo_ aprender, inevitavelmente emerge nalismo,Porém néo ensina o pulo do gato, 7 porque alé-af seu altruismo no chogs. Algm do ‘mais, est2 pulo, tudo indica, nio se ensina mesmo. Podese, isto sim, limpar 0 terreno ou, na hipétese maquiavélica, reforgar sous acidentes, De qualquer forma prevalece a “cultura do siléncio": "se © educador 6 0 que sabe, se 0s educandos sfo 0s quo nada sabem, cabe'aqucle } dar, entregar, leva, tansmitir 0 sey. saber a0s segundos". E, 20 denunciar isso, Paulo Fi chama “a “atengfo “dos verdedeiros “humanistas para o fato de que eles Ado podem, na busco da libertaglo, servirzo da concepeio ‘bancéria' [a educagio '& ‘doagio’, ‘favor’, sob pena de se contradizerem em sua busca”. Nesse caso predo. 12 vis8o de cultura dp intelectual ou de cultura ‘que the par niente transmit a0 iletrado, desrespeitando-o. frontal ov sub-repticiamente, Nesta Gltima hipotese te ineore uma das quostées mais diseutidss ¢ controvertidas de nosso temp @ cultura de massa, sua manipulagio com res Pare abrit perspectivas que minimizer esses problemat; multos educadores apregoam 9 neces ade da constitieso do hsbito de ler. A Teiture Seria ponte pars procesto edcacionslefcionto, broporcionando a formaeio integral do individu. TTodavia, 0s préprios educadores constatem suo impoténeia dlante do que denominam ¢ “erie de Teftura”. Mat que “crise” essa? Pare eles, em tmaiora, ea significa a ausénela de leitura de texto, escrito prtcipanwne lio 6 qe a tl sentido abrangente est mais ou menos fora de cogiterao. Seria preciso, assim, investigar os indmeros fatores determinantes ‘dessa situagio, entre os quais ressalta 0 de a leiture, como em regre 8 entender, estar limitada 8 escola, com a util- zae30 preponderante dos chamados liveos did ticos. Como, principalmente nv contexto brasileiro, 4 escola € 0 lugar onde. maioria aprende.a ler ¢ screver, © muitos tém sua talvez tinica oportu- nidade de contato com os livros, estes passam a ser identiticados com os livros didaticos. Esses textos condensades, supostamente digo tiveis, fo a ilusso de tornar seus usudrios eptos 4 conhecer, apreciar e até ensinar as mats diferentes disciplinas.” Na verdade resultam em manuals da Maria Helena Martine que é Leura n ignordncia; mais inibem do que estimulam 0 gosto de ler. Elaborades de modo a transmaitir uma visio ‘de mundo conservadore, repressiva, tas livros estZo Lepletos de falsas verdades, 2 serviga de ideotdgias, ‘autoritéries, mesmo quando mescarados por Tecursos formais ou teméticos atuais e nfo conser vedores. Subjez 2 inteng3o de manipular a leitura, ; '@ ponto de seus organizadores deturparem os ? textos transcritos, num franco desrespeito aos autores ¢ leitores, sob 0 pretexto de resguardar rincipios ditos inabaliveis, mas que a realidade revela inconsistentes, A justificativa maior dos organizadores dos livros didéticos, entretanto, so reveste de espirito “clentifico": a\necessidade de viabilizar 0 desen- volvimento de capacidades espeefficas, de simplif car assuntos demasiado complexos. Quanto aos educadores, muitos consideram tais livros um “mal necessério” diante de evidentes problemas de caréter econdmico, deficiéneia na formagio de professores, na prépria estrutura do ensino brasileiro. E, enquanto a educagio formal vai Por 4gua'jabaixo, a “méfia do livro didético”, como a caracteriza Osman Lins, prospera franca. mente, Resultado de polftica educacional e sistema s6cio-econdmico, no minimo, desastrosos. Encobre-se, desse modo, o receio de um dilogo espontneo € critica entre’o professor eo aluno e de ambos com seu material de trabalho, bloquean: do oportunidades raras die realizarem’se leituras efetivas, conseqdentes; de se desenvolverem verda- deltos ‘leitores. Hé,portanto, um equfvoco de base quando educedores falam ern “crise de leitura”; algo desfocado ‘em relagéo & nossa realidad Brasil, em termos de publicagtes, distribuigao © 'venda de material impresso, principalmente livros, deixa muito a desejar, Quanto a bibliotecas, hem so fala. Mas a oferta ven aumentendo, inclu sive @ pregos acessiveis a camadas mais amplas da populagao. O volume de exemplares vendidos fom edigdes populares cresce, revelando que, mesmo em termos de leitura de livros, a “crise” ‘no se dé tanto dovido & falta do que ler, aos regos altos, 4 pouca qualidade do material, ov ‘mesmo pela inexisténcia de leitores. ‘A questo ¢ mais ampla e complexa: ver da precariedade de condi¢Ges’sbeio-ecordiniicas ¢ sé_ esproia “na ineficiéncis da instituiggo escolar, determinando e limitando opgdes, Som diivida, & concepeso que liga o hdbito de leitura apenas 30s livros deve muito & influéncia, persistente no ‘nosso. sistema’ educacional, de uma farmagio eminentemente’ livresca e defasad “einrelario, 4 realidade, ainda fomentads pela escoléstica criti que ‘orientou os jasuttas, os primeit educadores no Brasil, Ademais, deve muito ‘deologia. burguesa, que busca na elitizags0 da caliufa’‘fheios de perpetuar seu dominio social, politico, econémico, 28 Maria Helena Martins 0 que é Leiturs » © que. ¢ considerado matéria de leitura, na escola, std ‘longe de propiciar aprendizado. tso vivo & duradouro (seja de que espécie for) como o desencadeado pelo cotidiano familiar, pelos colegas © amigos, pelas diversies e atribuicdes didrias, plas Publicagdes de cardter popular, pelos diversos meios de comunicagio de massa, enfim, pelo Contexto’ geral em que os leitores so inserem. Gontexto esse permanentemente alberto ¢ indmeny ras, N3o é de admirar, pois, a preferéncia pola {eitura de coisas bem diferentes daquolas impostas fra sala de aula, sem 2 cobranca inevitével, em seral por meio das execréveis “fichas de Ieitura’”, Desconsiderando essa realidade, a escola corre o Fisco de estar preparando crianeas e jovens {mesmo brivilegiados por conseguicem chegar e permanever 1) que véo envethecer som erescer, casa contaramn $6 com ela. E, obviamente, esse processo ocorre tanto com indivfduos quanto com instituigoes, Em outras palavras, o tiro pode sair pela culatra, Além do mais, “seria contra-senso.Insistir’ na importéncia do hébit de ler restringindo-o. aos livros ou, quando muito, a textos escritos em geral, {sso implica alijar da experiéncia de leitura os milhées de snalfabetos dspalhsdos pelo pals Su 03 iletrados que nfo costumam ter na escrita sua feleréncia cotidiana, Sobretude quando se sabe fou 2 deveris saber) que, para modificar esse Quadro, so necessérias raformulagées expressives Ro, sistema politico-econémico e s6cio-eultural, de_modo & permitram melhorisetetva do Condos do vida da imenea malaria desfavoreciie Solugdes simplificadoras ou demagégicas pera questées to complexas resultam inoperantes. Fundamental & quo, conhecendo es Tinitee de sos ado, oF educedores rapersam” sue. prtes' pre Hesonae pec ar aneie) aleattaings tim face dos desequltrioe © doafos que areal, Seema XA) Temos, entéo, mais um motivo para ampliar’ a Be) onan de alum mothe grasp» jedanes db Soitese cable @. pect al to Texto escrito, permite comprendar@ vlorio tnathor cada passo do sprendizado dis coist cole experénce. Incorporate, asim, 20, collate de Tiles ote premnarfea Whiede 9 ee bse Cela ios dy sacle: a9 bite dos grees ti tala de aula biblioteca, tomortes dent cu do busca de informagoerpecaizads, Eatin, descoberta de caracteristicas comuns e diferencas entre 05 individuos, grupos sociais, as vérias cultu- ras; incentiva tanto a fantasia como a consciéncia da’ realidade objetiva, proporcionando elementos para Uma postura critica, apontando alternativas, Ped Mas ampliar @ nocio de leitura prossupSe transfor: ‘maces na visio de mundo em geral e no de cultura em particular. Isso porque estamos presos @ um conceito de cultura muito ligado.& produgao escri- ta, geralmente provinda do trabalho de letrados. fessa_perspectiva para o ato de ler permite a lx 30. Maria Helena Martins Oqueé heitera at a) A realidade, entretanto, nos apresenta indmeras \] Manifestagdes culturais'origindrias das camadas mais ignorantes do povo e cuja forga significativa “| as tom feito perdurar por séculos. Daf a necessi- \ dade de se compreender tanto a questio da leitura +h Jquanto 2 da cultura para além dos limites que as instituig6es impuserarn, +. Seria preciso, entio, considerar a leitura como i ‘um processo de compreensio de expresses formals. quanensKesi, oto. da et se Teeter © algo escrito quanto @ outias tipos de fo d fezer Tumang, caracterizando-se também como I \étide Sugerindo uma visio mais ampla da nogifo de leitura, abro questdes cujes respostas nio tenho, ‘nom pretendo encontrar aqui. Eles so colocades antes como um desafio, porque estamos inapela- velmente condicionados ‘8 perspectiva da cultura letrada, a relaglo leitura-eserita. Mas essa delim taco do ato ‘de ler impede de so englobar no rocesso uma série de aspects que a realidade evidencia, assim como elitiza a leitura e @ escrita, ‘eforgandese enquento privilégio: “e a conquista desse'privilégio, com sua subseqitente democrat. 2a¢d0 @ negagio enquanto privilégio, & uma neces. sidade imperiosa para_as classes’ subalternas", como me observou Flivio Aguiar. Ele, come seouisemente_hstrien “eeitabdlecedo ura (6 teapdo uninats Waterice ce sehen oS _— 32) Maria Helena Matin certamente muitos outros, simpatiza com minha Proposta, embora fique pouco a vontade em seu “contraforte de letrado”. Daf sor preciso nfio’s6 revelar a insatistagéo quanto 20s ignites de nogdes estratificadas pelos stculos, como também ousar questioné-las, aventando alternativas, As indmeras concepedes vigentes de Jeitura, grosso mode, podem ser sintotizadas em duas cargcterizagées: jcomo uma decodificagso mecanica de signos lihgtitsticos, por meio de aprendizado estebelecido 8 partir do condicionamento est{mulo-resposta | | s (pecegectiva behaviorista-skinneriana); : Coffer um proceso de compreea aban gen{é, cuja dindmica envolve componentes senso- “Triais, ' emocionais, intelectuais, — fisiolégicos, euroldgicos, bem ‘como culturais, econdmicos ¢ politicos (perspectiva cognitivo-soctolégica). Conforme as investigagGes interdisciplinares vim’ apontando, esta Gltima concepeio da condigdes de uma abordagom mais ampla e mesmo mais aprofundada do assunto. Por certo cada rea do conhecimento enfatiza um aspecto mas, ndo se propondo delimitapdes estanques, esté aberta 20 intercémbio de informagées e experiéncias, Além. 0, 0 debate “decodificagao versus compreensio”s O que é Lelnwa 3 8 leitura. Decodificar sem compréender & indty compreender sem. dacodificar, impossvel. Ha / que se penser a questi dialeticamente, ‘A despeito de todas 2s tentativas de uma visfo sistemética ‘© metédica, se nos perguntarmos 0 ue 4, 0 que significa a leitura para nés mesmos, certamonte ada um chegard ‘2 una. resposts Aifrenciada, Isso porque se trata, antes de male nada, de uma experiéneia individusl, cujos limites ‘fo est80 demarcados pelo tempo’ em que nos detemos nos sinais ou pelo espace ocupado por flee, Acentuese que, por sinais, entendese. aul Gualquer tipo de expressSo formal ou simbélic, configurada pels mas diversas linguagens. rank Smith, psicolinglsta notte americano, estudandg's Tetra, mostra quo gradativamente 9¢ esquisadores do'linquagem passam a considers ie corn cH, “MO Ul 0. lator participa com uma aptidio que néo “depende basicamente do sua capacidede de deciearsinais, mas sim des capacidada de dor sentido ‘a eles, Compreends ioe Mesmo em se tratando de esrita, 0 procedimente est mais ligedo 3 expesigncia pessonl, & viveyess de cada um, do que ao conhecimento sistematice 48 lingua ae. Aleitura vai, portanto, além do texto (sea ele qual for) © comera antes’ do contato eon ele J) © leitor assume um papel atuante, deixa de ser 2H) rere “Secditcador on essen & parece estar se esvaziando, Ambas so necessirias / contexto eral ein que ele atua, as passoae com (| quem convive passam a ter influéieis aprecidval fem seu desempenho na leitura. Isso poraue, oder, sentido @ umn texto implica sempre levar em conta a | situacio ‘desse texto e de seu leltor. E a nogie'de \ texto aqui também 6 ampliada, io. mais tice rostrita a0 que esté escrito, mas abrese pars cenglobar diferentes linguagens. Considerando 2s colocagées acima, a leit “Esso dislogo é refe- ronciado por um tmpo eum sag), uma situagéo, Gesemolvido de atrds conto detationse—en Tespostas que 0 objeto apresenta, Gm’ funcio de” oxpectativas e necessidades, do prazer das Gescobertas_e do. reconhecimento de_vivéncias, do lcitor. Também o sustenta # Witermediagso de outro (s) Ieitor (es). Aliés, © papel do educador ha intermediag%0 do objeto lido com o leltor é cada ver mais repensado; se, da postura professoral lendo para e/ou pelo educando,,ele_passar_a ler | com, - ceftamente—oeorreré.. 0. intertimbio-day7 leituras, “Yavorecendo” a ambos, trazendo novos) elementos para um e outro, ‘A dindmica do processo & pois de tal ordem que considerar a leitura apenas como resultado da. interaeo texto-eitor soria reduzi-ta considera velmente, 2 ponto de se arriscar equivoco como penser que um mesino leitor lendo um mesmo. | texto, no importa quantas vezes, sempra realizeria uma mesma leitura. N3o presisa ser expecialista no assunto' para saber 0 quanto as circunstancias, pessoais ou ngo (uma dor de eabesa, uma recomen. aco acateda ou imposi¢éo, um conflito social) podem influir na nossa leitura Em face disso, aprender a ler significa também aprender a ler o'niundo, dar sentido a ele e 2 nds Préprios, 0 que, mal ou bem, fazemios mesmo sem ser ensinadas, A fungio do educador no soria Precisamante ‘a dé_ensinar a ler, mas 9 de criar Condig6es para o educando realizar a sua propria aprondizagem, conforme sous prprios interesses, ecessidades, fantasias, “segundo as diividas exigéneles que a realidade the apresenta, Assim, ctiar_condigées_de_leitura_nio. implica_anonas fabetizer ov propiciar acesso af livros. Trata-co, “antes, de Gialoyar com 6 leitor sobre a sua leitura, isto 6, sobre'o sontido que ele dé, repito, a algo escrito, um quadro, uma paisagem, # sons, imagons, olsas. idéias, stuacBes reals ou imagindrias Enquanto ps 9s isolados na cultura J letrada, nfo poderemos encarar a leitura.sonio ; como instrumento de poder, cominagdo dos que sabem ler @ escrover sobre 98 analfobetos ou “tletrados. Essa realidade precisa ser alterada. Nao ‘que se proponha 0 menosprezo pela escrita — isso seria tolice —, ‘ela, em Gitima insténcie, nos ‘Oportuniza condigdes de maior abstragao, de reflexdo. Importa, antes, comecarmos 2 vera leitura como instrumento tiberador ¢ pi Ie Ser_usufru(do por todos, ndo apenas pelos letras. Se 0 papel do educadar parécou” aqui em ovidéncia, ele foi trazido & baila para ser colocado em seu dovido lugar e compreendido nfo neces. sariamente como o do especialista em educagio ‘ou do professor, mas como o de um individuo letrado que sabe algo e se propée a ensiné-lo a alguém, Importa muito se ter bem presente 2 idéia de que isso de ler, e tor bem, depende muito de_nés_mesmos, das ‘nossas condigées reais de cxistéacia, mais do que podem (ou querem) nos fazer crer’ os “"sabedores das colsas". Aligs, essas igSes vo inclusive orientar preferdncias © ilegior um determinado nivel de leitura, como se verd a seguir, osstvel de 7} 0 ATO DE LER E OS SENTIDOS, AS EMOCGOES E A RAZAO Como afirmei de inicio, estou apenas pensando e sugerindo refiexties acerca da questio da leltura Néo pretendo chegar a definigSes, a conceituagies Gefinitivas, tampouco apresentar regras ou receltas, © ‘propésito € compreender a leitura, tentando desmitifics:la, por meio de uma abordagem despre. tensiosa mas que permita avaliar aspectos basicos do processo, dando margem a se conhecer mals © préprio ato de ler Esses aspectos se relacionam a prépria existéncia do hamem, incitendo a fehtasia, o conhecimenta.e 8 reflexio acerce da realidade. O leitor, entretanta, Pouca se detém no funcionamento do ato de ler, fa intrincada trama de inter-relagdes que s° osta, belecem. Todavia, proponda-se 2 pensio, perce: beré a configuracdo de trés niveis bésieos de 0 que Leura 3 leitura, os quais 860 possiveis de visutizar como nivel ‘sonora, omosiona! ¢ racial. Gade um esses tds nivels corresponds a umn modo de sproximegao" 40 objeto liso. Como. a eitura € Gindmtea @ cireunstanciad, essen tr ives 20 interrolacionados, sento ‘simultineos, mesmo Sendo um ov outro privegado, segundo 3 expe. Tidneta, expectativae, nocesidades@ intoresses Go leitor «© dab condiges do contexto geral em que Percorrendo ums feta, um bricabraque, um mmuseu ou um antiquiro, ertamenteasatam-n08 Os mas vaiadas sensors, emogBes e pensamentos Taiver pelo inelito do. conjunto” de objotos observades, do lugar em que se encontam, nos detenhamos “mais olhdos, Gada. individuo ‘eagirm eos do tn modo; ied Ios 9 seu modo, Ev, por examplo, as vezee no resisto 8 tentagvo de toed os, cheirb lo, fazétos funcionar. Em certs feasies me deprimem, como. num mercado de Cinguitarios ou num Brquo, onde cada cosa tove uy histria particular ¢-acsbou no vols comum, tis mos do quem potsvelmente. ignore por completo” sia trajetdri,, Noutros casos, sumo uma’ pasture de revréncia © encantamento diante de um objeto consagrado: um manuscito de autor notavel, uma cadeta que pertence agus famosa erigina do quacro hi muito aémirago apenas trovis de reprodugies. Ocorremn tmlsin = momentos. em que. me deseubro.pensando, 0 38 Maria Helena Martine porqué da existéncia de tais objetos, quais as intengSes de sua criago, sua finalidade, © que de fato significaram para seus criadores e possuidpres, como se relacionam com © momento histérico. social € © lugar em que foram eriados, qual sou sentido para mim e para o mundo em que vivo. Em cada um destes casos, como em muitissimos! outros, estou realizando leituras, dando sentido as coisas, 88 pessoas ligadas a elas, a0 tempo e espaco que ocuparam e ocupam e a minha relacdo com isso tudo. Estou lendo com meus sentidos, minhas emogdes, meu intelecto. So recorro a um exempio tdo pessoal & para nfo generalizer equivocadamente quanto a préferéncias. De qualquer modo, temse af uma idéia inicial dos niveis de leitura. Além disso, fica evidenciodo algo 2 meu ver fundamental: so a leitura tem mais © sutilezas do que a mera decodificagso de palavras escritas, tem também um lado de simplicidade que os letrados néo se preocupam muito om revelar. A intengéo aqui_¢_de_uma_apraximagio por esse Angulo dos {niveis_bésicos do proceso Hi indmoras maneiras de caracterizi-los @ estudé-los. Optei pelos aspectos que me parecem mais evidentes, longe de querer e:gotar as possibilidades de abordagem do tema. Pelo contririo, trata-se de uma iniciaggo a ele. Alids, cabe observar: par- tindo desta para outras reflexes, encontrarse-s0 varias concapgies a respeito de sivveis de leitura. ‘Maria Helena Martins O que é Letra 39 | | (Cada coisa teve sua histéria pertcular eacabos na vale ‘comuim, nas mos de quem possivelmente ignore por completo sua trafetsria O que é Leiture 41 Praticamente cada _estudioso tom uma visso diferenciade, talvez por ser questio cada vez wale Tepensada e acrescida de novas perspectivas, o fe amore aumente as possibilidades de com. preondé-la, Leitura sensorial A visio, 0 tato, ‘a audiggo, 0 olfato e gosto podem ser apontados como os referencials ‘mals elementires do ato de ler. O exemplo, visto anteriormente, dos momentos inicials da relacao 2 crianca com 0 mundo ilustra a leitura sensorial, De certa forma caracteriza- a descobarta, do Universo “edulto no qual todos nés precisamos aprender. a viver para sobreviver. NS se trata ce uma leltura elaborada; 6 antes uma resposta ime diata 4s exigéncies @ ofertas que este mundo apresenta; relaciona-se com as primeiras escolhas © motiva 25 primeiras rovelagdes, Talvez, por isso ‘mesmo, mareantes. Essa leitura sensorial! comiega, pois, muito-eedo @ nor acompanha por toda a vida, Nao imports Saniergy MeN minuciose e simulténes 8 letura emocional e racionsl. Embore a aparente gratui dade de seu aspecto Iddico, 0 jogo com e vas imagens € cores, das materiais, dos sons, dos Cheiros @ dos gostes incite o prazer, a busea do que i agrada e@ a descoberta e rejeicio do desagredével 4908 Sentidos. E através dessa leitura vamo-nos revelando também para nds mesmos. Em suas memérias, Erico Verissimo dé mais vide © significagao a essas coisas de que estamos falandé: “Estou convencido de que meu primeiro contato com a milsica, 0 canto, o conto ¢ a mitologia so processou através da primeira cantiga de acalanto que me entrou pelos ouvidos, sem fazer sentido em meu cérebro, € dbvio, pois a principio aquele conjunto ritmado de sans nfo passava dum nareético pare me induzir ao sono. Essa cangéo de ninar’falava do Bicho Tutu, que estava ‘no telhado © que descoria para pegar’o mening se este ainda no estivesse dormindo, Mas se ele j8 esti vesse piscando, com a areia do tono nos olhos, a fetra da cantilena era diferente: uma adverténcia 0 Bicho Tutu para que néo ousasse descer do telhado, pois nesse caso 0 pai do menino mandaria maté-lo. E af temos som davida uma efebulaggo ‘ou est6ria, uma melodia e um elemento mitolégico, Amas ¢ criadas encarregaram-se de enriquecer @ galeria mitolégica da crianga, contando-Ihe estorias fantasticas, de caréter francamante sadomasoquista, como aquela da madrasta que mandou enterrar vivas as trés enteadas. (Ougo uma voz remota exclamar: "X9, x6, passarinhol ...") Dessa historia das meninas enterradas. —" Capineiro. de meu pai /ndo me cortes os cabelos / minha mée me penteou/ minha madrasta me enterrou.. Maria Helena Martins Oque é Letra a guardo mais 0 terror que ela me inspirou do que © seuenredo. Poressa época a crianga jé caminhava, @ @ fita magnética de sua meméria estava ainda proticemente virgem, pronta para registrar "as impressées do mundo com suas pessoas, anima coisas e mistérios”. A leitura sensorial vai, portanto, dando a canhe- cer ao leitor 0 que ele gosta ou no, mesmo incons. cientemente, sem a necessidade de racionalizacées, justificatives, apenas porque impressiona a vista, 0 ouvido, 0 tato, 0 alfato ou o paladar. Por certo alguns ‘estardo a penser que ler sensorialmente uma estéria contada, um quadro, uma capedo, até uma comida ¢ fécil. ‘Mas como ler assim um livro, por exempio? Antes de ser um texto escrito, um livro um objeto; tem forma, cor, textura, volume, cheiro. Podese até ouvilo se ‘folhearmos suas ‘paginas, Para muitos adultos e especialmente criancas ndo. alfabetizados essa ¢ a leitura que conta, Quem j4 teve oportunidade de vivencidla @ de obsorvar a sua realizagio sabe 0 quanto ela pode render. Na crianga essa leitura através dos sentidos revela_um prazer singular, relacionedo com a sua disponibilidade (maior que a do edulto) e curio: sidade (mais espontaneamente expressa). O livro, fesse objeto inerte, contend estranhos. sinais, ‘Maria elena Martins te na ‘pdgina carta’, fazendo-os estalar. Dobalde: eu ‘nfo tinha a sonsagio de possutios, Tentel com maior éxito tratélos como bonecas, acalents lon beijé-los, surr.tos. Quase em ldgrlmas, acabel por ep6-10s' sobre os joethos ‘de minha ‘mio, ls levantou.os olhos de seu trabalho: "O que queres ue eu te ia, quorido? As Fades?" Perguntl, Incrédulo: As Fedas esto a/ dentro?” 46 08 adultos tendem a uma postura mais inibida diante do objeto ivro. Isso porque ha, som dvd, tuma tradigdo de culto a ele. Mesmo quando nie tinham @ forma pela qual hoje os conhecemos, os livros ram vistos como eseritura sagrada, porte, dora da verdade, enigmética ov perigosa, 6 inegével » seriedade que uma biblioteca sugere, ‘A casa onde se oncontra uma estante com livros or si $6 jé conote certo refinamento de espirito, intoligéncia, cultura de sous moradores, Gomty tals fivros’meihor. Nao € a toa que se compe (3s vezes por metro} belos exemplares encadarne dos © s0 os pie bem 4 mostra, alardeando, ses Visitantes o scazus letrado, Meso que tee ieee jamais sejam_manuseados, sua simples presence ffsica basta para indiior sabodoria, Os fatichicee compram-nos indiserimtnadamante, mets aes fungo de seu aspecto do que pela sia reer asonn tividade, devido 30.204 valor intrinseco, per naw conteddo ov autor. Hé ainda um tipo de fotichicts mais suti: 0 bibligflo, colecionader do roridedes, 3 quais muites vezes sequer tem condigdes de quem sabe imagens coloridas, atrai pelo formato @ pela facilidade de manuseio; pela possibilidade de abrilo, decifrar seu mistéria e ele revelar através da combinagio ritmica, sonora e visual dos sinais — uma histéria do encantamento, de imprevistos, de alegrias ¢ apreonsdes. E esse Jogo com 0 universo escondide num livra vai estimu: Jando na crianga a descoberta e aprimoramento da linguagem, desenvolvendo sua capacidade de ‘comunicagéo com 0 mundo. Surgem as primeiras escothas: 0 liveo com ilustracdes coloridas agrada mais; se no contém imagens, atrai menos, E 56 o fato de folhed:lo, abrindo- e fechando-o, provoce uma sensagdo de possibilidades de conhecé-to; seja para dominé-lo, rasgando-0 num esto onipotente, soja para admiré-lo, conservando-o fim de voltar repetidamente a ele, Esses primeiros contatos propiciam a crienca @ Uescoberta do livro coma um abjeto especial, diferente dos outros brinquedos, mas também fonte de prazer. Motivam-na para a concretiza¢ao maior do ato de ler o texto escrito, a partir do processo de alfabotizago, gerando'a promessa de autonomia para saciar @ curiosidade pelo desco- nhecido e para renovar emocdes vividas, Melhor do que qualquer tentativa de explicar iss0 € buscar novamente o relato de Sartre: "Ew nfo sabia ainda ler, mas j4 ora bastante esnobe para exigit os meus livros .,. Poguel os dois volume: Zinhos, cherei-as, epalpei-os, abri-os negligentemen: Oqued Leitura avaliar, mas exibeas com tal orgulho como se a mera posse dos exemplares jd the facultasse 0 ceconhecimento efetivo de importéncia cultural ® social, quando néo a exclusividade de manuseio, deixando aos demais leitores apenas a possibilidade de ler mediados por uma vitrina, Diante de tal poder — a simples posse do objeto livro pode significar erudigo; sua leitura levar a salvaco 0s incrédulos, como’ quando repositério das palavras de Cristo nos Evangelhos, ou construir 2 loucura, como a do cavaleiro andante Quixate —, a atitude do homem comum 6 historicamente do respeito, Mesmo 0 advento da era eletrénica, com 0 radio e a televiso, antes de arrefecer o culto 208 meios impressos e ‘especialmente ao livro, acabou cenfatizando sua importincia. A suspeita — omea gadora para uns (ietrados) e alontadora pera outros litetredos) — de que a escrita no seria mais “indispensével para saber das coises” néo se conere tizou. Pelo contraste ontre 0 facilitério da comu nicagio eletrdnica ou da comunicaggo oral e a complexidade da escrita, acabam ainda sendo mais valorizados os textos impresses, 08 livros, em particular, © sous leitores. Estes optam pelo’ mais “dificil” e, por sera escrita mais dificil de entender, seria possivelmente mais importante que ot outros meios. Esse tipo de raciocinio, comum entre 2 populapao iletrada e, sem dilvida, estimulado pelos intelectuais, resulta ser um dos fatores maiores 45 ‘dtd Hetena Martins O que é Leura a de sustentaeio do culto da letra e dos livros. Os possuidores do. poder. da palavra escrita se encarregam de sublinhar e alargar a aura mistifi- cadora que a envolve, certos de estarem, eles também, sob a protecdo dos dauses, enquanto ao leitor em geral cabe a submissBa: © que esté escrito, impresso , principalmente, publicado em forma de liveo & inguestiondvel; ‘significa _sabedorio, ciéncia, arte a que o comum dos mortais $6 atings como receptor passivo, Néo era degraca que Catulo de Paixio Cearense, quando mostrava a alguém seus manuscritos, advertia pera o fato de que, depois de impressos, ficariam melhores e, 20 saitent em livro, estariam excelentes. Corolirio desse poder é a ameaga que os textos, escritos podem inspirar. Daf ac queimos ¢ destrut 08, 28 proibigées daqueles considerados perigasos pelos seus concorrentes na forca de persuiasso © opressores do pensamento e expressdo livres. © exempio mais acabedo encantramos no Index Librorum Proibitorum (Indice dos Livros Proibi: dos}, uma lista de titulos elaborada pela Igreja Catdlicea Romana “para impedir @ contaminago da. {6 ou a corrupgéo moral. De meados do século XVI até 1966, quando foi suspenso, iniime. fas edigBes do Index foram publicades e, conse giientemente, milhares de pu funcdo da desobediéncia as proibigoes. Hé quem tenha rezado muitas Ave-Marias de peniténcia por ter lido algum dos livros malditos, quando nso apenes por possui-los ou manused-os. E hé quem literalmente perdeu a cabeca por té-los escrito, Mas, info sfio apenas religiosas os pretextos de proibieso. Os governos autoritérios tém sido os maiores censores, E disso nés sabemos muito bem, ‘Meso cercado de tal fama, o objeto livro nem sempre convence por si s6, Sua aparéneia também impressiona, bem ou mal, Quem de nés nfo rechagou um deles por ser impresso em tipos muito midds, por ser muito grosso; ou devido & mancha gratica compactamente distribufda na pagina, 20 papel Aspero e 8 brochura ou encadernace ngo se acomadarem as nosses mos? : Os racionalistas dirdo: mas © importante é 0 quo esté escrito! Nao so trata de racionaliza questo aqui envolve os sentidos, Do contrétio, como explicar © prazer que pode dospertar. aos ‘thos e a0 tato um belo exemplar, em papel sedoso, com ilustracdes coloridas ¢ planejamento gréfico cuidadoso, mesmo o texto escrito sendo piegas, cheio de falsas verdades ou ainda absolutamente indecifrével? E a revista inescrutavel, envolte por um pléstico, deixando 8 mostra apenas a capa atraente 6 estimulante? Num primeiro momento o que conta 6 a nossa Fesposta {isica 30. que nos cerca, a impressiio am nossos sentidos. Estes, entretanto, estando ligados as emogdes e 8 razdo, as vezes pregam pecas, surpreendendo, perturbando, mudando © pereurso de nossa foitura, . 48 Maria Helena Martins Quantos {4 so dirigiram a alguém efusivamente Gescobrindo logo tratar-se de pessoa desconhacida? E aquela elmofada macia e quentinha quo virou um gato nos arranhando? Hé também o caso do filme em braneo e preto, em eépia velha, que resulta inesperadamente bom, Uma revista visual ‘mente agradével que, de repente, deixa de ter qualquer interesse para nés. Ou um livreco de sebo, meio rasgado -e sujo, com péssimo planeja. ‘mento gréfico, que acaba nos agarrando. Assim, quando uma leitura — seja do que for — os fez ficar alegres ou deprimidos, desperta o curiosidade, estimula a fantasia, provoca descober. tas, lembrangas ~ af ento deixamos de ler apenas com 08 sentidos para entrar em outro nivel de leitura — 0 emocional Leitura emocional Sob © ponto de vista da cultura letrads, se a leitura sensorial parece menor, superficial pela sua propria natureza, a leitura emocional também tom Seu teor de inferioridade: ela lida com os sent mentos, © que necessariamente implicaria falta de objetividade, subjetivismo. No terreno das emo as coisas ficam ininteligiveis, escapem ao controle do leitor, que 32 vé envolvide por verdadelras ermadilhas trancadas no seu inconsciente, Nao Aaa O que é Letwure obstante, essa a leitura mais comum de quem diz gostar de ler, talvez a que dé maior prazer. E, mais uma contradiggo, € pouco revelada e muito menos valorizada, Certas pessoas, situagdes, ambientes, coisas, bem como conversas casuais, relatos, imagens, temas, cenas, caracteres ficcionais ou no tém © poder de ‘inciter, como num toque magico, nossa fantasia, libertar emog3es, Vém ao encontrs de desejos, amenizam ou ressaltam frustragdes diante da realidade. Levam-nos @ outros tempos © lugares, imagindrios ou n3o, mas que naqueles circunsténcias “respondem a‘ uma_necessidade, Provocam intensa sstisfegdo ou, a0 contrdrioy, desencadsiam angistia, levanda a depressio. Tudo se passa num processo ‘de identificagao; no temos controle racional sobre iss0,"pelo menos naquele momento. E quando nos percebemos dominados polos sentimentos, nossa reagio tende a sera de refreé-los, ou negé-los, por “respeito humano”, conforme os catélicos, ou, como explica Freud, por lum mecanismo de defesa, pois a expressfo livre das ‘emogées nos torna demasiado vulneréveis, Esses 0s motivos pelos quais procuramos esca- motear ou justificar uma leitura emocional, uma vez passado seu impacto, Chegamos mesmo. a ridicularizé.la, tempos depois, sprezando hnossa capacidade como leitor, na acasiao. Tolice, A leitura foi to ou mais “correta” — se existe uma leitura assim — que a feita com 0 passar da tempo 2 ou “de cabege fria". Naquele momenta contaram ‘apenas as nossas emopdes. Por que negar 0 fato de nos emocionarmos 60 assistir 2 uma cena amorose real ou na telenotela, 20 ouvir ume cancZo roméntice ou em face de uma contrariedade doméstica, de uma injusti¢a social inexorével? Nao so estas situacdes e reagbes comuns 8 maioria dor homens? Acontece que, por um lado, a gente nfo quer Parecer comum; cada um de nés deseja mercar-se como personalidade, néo s6 para os outros como para si préprio, mesmo que por meio de esteredti- os inculcados, da uma conduta pré-febricada © supostamente dosalicnante, “racional” Por outro, somos intolerantes diante dle manifestagdes estr ‘nas a0 que se convencionou chamar de expresso equilibrada, consciente. Tudo isso acolsa, nio raro, mediocrizando © complicando ainda mais nossas Vides. Se néio mascardssemos as nossas lelturas @ a sua meméria, talvez elas nos revelassom muito mais de nés mesmos, das nossas condigdes de vida entdo. E do confronto de leituras “certamente sairfamos fortalecidos, Muitas vezes descobrimos, gravadas em nossa meméria, cenas e situagées encontradas durante a leiture de um romance, de um filme, de uma canedo. E sentimos que elas, com o pasar do tempo, se tornaram referéncias de um pertodo especial de nossas vidas, cheio de sonhos ¢ aspiragbes, ‘Maria Helena Martins 0 que éLeitura Ocorrem também lembrangas mais prosaicas € Gesagradsveis. Imaginem um texto lido as presses para realizar uma prova. Tudo nele aborrece ou preocupa por ter-se que dar conta de seu contesdo, rovavelmente devendo-se ainda _encontrar-Ihe ‘qualidades. Na verdade pouco ou nada 6 elaborado. A loitura pode até se tornar insuportdvel; um verdadeiro exercicio de angistia, Esse texto, ‘mesmo se_passando muito tempo sem vélo ou sem referéncias a seu respeito, estd marcado, Dificilmente voltamos 2 ele de espirito aberto, sem preconceito. E, caso © consigamos, talver até tenhamos uma surpresa agradével: porque 2 mostra atraente, enquanto também reaviva um pouco da nossa histéria quando da primeira feitura, ou porque definitivamente tem’ confir- mada a sua insignificdncia para nés, o que nio deixa de ser revelador. Nao sentimos. algo semethante com rolagio. alguém ou a alguma coisa que, em principio, nos agrade ou desagrada? Um certo ator, um parente, um vizinho, um objeto, um aconte mento? Essa uma das rax6es para considerarse primeira leitura definitive, Como vimos, talvez ‘do seja, mas sem divida 6 marcante, Por que, assim mesmo, receamos revelé-la? Na leitura emocional emerge a empatia, tendén- cia de sentir o que se sentiria caso estivéssemos na situagio e circunstncias experimentadas por outro, isto ¢, na pele de outra pessoa, ou mesmo Maria Helena Martins de um animal, de um objeto, de uma personagem de ficgio. Caracterizase, pois, um proceso de articipagéo afetiva numa realidade alheis, fora de_nés. implica necessariamente disponibilidade, ou seja, predisposi¢ao para aceitar o que vem do mundo exterior, mesmo s¢ depois venhamos a rechagé-lo. A crianga tende a ter mator disponibilidade que © adulto polo simples fato de, em principio, tudo Ihe ser novo e desconhecido e ela precisar conhecer (@ mais possfvel a fim de aprender a conviver com esse mundo. Assim sendo, nio s6 € mais receptiva como mais espontinea quanto a manifestar emogdes. Acaba entdo revelndo a empatia de modo até exacorbado. Daf sermos condescenden: tes, néo levarmos muito a sério” suas manifes- tages, consideradas “infantis”, isto 6, no condi cionadas pelas normas de conduta adulta, Haverd af uma ponta de’ inveja nossa por aquela esponta- neidade “perdida? Seré por isso que fica ma Giffeil expressar_certos sentimantos nossos. em relagdo a determinadas leitures? ' Talvez conviesse nesse’ momento pensarmos”o texto menos come um objeto (como foi eviden- ciedo na leitura sensorial) © mais como um 2contecimento, algo que acontece ao leitor. Princi palmente porque na leitura emocional ngo importa O que é Leinwe perguntarmos sobre 0 seu asnecto, sobre © que um corto texto trata, om que ele consista, mas sim 0 que ele faz, 0 quo provoca em nés. As vezes, temos uma semiconsciéncla de estar- mos endo igo mediocre, sem originalidade, mistificador da realidade ou sem representatividade estética, social, politica, cientifica, Tratese de um romance, ‘um filme, um relato histérico, uma reportage, um manual de comportamento sexual. Mas essa divida aparece parcial & remota mente, Defina nossa ligagdo cam 0 texto algo mais forte © inoxplicdvel, irracional. Por isso nos sentimos insoguros, quase incapacitados de explicar porque nos prendemos & leitura. E ocorre, por certo, a situacdo inversa: apesar do reconhecimento geral do valor de um texto, nossa resposta a ele 6 de total desagrado, © que também nos causa constrangimentos, Podem-se encontrar as determinantes dessas preferéncias e rojeigées, aparentemente doseabidas, tanto no universo social como no individual. No primeiro caso, a fonte primiria estd na nossa relago com as modelos de comportamento, ‘com 05 mitos transmitidos a nés por uma ordom social, cultural, politica, Para examinar a questo sob tsse ponto'de vista, digamos, exterior, precisa- Fiamos verificar om que medida e por que nos deixamos dominar ou influenciar por sistemas de idéias. que mescaram a realidade, Hé af todo um processo de formaco © condicionamento ideold- st 3 gico quenos plasmou como membros de ume dater- Iminads classe social, deuma rligifo, de um partido politico, de uma profisio. Todavia, nfo basta compresndermos isso. No segundo cato, 6 prociso taber come esses fatores extornos £0 relasionam om 0 nosso inconsciente, com 0 nosso universo interior, afinal onde se forma e se desenvolve a fossa emocionalidade. Pare conhecé-lo, tornese Recessério analsar nossas fantasia, nostos somos em viglia ou durante o sono. “Ambas as tarefatrequerem um grau considerdval do conhecimenta, de reflexso, de intorpotacdo Ja ‘nosse hist6ria social @ pessoal” E isso s6 consequ ‘0s realizar no decorter de toda uma trajetoria e vids. Hé, porém, um recurso mals imediato @ vidvel para comecar 2 investigaglo: 0 das rememo. Facdes da inféncia e adoloscéncia, des leibrangas dle Feituras realizadas © das predilopdes e aversées atuals. Se, por exemplo, quando criangs ov adolescente, 8 preferincia foi ‘por ficedo de aventuras, tipo Tarzan, Tecantemente, Batman, atotiva possivelmente se eu com relagdo és personagens-tftulo, Apesar de 2 narretivas serem basicamente calcadas na seailéncia de acontecimentos, 0 tempo e 0 espaco fem que se desenrolam contam menos que a ident ficapdo do leitor com o heréi, Atraem mais @ sua Personalidade e sou modo de. agir, seja por 32 ‘sszemelharem & Imager que 0 letot faz de ai ou Maria Helens Martins el paradoxo, isto é, por revelarem a imagem (Geatizada is svete, caracterizandoe a atrogdo 2l0s opostos. : Pecom 0 correr do tempo, outras breferéncias de leitura surgam, mas permanece @ ligacio inicial, @ ponto de a mera visto de um filme ou exemplar dessas aventuras desencadear um proceso nostdl- gico, no raro levando 3 retomada dos textos. Talvez entio ocorra um distanciamento. Porém & mais comum nos deixarmos envolver corm a mesma disponibilidade da infincia ou adolescéncia {principalmente se néo hd testemunhas dessa recaids). E a releitura se desenvolve entre uma somiconsciéncia de que talvez 0 texto "ndo valha nada" bem como a imersio na magia que ele permanece oferecendo. Ea crianca que ainda somos emergindo no adulto, possibilitando tam- bbém conhocormo-nos mais. | E quanto as fotonovelas, as telenovelas ou aos programas de rédio e TV tipo mundo-céo, agora voltando com forga total e plena aceitaggo? Sua caracteristica comum, diz-se, é 0 gosto popillar Para Ligia Chiappini, “hd toda um processo de identificagio do pablico, Essas classes. sociais para 35 quais so cirigidos vivem muito mais os broblamas da wolinca, No epenat 2 vilénia iminal, mas tudo squilo que sofrem no seu cotidiano: a" fome, a dosnga, 0 trabalho érduo, toda a sorte de dificuldades” De fato, uma leitura mesmo superti 3 rovela O que é Leitura 7 muitos quadros intimamente ligados as frustragSes @ angistias de cada leitor, vindo também ao encontro de suas fantasias mais comuns, Diante das desgragas presenciadas através do video, ouvidas Pelo radio ou lidas nos jornais ¢ revistas, tende 2 desenvolver-se no leitor um processo catértico: se a5 suas agruras so tantas, hd piores ... Por outro lade, hé sempre algo que alimenta @ ilusio de se conseguir, como na novela, “tirar 0 pé do barro”, num golpe de sorte: um amor rico, uma hheranga, uma alma generosa - Investigando as. leituras de operérias (numa fébrica de SZ0 Paulo), Ecléa Bosi constata a prefe- réncia por revistas sentimentais, sendo as narrativas pices as fotonovelas, histérias em quadrinhos infantis, reportagans sobre a vida de’ artistas, realizag2o do sonho de uma crianca doente, cronien de milagre, carta ao consultério sentimental Fundamentando-se em Freud e Gramsci, observe no ser “a busca de uma compensacio qualquer que move e comove a leitora de fotonovels, masa de um correlato imagingrio de sua posigao espect. fica no sistema social. Situago em que se interpe. hetram carancias econéynicas basicas, groves limitag&es de cultura e, via de regra, aimpossibilide. de de transcender, pelos préprios esforcos, 6 horizonte que sua classe e seu status circus reve”, Vase, nesses exemplos, a importéncia da leitura emocional no s6 no ambito individual mas no O feltor,entzo, consorne @ texto sem se perguntar coma ele fl feito as relagBes sociais, evidenciando-se a necessidade de se dar a ela mais atenedo. O inconsciente indivi- dual e 0 universo social orientam seus passos. Nzo obstante, geralmente & considerada de menor significago pelos estudiosos, enquanto para muitos leitores edquire validade principalmente em momentos de lazer, dascompromatimento, Isso se deve muito 20 feto do ser vista como leitura de passatempo, seja qual for 0 grau de instrugéo, cultura, status social do leitor. Roland Barthes, ensa(sta e estudioso da literatura e outras formas ‘de expresso, declare que para ler, senio voluptuosamente, pelo menos gulosamente, 6 preciso ler fora de toda a responsabilidade Critica; 0 leitor, entio, consome o texto sem se perguntar coma ele foi feito. Enquanto passatempo, essa leitura revela a Predisposicgo do leitor de entregar-se a0 universo apresentedo no texto, desligando-se das circuns- tancies coneretas e imediatas. Daf ser também enearada como lcitura de evasio, ‘0 que conota corto menosprezo por ela, quando, na realidade, deveria levar a uma reflexio aprofundada, "Na aparente gratuidade da leitura de umo novela de TV, uma revista de modas, uma fotonovela, uma comédia cinematogréfiea, um romance policial ou pornogrético, ests implicito 0 modo que encontramos para extravasar emogiies, satisfozer curiosidades e alimentar noscas fanta: Sentimentos esses que, no nosso cotidiano, nic podemos: ou no queremos expressar, A Ieitura transforma-se, entéo, numa espécie de vélvule de escape. Mas no apenas isso: direta ou indice tamonte, ajuda a elaborar — através do relaxamanto de nossas tenses — sentimentos diffcois de compreender © conviver. Assim sendo, 0 conceito de escapismo aplicado 20 modo de ler torna-se ambiguo, como observa Robert Escarpit; embora possua_uma carga pejorativa, 0 termo evesio pode significar “fuga para a ‘liberdade e conse. Qientemente. ums abertura intencional de novos horizontes", Essa e razdo pele qual nfo se pode simplesmente imputar a leitura emocional 2 caracteristica de alienante. Por corto, so me torn dependente dela @ a uso sistematicamente como reftigio para afastar-me de uma tealidade insuportével, meu comportamnto deixa de sar 0 de quem’ busca momentos de lazer e distensio ou distragio pere ser o de alguém que se nega a viver seus préprios problemas e, em consequéncia, nfo tuta para solucioné-los. Ao preferir o desligamento de si ¢ imersio no universo do que é lido, deixam-se de estabelecer a5 relagdes necessérias para ossibilitar a diferenciagdo e compreensio tanto do contexto pessoal e social quanto do ficcional ou mistificador a realidade. Caracteriza'se, entdo, atotal submisio do Ieitor, tornando-se ele vulnorivel suscetivel & maniptlagdo. E os estragos causados s30 con- sideréveis, Moria Helena Martins O que € Lett st WY — Tudo 0 que lemos, a excord0 da natureza (isso se n&o Considerarmos a interferéncia”do” homem rela), 6 fruto de uma visio de mundo, oun sistema de idéias @ técnieas de produgao, caracte- rizando “um comprometimento do autor corn © que produz e, por certo, com seus. possiveis Iéitores. Hé, portanto, relacdo_ ent tre_textd “é ideologias, pois estas si inerentes 3 Intenso, (Canscient# out iconscTente} do autor sou modo. ie wer 9 mundo, tornando se também elemento: ‘de igagso entre ela os leltores de seu texte (ose Minos Trtereica aqui palo seu valor intriiton 52 artistco ou nfo, ciseutivel ou cogil, bam ou tal telizago — importa antes come algo selene Maura las se Tf uma intenclonalidade re criagdo, ele sabidamenie ner sempre ‘cottesponde ao aisle como a leitura se realize. A resposta do teitor depende' de indmeros fatores prisentes no ato Je ler, Estando predisposto a entregaras pasvarsonee 40 texto, tonde a £0 deixar envolver pela Idevlovla u,ideologis nee expresses fexplates ou moh data sua winerebilidace, "Sempre haverg, eniretanto, momentos istanciamento, quanto’ mal no ele eareadeg por faiores extemnor a letura (a interupele de Ho de ler. por exemploly€ nestas Oeaibte anda a tone, emergindo do univers lida, 0 leer rode estabolecer relagdes entre seu mundo @ ode tiere Hé entéo oportunidade para elaborar as emogées de 7 desencadeadas pela leitura, As vezes, a retomada do texto significa também uma nova posture diante dele; outras, o fato de termos interrompido 2 leitura nfo nos impede de mergulharmos nova- ‘mente nela, como so narcotizados, mesmo havendo entio emories diferenciedas, Assim, além da hist6ria pessoal do_leitor ¢ do_ sou contexto, fica de novo sublinhado 0 quanto os fatores circunstanciais da leitura influem no tipo fosta dada ao texto. Um cramalhdo, uma noticia de jornal qu um incidente cotidiano podem: suscitar Igrimas ‘ou gargalhadas; um cléssico do teatro, da literatura ou do cinema talvez provo- quem bocejos ou omogdes as mais profundas & duradouras. Depende muito do referencial da leitura, da situacéo em que nos encontramos, das inteng6es com que nos aproximamos dels, do que ela desperta do lembrangas, desejos, ‘legries, tristezas, Importa, por fim, frisar © quanto em geral reprimimos e desconsideramos @ leitura emocionel, muito em fungdo de uma pretense atitude inte: lectual, Todavia, se interrogadas sobre os mativos que 25 levam a ler livros, revistas, ir eo cinema, assistir folovisio ow mesmo ouvir fafocas, muitos pessoas revelam sor para se distrair, Isso no significa serem leitores desatentos ou incapazes de pensar um texto, Apenas sua tendéncia mais comum é deixarem-se envolver emocionelmente pelo que Idem. Ocorre, entretanto — e cada ver pretende vé-lo isolado do contexto ¢ sem envol Vimento pessoal, oriontando-se por certas normas Preestabelecidas. Isto €: ele endossa um modo de ler preexistente, condicionedo por uma ideolo. gia. Tal postura dirige a leitura de modo a se pereeber no objeto lido apenas o que interessa a0 sistema de idéias a0 qual o leitor se liga, Muitas vezes se usa, entéo, 0 taxto come pretexto para avaliar @ até provar assergGes alheias a ele, frus- trando 0 conhecimento daquilo que o individvaliza. ‘Ao se aplicar um esquema de leitura a0 texto, adotando um comportamento esteriotipada em felacio a ele, pée-se também de lado uma maneira e ler, de dar sentido, nossa, auténtica, em fund. de uma leitura supostamente correta porque sob 0 beneplicito de intelectuais. Assim, se estes autorizam a roveréncie, © rise, © entusiasmo ou (© menosprezo em face de um texto, “revogam-se as disposic&es em contrério”. Outro aspecto muito difundide dessa concepeio intelectual liga-se 20 fato de, em princfpio, limitar 2 nolo de leiture 20 texto escrito, pressuponda educaco formal e certo grau de cultura ou mesmo. erudigao do leitor, t Como se viu de inicio, discuto aqui a visto Ua Ieitura continada 2 escrita e a0 texto Hiterdrio ou as manifestacdes artisticas am geral, proponda véle como um processo de compreensio abran- gente, no qual o leitor participa com todas as suas capacidades @ fim de aprender as mais diversas formas de expresso humana e da natureza. ‘Assim, na perspectiva proposta aqui, a compe. ‘tancia para criar ou ler se concretiza’ tanto por maio de textos escritos (de carter Ticcional ou go) quanto de expressio oral, musica, artes pilisticas, artes drométicas ou de situsgdes da realidade objetiva cotidiana (trabalho, lazer, relagBes afetivas, socials). Seja o Ieitor inculto ou crudito, soja qual for a origem do objeto de leiture, tenha ele caréter utilitério, cientifico, artfstico, configurese como produto’ da cultura folelérica, popular, de massa ou das elites. Reforgase, entdo, o que jé foi dito: a construgéo da capacidade de produzir e compreander as mais diversas linguagens esté diretamente ligada a condigées propicias para ler, para dar sentido 2 expresses formais e simbélicas, representacionaiz (undo, quor sejam configuradas pela palevra, quer pelo gesto, pelo som, pela imagem. E esse capaci- dade relaciona-se em principio com 2 aptid3o para lor a prépria realidade individual e social. Essas consideragdes sdo bdsicas pare se perceber 2 diferenca entre a leitura a nivel intelectual ¢ @ nivel racional, como as coloco aqui, A leitura Faciondi € certamente intelectual, enquanto claborada por nosso intelecto; mas, se a enuncio assim, & para tornar mais evidentes os aspectos Positivos contra os negatives do que em regra se considera leitura intelectual. Importa, pois, na leltura racional, saliontar seu = Marin tetena Martins O que é Lettura 3 com maior freqiiéncia —, a5 pessoas sentirem | | | ou, pior ainda, represontar Shakespears em tom necessidade de justificar ‘suas preferéncias de | | | popularesco: uma afronta ao bardo inglés © 3 leitura, racionalzar seus gostos, || Curtura. Como admitir também que um tiime A convivéncia, Seno a conveniéncia social, | | | de Ingmar Bergman possa aborrecer; quo a misica cultural ¢ politica, principaimente nos centros erudita contemporénea parega apenas baruiho 20s Urbanos, vai-nos transformando em joguetes, ce hossos. ouvidos: que Ulises, de Joyer, 30 revele noseas racionslizagées, levando-nos. 2 oxpressar Um tiolago sem sentido para nds? emogées dissimuladas, quando. no contrérias Essa a postura intolectuolizada e dominante, No 20 que realmente sentimos, Ento um filme, vine por ser da maiorie dos leitores, Pelo contrério, Feportagem, um livro, uma cangdo, uma escultura, foi concebida e 6 mantida por uma elite, a dos uma estos, que nos desgostam ou agradam intelectuais: pensadores, estetas, eriticos e mesmo profundamente, sao lidos de um jeito ¢ a leitura | | artistas que reservam a si o direito de ditar normas fevelads de mode distorcido. E agimos assim 3 nossa letura, bem como guardam para. si 0 Porque temos motivos Intelectuais para isso, | | | priulégio da eriacao e truigao Gas artes, das tdi, Estamos, nesse caso, penetrando ~ ainde que pela dda coisas boas da vida, porta dos fundos ~ em outro nivel deleitua | | ‘Antes de prossequir, convém esclarecer. Ha uma facional, série de caracteristicas diferenciadoras entre 2 diversas categorias cde intelectuais (Horécio Gonzales estuda-es em outro livro desta coleggo). itura rach Aqui generalizo e simplifico 0 sentido de int Leitura racional lectual, levando-0, inclusive, “a radicalizago a pejorative, pois evidencio o elitism, o intelectua- Pra miuitas s6 agora estarfamos no ambito do lismo. 0 objetivo disso esté em querer subtinhar 0 status letyace, préprio da verdadeita copacidade | | | que hs de negativo na postura comumente enten de produzir © apreciar @ linguagem, em especial | , | dida como intelectual. 2 artistica. Enfim, leitura 6 coisa sri, dizem os | | ‘A leitura a esse nivel intelectual enfatiza, pos, 0 intelectuais. Relacionéta com nossas experiéncias | intelectualismo, doutrina que afirma a preeminén- Sensoriais @ emocionais diminui sua significagéo, | | cig e anterioridade dos fendmenos_intelectuais revela ignorincia. Imaginese o absurdo de ir 20 | | | Sobre os sentimentos ea vortade, Tens a st teatro @ divertirse com Otelo ov Ricardo II] lunivoca; © Ieitor se debruga sobre 0 texto, ‘Maria Helena Martins | que éLetwra 6s ah ‘Natia Helene Martins 0 que éLeitera a zs} cardter_eminentemente _ ding Uma faxineira minha, nordestina, um dia limpando ‘Ao mesmo tempo que o Teitor sai de si, em busea 4 estatueta me contol: que hava trabalhado numa da realidade do texto lido, sua percopedo implica {dora dquo. Néo <0 desrevey cada una das uma volta 8 sua experiéneia pessoaLe uma visto da tapas do trabalho, « funcdo de cada instrumento, Prdpris histories do texto, estabelecendo.se, entio, mas também o préprio ato de trabalhar; quais o$ um digloge entre este e 0 Isitor cam_o. contexto movimentas a fazer em cada ctapo, a duracdo oqual_a Teltura_ se_roaliza, Isso significa que o de cada um deles, 0 cansago,o calor, # necessidade fracesso_de_leituia rocional_é permanentemonte, do mudar de posicfo etc. A estatueia cra para ela J) Stalzado o eer reprodupio de algo concroto © membre, Ele “Em siatese, a ynal_acrescenta_& contemplava a estatueta, mas sua contemplecio sensorial_e 8 emocional o Tato de-estabelecer uma © a minha nada tinham em comum. Eu sabia que Ponte entre 9 leitor e 0 conhecimento, a.retloxio, era ume cena de trabalho, mas ndo sabia o que 2 reordenagéo do mundo objetivo, possibilitanda- era esse trabalho. As posigées das figuras e dos lite, no ato de ler, dar sentido ao texto e questionar objetos eram aleatérias para mim © necessérias nto a prépria individualidade como o universo pata a faxineira. Meu primeira impulso foi pensar: “a5 TelegSes, socials. Eels"Wigo-¢ importants por “nunca tina visto esta estatueta’ — isto €, ver" & ser racional, mes por aquilo que 0 seu proceso estatucta para véia com os olhos da fexinaira — permite, alargando os horizontes de expectativa {ebricante de farinha. A conseqincia foi distinguir 0 leitor © ampliando as possbilidades de leitura uma visfo verdadeira © outea falss, auténtica © do texto e da propria realidade social. inauténtica, profunda e superficial. Levou um E extremar lucidativo um epis6dio rela- certo tempo pata que eu percebesse 0 ‘objetivismo’ todo por iarlena Ghoul) erm teabahen ae ‘das minhas reayGes. Eu ettava supondo que exisia examina a relaglo entre a obra e 0 destinatério, ‘uma estatueta que era a escultura posta diante de num painet de consideragdes acerca de "Conceitos dois pares de ollios diferentes — havis uma obra de Historia ¢ Obra’, Esse relato fica ainda mals € dois destinatétios, um dos quois vie a obra © esclarecedor para nds se pensarmos os termos © outro nada via. Estava pressuposta a unicade/ ~ “ver” @ “visto"', usados pela autora, como /er identidade da obra através da jungSo entre a AI eleiture, respectivemente estatueta © 0 olhar da faxineira, pondo fora do = Eustenho uma ostatueta de barro nordestina campo da obra o meu proprio othar. Foi s6 quando Tepresentando uma fébrica de farinha de mandioca, . me dei conta do desejo da unidade/identidade que 68 Moria Hetena Martins ae : epositel “na estatueta que poreebi o que é i 7 destruir 0 trabalho da obra, isto é, uma experiéncia Cxbressivos por exemplificarem 0 quanto signifi diferente no campo de experiéneia de diss pertens ar creanata at? 2 Histéria, a meméria do leitor diferentes. A obra & a estatueta, 0 trabalho do O38 Gireunstancias do ato de ler. sscultor, © olher da faxincia, o' mou'e ees Por tm lado, 0 relato deita por terra a ilusdo de outros que dante” dla a snc eae 86 08 intelectuais terem condigdes de assinas experiéocta visual ou de. mami ome certas formas de express, “especialmente “3 instante que fica depositada a verdade em uma das mnie, N&O s® Pode ignorar que 2 conotagso vis6es © a falsidade na outra, vocd ter dune te Imaispertistente da. palavra intelectual coning es possiveis diante de uma obra: ou vocd quer so jiguele que designa uma cert tomar 0 portador, 0 portevor da vonage se fnauestiondvel. Isso faz com que ainda mu {ol expressed, ou’ vocé se considera incapaz ‘de oon Tete Bia ver © que um outro privilegiado estd vendo Ea chien, pemoPses $20 “educados” pela postura aniqueismo é perigoso sobretudo em se tratando Ghitiva, eritica, Mas © que pretendom ser “obje de cultura popular, Perdendo a obra como trabaing Mande” de se revela como “objetivismo”, para Podemos perder o faio de que a estatuela preuhe Patilena Chau, em vez de levis 8 spreciagto caras ues visdes, que estas dluas visdes £6 sejam Gesoee eensio abrangente do mundo, néo rere Possivels:a partir desso estatueta, O que slim peslocaos para a guarita do um saber bsteate fer uma’ obra’ € 0 fato de que ela Sia eonc et Por ‘outro lado, com esse relato, fica taming Para uma pessoa ¢ repretentardo de ne teens {uestionada a ilusio populista de que s6 0 povo de trabalho ignorads pare outra. E isso que ola é. teria “o poder da verdade”, cabendo a ele fazer E ela no mais verdadeira OU menos verdadeira aleitura “correta”. Mum cet0'e noutro; ela € as duas coisan & oes re visbes esto incorparades, ‘8gora, na estatueta,_ + 2 fzgm parted hetvia do esttueta pa, mbora a autore esteja rafietindo acerca de Tatendo da leitura do texto escrito, Jorge obra e@ de como € discutivel a questae: de i Luls Borges, o grande escritar argentino, assinsle auténtics ou inauténtice, de haver uma leita 2 tia supersticosa do leitor”, que pretcndle una correta © outea errs, pare nes, au Soe ostura intelectual, mas realize ume lelteea ee reletado e sua reflexéo tormamse ‘indo eae ‘ateneSes parciais”. Nola nfo importam otieicns Preece eee Eee ree ou eficiéncia de ume pégine, porém a hablicedes 70 ‘Maria Helena Martins O que 6 Leitura n aparentes de escritor: recursos de_linguagem, sonoridade, sintaxe, pontuacio, enfim “tecniqui ces", segundo Borges, que obscurecem as emocfies @ convicgdes do leltor, em funcdo de um supesto modo correto ou adequado da escrever @ ler um Fomance, um poems. Na verdade, freqientemente confunde-se a feitura racional com a investigago pura e simples do arcabouco formal de um texto, com 0 exame de sua estrutura interna enquanto sistema de relagGes entre as partes que 0 compsem, sem efetivamente estudélo como um todo, como expresso de uma visio. de mundo, Realizase assim 0 que o estruturalismo ortodexo apreyoou @ ainda proclarna: 0 estudo do “texto em si Esse tipo de leitura elimina a dindmica da relagio leitor-texto-contexto, limitando consideravelmente mento. No entanto, estudando a relacao do leitor efou emocional. Estas percebem-no como objeto, acontecimento, emogio, enquanto a leitura racio- objetiva do processo de elaboragio de materiais, formas, finguagem, temtica, simbologia, Na Ieitura emocional o_leitor se deixa envolver pelos sentimiénitos que o texto Ihe desparta. Sua atitude & opinistica, tende ao irracional, Contam af os critéries do gosto: gosta ou nfo do que 18 por motivos muito pessoais ou por ceracter’sticas textuais que nem sempre consegue definir, Muito manos se coloca a questo de como o objeto lido se constréi. Jé na leitura racional o leitor visa mais. texto, tem em mira a indagac30; quer mais, compreendé-io, dialagar com ele. Isso. nos leva a considerar a leitura racional como sendo especialmente exigente, pois a dade emacional, 0 processo da identificagao, agora, se transformam em desprendimente do’ leitor, em vontade de apreender um processo de criagio Como diz Barthes, adyim da necessidade de colocarse dentro de produgio, no dentro do produto, E, nese sentido, Barthes vé a leitura como a “parente pobro” ‘da criagio, sendo seu ‘objetivo 0 de reencontrar come algo foi criado. Mas de que modo se realiza essa leitura? Parece inegivel ela supor um osforgo especial; nfo pode- mos simplesmente nos apropriar do texto ou accité-lo passivamente. Temps, antes, que conquis: té-lo, conhecendo e respeitando suas caracteristicas préprias. sso implica cercéio de uma atencio tal que nos leve a perceber peculiaridades, aquilo que © diferencia dos demais, torna-o algo tinico, 130 J ‘Moria Helena Martins importa. se apresente maior ov menor grou de Gualidade, Aligs, quando se fala em qualidade, em critérios de valor, estamos necessarfamente dante do confronto entre um e outros textos, entre leituras, Cotejando-os, evidencia-se aquilo que individuoliza cada umm, E quanto maiores as possibilidades de confrantar, melhores as condigées para apreender iz0, Quem leu um nico romance, por exemplo, pode ter opinifo definida, sero detinitiva, sobre literatura de fiegd0. Seu tepertério desse tipo de leitura, ‘talvez por ser bem limitado, permite maior clereza de critérios. Para quem leu inumoros, 285 cofsas so tornam mais eomplexas, os perémetros diversiticam-se. Nao vai af nenhum ju‘zo de valor Para um ou outro tipo de leitura,leltor ou texto, uero, com esse exerplo, apenas observer que, a0 2 ampliarem as fronteiras do. conhecimentor 98 exigéncias, ecessidades e interesses. também aumentam; que, uma ver encatada a trajetoria de Ieitor ‘a nivel racional, as possibilidades de leitura da qualquer texto, antes de serem cada vez menores, pelo conirério, multiplicam se. Prineipalmente porque nosso ‘didlogo’ com’ © Sbjeto lido se nutro dé intimeras experiénctas — de leitura anteriores, enquanto lana, desafios @ promessas para outres tantas O que é Letwra Cabe aqui uma observacéo, talvez dispensivel, e280 no viesse dar forga ao que tentei sublinhar no devorrer desta reflexdo. Embora enfatizasse @ leitura das mais diferentes linguagens, a da eserita acabou se impondo; os exemplos literdrios evidenciam isso, Primeiro, porque & através que o préprio ato do ler tern sido pensado; segundo, porque na literatura se encontram elementos ‘208 quais podemos voltar indmeras vezes, testanda ‘nossa meméria, ineitando nosso imagindrio, det xando sentidos, emogdos © pensamentos serem permeados pela’ variedade de sentides que pode possuir uma Gnica palavra, Além disso, querso queira ou nfo, todos estamos historicamente igados 8 noco de leitura como referindo-se & letra, talvez o sinal mais desafiador © exigente em qualquer nivel, especialmente o racional. E, creio, quanto mais lermos de modo abrangente, mais esteremos também favorecendo nossa capacidade de leitura do texto escrito. Sem dovida, 0 intorcimbio de experiéncias de leituras desmistifica a escrita, 0 tivo, levando- nos a compreendé-los @ apreciélos de modo mais natural, ¢ certamonte estaremos assim fortalecendo nostas condigdes de leitores efetives das inumeré- veis mensagens do universo em que vivemos, finidade do aspectos num texto pode ~14 Maria Hetena Mertins 0 que é Leiewra 15 esencacesr © orientar a leitura racional. Um dos ‘mais comuns é a narrativa, sustentada praticamente Por qualquer tipo de linguagem (felada, escrita, gestual, oréfica, pléstica, musical, cinematogrética). Todo texto nos conta alguma coisa, soja por meio de uma narrative nitidamente marcada Bela seqiéncia cronolégica dos acontecimentos, como no romance tradicional, seja de modo obscuro ou quase imperceptivel, como num poema lirica ou numa composic&o musical, E a busca do processo narrativo — do modo como 8 historia € contada — pode ser excelente deixa para a leitura racional, Partindo do pressuposto de que nada é gratuito num texto, tudo tem sentido, 6 fruto de uma intene#o. consciente ou inconsciente, tinpotta, =. muito — na leitura racional captarmos eomo $2 constrdi esse sentido o4 onto. Parb-ant, cipe- matin ets no ree iments textual. Ess pequans Unidades de sentaOe abe see Gti) pra 2 leitor compreender 0 objeto lido enai-wose Mekmo. que mits verse peusein”quase despa esbidee ou que o ‘ait 26" capone Ge sole mat ou meres explicit, estabelccondose, aries Uma ‘especie de Jogo; alls, algo. sods nk estimulonte parse letra Nos romances itor “pscoléices", com tre alicia 2 crapio. de indicts. esd presente a Prépria desrigdo. das peronagens; 9 corsa tia um ‘Mavia Helena Martins fisica indica tragos. de’ personalidade. As vezes esse recurso é usado de maneira cari cando © perfil de determinados tipos. Tem sido extremamente exploredo nas narrativas populares, nos folhetins, nas fotonovolas, nas telenovelas, no cinema, no ‘teatro. Os modelos cléssicos “desea tipologia ‘remontam 2 dupla Quixote/Panca, riagéio de Cervantes. Dom Quixote tem sua alionago e vulnerabilidade salientadas pelo porte {rdgil, longilineo, doentio, envelhecide, conteas- tando_com 0 ridiculo de uma paramentagio. © atitudes de pscudocavaleiro, aliés, "Cavaleiro da Triste Figura”. Sancho Panga, jf no proprio ‘nome, carrega algo cle bonachio ® primitive, como sua aparéncia; embora “de muy poca sal en la mollera”, seu espirito pragnvitico transforma.o em escudeiro perfeito para o sonhador Quixote. © romance naturalista, postulando © prinefpio de que “o homem € fruto de seu meio”, apresonta sempre indicios ambientais para corroborar tragos do cardter e até explicar az ages das personagons. © nosso Aluisio de Azevedo € um exemplo do autor que utiliza esses recursos, para nio falar de Zola ou do grande Eca de Queiroz. Quanto 20 texto policial ou ao fantistico, sio sem duvida prédigos na apresentagio de indicios, Aliés, @ pedra de toque para a solugdo do (s} mistério (s) ou pare a criagdo de uma atmostera sobrenatural. Se pensarmos nos filmes de Hitch- cock, por exomplo, verificamos a habi 0 queé Lettre que © cineasta subverte a expectativa do loitor, criando folsos ind{cios ou aparentemente menos. prezando pistes detinitivas para desvendar a trama, Um olhar mais sombrio ou uma personage de Gculos escuros, em hora e@ lugar inesperados, podem parecer uma deixa do persequidor ou assassino, quando, na verdade, trata-se de um inocente; um péssaro indefeso pode resultar no matador. Aprendemos a ler esses indicios 8 medida que nossas experiéncias de leitura se sucedem; come: games assim 2 perceber como séo constru(dos ® dispostos no texto, qual 2 intengéo do auitar 20 crié-los. No entanto, mesmo saberide como © porque sio armados 0s indicios, nio quer dizer Que 0 texto se tome transparente pare nds, NO aso de Hitchcock, como na maioria dos autores altamente criativos, mesmo © Ieitor percebendo lum possivel esquema de construgéo de indicios, ha sempre © apresentacZo de um elemento nove Gesafiando-o. Assim constitui-sa © que se chama de opacidade da ambigiidade do texto, squcla Qualidade sua de negacear e se entregar a0 mesmo tempo, de nos levar a querer compreendéto mais © mais ¢ de nos postibilitar intimeras leituras, arecendo até inesgotdvel A interagdo dos niveis de leitura Vale retomar 0 que disse a0 iniciar @ questo dos niveis de leitura: eles sio inter-relacionados, privilegiado. Deve, pois, ficar elaro no haver propriamente uma hierarquia; existe, digamos, uma tendéncia de leitura sensorial anteceder a emocional e a esta se suceder a racional, © que se relaciona com 0 processo de amadurecimenta do homem. Porém, como quis mostrar aqui, so @ historia, a experiéncia e as circunstincias de Vida de cada leitor no ato de ler, bem como as Fespostas @ quest5es apresentades pelo objeto lido, no decorrer do processo, que podem eviden- iar um certo nivel de leitura, Nao se doe também supor a existéncia isolads de cada um desses nivels, Talvez haja, como disse, a prevaléncia de um’ ou outro. Mas creio mesmo ser muito dificil realizarmos uma leitura apenas sensorial, emocional ou racional, pelo simples fato de ser préprio da condig#o humana inter-relacionar sensaeo, emogio e razto, tanto fa tentativa de se expressar como na de buscar sentido, compreender a si préprio ¢ o mundo. ‘A limpada branea, a querosene, no centro da meso, dava claridade suficiente para a leitura eo croché. Mesmo assim, de vee em quando um doles se aproximava do efrculo vivo da luz que 3 send simultineos, mesmo sendo um ou ottiro 8 Maria Helena Martine O que é Leitire vp Pantalhe concentrava sobre a tébua, para ler ume letrinha apagada ou acertar um’ ponto mais Galicado. O estencieiro ocupavauma das cabeceiras, Dona Alzira sentava perto, na cadeira de embalo,| Na outra ponta, as criancas brincavam... . [Lelita]! Juntando 2s palmas das méos — seus dedos eram delgados, compridos, flexiveis — punhase defronte & lmpada e projetava na parede sillwuctes do cabecinhas de cordeiro, de coelho, de gato se lambendo. A predilecio do irmfozinho’ era tode pelas cabectnhas de coelho. Mas ela sabia fezer também outras figurinhas: de quero-quero emper- tigado como um militar, de jodo-grande dormindo a beira da lagoa, “Entio, sim, Carlos esquecia os estampas das revistas velhas que folheava, e admirava, ausente, fantasiando coisas ... Coisas confusas, distantes, envoltas num nevoeiro ténue que no se esgarava unea para dar franca passagem ao soll O que Sentia era estranho, suave, comavente. Enternecia-o sobretudo @ postura imével do jodo-grande, como de morto em pé. A sua tristeza vinha justamente daquilo, de saber que o pernalta estava vivo. eto parado, to sumido em si mesmo. Era um alfvio quando Lolita, movia de now 6 dodo mindinho e, lentamenté, a asa caida se enfunava para o vo. Essa ¢ uma cena doméstica da campanha tio- grandense, no infcio do século, Uma recriags fiocional de Cyto Martins, mas que encontra eco has vivincias de muitos de nés. Apesar des limita: ‘GBes ambientais, de. recursos materiais precarios @ de uma experiéncia de vida ainda em sues primeiras descobertas, a circunstincia favoreceu a ‘ealizagio da leitura, efetivada af simultaneamente 8 nivel sensorial, emocional e racioral, os quais se interpenetram e se complementam. Se a énfase no decorrer desta reflexio acerca dos niveis de leitura foi mais hierarquizante, deveuse 20 propésito de dar uma fisionomia mais organi. zada 4 questo. Além do qua, se pensarmos em exigéncias feitas 20 leitor no ato de ler, parece ‘mesmo haver uma gradagdo da leitura sensorial 3 racional. Por outro lado, sabe-se, mesmo 0 leitor $e propondo uma leitura’a um certo nivel, seja ele ‘aval for, & a dindmica de sua relago com o texto ‘que vai determinar o nivel predominante, Assim como hé tantas leituras quantos so os leitores, thd também yma nova leitura a cada aproximaro do ‘leitor com um mesmo texto, ainda quando minimas as suas variagdes,~.Nessag ocasides talvez ocorram mudangas de nivel. Um Poema ou uma cancio que hoje no nos dizem hadg, ndo fazem sentido, amanh podem emocio. nar; agradar a0 ouvido pela musicalidade e pelo Fitmo, tempos depois; suscitar reflexdes apenas ‘apes Vérias leituras., Maria Helena Martine Se léssemos apenas e sempre em um tnico nivel, tenderfamos a radicalizer este modo de ler, prove. cando a distoredo do texto lido pela imobilizagio. jendo 2 leitura um processo, portanto, dinémice, Jsso no ocorre, Seria como fixar 0 olhar num determinado objeto ¢ 36 e sempre enxergito de um Gnico angulo, nds @ ole estaticas: em pouco tempo no mais conseguirfamos vé-lo. Isso porque @ capacidade de nosso cérebro de registrar sensa- ges, emogées e pensementos decai rapidement quando o que queremos apreender é infinitamente Fepetido. O efeito resulta inverso do que se pode imaginar: em vez de lermas mais e melhor o texto, a leitura se dilui, a ponto de inexistir. Na verdade, 2 medida que desenvolvemos nossas capacidades sensoriais, emacionais e racionais também se desenvolvem nossas leituras nesses Niveis, ainda que, repito, um ou outro prevalega, Mas @ interagdo persiste. Quanto mais nfo seja por Certes caracter(sticas de cada um dos nfveis, as guais, em ultima instancia, so interdependentes, Vejamos que caracteristicas so escas. A leitura sensorial tem um tempo de duragio e abrange um espaco mais limitado, em face do meio utilizado para realizé-la — os sentidos~Seu alcance € mais circunscrita pelo aqui © sgora; tende 2c imediato. A leitura emocional 6 mais mediatizeda pslas experiéncias prévias, pela vivin- cia anterior do leitor, ter um caréter retrospective impl{cito; se inclina ‘pois & volta ao pasado. Jé o O que é Leia leitura racional tende a ser prospective, & medida Que @ rofiexio determina um passo a frente no racioc{nio, isto é, transforma o conhecimento prévio em um novo conhecimanto cu em novas uestdes, implica mais concretamente possibilida. des de desenvolver © discernimento acerca do texto lido, Essas_Ieituras, so radicalizadas — realizadas sempre de modo isolado umas das outras apresentariam aspectos altamente questioniveis, enfatizando 0 imediatismo (sensorial), 0 conserva. dorismo (emocional) © © progressismo (racional), “‘ismos” esses que, pela propria natureza, depre Giariam @ loitura. Felizmente € pouco provavel se efetivarem radicelmente, em funggo da dindmica prépria do procedimento existencial do homem. Mesmo querendo forgar sua natureza com postures extremistas, © homem 18 ‘como om geral vive, um processo permanente de intere¢do entre sensagdes, emogdes e pensamentos. 81

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