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Dili, Marshall, “Chas oe birkira Leider ? he a Januto, 1999, Dhar 3 Estrutura e Hist6ria Bem, mas tu no vés, Crétilo, que aquele que segue nomes em busca das coisas e analisa seus sentidos core grande perigo de ser enganado? Platio, Dial,, Crésilo Howe épocas melhores nas relagoes entre havaianos e europeus, como as dos primeiros momentos de contato, mais de um ano antes da morte de Cook, encontro esse marcado pelo aloha com © qual os habitantes da itha saudaram seus “descobridores" No dia 20 de janciro de 1778, quando 0 Resolution € 0 Dis- covery fizeram a ancoragem inicial em Waimea, Kawa’, quase instantaneamente comegou um interedmbio satisfatério entre bri- Ynicos ¢ a populagio comum, tanto na terra como nos navios. As mulheres mas canoas ao largo dos navios jé faziam suas fa- mosas © inconfundiveis propostas. aos marujos, “suas intengSes cram de nos gratificar com todos os prazeres que 0 sexo podia oferecer” (King, Difrio de Bordo: 20 jan, 1778). Como sabemo aas mulheres logo conseguiram satisfazer suas exigéncias especiais, apesar dos tabus sexuais impostos pelo capitéo Cook a seus ho- mens, Foi desse modo que mulheres comuns deram inicio @ uma série de violagdes de tabus que, como logo descobriram os che- fes © sacerdotes, se aplicava igualmente a suas proibigées sax sradus, exirutura e histéria m3 No terceito dia em Kaua'i, 0 navio Resolution do capitéo Cook foi levado para o mar aberto por ventos contrétios, enquan- to tentava uma mudanca de ancoradouro na bafa de Waimea. ‘0 Discovery, sob 0 comando do capitio Clerke, permanecen ¢ foi no dia seguinte, mais uma vez cercado pelos inémeros bar- quinhos da populagio. Esse comércio pacifico, no entanto, foi bruscamente interrompido com a chegada de uma grande canos dupla, carrogendo o chefe mais sagrado da ilha, Kaneoneo, As canoas do povo foram peremptoriamente postas de lado, para ‘que 0 chefe pudesse ter seu actsso proprio ¢ exclusiva & pre- senga dos briténicos, Agui seré necessério lembrar que os ha- vvaianos consideravam como de natureza divina esses seres extra ordinarios que haviam irrompido do céu além do horizonte, assim como consideravam seus chefes. Eles tinhem vindo da patria es- piritual de chefes e deuses, Kahiki ou no dialeto de Kaua's, “Te- hii" — e, de fato, os ingleses admitiam que seu Gltimo porto ha- vig sido “Otaheite” (Tait) Porém, quando 0 sagrado Kenedneo viera aos navies, a po~ pulagéo nfo havia se retirado de seu caminho com presteza sufi- ciente e, como foi registrado por mais de um cronista inglés, al- guns deles revelando seu espanto, 0 chefe simplesmente atrope- lara quem quer que estivesse em seu caminho ‘'sem fazer o mfnimo esforgo" para evité-los, e deixara os tripulantes de quatro canoas nadando entre os destrogos? A cena foi repetida um pouco mais tarde naquele mesmo dia; a canoa real veio trazer um convite para o capitio Clerke vir & terra, onde Kaneoneo havia prepa- rado uma apropriada recepgio polinésia (com d&dives) para o capitdo britanico.”© astrénomo Bayly relata que, nessa segunda ocasiao, a visio da canta foi suficiente para que a plebe safsse voando “na maior precipitagio © logo descobrimos que Xo era sem razdo pois quando a canow' do rei topava com qualquer ov- tra, ela a attopelava, derrubando a todos que alcangasse, tanto ‘que as pessoas se viam obrigadas a saltar, mergulhar, evitando assim serem acertadas na cabeca, mas deixavam.suas canoas para ‘que passasse por cima” (Diério: 24 jan. 1778). Mas, também Kaneoneo era um chefe dos mais altos tabus. Fithos de casementos entre irméos, esses chefes so “chamados e divinos, akua” (Malo, 1951:54). Quando safam, todos eram obrigados a se prostar, com 0 rosto pata baixo, o mesmo tipo de 4 at thas de histéria hhomenagem que se prestaria ao capitfio Cook. Essa também foi 2 razio de Kaneoneo atropelar as can pessoas foram cap- turadas por um paradoxo havaiano, pois era impossivel abrir ca- minho para a canoa © ao mesmo tempo se prostrar diante dela. Tomarei esse incidente como um paradigma concentrado da hisiGria havaiana: das relagdes mutantes entre chefes e popu ‘eGo, marcadas por formas de opressio sem precedentes, desenvol- vidas @ partir das respectivas relagGes com os aventurciros. euro ppeus, especialmente com o crescente nimero de comerciantes. Essa colisio de havaianos ndo € somente um paradigma, mas também resume uma possivel teoria da histéria, da relagéo entre estrutura e evento, que se inicia com a proposigéo de que a trans- formagéo de uma cultura também & um modo de sua reprodu- gio, Cada qual & sua maneira, chefes e povo reagiam ao estran- geiro de acordo com suas autoconcepgées © seus habitusis inte- esses. As formas culturais tradicionsis abarcavam 0 evento ex- traordinério, ¢, assim, recriavam as distingdes dadas de status, com 0 efeito de reproduzit « cultura da forma que estava consti- tuide, Porém, como jé frisamos, 0 mundo néo é obrigado a obe- decer A I6gica pela qual & concebido, As condigdes especificas do ccontato europeu deram origem a formas de oposicao entre chefia € pessoas comuns que nao estavam previstas nas relagdes tradi- ionais entre elas, Temos aqui, entio, a segunda proposigo de nossa possfvel teoria da histéria: no mundo ou na a¢io — tecnica- mente, em atos de referencia — categorias culturais adquirem novos valores funcionais, Os signiticados ciltureis, sobrecarrege- dos pelo mundo, so assim alterados, Segue-se entio que, se as relagdes entre as categorias mudam, a estrutura & transformads. Primeiro, portanto, mostremos a base tradicional das rea~ ges havaianas a presenga inglesa, Homens © mulheres comuns, cada um a sua maneira, ensaiavam trocas espontineas com 0 pes- soal de Cook, resultendo num gil coméreio material, Esse prag- matismo simples eta especialmente caracterfstico da consciéncia cultural — do habitus — do povo havaiano, contrastando com a de seus chefes e sacerdotes (cf. Cap. 2). Essa conduta da parte da populacio estava especificamente em concordéncia com aquele interesse que os havaitnos chamam de “mi haku”, “buscar um senhor”, Era a contrapartida do sistema de dominac3o herGica da chefia, © principio global mais importante de organizagio era evtrutura e historia ns 2 propria hierarquia, expresso no aloha reciproco mas desigual entre 0 povo ¢ 0 chefe que mantinba as terras do povo como seu Patriménio. As relagdes sociais das pessoas comuns, além da- guelas mantidas com parentes imediatos, eram mediadas pelos chefes dominantes (“‘solidariedade hierérquica”). Enquanto que 0 chefes, por suas préprias ligagdes com o reino espiritual (Ka- hiki), mediavam também as relagdes do cosmos com # totalida- de social, E, assim, temos as to famosas demandas sexuais das havaianas para com a vida tripulagdo dos navios britinicos. Era sua maneira de “encontrar um senhor", através de ligagdes ascendentes, que estabeleceriam relagdes de parentesco com e rei- vindicagdes junto 20s poderes estabelecidos, Portanto, quando os marinheiros foram saudados com uma efusto do aloha tradicio- nal, como ainda se satidam os turistas, foi exatamente devido & mesma sintese interessada de libido ¢ Tucro. Por outro lado, examinemos mais de perto 0 comportamento * do chefe sagrado de Kahua’i, Kaneoneo, Seu status cosmolégico, ‘como 0 de outros chefes importantes, pressupunha que tivesse uma intervencio privilegiada junto ao divino estrangeiro, O ad- vento de Cook em 1778 introduziu uma certa “estrutura da con- juntura” bistérica: um sistema de relagdes que estava determi- nando o futuro do comércio europeu e da politica havaiana, Os ingleses estavam pata os havaianos em geral, assim como a che- fia havaiana estava para seu prOprio povo. De infcio, as implica- ‘ses eram, no entanto, equivocas ou até mesmo perigosas. Pois na versio havaiana da teoria de reis-estrangeiros, 0 reino do se- grado soberano de Kahiki € fundado com base na usurpagdo da dinastia jé existente, De fato, em toda ascensio — do mesmo modo que em toda ceriménia anual de Makabiki — o rei toma © poder, “celebra a vit6ria”, como diz Hocart, fazendo de seu antecessor uma vitima do sacrificio oa de feitigaria. Daf essa ambivaléncia inicial da aproximago de Knneoneo com os navios de Cook: o chefe s6 viera no quarto dia apés a chegada, por- tanto, bastante tempo depois das pessoas comuns, O comporta- mento de Kaneoneo seria repetido por outros chefes importantes nas décadas que se seguiram. Vérlas vezes eles se aproximaram dos navios depois dos populares e com igual demonstragio am: ‘igua de dignidade e circunspecqdo. No caso de Kaneoneo, quan- do finalmente chegou a abordar o Discovery, foi impedido por 16 ‘thas de historia seu séquito de ir além da prancha de embarque onde haviam for. mado um cicculo protetor a seu redor e nio permitiram a apro- ximagHo de outro inglés a nao ser 0 capitéo Clerke. O problema fra que se os briténicos realmente eram deuses, eles eram, en- ‘Go, 0 rivals naturais do chefe Porém, 0 comportamento de Kaneoneo, a sua hesitagdo, 0 Jevou a contradigdes préticas com seu povo, A trajetéria de co- liso pode ser mapeada a partir das catezorias da cultura tradi- ional, enquanto vetor das diferengas habituais entre a populagio comum ¢ 0 chefe sagcado, Ser o primeiro nas relagées com 0 di- vino estrangeiro nio era a nica priotidade do chefe. Ele era 0 primeiro em todas as coisas: © primogénito, o primeiro a agir hha guerra € na paz, aquele que iniciava o ano agricola através, dos sacriticios apropriados e coletava os primeitos fratos como seu tributo, Essa prerrogativa de “primazia” & 0 prineipio essen- cial de hierarquia potinésia, tornando o funcionamento politico da sociedade igual 2 atividade criativa da divindade, EB essas 1 vindicagoes de Kaneoneo a precedéncia 0 colocavam em violenta oposigéo ao povo que estava em seu caminho. Mesmo assim, a ligagdo privilegiada do chefe com os deuses sempre fora mantida com 0 sacrificio dos homens sem lei, ou seja, dos violadores dos tabus re Nas décadas seguintes A visita fatal de Cook, chefia e plebe, homens e mulheres, tabus rituais ¢ bens materiais, se engajaram. nna roca prética com europens, de maneira a alierar os sentidos © as relacdes habituais. E essas reavaliagdes funcionais sempre aparecem como extensdes I6gicas dos conceitos tradicionais. A. estrulura dominante da situagio inicial, a de que os chefes dis tinguiam-se do povo assim como 0s curopeus eram diferentes dos havaianos em geral, tornou-se um conceito de identidade pessoal — do qual surgiria uma ordem de economia politica, Os chefes se apropriaram de personagens da grandeza européia 20 mesmo tempo que imitavam o estilo adequado de vida luxuosa da Eu- ropa. O célebre Kamehameha, conquistedor das ilhas entre 1795 © 1810, nfo se cansava de perguntar aos visitantes europeus que pot ali passavam se néo vivia “de modo exatamente igual ao rei George”. Jé em 1793, és dos chefes havaianos dominantes bi viam dado # seus filhos e herdeiros o nome de “Rei George”. (Ball, 1929:64), No infclo do séoulo XIX, esse “vestir-se” como ceverutura e histbria mm identidades preeminentes estrangeiras tinha virado alta moda no Havaf. Como testemunho desse fato, temos o relato de um co- metciante americano sobre a reunido de figurdes havaianos em 1812: Na pista de corridas, observel Billy Pitt, George Washington e Billy Cobbet passeando de maneira muito intima... en- quanto no centro de outro grupo se encontravam Charley Fox, Thomas Jefferson, James Madison, Bonnépart ¢ Tom Paine, conversando de modo igualmente amigével. (Cox, 1832:44) Nessa época, Cox (pscudénimo de Kahekili Ke’eaumoku) era governador de Maui, John Adams (aliés Kaukini) logo seria governador de Hawaii, enquento o antes mencionado Billy Pitt (Kalaimoku) era “primeico-ministro” do reino, Por volta dessa época, mazeada pelo lucrative comércio do sindalo, também de~ senvolveu-se uma intensa competigio por status no seio da sris- tocracia havaiana. Essa competicfo tomou a forma do consumo conspicuo de bens de luxo vindos da Europa — mas também © mana esteve sempre associado a um estilo de luminosidade ce- lestial. © item principal de consumo eram as roupas fines, © as ‘modas sofriam loncas mudangas, como se vé no lamento de um mercador de Boston sobre uma carga indtil de seda, de um tipo ‘que j6 havia chegado por outro navio no ano anterior. O objetivo dos chefes era ter algo “que jamais haviem visto”? Logo, tecidos finos da China e da Nova Inglaterra eram acumulados em supe- abundancia estéril, apodrecendo nos armaztns dos chefes, para finalmente serem jogedos ao mar. Contudo, o acesso popular so mercado permanccia severa- mente restcito, mesmo em relago a utensflios préticos e domés- ticos. Ou, melhor dizendo, os produtos do povo entravam no co- mércio europen sob forma de tributos ou aluguéis coletados pe- los chefes nos moldes quase tradicionais e para seu beneticio ex- clusivo. A antiga histéria do comércio de ferro jé havia provado que os poderes estabelecidos eram capazes de organizer 0 tréfico para atender suas préprias demandas ¢ em detrimento das neces- sidades populares, JA em meados de 1790, os chefes dominantes tinbam um excesso de ferramentes ¢ nfo quetiam nem olhar para 8 ‘thas de hiviria mais um machado ¢, assim, 0 comércio europeu foi desviado para outros meios ¢ signos de poder do chefe, como tecidos e mosque- tes, Isso tudo acontecia muito antes de @ populagdo em geral ter esgotado suas nevessidades ou capacidades de uso produlive do ferro, Em época tio tardia quanto 1841, um missiondrio america- no na ilha do Hawaii dizia que nao havia um conjunto decente de ferramentas de campintaria, a nfo ser aqueles pertencentes aos che- fes locais (Forbes, 1842-155). Nessa época, também, a resistencia, ‘popular havia sido reduzida 20 uso de metéforas escatolégicas, como quando pessoas do povo de Waialua, O'ahu, misturaram excrementos de bode na farinha de taro, reservada para ser tri- buto ao chefe dominante (Emerson para Chamberlain: 19 out, 1835), Pode-se dizer que a tradicional cultura havaiana fora pre- servada por inversio légica, jé que excremento 6 alimento ne- sativo e, portanto, a reciprocidade era apropriada para o tipo de aloha que 03 chefes estavam descarregando no povo. Qualquer tipo de resistencia séria havia 4 muito terminado, sendo transcendida por utiizagdes negociadas dos tabus dos che- fes, em um processo que terminow em uma reavaliagéo do sig- nificado de tabu que pode ser correlacionado com as distingSes emergentes de classe (Sablins, 1981), Desde os primérdios do contato, a chefia havia’usado tabus para regular o tréfico com ‘© europeu, fazendo assim uma extensio de propésitos rituais para a prética, justificada pelas fungdes e significados antigos de pre- ccedéncia dos chefes. O grande Kamehameha, entre 1795 ¢ 1819, imps essas interdigées 8s épocas € aos termos de comércio com navios estrangeiros, com o interesse de evitar negécios por parte da populagao ou, pelo menos, de garantir que as demandas do consumo politico © aristocrético teriam prioridade sobre os inte esses populares por bens domésticos, No caso, 0 conceito de tabu, de coisas colocadas a parte para o deus, passou por uma extensio Wgica até haver uma transformagdo funcional. O tabu era cada vez mais usado como signo de direito material ¢ de pro- priedade, Podemos ainda ver essa forma final no Havai de hoje: nos numerosos avisos onde se 18 KAPU, que significa “entrada proibida”. ‘Essa utilizago comercial do tabu por Kamehameha ¢ por ou- tros chefes teve o significado para a populacio em geral de que aquelas restrigdes sagradas que (quando respeitadas) prometiam extrutura @ histéria a9 beneticios divinos, estavam agora diretamente contrapostas ao bea estar comum, Em Historical Metaphors, demonstro como © povo no hesitara entéo em violar tabus de todos os tipos, em um de- safio mais ou menos claro 80s poderes estabelecidos. As mulheres ‘quebravam aqueles tabus rituais que as deixariam confinadas as suas casas para se ocuparem de suas relagies amorosas com as tripulagées dos navios europeus. Esse tréfico apaixonado logo veio a ser um importante meio de atividade comercial popular com 0 uplo propésito de driblar os tabus dos sacerdotes © 0s neg6cios da chefia, © status sagrado do homem em relagéo & mulber ace- ou também 2 partir do momento em que viram que tinham os ‘mesmos interesses na transgresséo de tabus, Antigamente, ¢ no culto doméstico, homens eram tabu em relagéo # mulheres, assim ‘como chefes eram tabu em relagdo a0 povo, O tabu costava trans- versalmente todas as distingdes de posi¢éo social e, portanto, nesse aspecto no poderia ser privilégio exclusive da chetia. Ao contrério, © argumento era pela incluso da sociedade como um todo na chefia, mesmo que de forma subordinada, Agora a cl vagem de classe que se vinha desenvolvendo revisava as antigas proporgées do tabu e punha em evidéncia a oposigéo radical que cexistia entre chefes e povo, enguanto respectivamente tabu ¢ noa, ou “livre” de restriglo, Essa ¢ uma verdadeira transformagio es- trutural, ou seja, a redetinicto pragmftica das categorias alteran- do as relagdes entre as mesmas, © tabu agora sacralizava de for- Fenomenologia da Vida Simbélica Parcce-me haver algo a mais nessa tempestade num copo de égua do Pacifico Sul do que apenas uma possivel teorla da histéria, Hé também uma critica bésica as distingGes ocidentais através das quais geralmente se pensi a cultura, como as supostas oposi- Ges entre hist6ria e estrutura ou entre estabilidade © mudan- ca. Ufilizamos constantemente, em nosso folclore nativo assim como em nossas cincias ‘sociais académicas, essas dicotomias reificadas na divisio do objeto antropolégico. Nao ser ne- 180 thes de hisssria cessdrio lembrar-Ihes que a antitese entre histria e estrutura esté secramentada na antropologia desde Radcliffe-Brown e 0 apo- geu do funcionalismo, © foi confirmada mais recentemente pelo estruturalismo inspitado por Saussure. Porém, aquilo que sugere este breve exemplo havaiano, € que nfo hé base alguma em ter- mos de fenémeno — e, menos ainda, alguma vantagem heutis- tea — em considerar a histéria ¢ a estrutura como altemativas mutuamente exclusivas. A hist6ria havaiana esté, toda ela, basea- da na estrutura, na ordenagdo sistemética de circunstancias con- tingentes, ao mesmo tempo que a estrutura havaiana provou ser histérica, © que, entio, acontece com a oposigio coroléria entre esta- bilidade © mudanga? O pensamento ocidental pressupée, mais luma vez, que estas sejam antitéticas: contrérios I6gicos e ontol6- gicos, Efeitos culturais so identificados enquanto continuos com © passado, ou descontinuos, como se existissem tipos alternati- vyos de realidade fenomenal, em distribuigéo complementar em qualquer espago cultural. Essa distine’o atravessa em profundi- dade uma série inteira de categorias elementares organizadoras do saber comum: 0 estitico vs. 0 dintmico, ser vs. devir, estado ¥s. agio, condigdo vs. processo ¢, — por que nto incluir? — substantive em oposigio a verbo. A partir desse ponto, resta ape- ‘nas um pequeno passo l6gico até confundir histéria com mudan- $3, como se a persisténcia da estrutura através do tempo (pense- mos na pensée sauvage) nfo fosse histérica, Porém, mais uma vez, 2 histéria havaiana certamen’e nfo € tnica em demonstrar que a cultura funciona como ama sintese de estabilidade © mu- danga, de passado e presente, de diacronia e sincronia, Toda mudanga prética também 6 uma reprodugo cultural Por exemplo, a chefia havaiana, enquanto incorpora identidades ‘© meios materiais estrangeiros, reproduz o status c6smico do chefe ‘como um ser celestial vindo de Kahiki. Nesta mitopréxis da hie~ rarquia, 0 ariki polinésio, 0 primogénito real, “comece sua vida a época da criacéo do mundo”; ow para sermos mais exatos em termos de Havai, sua vida 6 a criagio (Koskinen, 1960:110; cf. Cap. 4). A chefia havaiana, segura de seus privilégios csmicos, pode incluir a aparigfo do capitio Cook em seus préprios termos mitopraticos. exirutura e histdria 181 No final, quanto mais as coisas permaneciam iguais, mais elas mudavam, uma vez que tal reprodugdo de categorias nfo & igual. Toda reprodugéo da cultura é uma alteragio, tanto que, na 240, as categorias através das quais o mundo atual € orquestrado assimilam algum novo conteédo empftico. O chefe havaiano para quem 0 “rei George” da Inglaterra servia de modelo de mana c= lestial néo é mais 0 mesmo chefe, nem tampouco esté na mesma relagio com seu povo. ‘Minha argumentagio & que esse diflogo simbélico da histé- ria — didlogo entre as categorias recebidas © 0s contextos per- cebidos, entre o sentido cultural ¢ a referéncia prética — coloca cem questio uma série inteira de oposigées calcifieadas, pelas quais habitualmente compreendemos ambas, a histéria e a ordem cul- tural, Nao quero dizer apenas estabilidade e mudanga ou estru- turae histéria, mas 0 passado enquanto radicalmente diferente do presente, sistema vs. evento, ow até mesmo o contraste entre infraestrutura e superestratura, O que proponho, portanto, se me agiientarem através de ume digresséo semifiloséfica, um tipo de ingénua filosofia da acto simbélica, € de explorarmos essas distingSes reificadas com vistas a descobrir sua sintese mais ver- dadeira, (© problema enfim recai na relagéo de conceitos cultarais ¢ experigncia humana, ou o problema de refeténcia simbélica: de como conceitos culturais izados de forma ativa para en- gajar 0 mundo. aquilo que esté em questo € a existéncia de esirutura na historia e enquanto hist6ria, Mas iniciarei de uma forma mais simples, fazendo duas observagées elementares, ne- nhuma das quais € novidade nem descoberta minha, A primeira € aquele venerdvel principio boasiano de que “o olho que vé & © érgio da tradigdo...”. A experigncia sociel humana consist: da aptopriagio de objetos de percepcio por conceitos gerais: ‘uma ordenacio de homens © dos objetos de sua existéncia que nunca seré a tinica & possivel, mas que, nesse sentido, € arbitréria hist6rica. A segunda proposicéo 6 de que 0 uso de conceitos convencionais em contextos empiricos sujeita os significados cul- turais a reavaliagdes préticas. As categorias tradicionais, quando levadss a agir sobre tm mundo com razées préprias, um mundo que por si mesmo potencialmente refratétio sfo transformadas, Pois, assim como o mundo pode escapar facilmente dos esque- 1 thas de hiatbria mas interpretativos de um dado grupo humano, nada pode ga- rantic que sojeitos inteligentes e motivedos, com interesses © bio- srafias sociais diversas, ulilizaréo as categorias existentes das ‘maneiras prescritas, Chamo essa contingtacia dupla de o risco das categorias na aco, ‘Mas primeito falemos da continuidade da cultura na agdo: © olho que vé enquanto érgio da tradigao. E dessa forma estou invocando uma longa tradigéo filos6fica, que pode ser tragada até Kant em especial e que foi continuada na linglistica por Seus- sure e por Whorf, assim como na antropologia social de Boas © Lévi-Strauss. Esses. (€ outros) ensinam que a experigneia de su- jeitos humanos, especialmente do modo como € comunicada no Giscurso, envolve uma apropriagio de eventos em termos de con- ceitos a priori. A referéncia ao mundo é um ato de classificagao, no curso do qual as realidades sto indexadas a coneeitos em uma relagio de emblemas empiricos com tipos culturais. Conhecemos © mundo como instancias légicas de classes culturais: “Capitio Cook é um deus.” Nao é como alguns acreditam, que tenhamos uma “necessidade” de classificar. A classificagio formal € uma ‘condigo intrinseca da ago simb6li Ou como diz Walker Percy (1958:138), 0 cardter sixabélico a consciéncia consiste no cotejamento de um objeto de petcep- ‘go € um conceito, por meio do qual os objetos de percepgio tor- nam-se inteligiveis para n6s € sio transmitidos a outros. “Toda percepeio consciente”, diz,Percy, “tem a natureza de um reconhe- cimento, um cotejamento, © que € 0 mesmo que falar que. ob- jeto € percebido como aguilo que €... néo é suficiente dizer que estamos conscientes de algo; estamos conscientes de algo como sendo alguma coisa.” — “Ble [Cook] é um deus.” Este econhecimento, porém, & uma espécie de reconhecimento: 0 even- to € insetido em uma categoria preexistente ea historia estd presente na agéo cotrente, © surgimento de Cook, vindo de além do horizonte, fora realmente um evento sem precedentes, jamais vislo antes, Mas, por assim abarcer aquilo que é realmente sin- gular naquilo que € conceitwalmente familiar, introduz o presente no passado, ‘© mesmo acontece na estrutura I6gica do discurso: 0 modo ‘como frases descrevem ow afirmam. Assimilando um tipo parti- cular (0 sujeito gramatical) no interior de um outro mais geral extrutura ¢ histbria 183 (0 tipo de ato ou atributo predicativo dele), a frase de proposi- ¢40 se desdobra igualmente como um ato de classificagéo sim- bolica: He akhua ia, Um deus ele “Ele € um deus.” © sujeito identifica um espago-temporal particular (em um mundo possivel): “Ele”, “Cook.” © predicativo descreve por meios ge- zais relativos: “deus.” Muitos filésofos reconheceram esta hierar- quia de tipos légicos do discurso, Strawson, por exemplo: Dois termos acoplados em uma sentenga vetdadeira estéo respectivamente em posigdo refereacial ¢ predicativa, sc aqui Jo que o primeiro termo designa ou significa for uma instin- cia do que o segundo termo signifies. De itens deste modo relacionados (ou cs termos que se designam ou significam) pode-se dizer que s40 respectivamente de tipo [l6gico] su- perior ou inferior, (Strawson, 1971:69) Poderiamos resumir, pelo que foi visto até 0 momento, que nfo hé tal coisa que seja a imaculada percepco. “A represen- tagio ‘objetiva’", como diz Cassirer, “nfo é ponto de partida para © processo de formagéo da linguagem, mas sim 0 ponto de che- gada... A Jinguagem nfo entra em um mundo de percepgbes completamente objetivas apenas para adicionar aos objetos — ji dados e claramente distinguiveis uns dos outros — ‘nomes’ que seriam somente signos extemos e arbitrérios; ela propria é uma mediadora na formacio dos objetos” (1933:23). Esta constituigo da objetividade dos objetos 6 conseqtiéncia direta da posicfo saussuriana de assinalar o cardter “arbitrério” do sistema simbélico: oma certa découpage das continuidades possiveis do sentido, implicando uma segmentagio do mundo em referéncia enquanto funcio das relagOes entre signos de caréter interno 2 Lingua (valor lingtifstico). As categorias pelas quais a experiéncia € conslitufds nfo surgem diretamente do mando, mas de suas relagoes diferenciais no interior de um esquema simbé- ico. O contraste que existe no francés entre! fleuve ¢ rivigre im- plica uma segmentagio de objetos fluviais diferentes das ver- 14 ‘thas de historia ses usuais do inglés, que seriam “tio” e “riacho”.* No entanto, fos termos franceses nfo esto bascados em tamanho relativo como esto os ingleses, mas sim no fato de se dguas correm para © oceano ou no (cf. Culler, 1977). De modo semelhante vemos que a distingo inglesa (ou francesa) entre “deus” e “homem” no & igual 20 seu aparente paralelo havaiano de akua ¢ kanaka, porque kanaka, utilizado para designar “homens (comuns)", esti em posigio de contraste de definigéo com alii ou “chefe”, Em havaiano, “chefe” e “deus” so transitivamente iguais por oposi- ‘so aos homens. Nem corresponderia esta diferenca entre deuses ¢ homens Aguela entre espititos e mortas, jé que alguns mortais (0s chefes) também sio deuses, Nio existe ponto algum de partida para esses esquemas na “realidade”, como escreve Stuart Hamp- shire a0 observar que alguns fildsofos acteditavam que howvesse (1967:20). Ao contrério, cada esquema cultural particular cria as possibilidades de referéncia material para pessoas de uma dada soviedade, enquanto esse esqueia € constituido sobre distingdes de principios entre signos que, em relago aos objetos, nunca sév as Um:eas distingdes possiveis. Ou para citar o antecessor de Saus- sure, Michel Bréal: nko ha divida de que a lingua designa coisas de modo in- completo € inexato ...Substantivos S20 signos ligados a coi sas: eles incluem somente parte da vérité que possa ser abar- cada por um nome, uma parte que é tanto mais fracional quanto mais realidade tenha o objeto. se tomo um ser real, um objeto existente na natureza, serd impossivel para 2 lingua pér no mundo todas as nogdes que este objeto des- perta na mente. (Bréal, 1921:178-79) Bréal est6 falando da desproporgio inevitével entre a ingua, qualquer que seja, € 0 mundo: “As nossas linguas esto conde- adas uma felta de proporedo entre a palavra e a coisa, A ex- pressio 6 por vezes, ampla em demasia, por outras restrita de- mais” (Ibid., p. 107). Poderiamos dizer que é sempre ambas, desde que os objetos de referéncia sejam ao mesmo tempo mais par- + No original, “river” and “stream™; ot termos em portugués também Ho bareados em tamanho relative. (N.T.) estrutura ¢ histéria 15 ticulares ¢ mais gerais do que as expressdes utilizadas para desig- ndslos. Os objetos sio mais particulares enquanto emblemas em lum espago-tempo especitico do que os signos, enquanto catego- rias ou classes conceituais. Por outro Indo, as coisas so mais ge- rais do que suas expressdes, por apresentarem sob a forma de ex- periéncia mais propriedades ¢ relagdes do que poderiam ser esco- Ihidas e valorizadas por qualquer signo, Assim temos aquele co- nhecido principio: de que € impossivel esgotar a descrigho de qualquer objeto. Portanto o signo, enquanto sentido, se toma duplamente ar- bitrério na referéncia: xo mesmo tempo uma segmentagéo relati- va e uma representagio seletiva, Conclui-se da natureza arbitrs- ria do signo que a cultura €, por sua propria natureza, um objeto hist6rico, Saussure, famoso neturalmente por fazer a distingfo en- tre pontos de vista diserénicos e sincrénicos no sentido da Iin- gua, foi o primeiro a admitir, no entanto, ¢ sempre insistin nisso, que um sistema lingiistico é inteiramente histérico. B hist6rico porque 6 arbitrério: por nfo refletir simplesmente o mundo exis- ‘ente; mas, pelo contrétio, porque ma ordenacéo dos objetos exis- tentes pelos conceitos preexistentes, a lingua ignoraria 0 fluxo do momento. A totalidade e a particularidade de objetos Ihe es- ‘capam. Entdo, inversamente, o sistema € arbitrdrio porque € his- t6rico. © presente, seja 14 qual for, € reconhecido enquanto pas- sado. © paradoxo de certas ordens culturais consideradas como téricas” € que elas insistem inteiramente em um “approche istoricisante du monde” (tomando-se emprestada uma frase de Délivré {1974}. Vimos que Cook jé era uma tradigéo para os havaianos antes de se tornar um fato, Por outro lado, as realidades empfricas em todas as suas particularidades jamais poderio corresponder aos mitos, mem 0 poderia Cook enquanto homem corresponder ao exaltado status aque Ihe pretendiam atribuit, Isso nos traz A segunda consideragio geral de nossa digressio, as formas elementares da vida simbé- Tica: o risco da ago cultural, que € o risco das categorias em re- feréncia, As pessoas colocam, na ago, seus conceitos © catego rigs em relagbes ostensivas com o mundo, Esses usos referenciais ‘poem em jogo outras determinacdes dos signos, além de seus sig- nificados recebidos, ou seja, 0 mundo real e as pessoas envolvi- das. A. praxis €, portanto, um risco para os significadas dos sig- 186 has de histéria nos na cultura da maneira como esté constitulds, do mesmo modo como o sentido € arbitrario em sua cepacidade enquanto refe- réncia, Como o mundo tem propriedades préprias, ele pode vir a se mostrar intratdvel, podendo muito bem negar os conceitos que Ibe sejam indexados, A hubris simbélica do homem se torna uma grande aposta feita com as realidades empiricas. Esta aposta € de que a agio referencial, que coloca os conceitos a priori em correspondéncia com objetos externos, implicaré alguns efeitos imprevistos que nfo podem ser ignorados, Além disso, a ago enyolve um sujeito (ou sujeitos) pensante(s) relacionado(s) a0 signo na posiglo de agente(s). O esquema cultural € colocado em uma posi¢ao duplamente perigosa, isto é, tanto subjetiva quanto cobjetivamente: subjetivamente pelo uso motivado dos signos pe- las pessoas para seus projetos prOprios; objetivamente, por set © significado posto em perigo em um cosmos totalmente capaz de contradizer os sistemas simbélicos que presumivelmente 0 descreveriam. ‘A apos'a objetiva reside, portanto, nas desproporgées entre alavras e coisas, Toda implementacdo de conceitos culturais em um mundo real submete esses conceitos a alguma determinagio pela situaglo. Isto € aquilo que jé foi descrito como a reavalia- 20 funcional dos signos; por exemplo, a reavaliagio do conceito de tabu havaiano, Pois signos como “tabu” so notoriamente po- lissmicos: eles tém muitos sentidos possiveis, enquanto virtuais ‘ou na sociedade em geral. O “tabu” quando realizado, quando uttizado em um conceito especifico tal como a regulamentagio do comércio, € valorizado em algum sentido seletive. Um signi- ficado € posto em primeiro plano em relagéo a todos os outros significados possiveis. Ao mesmo tempo a referéncia & feita a par- ticulares concretos que ndo slo iguais a todos 0s usos_prévios, No evento, a estratura do campo semintico € revista (ef. Lyons, 1977:1:250s.). A idéia de tabu tem sido objetivada como um direito comercial e de propriedade, um sentido que pode vit a set generalizado pelos poderes das pessoas que o impdem — tendo efeitos reciprocos nas definigées e nas relagdes dessas pes- soas ¢ de seus poderes, O “tabu” assim emerge da agfo com um residuo empirico. © mundo dé uma certa carga a idéia. rrisco subjetivo consiste da possivel revisio dos signos pe- Jos sujeitos ativos em seus projetos pessoais. A contradigio surge ‘extrutura ¢ histbria ast da inevitivel diferenga entre o valor do signo em um sistema simb6lico, ou seja, suas relagées semlnticas com outros signos € seu valor para quem o utiliza O signo, no sistema cultural, tem um valor conceitual fixado por contraste « outros signos; quando na ago, o signo também ¢ determinado como um “inte- esse”, que & seu valor instrumental para o sujeito ativo. Lem= ‘brem-se de que a palavra “interesse” deriva de uma constragdo impessoal do latim (inter est) que significa “isso faz uma dife- renga”, Porém, se 0 interesse por alguma coisa é a diferenga que faca para alguém, paralelamente ¢ em outro plano, Saussure de- finiria entfo o signo como um valor conceitual, Enquanto concei- to, 0 Signo & definido por relagdes diferenciais com outros signos. © significado de “‘azul” € determinado pela coexisténcia na Iin- ‘gua de outras palavras como o “verde”, Se, como 6 verdade para rmuitas linguas naturais, no existise o “verde”, 0 termo “azul” (ou “azerde”) teria maior extensSo conceitual e referencial: tam- ‘bém cobriria © campo que, em nossa lingua, chamamos de “ver- de”, © mesmo vale para Deus, o Pai, a nota de um déler, a mater- nidade ¢ 0 filé mignon: cada um tem um sentido conceitual de acordo com sua posi¢do diferencial no esquema total de objetos simbélicos. Por outro lado, 0 objeto simbblico representa um interesse diferencial para diversos sujeitos, de acordo com a sua posi¢fo em seus esquemas de vida. “Interesse” ¢ “sentido” sio dois lados da mesma coisa, ou seja, do signo, enquanto este é respectivamente relacionado a pessots © a outros signos. No en- tanto, meu interesse em algo nio 6 igual a0 seu sentido. A definigdo de Saussure de valor lingiistico ajuda a fechar 8 questo, por ser formulada em uma analogia com o valor eco- ‘némico, © valor de uma moeda de cinco francos 6 determinsdo pelos objetos dessemelhantes pelos quais ela pode ser trocads, tais como uma certa quantidade de pio e leite © por outras uni- dades de moeda, &s quais pode ser comparada por contraste: um franco, dez francos etc. Por essas relagoes 6 que se determina © valor que cinco francos tém para mim, Para mim, ele surge como um valor instrumental ow interesse especitico e se compro. pio ou leite com ele, se 0 dou ot o coloco no banco, isto val depender de meus objetivos e de minhas circunstincias particula- res, Do modo como for implementado pelo sujeito ativo, o valor 188 thas de histiria conceitual adquire um valor intencional — que pode muito bem ser diferente de seu valor convencional. Da maneira como 0 signo for posto em acéo, ele estaré su- jeito @ outro tipo de determinagio: aos processos de consciéacia ¢ inteligéncia humana. Nao mais um sistema semi6tico virtual ou desencarnado, 0 significado agora esta em contato com os pode- res humanos originais de sua eriagdo, Nfo hé razio para crer — apesar da crenca ser 0 a priori de certas formas de relativismo lingiifstico — que esses poderes criativos fiquem suspensos uma ‘vez que as pessoas tenham uma cultura, Pelo contrério, os sig- nos na ado sio ineluidos em vérias operagées l6gicas, como me- téforas e analogias, redefinigdes de intensidade ¢ de extensio, es- pecializagées ou generalizagdes de sentido, deslocamentos ou substiiuigdes, para nao falar de “mal-entendidos” criativos. E. por- que 0s signos sto engajados em projetos por interessses e, dessa forma, em relagdes temporais de envolvimento e nio apenas em relagoes simultaneas de contraste, seus valores so arriscados, por assim dizer, sintagmaticamente ¢ no apenas paradigmaticamente. Essas utilizagGes interessadas ndo so meramente imperfeitas por relagio com os ideais plat6nico-culturais, mas sio potencialmente inventivas. Vimos como os chefes havaianos puderam reconhecer © seu mana nos bens extravagantes dos mercadores estrangeiros, em oposigio as coisas mais rudes ou as utilidades domésticas. Os bens oferecidos para troca eram administrados de acordo com as autoconcepgées dos chefes. O significado do mana softeu uma mudanga através da metéfora motivada de luminosidade celes- tial, cuja \6gica recebia da cultura tradicional sua razio de ser, conforme descoberta, entretanto, na situagio existente por uma ceria intencionalidade Antitese © Sintese Dades essas compreensées fenomenolégicas, seguem-se certas re- flexdes eriticas concerentes 3s dicotomias procrustianas da sa bedar'a académica Em um certo estruturalismo, historia ¢ estrutura sfo antino- mias; supde-se que uma negue @ outra, Jéna natureza da agio ‘estrutura e histéria aso simbélica, sincronia e diacronia coexistem em uma sintese indi solivel. A acdo simbélica € um composto duplo, constituide por um passado inescapével ¢ por um presente irredutivel. Um pase sado inescapivel porque os conceites através dos quais a expe- ritncia € organizada e comunicada procedem do esquema cultu- ral preexistente, E um presente irredutivel por causa da singula- tidade do mundo em cada agio: a diferenga heraclitiana entre a experiéncia tinea do rio (ou fleive) © seu nome. A diferenga re- side na irredutibitidade dos atores especificos e de seus conceitos empfricos que nunea sio precisamente iguais a outros atores ou a outras situag6es — nunca é possivel entrar no mesmo rio duas vezes. AS pessoas, enquanto responséveis por suas préprias agées, realmente se tormam autoras de seus prdprios conceltos; isto 6, tomam a responsebilidade pelo que sua propria cultura possa ter feito com elas. Porque, se sempre hé um passado no presente, um sistema a priori de interpretagio, bé também “uma vida que se deseja a si mesma” (como diria Nietzsche). Isto é 0 que Roy Wagner (1975) deveria estar querendo dizer com a “invengio da cultura”: a inflexio empirica especifica de significado dada a con- ceitos culturais quando estes sfo realizados como projetos pessoais Mais uma vez, é necessério insistir em que a possibilidade do presente vir a transcender 0 passado ¢ 20 mesmo tempo Ihe per- manecer fiel depende tanto da ordem cultural quanto da situa- ‘do prética, Para iniciantes, existem todos os tipos de “approches Kistoricisantes du monde”, Em hopi, como Whort demoastroa, no € gramatical supor que “amanha ser um novo simplesmente amanha € 0 mesmo dia que volta envelhecido. Além disso, hd o sistema social, e nos sistemas sociais existem poderes Giferenciais. Vimos que no Havai, qualquer que tenba sido a in- terpretagdo dada pela populagio 20 eapitio Cook, of sacerdotes € 08 chefes tinham o poder de objetivar suas opinides por meio ce ceriménias rituals e, nfo somente isso, podiam também obti- gar 0 povo a render tributos materisis a tais opini6es. Ov, nova- mente, tudo aquilo que jé foi dito sobre sociedades herdicas (Cay 1) sugere capacidades diferenciais dos poderes estabelecidos pera transformarem suas inovagSes pessoais em compreensbes gerais. Giddens (1976) coloca 0 didlogo de agéo (“estrummragio”) de 190 ‘thas de historia forma geral, referindo-se & dualidede de estrutura como um con- ‘ceito preexistente e como uma conseqiiéncia nfo-intencional — ‘sem tampouco se esquecer das conseqiiéncias intencionais das pes soas que estio no poder. Essa fenomenologia que estivemos dis- ccutindo petmanecerd “ingénua” enguanto continvar a ignorar que ‘8 agdo simb6lica € tanto comunicativa quanto conceitual: um fato social retomado nos projetos e nas interpretagées dos outros. Desse modo € que a “estrututa da conjuntura” entra aqui: a som ciotogia de situacdo das categorias culturais com as motivagSes que oferece aos riscos de referéncia © 3s inovagdes de sentido. Uma prética antropoldgica total, contrastando com qualquer re- dugio fenomenolégica, nfo pode omitir que a sintese exata do pasado ¢ do presente € relativa & ordem cultural, do modo como se manifesta em uma estrutura da conjuntura especifica. Mais ainda, 0 caso havaiano j4 n0s mostrou, mesmo com toda a sua historicizag’o do mundos, que nfo ha base alguma nem razio para a oposicio excludente entre estabilidade e mudanca. Todo uso efetivo das idéias culturais 6 em parte reprodugéo das, mesmas, mas qualquer uma dessas referéncias também &, em parte, uma diferenga, De qualquer jeito, n6s ja sabiamos disso. As co sas devem preservar alguma identidade através das mudangas ou © mundo seria um hospfcio. Saussure articulou o principi “Aquilo que predomina em toda mudanca & a persisténcia da substincia antiga: a desconsideraglo que se tem pelo passedo apenas relative, B por esta razko que o principio da mudanga se baseia no principio da continuidade” (1959:74). Mas, em uma ceerta antropologia e notoriamente no estudo da histéria, isola- ‘mos algumas alteragdes € as chamamos de “eventos”, em opo- sigdo a “estruture” Esta realmente 6 uma distingdio pemiciosa, se apenas pelo motivo relativamente trivial de que toda estrutura ou sistema € ‘eventual em termos fenomenol6gicos. A ordem cultural, enquanto Jum conjunto de relacdes significativas entre categorias, & apenas virtual, Existe meramente in potentia. Portanto, 0 significado de qualquer forma cultural especifica comsiste em seus usos pat cxfares na comunidade como um todo. Mas este significado & rea- lizado, in presentia, apenas como eventos do discutso ou da acéo. (© evento & a forma empftica do sistema. A proposigéo inversa, 1a de que todos os eventos sio culturalmente sisteméticos, & mais estrutura e hisibria 11 significante, Um evento é de fato um acontecimento de significin- cia e, enquanto significincia, é dependente ma estrutura por sua ‘existéncia e por seu eftito, "Eventos no esto apenas alii ¢ acon- tecem”, como diz Max Weber, “mas tém um significado e acon- tecem por causa deste significado.” Ou, em outras palavres, um evento no € somente um acontecimento no mundo; 6 a relagio entre um acontecimento ¢ um dado sistema simbélico. E apesar de um evento enquanto acontecimento ter propriedades “objeti- ‘vas" préprias ¢ razbes procedentes de outros nmundos (sistemas), nado so essas propriedades, enquanto tals, que Ihe dio efeito, mas 2 sua significdneia, da forma que & projetada a partir de algum esquema cultural. O evento & a interpretagio do acontecimento, ¢ interpretagdes.variam, Considerem mais uma vez a apoteose dos ingleses no Havai, ¢ também sua queda eventual desse estado de graga, O capitio ‘Cook era verdadeiramente um grande homem (ou pelo menos assim pensamos), mas nada havia de inerentemeate divino na mancira pela qual conduziu seus navios para dentro daquela bafa havaiana, quanto mais algo que representasse o retorno de Loto, 0 antigo deus da fertilidade e do povo, como supuseram ‘0s havaianos. Por esse motivo, havia dez mil pessoas aglomera- das na praia para comemorar 0 retorno de Cook em 1779, Raras vezes 0 colonialismo gozara de tio auspicioso inicio. Por outro lado, quando as mulheres comeraram a viver © comer com a trie pulago a bordo dos navios britinicos, surgiram sérias divides ‘a respeito da divindade do estrangeito, Nao ha nada de ineren- temente irreligioso no fato de haver comensatidade com mulhe- res — excelo que, no sistema havaiano, isso polui ¢ destréi o tabu dos homens, Os eventos niio podem ser entendidos, portan- to, separados de seus valores corespondentes: & a significtncia que transforma um simples acontecimento em uma conjuntura fatal, Aquilo que parece para alguns como um mero encontro para o almogo, para outros um evento radical. Entio, cf esta- ‘mos separando judiciosamente sistema e evento por atos herdicos de teoria académica, enquanto o fato simbélico humano € de que indo existe evento sans sistema, Os erros antropolégicos (ou histéricos) gémeos, o materin- lismo ¢ © idealismo, consistem claramente em tentativas de ligar 12 thas de histria ificdncia prenhe de sentido a uma relagio mecinica ou “fisicalista” de causa e efeito, Para o materialismo, a significdn- cia € efeito direto das propriedades objetivas do acontecimento. Ignorando, portanto, o valor relativo do sentido dado pela socie- dade a0 acontecimento. Enquanto que, para o idealismo, 0 acon- tecimento € simplesmente 0 efeito de sua significdncia, ignoran- do, assim, sua carga de “realidade”: as forgas que tm efeitos reais, mesmo que sempre em termos de algum esquema cultural ‘© mesmo é vilido para a teoria e a pritica, se as tomarmos como alternativas de natureza de fenémeno: essa distingéo obje- tivada entre conceitos culturais © atividades préticas ¢ falsa na pritica e absurda na teoria. Toda préxis & tebrica, Tem sempre inicio nos conceitos dos atores € nos objetos de sua existéncia, nas segmentagées culturais e nos valores de um sistema a priori Portanto, nfo hé materiatismo algum que no seja histético. Marx jé 0 dissera, mas um certo marxismo contemporéneo € de modismo, confuso pela oposi¢do entre teoria e pritica, nega esse fato, Considerem 2 afirmacio feita por Hindess e Hirst Os eventos his'6ricos no existem [em] e nfo podem ter efetividade material alguma no presente. As condigdes de cexisténcia das relagoes sociais atuais existem necessariame te © sio reproduzidas constantemente no presente, Nao foi ao “presente” que o passado se dignou a nos dar acesso, mas sim 2 “situagio atual”... Toda teoria marxista, por mais abs'rata que seja, existe para tornar possivel a andlise da situagio atual, Uma andtise hist6rica da “‘situagio atual”” é impossivel, (Hindess ¢ Hirst, 1975:312) No entanto, a cultura & justamente a organizagio da situa- gio atual em termos do pasado. Nem tampouco existe infra- cestrutura sem superestrutura, pois, “em dltima anélise”, as ca- tegorias pelas quais se define a objetividade sfo, elas mesmas, cos- mol6gicas — do mesmo modo que, para os havaianos, 0 advento dos britinicos foi um evento de dimens6es universais cujas, ex- presses orientadoras eram os conceitos de mana, akua e & geogra- fia celestial de Kabiki (as origens espirituais), Se a pritica, entso, postulou a correspondéncia estrutural entre 0s chefes havaianos © 6s europeus preeminentes, enquanto opunha ambos & populagio cextrutura © hist 188 havaiana em geral, isso se tomaria a organizagio do comércio ‘material ¢ também da identidade pessoal — sem mencionar que ela (a prética) aparece de forma decisive nos eventos histéricos, tais como a rivalidade entre 0 capitéo Cook ¢ o rei havaiano que provow ter sido desastrosa para o Grande Navegedor. A préxis se desdobraria como a exclusfo relativa do povo dos bens ‘europeus, especialmente daqueles colocados ma categoria havaia- na de itens de prestigio ¢ apresentando cenas como as de “Billy Pitt” Kalaimoku e “John Adams” Kuakini exibindo-se em robes de seda chinesa ¢ coletes europeus, em aposentos decorados com finos mbveis de teca ¢ espelhos decorados ou em jantares ser- vidos em servigos de prata pura. O povo afundava-se progressi- vamente na miséria, da qual até hoje ndo se recuperou, Nem tampouco a prética pode ser retomada simplesmente em seus efci'os pela superestrutura, como uma consciéncia distorcida che= gada a0 paleo da histéria, por assim dizer post festurm, Pois, j6 vimos que as utiidades do comércio estavam constantemente sujeitas a definigio pelas demandas de consumo da chefia, De modo que aquilo que aparece nos livros de contas ¢ nas cartes dos mercadores de Boston, no Havai, documentando mudangas nas demandas por armas de fogo, suprimentos navais ou esse ou aqucle tipo de tecido de cashmere, representa intimagSes.politi- ‘camente contextuais da divindade polinésia. © mercado era uma condigio irredutivel da prévis material, onde os pregos erem atribufdos com base nas inevitiveis concepgbes polinésias de mana, Poderfamos continuar fazendo semelhentes observagbes (“des- construgdes”) sobre as sfnteses histOricas dessas dicotomias radicais, como 0 “individual” © 0 “coletivo” ou o “real” © 0 “ideolégico". Mas j6 foi dito o bastante, porque essas oposighes sfo apenas outras tantas expressOes andiogas da mesma conere- tude deslocada, A questo mais verdadeica jaz no diglogo entre sentido ¢ referencia, visto que a referencia poe o sistema de sentido em situagio de risco em relagio a outros sistemas: 0 sujeito inteligente © 0 mundo intransigente. E a verdade desse didlogo maior comsiste da indissolivel sintese de coisas como passado ¢ presente, sistema e evento, estrutura e hist6ria. 194 thes de histdria Notas [Na primeira parte deste trabalho fago.um breve resumo de certos eventos © processor histricos que foram discutidos mais detalhada- mente em Hisiorical Metaphors (Sablins, 1981). O objetivo aqui é de retomar e desenvolver a teotia hist6rica presente naquele trabalho anterior. Este incidente 6 descrito em Cook « Kings (1784, 2:245.46), Diério de King 9 jon, 1778) ¢ no ditrio de Bumey (24 jan 1778), entre outros — notavelmente um relato especialmente bom, mas que varia um poueo, feito por Beyly (Diério: 24 jan, 1778). 0. dist de Clerke (Adm. 55/22:24 jan. 1778) também dercreve vi posterior de Kaneoneo bordo do Discovery. Este comentério aparece em uma carta do comerciante James Hun- newell a JP. Sturgis & Co., 30 dez. 1829 (Hunnevell Papers). Além dot Hunnewell Papers ¢ de difrioe de outros comerciantes que esti ha Biblioteca Baker, uma boa compreensio do comércio americano durante 0 perlodo do sindslo pode ser obtide na correspondénci de John C. Jones ou de Marshall & Wilder na Biblioteca Hough- (on, Harvard. Excelentes resumor da histéria econtmica do Haval rot fine do séeulo XVII e ineioe do XIX podem set encontrados fem Bradley (1968{19431) Morgan (1948)

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