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PARA CONTER E SUPERAR A EXPANSAO DO PODER PUNITIVO Maria Liicia Karam Juiza de direito aposentada Auditora da Justia Militar Federal Coordenadora do Instituto Brasileira de Ciéncias Criminais (IBCCrim) no Estado do Rio de Janeiro Resumo: A autora analisa a ampliagiio do poder punitivo do Estado, e isto em uma sociedade capitalista pés-industrial e globalizada marcada pela desigualda- de e exclusiio. Apresenta caracteristicas ¢ elementos de legislacées de cunho autoritario para, em seguida, trabalhar esses elementos na legislacao brasileira, que leva & expansao da pena privativa de liberdade, mas também & ampliagaio do espago e das estratégias de punig&io do Estado. Enfim, a autora defende a prevaléncia dos principios garantidores contra essa ampliagao do poder do Estado de punir, propondo uma inversio das tendéncias criminalizadoras e a construgdo de outras bases para a sociedade contemporanea. Palavras-chaye: Poder punitivo do Estado; tendéncia criminalizadora; legisla- 40 autoritéria; prineipios constitucionais; abolicao do sistema penal. PARA CONTENER Y SUPERAR LA EXPANSION DE PODER PUNITIVO. Resumen: La autora analiza la ampliacién del poder punitivo del Estado, y esto en una sociedad capitalista pos-industrial y globalizada marcada por la desigualdad y exclusién. Presenta caracteristicas y elementos de legislaciones de cufio autoritario para, enseguida, trabajar esos elementos en la legislacién brasilefia, que leva a la expansién de la pena privativa de libertad, pero también a la ampliacién del espacio y de las estrategias de punicién del Esta- do. En fin, la autora defiende la continuidad de los principios garantizadores contra esa ampliacién del poder del Estado de punir, proponiendo una inversion de las tendencias criminalizadoras y la construccién de otras bases para la sociedad contempordnea. Palabras-clave: Poder punitivo del Estado; tendencia criminalizadora; legislacién autoritaria; principios constitucionales, abolicién del sistema penal. \Veredss do Direto, Belo Horizonte,» v3 -n. 5+ p. 85-113. Janel Junho de 2006 95 PARA CONTER © SUPERAR A EXPANSKO 00 PODER PUNITIVO 1. A “pés-modernidade” ¢ a ampliagio do poder punitivo As tiltimas décadas do século XX marcam 0 inicio da etapa hist6- rica que, identificada como a “pés-modernidade”, se caracteriza por uma inquestionada dominancia das formagées sociais do capitalismo pés-indus- trial e globalizado. Esta nova etapa, propiciada por um excepcional desenvolvimento das forcas produtivas, motor da revolugdo cientifico-tecnolégica, traz reformulagdes mais ou menos profundas na estrutura e nas relagdes de produgdo capitalistas. Os enormes avangos e conquistas da revolugao cien- téfico-tecnolégica se fazem acompanhar, porém, de uma simultanea e cres- cente incapacidade de solugao dos desequilibrios e problemas gerados por aquele proprio desenvolvimento excepcional das forgas produtivas. A automacao da produgao com a queda estrutural nos niveis de emprego, a volatilidade de capitais e sua concentrag’o em empresas transnacionalizadas, a diluigdo das fronteiras e do espago de soberania dos Estados nacionais, a desregulamentagdo do mercado, a redug3o da inter- vengiio social ¢ assistencial do Estado, estes e outros fatores aprofundam o processo de desigualdade e exclusio, provocando o crescimento da quanti- dade de marginalizados, excluidos das préprias atividades produtivas. As novas possibilidades técnicas da comunicagdo, rompendo com as delimitacdes espaciais e temporais, facilitam a percepgio dos riscos que acompanham nao s6 as atividades produtivas, como quaisquer outras ativi- dades (¢ sempre acompanharam, apenas se diversificando conforme se di- versificam tais atividades), dando-lhes uma dimensio globalizada e assusta- dora. O risco é percebido, no somente enquanto um resultado possfvel da agiio — resultado que pode, portanto, ter conseqiiéncias positivas ou negati- vas —, mas sempre sob uma forma negativa, como uma ameaga, a colocar no centro das preocupagdes a busca de um ideal de seguranga.! RelacGes sociais que seguem a légica do mereado, caracterizan- do-se pelo individualismo, pela competigao, pelo imediatismo, pelo egofsmo, pela auséncia de solidariedade no convivio, favorecem ainda mais esta per- cepeiio negativa dos riscos, gerando fortes sentimentos de incémodo e de " Referéncia na discussto do risco na atualidade é, certamente, a obra de Niklas Lubmann € Raffaele De Glorgi. Consulte-se, por exemplo, a Teoria della Societd (7* ed. Milano: Franco Angeli, 1995). 96 Voredas do Dit, Belo Horizonte, v.9-n. 5 p.95-113- Janeiro-Junto de 2005 ria Lela Karan medo, entronizadores de cegos anseios por seguranca. Por outro lado, o desmoronamento das tradugées reais do socia- lismo e 0 indispensdvel reptidio as perversidades totalitarias, que desvirtua- ram a concretizagao dos ideais libertérios e igualitarios, encontrados na raiz do sonho socialista ~ e que, no que resta destas contrafagdes do socialismo, continua a desvirtuar ~, no conseguiram produzir a reformulada constru- cao de novas utopias emancipadoras. Antigos ideais transformadores se trocaram por desejos mais imediatos de conquista de cargos no aparelho de Estado, por pragmatismos politico-eleitorais, que, submetidos aos ditames de uma opinio, formada e traduzida por uniformizadores érgdos massivos de informagao, acabaram por fazer com que pouco se diferenciem preocu- pacoes, discursos e préticas, fazendo acreditar que a contraposicao entre direita e esquerda teria mesmo perdido sua raziio de ser? Um tal quadro reaviva premissas ideolégicas de afirmacdo da autoridade e da ordem, fazendo surgir uma generalizada opgdo preferencial por uma maior intervengao do sistema penal que é apresentada por quase todos 0s politicos dos mais variados matizes como resposta aos anseios individuais por seguranga. Dentro de um vitorioso Estado minimo da pregagao neoliberal faz- se presente um simultaneo e incontestado Estado maximo, vigilante e onipresente, O Estado maximo, vigilante e onipresente, manipulaa distorcida percepeao dos riscos, manipula o medo e 0s anseios de seguranga, manipula uma indignago dirigida contra os inimigos e fantasmas produzidos pelo pro- cesso de criminalizacio ¢ se vale de ampliadas técnicas de investigacio e de controle, propiciadas pelo desenvolvimento tecnolégico, para criar novas e dar roupagem “p6s-moderna” a antigas formas de intervengdo e de restri- ges sobre a liberdade individual. Os pretextos de repressio & criminalidade, convencional ou nao, conduzem a um autoritarismo que vai ocupando espaco no interior dos Esta- dos democraticos. Como aponta Zaffaroni, trata-se de um autoritarismo cool, que mantém as estruturas formais do Estado de direito, mas reforga o Estado policial que sobrevive dentro dele.? Por ser assim cool, esse * Sobre a indiferenciagdo entre preocupagoes, discursos e priticas de direita e esquerda, relaciona- dos ao sistema penal, reporto-me ao que escrevi no ensaio ““A Esquerda Punitiva”, publicado as pAginas 79 a 92 do primeiro nimero da Revista Discursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade (Rio de Janeiro: Relume-Dumaré, 1° semestre 1996), » Em seu derecho penal ~ parte general (Buenos Aires: Ediar, 2000), Eugenio Rail Zaffaroni desenvolve o tema relacionado & tensio estabelecida entre os principios do Fstada de direito © as Veredas do Dro, Belo Horizonte, «v.94. 5+ p. 95-113. Janeiro Junho de 2008 97 PARA CONTER E SUPERAR A EXPANSAO 00 PODER PUNITIVO autoritarismo nao se revela aos olhos distrafdos da maioria, que, voltada para seus cegos anseios de seguranga, aprova e aplaude os avangos do poder punitivo coneretizado na intervengao do sistema penal. A opsiio preferencial pela maior intervengao do sistema penal pro- duz uma desmedida ampliagdo do poder punitivo, acabando por aproximar democracias a Estados totalitarios. A ideologia do sistema penal e 0 discurso que o legitima, mais e mais, se identificam a ideologia e ao discurso legitimador da guerra tornada preventiva ou do combate aos dissidentes nos remanescentes Estados tota- litdrios. A figura do “inimigo” se confunde nos perfis do “criminoso”, do “terrorista” ou do “dissidente”. Uma propagandeada situagao de emergéncia, representada no que se refere ao sistema penal propriamente dito por um propagandeado au- mento incontrolavel da criminalidade tradicional, ou por uma suposta transnacionalidade criminosa, ou por uma indefinida e indefinivel “criminalidade organizada”, vai dando lugar & paradoxal expansio, no inte- rior de Estados de direito, de autoritérias legislagdes de excegao que, aban- donando princfpios garantidores, que, afastando o primado das declaragées universais de direitos e das Constituigées democraticas, que, criando espa cos de suspensio de direitos fundamentais, ampliam a presenga do Estado policial e ameacam a prépria subsisténcia da democracia. 2, A ampliac&o do poder punitivo e as autoritdrias legislagdes de excegao As autoritérias legislagdes de excegdo, que se expandem no inte- rior de Estados de direito, criando espagos de suspensio de direitos funda- mentais, ampliando a presenca do Estado policial e ameagando a prépria subsisténcia da democracia, incorporam ao sistema penal a criminalizagao antecipada, tipificando atos preparatérios ou utilizando tipos de perigo abs- trato igualmente antecipadores do momento criminalizador, Com isso vulneram o principio da lesividade da conduta proibida, diretamente decor- rente do principio da proporcionalidade. manifestagdes do Estado policial sobreviventes em seu interior, destacando que, como demonstra a histéria, no existem Estados de direito reais (historicamente determinados) que sejam puros ou perfeitos, mas apenas Estados de direito historicamente determinados que controlam e contém, methor ou pior, aquelas manifestagdes do Estado policial sobreviventes em seu interior. 98 \Veredas do Direito,BeloHorizont,« v.2+n 5+ p. 95-113. Janeiro - Junho de 2008 Maria Lieia Karam Essas autoritarias legislagdes de excegiio contemplam limites exa- cerbados na previsdo da quantidade das penas e especial rigor no cumpri- mento da pena privativa de liberdade, com regimes fechados obrigatorios, restrigdes ao livramento condicional, prisdes de seguranga maxima, regimes disciplinares diferenciados. Com isso vulneram princfpios e regras garanti- dores da isonomia, da proporcionalidade, da individualizagao da pena, do respeito & integridade fisica e moral do preso. Essas autoritarias legislagdes de excecdo reforgam a previstio da reincidéncia e, com isso, vulneram a garantia da vedagao de dupla punigao pelo mesmo fato (ne bis in idem) ¢ a garantia da coisa julgada Essas autoritérias legislagdes de excegao enfatizam a prisio pro- cessual, com vedagées & liberdade provis6ria e restrig&es ao direito de re- correr da sentenga condenatéria. Com isso, vulneram a garantia do estado de inocéncia (a presungdo de inocéncia), a garantia do acesso a justica ea propria cldusula fundamental do devido processo legal. Essas autoritérias legislagdes de excecio instituem restrigdes & autodefesa, com a introdugao de “testemunhas sem rosto” ¢ audiéncias por videoconferéncia. Com isso vulneram as garantias do acesso & justica e da ampla defesa, mais uma vez vulnerando a propria cléusula fundamental do devido processo legal Contemplam ainda as autoritarias legislagdes de excegzio novos meios de investigagao, como a quebra do sigilo de dados pessoais, a interceptacio de comunicagées telefonicas, as escutas e filmagens ambientais, a agao controlada ou retardada de agentes policiais, as praticas de infiltrago, a delagio premiada. Aqui, a utilizagio de novos meios de investiga¢do propiciados pelos avangos da revolugao cientifico-tecnolgica ~a aparéncia “pés-moderna” — nao consegue esconder o antigo objetivo de fazer com que, através do préprio individuo, se obtenha a verdade sobre suas ages tornadas criminosas, Com isso, vulnerando, direta ou indiretamente, a garantia do direi- to.anao se auto-incriminar (direito ao siléncio), as autoritérias legislacdes de excecdio rompem com o minimo de racionalidade, com a transparéncia e com 0 necessério contetido ético que ho de orientar qualquer atividade estatal em um Estado de direito democrdtico, fazendo com que processo penal se distancie de sua fungiio de meio de tutela do individuo para se transformar em mero instrumento de realizagio do poder de punir, Os meios de busca de prova invasores do individuo, como a que- 10 de comunicagdes telefani bra do sigilo de dados pessoais, a intercepta Veredas do Ditoto, Belo Horizonte, « v.3+n. 5+ p. 95-113. Janaro- Juno do 2008 99 PARA CONTER E SUPERAR_A EXPANSAO DO PODER PUNITIVO cas, ou as escutas e filmagens ambientais, encontram sua verdadeira eficd- cia, ndo como se anuncia, em uma suposta viabilizagdo de um controle mais el , da criminalidade, mas sim em uma maior intervengao sobre a intimi- dade ea liberdade de todos os individuos. A aco controlada ou retardada de agentes policiais e as cio de maiores informagdes e provas um objetivo que sacrifica até mesmo a imediata interrupgéio de condutas tidas como “criminosas”. ‘A figura da delagaio premiada encerra uma valoragio positiva de atitude profundamente reprovavel no plano moral. Trair alguém, desmere- cer aconfianga de um companheiro, sfio condutas, decerto, reprovaveis no plano moral, sendo repudiadas em qualquer sociedade que veja a amizade e a solidariedade como atitudes positivas e desejaveis para um convivio har- ménico entre as pessoas. Com a premiacdo da delacio, invertem-se estas premissas. Agora, € a traigio que aparece como positiva, merecendo até mesmo um prémio. Com 0 elogio e a recompensa & conduta traidora, 0 Estado exerce um papel deseducador no ambito das relagdes entre os indi- viduos, acabando por transmitir valores to ou mais negativos do que os valores dos “criminosos” que diz querer enfrentar. praticas de infiltragao fazem da obten 3. A ampliagdo do poder punitivo traduzida na legislagao penal brasileira No Brasil, a presenga da autoritéria legislago de excegdo no interior do Estado de direito crescentemente se manifesta, desde os primeiros tempos da redemocratizagdo. A propria Constituiggio Federal de 1988, em deslocados dispositivos criminalizadores, inspirou tal legislago de excegdo, inauguradacom a Lei 8.072/90, a chamada lei dos crimes “hediondos”. A série prosseguiu, notadamente com a Lei 9.034/95, que, inspirada pelo pretexto de repressao a “‘criminalidade organizada”, naturalmente, nem em sua versdo original, nem com as modificages introduzidas pela Lei 10.217/01, conseguiu explicitar 0 que seja tal indefinivel fenémeno; com a Lei 9.296/96, seem siste- que, regulamentando a interceptago de comunicagées telef6nic: mas de informatica e telematica, indevidamente ampliou onde a Constituicio Federal brasileira mandou restringir; com a Lei 9.613/98, que veio criminalizar a chamada lavagem de capitais; com a Lei 10.409/2002, que, se juntando & Lei 6.368/76, na criminalizagdo de condutas relacionadas 4 produgio, a distribuigio e a0 consumo de drogas qualificadas de ilicitas, além de reafirmar autoritérios 400 \Veradas do Dio, Belo Herlzonte, v.3n. 5+ p. 85-113 Jani - Junho de 2008 dispositivos ja constantes das leis antes mencionadas, ainda trouxe para a legis- lagao brasileira a figura das “testemunhas sem rosto”. Com a mesma orientagao, que traduz a manifesta discrepancia com prinefpios € normas assegurados pelas declaragdes universais de direi- tos ¢ pela propria Constituigdo Federal brasileira, destaca-se ainda a Lei 10.792/03, que, introduzindo modificagdes na Lei de Execugdo Penal (Lei 7.210/84), institucionalizou o regime disciplinar diferenciado para o cumpri- mento da pena privativa de liberdade. Como se nao bastasse, ainda foi produzida a Lei 9.614/98, que alterou regras do artigo 303 da Lei 7.565/86, que dispoe sobre 0 Cédigo Brasileiro de Aerondutica, para introduzir, no § 2° daquele artigo, a previstio de abate de aeronaves suspeitas de “tréfico” de drogas qualificadas de ilfci- tas. Com a regulamentagao efetuada através do Decreto 5.144, de 16 de julho de 2004, concretizou-se a instituig&o, de forma obliqua, de uma verda- deira vedada pena de morte (a morte sendo conseqtiéncia praticamente certa do abate), pena que, além disso, estard sendo imposta antecipadamen- te, sem processo, por mera autorizagdo do Comandante da Aeronautica. 4. A ampliagio do poder punitivo e a globalizada expansio da pena privativa de liberdade Resultado direto das legislagdes de excegiio, da ampliagdo do poder Punitivo do Estado, se faz sentir na expanstio da pena privativa de liberdade, A historia da pena privativa de liberdade confunde-se com a hist6- ria do modo de produgao capitalista. A privagio da liberdade ocupa o centro do sistema penal com a superacao das formagées sociais feudais e a conso- lidaco do capitalismo. Em seu surgimento, nos primérdios do capitalismo, a pena privativa de liberdade cumpriu a fungio real de contribuir para a trans- formag&o da massa indisciplinada de camponeses expulsos do campo e se- parados dos meios de produgao em individuos adaptados & disciplina da fabrica moderna. Por outro lado, seu papel regulador do mercado de traba- Iho, coneretizado quer pela absorgio do chamado exército industrial de re- serva, quer pelos efeitos da superexploragao dos egressos na concorréncia com outros trabalhadores no prego da venda da forga de trabalho, se fez presente em diversas etapas do desenvolvimento das formagées sociais capitalistas.* “ Sobre este tema, ha de se consultar, especinimente, em tradugdes para o castelhano, a cléssiea \Veredes do Direlto, Belo Horizonte, v.3-n.6+ p. 85-113. Janei-Junho de 2006 401 PARA CONTER & SUPERAR_A EXPANSAO 00 PODER PUNITIVO Mas, a mais relevante fungio real desempenhada pela pena pri- vativa de liberdade, a permear toda a sua histéria, est4 e sempre esteve na construg&o e propagagiio da imagem do criminoso — visto como 0 outro, 0 perigoso, o inimigo, o mau. Esta permanente fungio da pena privativa de liberdade propicia a identificagdo como perigosos dos subalternizados ou carentes de poder, que so necesséria e prioritariamente selecionados para sofré-la, facilita a minimizago de condutas e fatos nao criminalizados ou nao criminalizaveis socialmente mais danosos, oculta os desvios estruturais encobertos pela cren- ga nos desvios pessoais dos quais se nutre a reagao punitiv: Surgida nos primérdios do capitalismo, a pena privativa de liberda- de, até por essa sua mais relevante fungao real, nao se revelou titil apenas a tal modo de produgiio. Nas contrafagdes reais do socialismo, a pena priva- tiva de liberdade também se fez central — e ainda se faz, no que resta destas contrafagdes. Convivendo com a dominagio, ao contraditoriamente preten- der aprofundar a democracia através da ditadura do proletariado, assim apenas substituindo a dominagao de uma classe pela dominagio de outra (ou de seus supostos representantes), aquelas formag6es sociais, mais do que reproduzirem os mecanismos excludentes das formagées sociais do capitalismo, exacerbaram — ou, no que resta delas, exacerbam — 0 poder punitivo e sua légica de violéncia, submissio e exclusio. A “pés-moderna” ampliaco do poder punitivo, embora diversifi- cando os mecanismos de controle, nao dispensa a pena privativa de liberda- de. Ao contratio, a prisio, até por sua maior visibilidade, seu expressivo simbolismo, sua exposigao da condenagao penal, permanece indispensdvel Nao obstante o discurso em setores nao dominados pelo cego furor punitivo, a recorrentemente apontar para uma faléncia das explicitadas funcdes da pena privativa de liberdade ¢ estimular a busca de penas ditas alternativas, nas tendéncias criminalizadoras hoje dominantes, a prisdo nzio 36 subsiste, como maiores se fazem sua incidéncia e seu rigor Nas formagées sociais capitalistas, especialmente expressivo € 0 crescimento da pena privativa de liberdade nos Estados Unidos da Améri- ca. Nos tiltimos trinta anos, os Estados Unidos da América quadruplicaram sua populagdo carcerdria. Em 1995, 0 total de pessoas encarceradas j4 ‘obra de Massimo Pavarini e Dario Melossi Cércel y Fabrica. Los Orfgenes del Sistema Penitenciario (trad. Xavier Massimi, México: Siglo XXI, 1980) e, ainda de Pavarini, Los Confines de ta Circel (Grau, R. Bergalli, J. D. Dominguce, 1. Martin, E. Quiroi, J. Vergolini © G. Seminars. Montevideo: Instituto Superior Tbero-Americano de Estudos Criminais, Carlos Alvarez Editor, 1995) 402 ‘Voredas do Dieto, Belo Horzonte,. w-n. 5+ p. 85-113 Janei- Julho do 2008 Mara Leia Karam atingia 1.585.586, ntimero correspondente a 601 presos por cem mil habi- tantes. A partir daf, a expansio do encarceramento norte-americano mante- ve uma média de 3,5% ao ano, contabilizando-se, em junho de 2004, 2.131.180 pessoas encarceradas, ntimero que, correspondendo a 726 presos por cem mil habitantes, nao encontra paralelo em nenhum outro pais democritico. Ressalte-se que, quando se considera apenas a populagdo de homens afro- americanos, a proporgdo se eleva para 4.919 encarcerados por cem mil habitantes.* Embora em proporgdes muito inferiores, 0 aumento no mimero de presos na Europa, de todo modo, também é significativo. Na Franga, o nti- mero de presos, no inicio do ano 2000, era quase o dobro do total registrado em 1975. Na Holanda, um dos paises mais liberais da Unidio Européia, de 2000 a 2004, registrou-se um percentual de aumento do mimero de presos de 5% ao ano, superior mesmo ao percentual norte-americano. Anote-se que, seguindo a tendéncia dos pafses originariamente membros da Unido Européia de encarceramento prioritariamente voltado contra os imigrantes, mais de 50% do total de presos na Holanda so nascidos em outros pafses, proporgao que sobe para dois tergos quando consideradas apenas as conde- nagGes a penas superiores a oito anos de prisao.§ Na América Latina, tome-se 0 exemplo do Brasil. Em dezembro de 2003, 0 ntimero total de presos alcangava 308.304 pessoas, niimero que se elevou para 336.358 presos em dezembro de 2004. Em dezembro de 2003, a proporgaio jé era de 182 presos por cem mil habitantes, enquanto em 2001 esta proporgdo era de 134,9 e em 1995 de 95,47 presos por cem mil habitantes.’ Os censos, periodicamente realizados pelo Ministério da Justi. ga do Brasil, tém classificado como absolutamente pobres entre 90 e 95% desses internos no sistema penitencidrio brasileiro, 05 dados relativos a0 nimero de presos nos Estados Unidos da América sio do Bureau of Justice Statistics, US Department of Justice. Os dados relativos & Franga foram extrafdos de Relatério elaborado por comissio criada por resolugiio do Senado daquele pais, divulgado em 29 de junho de 2000. Os relativos & Holanda constam de CBS/Statistics Netherlands - Statistical Yearbook. Outros dados sobre populagées carcerérias na Europa podem ser encontrados na obra de Loic Wacquant, As Prisdes da Miséria, edigdo em portugués, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, tradugio André Telles, bem como no trabalho de Nils Christie, “Elementos de Geografia Penal”, incluido na publicagio especial de Discursos Sediciosos ~ Crime, Direito e Sociedade, sob 0 numero 11, Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1° semestre 2002. 7 Dados do Departamento Penitenciirio Nacional do Ministério da Justiga, Veredas do Direto, Belo Horzonte,« .3-n.5+ p. 95-119. Janeio-Juho de 2008 103 PARA CONTER © SUPERAA A EXPANSAO 00 PODER PUNITIVO 5. A ampliagio do poder punitivo e 4 penas ditas alternativas ‘A ampliaco do poder punitivo nas formagGes sociais do capitalis- mo p6s-industrial e globalizado nao se expressa apenas no aumento do néime- ro de pessoas submetidas as dores da privagio da liberdade. Nos tempos “p6s-modernos”, o poder punitivo diversifica-se e amplia-se. Nas novas relagdes de produgao, centradas na virtualidade do sis- tema financeiro e nas empresas automatizadas, desaparece a antiga énfase na produgdo fabril, igualmente desaparecendo a funcionalidade do primitivo modelo disciplinar. A disciplina que deve recair sobre os exclufdos da produ- cdo e do mercado volta-se para outra dirego. Seu treinamento n&io mais se orienta para o trabalho fabril, como nas origens do capitalismo e da pena privativa de liberdade. Agora, a par da absorgio de parte dos exclufdos da produgao ¢ do mereado na prisio, a operacionalidade do sistema produtivo se satisfaz com sua vigilancia e seu controle de forma a evitar suas reacdes 0, que perturbadoras das relagdes vigentes, enquanto invidvel sua elimina apareceria como tendencialmente desejavel.* Neste contexto, paralelamente & simbolicamente indispensdvel € crescentemente mais rigorosa pena privativa de liberdade, destinada aos apon- tados “infratores perigosos”,? utilizados, através de sua exposig%io no concentrador espago carcerdrio, para a construgio e a propagagiio da ima- gem do criminoso, surgem as chamadas penas alternativas — penas outras que nao a prisio, restritivas e no privativas da liberdade -, nzio como reais substitutivos da prisdo, no sentido de uma amenizagao de seus sofrimentos, de uma humanizacdo da pena, mas sim como um meio paralelo de ampliag&o do poder do Estado de punir. Com a vigilancia viabilizando-se para além dos muros da prisfio ~ pense-se nas pulseiras eletrénicas ou nas “orwellianas” cameras de video ~, tem-se 0 campo propicio para uma execugdo ampliada da nova disciplina ¥ Sobre esta tendéncia, ameagadoramente presente nas formagées sociais do capitalismo pés- industrial e globalizado, é indispensdvel a Jeitura do marcante livro de Viviane Forrester, O Horror Econdmico (trad. Alvaro Lorencini. Si0 Paulo: UNESP, 1997). Assim denomina Nilo Batista os destinatérios da prisdo, distinguidos dos “bons delinquientes”, destinatdrios das penas alternativas, no que ele aponta como o bipartido sistema penal neoliberal, no instigante artigo “ A Violéncia do Estado e os Aparelhos Policiais", publicado as paginas 145 a 154 do nimero 4 de Discursos Sedicinsos ~ Crime. Direito E Sociedade (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2° semestre 1997) 104 \Veredas do Ditto, ele Horizonte, v.3+n.5+ p.96-113- Janeiro - Junho de 2008 social. Esta, nio mais exigindo a reprodugao da estrutura fabril encontrada na prisio, necessita, por um lado, alcangar um ntimero crescente dos exclufdos da produgdo e do mercado, que mesmo a notdvel expansio registrada na estrutura carcerdria nos tiltimos anos nao consegue abarcar. Por outro lado, a nova disciplina social serve para sinalizar e ensaiar a onipresenga do Estado, a possibilidade do controle total sobre cada passo do individuo, mesmo aquele teoricamente integrado & sociedade, que, assim, se sentindo permanentemen- te vigiado, se adestra para a obediéncia ¢ a submissfio A ordem vigente. O controle e a disciplina funcionais para a nova organizagio pro- dutiva podem, assim, se impor sobre 0 individuo isolado. A reunidio daqueles a quem aplicada a sangdo penal em um mesmo espago — 0 espago carcerdrio. ~somente se faz, agora, prioritéria para a concretizagao daquela que, como visto, € a mais relevante fungao real desempenhada pela pena privativa de liberdade, a permear toda a sua hist6ria, isto é, a construgo e a propagacao da imagem do criminoso. O papel das chamadas penas alternativas, neste sentido da exten- siio do controle social formal, da execugao ampliada da nova disciplina soci- al nas formag6es sociais do capitalismo pés-industrial e globalizado, pode ser claramente verificado, trabalhando-se, mais uma vez, com 0 exemplo norte-americano. Nos Estados Unidos da América, ao lado dos mais de dois milhdes de presos, ha cerca do dobro de pessoas, submetidas a medidas alternativas, como a probation, ou em livramento condicional (parole), re- gistrando-se, também em relagao a tais medidas, o mesmo desmedido cres- cimento registrado em relagdo A pena privativa de liberdade." Como assinala Pavarini, ao apontar a crise dos sistemas correcionais de justiga, informados pela ideologia da prevengao especial positiva da pena, historica e comparativamente se comprova que a difusio e © enraizamento de tais sistemas sao marcados pela expansiio da pena carcerdria, 4 qual posteriormente se junta a expansdo de penas diversas." E neste quadro de diversificacéo das penas para ampliago do poder punitivo do Estado que devem ser compreendidas as chamadas penas alternativas, as penas negociadas ou as medidas ditas “despenalizadoras”, " Conforme dados do Bureau of Justice Statistics, US Department of Justice, também utilizados em trabalho de Loic Wacquant, publicado em portugués sob o titulo Punir os Pobres: A Nova Gestio da Miséria nos Estados Unidos (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001), 0 nimero de pessoas submetidas a tais medidas alternativas passara de cerca de um milhao e tezentos mil em 1980 para cerca de quatro milhdes em 1998. ™ Massimo Pavarini, Il “Grottesco” della Penologia Contemporanea, Seminério realizado, em 3 de dezembro de 2002, no Doutorado do Centro di Studi sul Rischio = Universitd di Lacon \Vereds do Direto,BoloHorizonte,- v.3-n.5» p. 95-113. Janeiro ~ Junho de 2006 105 PARA CONTER E SUPERAR A EXPANSAO 00 PODER PUNITIVO como as introduzidas no Brasil com a concretizagio dos juizados especiais criminais,!? sem nos deixarmos enganar pelo discurso adocicado que acena com uma enganosa mitigaco das penas e tampouco esquecendo que a légica que preside as idéias de crimes e de penas — quaisquer que sejam essas — € as teorias que as fundamentam e legitimam, é a lgica perversa da violéncia, da submissao e da exclusio, que se faz presente ainda que mitiga~ dos o sofrimento e a dor maiores representados pela privacao da liberdade. Essa diversificagéio das penas para ampliagao do poder punitivo concretiza-se, fundamentalmente, como nos juizados especiais cri- minais brasileiros, através da consentida submissao a pena, em procedimen- tos abreviados. Permitindo a definig&o antecipada do processo mediante acordo entre as partes sobre a pena a ser imposta ou sobre aspectos da propria imputaciio, oferecido ao réu, para que se conforme com a acusaciio, um tratamento acenado como mais indulgente em troca de sua rentincia ao direito de exercitar plenamente as garantias advindas da cléusula funda- mental do devido processo legal, a f6rmula sinteticamente indicada pela expresso plea bargaining, em suas diversas modalidades, saiu das fron teiras norte-americanas, onde se originou, para se espraiar pelo mundo, apoi- ando-se, fundamentalmente, no discurso que acena com uma alegada ne- cessidade de um processo mais veloz. Na ampliagao do poder punitivo, foram deixados para trds anteri- ores avangos de propostas descriminalizadoras ¢ deslegitimadoras. Especi- almente a partir do final da década de 1980, o elenco de figuras penalmente tipicas vai se alargando e a tutela penal vai se estendendo a novos bens juridicos, especialmente no ambito das relagdes macrossociais, com 0 legitimador aplauso de setores que se apresentam como progressistas. A “inflago penal”, que abandona as idéias de intervengo minima e de ultima ratio, requer uma economia de meios. O procedimento abrevi- ado, visando obter a definig&o antecipada do processo com a consentida submissao & pena, vem atender a esta economia, permitindo que o agigantado sistema penal melhor distribua seus recursos dispontveis para o fim de res- ponder as exigéncias de sua expansaio: mais penas se impdem — jé que eliminada a resisténcia do réu que poderia resultar na absolvigdo — e de forma mais econdmica, sem o gasto de tempo e de atividades que seria consumido pelo curso normal do processo. Sobre os juizados especiais criminais, reporto-me a meu livro Juizados Especiais Criminais coneretizacdo antecipada do poder de punir (Sd Paulo: Ed. RT, 2004), em que expostas, especialmente no primeiro capitulo, algumas das observagbes aqui feitas. 106 ‘Veredias do Diveto, Belo Horizont, v. 3-0. 5+ p.95-113- Janeiro - Junho da 2006 Mara Lica Karam A negociago entre as partes, que se coloca na base do modelo do procedimento abreviado que visa obter a definicéio antecipada do processo com a consentida submiss&o do réu a pena, se desenvolve, no dizer de Mario Cattaneo, entre quem tem “a faca e 0 queijo na mao” (a acusag&o) e quem substancialmente teme uma chantagem (0 réu).!? De- certo, a “chantagem” claramente surge nas ameagas, para quem se nega a negociar, de um tratamento mais rigoroso, de uma pena mais severa, do risco de um célculo errado, do estrépito que se anuncia advir do proceso regularmente desenvolvido até o julgamento. Além disso, essa suposta negociagiio se resume a ago de persuadir aquele réu, substancialmente inferiorizado diante do Ministério Publico, a renunciar a seu direito de exercitar plenamente as garantias advindas da cléusula fundamental do devido processo legal, para, desde logo, receber uma pena que, apresentada como se fosse uma vantagem, sempre estar satisfazendo a pretensao do Estado de fazer valer seu poder de punir. Trata-se, pois, de uma “negociagio”, desigual por exceléncia, cujo escopo € 0 de fazer com que uma das partes tenha sempre assegurada sua atisfagdio, nada tendo a perder, enquanto a outra, além de negociar sobre pressdo, nada terd a ganhar. Com efeito, se esta enganosa negociagdo cheg a “bom termo”, © Ministério Piiblico terd obtido, sem maior esforgo (dispensado que estard do 6nus de provar a veracidade da acusagao formulada), a satisfacio da pretensao punitiva por ele deduzida, com a imediata imposigao da pena. Se, No entanto, a negociagdo nao chegar a “bom termo”, isto é, se o réu ndo aceitar receber, desde logo, a pena oferecida, 0 Ministério Piiblico apenas terd de reformular a acusagio, podendo, ao final do processo regularmente desenvolvido, uma vez conseguindo provar a veracidade da acusagio, igual- mente obter a satisfagéio de sua pretensio punitiva. Jé 0 réu, submetendo-se aquela enganosa negociagao e aceitando a proposta oferecida, ao abandonar a resisténcia & pretensiio punitiva, assim dispensando 0 Ministério Paiblico do 6nus de provar a pritica da infragio penal, necessariamente sofrerd uma perda, consubstanciada no recebimen- to da pena, que Ihe priva ou Ihe restringe direitos, pena esta que, se nZo negociasse, afinal, poderia no softer, j4 que o desenvolvimento regular do " Mario A. Cattaneo, “Diritto Pena Giustizia Contrattata: dalla Bottega al Me 1998). Filosofia non Politic 10 Globale (Napol ”, in Sergio Moccia (org.) La Edizioni Scientifiche Italiane, \Veredas do Diroto, Bel Horizonte, «v.3-n. 5. p. 95-113. Janoita- Junho de 2008 107 PARA CONTER E SUPERAR A EXPANSAO 00 PODER PUNITIVO, processo poderia Ihe ser favordvel. Parece, pois, que s6 mesmo a forga da “chantagem” de que fala Cattaneo poderia explicar 0 sucesso da pena negociada, a fazer com que, na matriz de onde se espraiou — os Estados Unidos da América -, dada a amplitude do campo de admissibilidade de negociacio sobre a pena, que, diferentemente do que ocorre no Brasil e em outros pafses, n&io encontra limitagdes na natureza da infrago penal e/ou na dimensio das penas cominadas, a imensa maioria dos processos penais se extinga no nascedouro, com a consentida submissio do réu & pena. Gracas aos mecanismos do plea bargaining, 0 hist6rico direito ao julgamento pelo jiri é cada vez me- nos exercitado nos Estados Unidos da América. Fundando-se na rentincia do réu ao direito de exercitar plenamen- te as garantias advindas da cléusula fundamental do devido processo legal, 0 procedimento abreviado que visa obter a definig&o antecipada do proces- so com a consentida submissio 4 pena implica na reniincia a direitos funda- mentais, como as garantias da ampla defesa e do contraditério, com todos os seus corolérios, e a propria garantia do estado de inocéncia, da qual decor- re 0 6nus, de que o 6rgao da acusag&o acaba dispensado, de provar a veraci- dade dos fatos constitutivos da infrago penal alegadamente praticada. Dispensada a prova da veracidade da alegagdio do Ministé- tio Pablico sobre a ocorréncia do fato criminoso, a relagiio entre tal fato ea pena passa a constituir uma “realidade virtual”, decerto consenténea com 0 mundo “pés-moderno”.'* Este procedimento abreviado que visa obter a definigao antecipa- da do processo com a consentida submissto do réu pena reforga a ten- déncia ja notada nas legislagdes de excegiio que contemplam meios de in- vestigacio invasores do individuo (recorde-se: a quebra do sigilo de dados pessoais, a interceptacdo de comunicagGes telefSnicas, as escutas e filma- gens ambientais, a ado controlada ou retardada de agentes policiais, as praticas de infiltragdo, a delacio premiada): a tendéncia de fazer com que, através do préprio individuo, se obtenha a verdade sobre suas ages torna- das criminosas, assim a “‘p6s-modernidade” acabando por reconduzir a con- fissiio ao trono de rainha das provas. Ainda que, como ocorre no ordenamento juridico brasileiro, a Neste sentido, a observacio de Cattaneo, no jé citado “Diritto Penale: Filosofia non Politica de que, na pena negociada, nio ha mais a proporgio entre crime e pena, entre realidade dos fatos fe consequéncias jurfdicas, estando-se diante de uma realidade virtual, como € moda nos dias de hoje. 108 ‘Voredas co Direto,eleHorzoie, «3+. 5+ p. 85-113 Janeiro - Junho de 2008 consentida submissao & pena no implique em admissiio expressa de culpa- bilidade, mas somente na no-resisténcia a pretensio punitiva, a ideologia entronizadora da confissio se faz ali nitidamente presente. © que caracteriza a ideologia entronizadora da confissio, quais- quer que sejam as formas mais ou menos civilizadas de obté-la, € 0 objetivo de viabilizar a pena através da colaboragiio daquele que ira sofré-la. Esse objetivo, expresso tanto nos meios invasivos de busca da prova, como na persuasao para que o réu renuncie a seu direito de exercitar plenamente as garantias advindas do devido processo legal e aceite receber uma pena apresentada como mais vantajosa ou mais indulgente, revela um curioso retrocesso: 0 processo penal da “pés-modernidade” parece voltar no tempo, para seguir orientaco extrafda dos antigos manuais da Inquisicao, certamente fazendo lembrar das bruxas e hereges, que, se nao persuadidos, deviam se submeter a tortura para, de uma forma ou de outra, revelar a verdade através da confissao. O toque “pés-moderno”, mais “civilizado”, apenas substitui a tor- tura oficial — aqui deixada para a repressio paralela, informal, desenvolvida & margem do ordenamento juridico-penal, mas, certamente, realizada 4 sua imagem e semelhanga— por formas mais “‘cientificas” e fisicamente indolores de intervencio sobre a pessoa, mas sempre mantendo 0 mesmo objetivo de fazer com que, através do proprio individuo, se revele a verdade sobre suas acdes tornadas criminosas. . A prevaléncia dos principios garantidores como forma de conter a ampliagio do poder do Estado de punir A inversio das tendéncias criminalizadoras dominantes a direita e a esquerda, a maxima contenco, sem quaisquer concessées, do ampliado poder punitivo, o resgate de um direito penal consenténeo com sua natureza essencialmente minima, o resgate de um processo penal orientado pela su- premacia da tutela da liberdade sobre 0 poder punitivo, so tarefas que se fazem urgentes. Essa urgéncia se expressa na elogiiente adverténcia de Nils Christie, que, desnudando a enganosa publicidade do sistema penal, mostra que o maior perigo da criminalidade nas sociedades contempordneas nao é o crime em si mesmo (e pode-se, aqui, acrescentar, com ou sem adjetivos, organizado ou desorganizado). O maior perigo da criminalidade, nos tempos atuais € sim o de que a repressdio ao crime acabe por conduzir todas as ‘Verodas do Direto, Bel Horizonto,. .3-n.5+ p. 95-119. Janeiro Junho de 2006 109 PARA CONTER E SUPERAR_A EXPANSAO 00 PODER PUNITIVO nossas sociedades ao totalitarismo.'* A inversdo dos rumos repressivos das formagées sociais do capi- talismo pés-industrial e globalizado é, pois, exigéncia que decorre da propria necessidade de preservagdo do Estado de direito democratico. Para esta inversdo, para a urgente tarefa de contengao do poder punitivo, é preciso afirmar a universalidade dos prinefpios garantidores ex- pressos nas déclaragées universais de direitos e nas Constituigdes demo- craticas — inadmissiveis, portanto, quaisquer excegGes — e permanentemen- te efetivar seu primado. Os principios garantidores da estrita legalidade, da isonomia, da proporcionalidade, da culpabilidade, da lesividade da conduta proibida, da individualizacio da pena, do respeito a integridade fisica e moral do preso, da vedaciio de dupla punig&o pelo mesmo fato (ne bis in idem), da coisa julgada, do estado de inocéncia, do direito a nao se auto-ineriminar (direito a0 siléncio), do acesso a justiga, do contraditério e da ampla defesa, da cléusula fundamental do devido processo legal, so inafastaveis, sejam quais forem as conjunturas, sejam quais forem as circunstancias do momento. Tais principios garantidores, expressos em normas que integram as declaracdes universais de direitos e as Constituigdes dos Estados demo- créticos, decorrem da prépria afirmagao da dignidade da pessoa humana. O modelo do Estado de direito democratico identifica-se, funda- mentalmente, pela exigéncia do consentimento e do controle populares para 0 exereicio do poder estatal e exigéncia de submissio 2 lei, em especial daqueles que exercem o poder, com vista a garantir a dignidade e o bem- estar de cada individuo. Dat resulta ser fungdio maior do ordenamento juridico, no Estado de direito democratico, a criagio de limites ao exercicio do poder estatal. A dignidade do individuo, cujo reconhecimento, repita-se, situa-se na base do modelo do Estado de direito democratico, traz, em sua esséncia, aliberdade, a autodeterminagdo, a capacidade de escolha do individuo, sem que sequer se poderia pensar em democracia. Implica, ainda, na conside- racdo do individuo como um fim em si mesmo, assim vedada sua utilizagio como instrumento de realizacao de quaisquer outros fins, estatais ou nao. A liberdade, essencial ao reconhecimento da dignidade, impede, também, a transformagio moral forgada do individuo, assegurando-Ihe a opgao por "S La Industria del Control del Delito - zLa nueva forma del Holocansta ? (edigia em castelhano, Buenos Aires: Editores del Puerto, 1993, tradugao de Sara Costa, pagina 24). 410 \eredas do iret, Sela Horzante,- 3-7. 5+ p.95-118- Janeiro Junto de 2008 pensar e agir como bem Ihe aprouver, enquanto nao afetar concretamente direitos de terceiros. Dessas premissas decorre o princfpio da prevaléncia da tutela da liberdade do individuo sobre o poder do Estado de punir, funcionando a tute- ada liberdade como limitagao ao poder estatal. Tal prevaléncia, jé traduzida na propria proibigao da autotutela, enunciada na formula nulla poena sine judicio, contida na cléusula fundamental do devido proceso legal, orienta todos os enumerados principios garantidores, expressos nas declaracdes universais de direitos e nas Constituigdes democraticas A prevaléncia da tutela da liberdade, a efetivagiio do primado dos princfpios garantidores expressos nas declaragées universais de direitos e nas Constituigées democraticas, so, pois, indispensaveis & afirmagaio da dignidade do individuo. A afirmacao da dignidade do individuo, cujo reconhecimento é conquista perene e, assim, inafast4vel do pensamento liberal e libertério que forneceu as bases para a afirmagao do Estado de direito democrético, sem- pre implica em reconhecimento do maximo respeito aos direitos individuais € méximo controle do exercicio do poder, sempre implica na prevaléncia da tutela da liberdade sobre o poder punitivo, sempre implica na construgao de uma ordem juridica voltada para a realizagio do bem-estar de cada um dos individuos. A visdo de que abstratos interesses de uma também abstrata soci- edade devessem prevalecer sobre os direitos individuais nao esconde 0 ca- minho conducente a totalitarismos de todos os matizes. A sociedade ha de ser coneretizada. A sociedade nao é algo abstrato, mas sim o conjunto de individuos concretos. Os ditos interesses da sociedade s6 se legitimam quando referidos a bens individualizaveis, 7. A perspectiva transformadora e a superagio do modelo punitivo para a abolicdo do sistema penal A inversao das tendéncias criminalizadoras dominantes, a maxi- ma contengao do ampliado poder punitivo, o resgate de um direito penal consenténeo com sua natureza essencialmente minima, o resgate de um processo penal orientado pela supremacia da tutela da liberdade sobre o poder punitivo, através da permanente efetivagdo do primado dos principios garantidores expressos nas declaragées universais de direitos e nas Consti- tuigdes democriticas, constituem, no entanto, apenas a tarefa urgente e Veredas do Dice, BoloHrizonte,-v.d+n. 5+ p.95-113- ro Junho de 2006 444 PARA CONTER € SUPEAAR A EXPANSAO 00 PODER PUNITIVO imediata, como urgente e imediata hd de ser a contengao dos efeitos mais danosamente excludentes gerados na atual etapa da evolugao das forma- goes sociais do capitalismo. Assim como nao devem os horizontes da transformago social se esgotar nos estreitos limites do modo de produgao capitalista, assim como nao se deve abandonar a perspectiva de construgao futura de sociedades mais justas, mais solidérias, mais livres, mais iguais ~ construgao talvez lon- ginqua, pouco importa -, da mesma forma, a inversio das tendéncias criminalizadoras dominantes, a maxima contengao do ampliado poder puni- tivo, o resgate de um direito penal consentaneo com sua natureza essencial- mente minima, o resgate de um processo penal orientado pela supremacia da tutela da liberdade sobre 0 poder punitivo, constituem apenas os primei- ros passos dentro de um caminho muito maior e mais longo. Nesse caminho, percebendo que condutas negativas ou indesejade no desaparecem por conta do rigor penal, percebendo que somar ao dano do crime a dor da pena é multiplicar danos, sera preciso romper com a propria idéia de crime, compreendendo-se a natureza politica e a artificialidade de sua definigao. Sera preciso romper com os sentimentos de medo, de vinganca e de culpa, que sustentam o clima emocional do sistema penal; romper com 0 maniqueismo que, dividindo as pessoas entre boas e mis, impulsiona 0 desejo da punigao e a busca de bodes expiatérios, de culpados individualizados e demonizados; romper com a monopolizadora, enganosamente satisfatéria e violenta reag&o punitiva. Se acreditamos na construgio futura de sociedades mais justas, mais solidarias, mais livres, mais iguais, se acreditamos que um outro mundo & possivel, temos que nos libertar do destrutivo sentimento de vinganga, trocando-o pelo perdao, pela compaixio, pela compreensio, abrindo espa- 0, nos conflitos interindividuais, para estilos compensat6rios, assistenciais, conciliadores. Se acreditamos na construgao futura de sociedades mais justas, mais solidérias, mais livres, mais iguais, se acreditamos que um outro mundo 6 possivel, ndo podemos mais nos dividir em bons e maus, superiores inferiores, “cidaddos de bem” e “criminosos”. Temos sim que reconhecer € praticar a fraternidade genética e espiritual que une todas as pessoas. Se acreditamos na construgdo futura de sociedades mais justas, mais solidérias, mais livres, mais iguais, se acreditamos que um outro mundo 6 possivel, devemos nos afastar da ilusGria e nefasta seguranga maxima de prisées, dirigindo nossas energias para garantir alimentacao saudavel, habi- 13. Janeiro ~ Junho de 2008 412 \Veredas do Direte,BaloHorizenta,- v.3-n. 8» p.95 Mara Loca tagdio confortavel, escolas de boa qualidade, trabalho satisfatoriamente re- munerado, lazer, cultura, enfim, dignidade para todas as pessoas. Sociedades mais justas, mais solidérias, mais livres, mais iguais hao de se pautar pela satisfagio das necessidades basicas e pelo respeito 4 liberdade ¢ aos demais direitos de todos os que as povoam. Em sociedades mais justas, mais solidérias, mais livres, mais iguais — nesse outro mundo que acreditamos possfvel -, deveremos no sé com- partilhar os bens e as riquezas nelas produzidos, mas também, como, na militancia da luta antimanicomial, jd alertou Marcus Vinicius de Oliveira,'® aprender a conviver com os desconfortos nelas gerados. Assim acreditando e trilhando o caminho apontado, decerto che- garemos a uma futura aboligéio do sistema penal Se esta transformagio social, se esta abolig&o do sistema penal parecem longinquas, ou um simples sonho, isto ndo deve nos incomodar Sigamos as palavras de Alfonso M. Iacono: “O essencial é a capacidade de saber manter 0 sonho e, a0 mesmo tempo, saber medir a realidade. A reali- dade, seja Id 0 que signifique esta ambigua palavra, nio € a realizagao do sonho, mas é sempre alguma coisa a mais e alguma coisa a menos do que 0 sonho. Dar ao sonho legitimidade em relagio ao real significa saber que a realidade nao é simplesmente a aceitago do existente.”"” '* Recorde-se, em especial, sua intervene’ no Forum Social Brasileiro, em Belo Horizonte, em novembro de 2003, no seminério “Por um outro mundo possivel: Grades @ romper” ” Tradugio livre de texto constante & pégina 96 de “La storia & ancora progresso?”, in In che cosa credere? (Pisa: Edizio ni ETS, 2003). Veredas do Dieto, Bolo Hozonte,- v.3-n. 8» 9. 95-119. Janeito-Junho de 2008 413

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