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2. A PARIS DO SEGUNDO IMPERIO EM BAUDELAIRE * “Uma capital nfo € absolutamente necesséria a0 homem."? ‘SENANCOUR A boémia ‘A boémia aparece em Marx num contexto muito sintométic. Ele inclui nela os conspiradores profissionais, dos quais se ocupa na detalha- da resenha das memérias do agente policial de la Hodde que foi publicada em 1850 na Neue Rheinische Zeitung [Nova Gazeta Renana). Presenti- ficar a fisionomia de Baudelaire significa falar da semelhanea que cle apresenta com esse tipo de politico. Este é descrito por Marx do seguinte modo: “Com 0 processo de formagio das conspiragées proletirias, surgiu af fa necessidade da divisio do trabalho: os seus participantes se dividiam fem conspiradores ocasionais, conspirateurs occasion, ou seja, traba- Thadores que s6 praticavam a conjura ao lado de suas demais atividades, 86 assistiam os encontros e se mantinham de prontidio para compare- cerem, 20 comando do chefe, no local de reuniso; ¢ em conspiradores profissionais, que dedicavam toda a sua atividade & insurreigdo © que T Reproduzido de Benya, Walter, Dat Paris des Second Empire bei Baudelaire. In; Gesanmelte ‘Schriften. v. I, \. 2. Org. por Rolf Tiedemann e Herman Schweppenhiuser. Frankfurt a.M,, Subrkamp Verlag, 1974. p. $11-60 [Une capitale mest pas absolument nécessaire & Thomme.") iviam dela. (...) As circunstincias da vida dessa classe condicionam if de antemio todo o seu cariter. (...) A sua incerta existéncia, individualmente dependendo mais do acaso do que de sua atividade, @ sua vida irregular, cujas tnicas estagbes fixas sto as tabernas dos vende- dores de vinho — 0s rendez-vous dos insurrectos —, seus inevitévels relacionamentos com tude quanto é gente equivoca, ‘lassficam esses ‘homens naquele circulo de vida que em Paris se chama de la boheme” E preciso observar, de passagem, que o préprio Napoleio III come- ‘cou a sua ascensfo num meio que tinha comunicagio com o recém-des- crito, Sabe-se que um dos instrumentos do seu periodo presidencial foi a Sociedade de 10 de Dezembro, cujos quadros, segundo Marx, haviam sido recrutados em “toda essa massa indefinida, desconecta, jogada daqui para acold e que fs franceses chamam de la’ bohéme” 3, Durante todo o seu reinado, Napoledo continuou a cultivar cacoctes cons- pirat6rios. Proclamagées surpreendentes e conchavos politicos, invectivas siibitas e ironias impenetraveis pertencem a razo de Estado do Second Empire. Esses mesmos tracos sao reencontriveis nos textos te6ricos de Baudelaire. Geralmente ele expbe_os seus pontos de-vista de um modo Apodictico. Discussio-nao é seu_assunto,.Foge.dela atémesma-quando 42s. abrupias contradicbes,.cxisienies..cnire. 9s teses que umasapos.outras _tle vai assumindo, exigitiam que fossem_discutidas. Ele dedicou o “Salon de 1846" a0 “bourgeois”, aparece como 0 seu porte-voz € 0 seu gesto no € 0 do advocatus diaboli. Mais tarde, por exemplo em sua invectiva contra a escola do bon sens, ele lanca contra a * thonnéte’ bourgeoisie” € contra 0 notério, a pessoa de respeito (para o burgués), as tonalidades do bohémien mais furibundo +. Por volta de 1850, proclama que a arte Manx, Ke Exoeis, F, Resenha de Adolphe Chenu, Les conspirateurs, Pati 1850, © Lucien de in Hod, Lo naszance de la République en fevrier 1848, Bat 1850, Die Neve Zelt,n. 4, 1886. p. 555, Proudhon, querendo dstanciar-se dos conspiradores.profissonsis, chama a si ‘mesmo ocasionalmente de um homem novo = um homem cujo objetivo néo € barricade, mas a polémica: um homem que a cada noite poderia assentarse & ‘ena do chefe de policis, ganhando a confianga de todos os de la Hodde do mundo" (Apud Gerraoy, Gustave. Lenfermé. Pars, 1897. p. 180-1) Man, K. Der achizehnte Brumaire des Lous Bonaparte. Nova ed. complementada com um preticio de F. Engels. Organizasio introdigao de David. Rjszanov. Viena, Betim, 1927. p. 73 Iitecomenda-se, para o| melhor entendimento, dete texto, a leitura de alguns {rabalhos histgricos de K. Mare relativos a essa época "O13 de junho de 1843", “0 coup de main de Luis Bonaparte” e "O que é = Comana?”, também publicados fm Fennanoes, Florestan, org. Mart/Engels: histéria. Sto Paulo, Alca, 1984. Gh especialmente p. 253-307, (N. do Ore] ‘BauDeLame, Charles, Oeuvres, Organzacio e notes de Yvee-Gérard Le Dante. 2 v, Paris, 1931-1932, (Bibliotheque de la Piéiade, Ie 7.) Mh p. 413. (Dagul por diante constantemente so citar esta edigo, sndicados spends 0 Volume e a pga.) “955 “€ 9 do “ppOH M1 op = mou op euuoion - ‘smION 9 31 SON ct st “419 “00 ney 3 “MiTAC 168 “a6st ‘Ca (1481 2p ) 23010 s2] ‘numuuog vy sn0s soHjod 2p 21ma9foud VT "IMOary MODY "SUICK) ETON ot 8d Zeer “sung “seu oe p soun27 “O “aMIvTLONNE § 8 opessaausne wEALY sepyoHIeG QO F ap sIEWY “eUPUOIDNIOAAL OBSIPEN e 1s wed way, ‘oupredsuos ojusuIAoUr op ssquaueed soden so anua ¥ arc Sepeouseg sexyounid se urepuewioo 9 -weAgy anb sojanbe,, ‘sazopestdsuoo sasso auqos xIRWY ZIP ‘O88 SIE, ‘sued @p -exdsuoo sou sepeouseg 9p semi ep ojnags orout wat asd eamnnnsa © opis wiaey sooues asso ‘— oudos nj — way wsoatex Ussey ‘rx .OPNY 30M wiesNBduTOS ot On SPURT OE ZEIT WN ETEp sur OFT ‘ajar enywoo anibyy wear ese -epoT an O1SA “oESeUsIpU IsOUsop ‘9p o¥y ab soxsi| wo wio}99 eYUIW y OBzEA rarEp OFIUD "seza4 sbUINaTE mssod gf onb epfious v9 v5i0j tsus) ¥ sEs}UODUOD! 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Ined ub Sua OCOD FOU ned ep Bi ep epeledss sas sepod oyu ov 48 cidade durante a Revolugdo de Julho. Ao procurar um exemplo de tra- vail non salarié mais passioné {trabalho nao assalariado, mas apaixonado}, Fourier no encontrou nenhum exemplo melhor do que erguer barrica- das, Em Les misérables, Hugo registrou de modo impressionante a rede dessas barricadas, que ocultavam nas sombras os seus ocupantes: or toda parte a invisivel policia vigiava a revolta. Mantinha a ordem, isto 6 a noite. (...) Um olho que, I de cima, tivesse olhado para fesas Sombras. amontoadas talvez. houvesso topado em diversos. pontos ‘com aparigdes pouco claras, permitindo reconhecer contornos irregulares, f correrem arbitrariamente, perfis de curiosas construgdes. Nessas ruinas ‘movia-se algo que lembrava luzes, Nesses lugares € que estavam as Darricadas” ", ‘No “Discurso a Paris”, que ficou em estado de torso e que deveria fechar as Fleurs due mal, Baudelaire nao se despede de Paris sem evocar as suas barricadas; recorda os seus “mégicos paralelepipedos que se erguem como fortalezas para o alto” ¥. & claro que essas pedras so mégicas & medida que a composigio de Baudelaire nao conhece as maos que as puseram em movimento. Mas exatamente esse pathos € que podia ser atribuido a0 blanquismo. Pois de modo semelhante exclama o blanquista Tridon: “0 forga, rainha das barricadas, (...) tu que brilhas no claro e no motim (...) € pata ti que os prisioneiros estendem suas milos acor- rentadas” © ‘Ao término da Comuna de Paris, o proletariado se apalpava como um fanimal ferido de morte em sua constituicio, voltando para as barricadas, Que 0s trabathadores, treinados na Iuta das barricadas, ndo estivessem ispostos a luta em campo aberto, o que acabou obrigando Thiers a alte- rar 0 seu plano de luta, contribuiu negativamente para a derrota deles. Como escreve tum dos mais recentes historiadores da Comuna, esses tra- balhadores “preferiam a luta no préprio bairro & batalha em campo aberto (...) «, caso fosse preciso, a morte atrés dos paralelepipedos de uma rua de Paris amontondos em barricada” ¥. © mais importante dos chefes das barricadas parisienses, Blanqui, encontrava-se, ento, em sua derradeira prisfo, o Fort du Taureau. Marx, 8 Buco, Vietor, Oeuvres comptes. Fd. definitiva baseada nos manuscritos originals, Roman,'v. 8: Les miscrables, 1V. Paris, 1881. p. 522-3, Hp. 229, 1 Apod BrNoisr, Charles. La crise de Vétat moderne. Le “mythe” de “la classe ouvritre™. Revue des Deux Mondes, ano 84, 6. petiodo, t. 20, 1.° mar, 1914, p. 105. [O foree, reine des barricades (...) toi qui_brilles dans lair ‘et dans émeute (".) cest Vers toi que les prisonniers tendent leurs mains enchainées."| WLanowzt, Georges. Histoire de la Commune de 1871 daprés des documents et des souvenirs Inedlis. La justice. Pavis, 1928. p. 532 49 panheiros “os verdadeiros Iideres do partido proletério” *. \Do prestigio revolucionério que Blanqui tinha na época e que ele guariou até sua morte, é dificil fazer um conceit demasiado alto. Antes de Lénin, néo houve ninguém que, no proletariado, tivesse tragos mais marcantes.Eles também marcaram Baudelaire. H4 uma pégina dele que, a0 lado de outros desenhos improvisados, mostra a cabeca de Blanqui. s conceitos de que Marx se utiliza em sua exposicio sobre os meios conspiradores de Paris permitem reconhecer bem a posicéo ambigua que Blanqui ai assumira. Por um lado, hd boas razées para Blangui ter en- trado na tradicdo como um putschista #, Nela, ele representa 0 tipo de politico que, como diz Marx, vé como sua tarefa “apressar © processo revolucionério em curso, levé-lo artificialmente crise, improvisar uma revolugko sem haver as condigdes para uma revolugao” 3°, Por outro lado, a isso se contrapGem, no entanto, descrigées que se tém sobre Blanqui, nas quais ele parece corresponder muito mais a um desses habits noirs, ¢m quem aqueles conspiradores profissionais viam os seus desafetos. Uma testemunha ocular descreve do seguinte modo 0 clube bblanquista de Halle: Caso se queira ter uma idéia mais exata da impressio que se obtinha, no primeira instante, do clube revolucionério de Blangui em comparacao com os outros dois clubes que o Partido da Ordem (...) possula naquela época, entio é melhor pensar no piblico da Comédie Francaise num dia em que sio representados Racine © Corneille, junto com uma massa popular que lota um circo, no qual acrobatas apresentam nimeros de perigo mortal. A gente se encontrava como que numa capela consa- {grada a0 ortodoxo rito da conspiragio. As portas estavam abertas @ todos, mas 36 se Voltava caso se fosse um adepto. Apés 0 penoso desfile ddos oprimides, (....) erguia-se o sacerdote desse local, Seu pretexto era resumir as lamdrias de sua clientela, do povo que era representado por meia dGzia de imbecis pretensiosos, que recém haviam sido ouvidos. Na verdade ele analisava a situacio. Seu aspecto era distinto; a sua indumentéria, impecdvel; » sua cabeca, bem formada; a sua expressio, ‘rangtila; apenas um fulgor selvagem, anunciador de desgragas, per- feorria as vezes os seus olhos. Eram olhos estreitos, pequenos e pene- ‘antes; comumente aparentavam mais benevoléncia do que dureza. O ‘modo de ele falar era comedido, paternal e claro, 0 modo menos retum- Manx, Ko Der achtzehnte Brumaire des Louls Bonaparte, op. ct. p. 28. 18 Puschita — posture politica segundo a qual se procura acelerar’ 0 curso da hhistéria (*queimar etapas”) através da ago armada de grupos organizados para a tomada do poder mediante um golpe de Estado. (N. do.T.) 1 Manx, K. ¢ Enosts, F. Resenha de Chenu ¢ de Ia Hodde, op. cit. p. 556, | que leva o titulo de “Le vin des chiffon bane, declamatério que, am do de Thiers, cheguei agama vex a Aqui Blanqui aparece como um doutrinador. Os sinais do habit noir se confirmam até em pequenos detalhes. Sabe-se que “o velho” costumava outrinar com luvas negras*. Mas a comedida austeridade e a impe- netrabilidade, préprias de Blangui, aparecem de um outro modo & luz que as coloca uma observagio de’ Marx. “Bles so”, escreve ele sobre esses conspiradores profissionais, “os ala mistas da revolueao © compartilham plenamente da confusio das idéias © da parvoice dos antigos alquimistas.” = Com isso, a imagem de Baudelaire se forma como que por si mesma: 0 enigmético estoque de alegorias em um, a estocagem de segredos de insurpecto no outro. ppreciativamente, como nao se poderia deixar de esperar, Marx fala das tabernas em que o conspirador de nivel mais baixo se sentia como que em casa, A fumaceira que ali baixava ¢ se juntava também era familiar a Baudelaire, Nela é que se desenvolveu um grande poema 8” [O vinho dos trapeiros). Pode-se datar 0 seu surgimento por volta da metade do século passado. ‘Naquela época, motivos que ressoam nesse texto eram discutidos na esfera piblica. Um deles girava em torno do imposto sobre o vinho. A Assem- bléia Constituinte da Repéblica havia concordado com a sua extincao, conforme jé fora feito em 1830. Em As lutas de classe na Franca, Marx ‘mostrou como na eliminagao desse imposto se dé 0 encontro de uma exi- sgéncia do proletariado urbano com uma exigéncia dos camponeses. O Imposto que incidia sobre o vinho de mesa no mesmo grau que sobre o vvinho mais refinado diminufa o consumo “4 medida que as portas de todas as cidades com mais de 4.000 mora- ddores havia sido montado um controle para © imposto e cada cidade hhavia sido transformada num pais estrangeiro, com alffndegas contra 0 vino francés" #4 “No imposto sobre o vinho", diz Marx, “o camponés prova o bouquet do governo”. Mas esse imposto também prejudicava o habitante da cidade, Bi RelatGrio de JI. Weis, spud Gurmox, Gustave. L'enfermé, op, cit. p. 3463. 2 Baudelaire sabia valoizc tis detahes. “Por que", perguna cle, ox pobres no olocam vas a0. mendigar? Eles fariam fortas” (ll p. 424). Ele aubul a fase a um desconhecido; ea tem s marca de Baudelaite. 2 Manx, K. e Exorts, F. Reseaha de Chent ¢ de In Hodde, op. cit. p. 556. 25.0 volume 36 desta colegso, FERNANDES, Florestan, og. Mare/Enges: hiséria, op, cit. 9,253 58, Eat i Die Klauenkimple in French 1048 br 1850, Repu du Neve tieniche ‘Zeinng. (Poltiseh-okonomitche Revue, Hamburgo, 1650). Tatrod de F. Engels. Berlim, 1895. p. 87. oS ma , ae st obrigando-o a ir até as tabernas fora do perimetro urbano para encontrar vinho mais barato. L4 era servido 0 vinho livre desse imposto e que era chamado vin de la barriére [vinho das barreiras]. Caso se dé #8 a H. A. Frégier, chefe de seco na Direcdo Geral da Policia, os operérios exibiam, ccheios de arrogancia e altivez, no vinho todo o seu prazer, 0 tnico que Ihes era concedido. “HG mulheres que, com os seus filhos que j podem trabalhar, nio vacilam em acompanhar seus matidos até a barriére (...) Depois, semi Cembriagados, vo todos para casa, fazendo de conta que esti’ muito mais bébados do que realmente esto, para que todos 0s olhos possam ver que eles andaram bebendo, ¢ nao pouco. Muitas vezes os filhos imitam os pais." = ‘Um observador contemporineo observava entio: “Ao menos 6 certo que o vinho das barridres aparou niio poucos golpes contra o aparelho governamental” *. (© vinho permite, a esses deserdados, sonhos de vinganga futura e de uma futura dominagdo. Assim, em “O vinho dos trapeiros”: “Ve-se um trapeiro que vem, cabeya inquieta, Catando e se apoiando em muros feito um pot E, sem se inguietar com delatores, seus senhores, Seu coragdo todo se abre a projetos sonhaderes. Presta juramentos, dita sublimes leis, Arrasa pecadores, vitimas levanta, E, sob 0 céu como um sélio suspenso, Se embriaga no espleador da sua virtude imensa.” * 0s catadores de trapo apareceram em maior ntimero nas cidades de- pois que, através de novos processos industrials, passou-se a dar um certo valor a0 lixo. Eles trabalhavam para intermedidrios ¢ representa~ vam uma espécie de indistria cascira sediada na rua. A figura do tra- peito fascinou a sua época. Os olhares dos primeiros pesquisadores do Pauperismo estavam como que hipnotizados por ela, com a técita per- junta no sentido de saber onde seria alcancado o limite da miséria hu- mana, Em seu livo Des classes dangereuses de la population, Frégier [EF afoumn, H, A. Des classes dangereuses de la population dans les grandes vile, ct des moyens de les rendret meilleres. v. 1. Paris, 1840. p. 86. Ss foueavp, Edouard. Paris inventeur. Plosiologie de Pindustrie francaise. Pati, 1844. p. 10. HT, p. 120, on voit un chiffonnier qui vient, hockant Ja t8te,/Buttant, et se cognant aux murs comme un poste,/Ft, sans prendre souci des mouchards, ses sujts,/Epanche tout son etur en gloriux projets//Il préte des serments, dete des lois sublimes,/ ‘PTerrasse les méchants, releve les victimes,/Bt sous le firmament comme un dais suspendu/S'énivre des splendeurs de sa propre vert”) {qessogergns sina sdf sop “att op cory /yuoumosrojdues Huse ob toig!a8uRH 12 $09 SOP “TGV, aweiaus jb anesneqqeus $29 snor aqyeouvsynos v| aowleD > Ins ~resop sop opessedayue 0 ‘ue ‘sexorre|ue sop 0 anb owsout o 9 ‘aiueUt -epetuayje ‘oSoutoa ofno ‘sooRsp stassezop wo ojsisuos wurDod ouTer2stu 94s0ur 2 wISEAI ay "ouuos vue, eu“ See wn 795 2 -ap sop equi cosas oro 2 yenb ou ojosqns o exsour wed 19 Jaqy,, BpElmIAU BIUOH Tonfoye 2p ovf2yo0> umn ap 6 ojwend epereduessp of) epMIs9 OVE BIU|E EMS B as JaqES ap oBISaN ¥ BoOIOD aaneg-arUIES “2508 -ox2 ayuroytpa @ 9 onBos siodap anb 0 teuiaod op odawoo o Je sy. 189 O1NO OU OYjosua our “ooueq ou “aL > wowldy 0 apod oWOD :ostad ‘WeYoua OUOS 2 O4UIA 2 OFA, sojoqns ‘essodso pqieg 9p ‘TPA}OH wunbyur anb stew 9 ovu anb “znpuoo aur anb wawoy © ‘Seid 9p plouqro a19u OUTLILX,, ‘antojopavgr wn 2p Sup seIUNSIp s1uoMTeOURSs seIOURUOSSAL Ma UMBARTUD [OoD|y 9 “tui ‘sepuor 9p wan anb wiawoy assap omds> ON. eID: sod wou sour ‘vous visaod vp wisinbuos oun were aja “oueIpHOD op stenb so agos “eosfod wp sianeope so ‘spunyonow ‘80 ou-wexjuooue “epuor ens WE “vHfoA wAISPLLG vUUN oMOD opuad UqiLg tens y “opueypeieg oupesu roxy ojo MpquiM a siuzeq ap OMOHD 0 BY Wi9q we) Jap ouso, we ‘sepereues ou-uieyUEduIODW “OYUOS Nas WIA 98 yISe ‘ou onladex Q “epepe120s wisep sooiseq soyuourepuny sou epxour anb ass ‘woo sezpedurs wipod aja ‘eioy ens en “oupoaid souaur no stow vqueure ‘um ojue ‘epepaioos e eiuod upuns SOuW nO seu vx eNs WD "ARIS wn epeD ‘owsom Is op odepad wn Jou senUODUIe! wUapod gue}y0g B assaouauad onb wn epeo ‘jeuowsyord soperdsucs o 318 oTesOH| OP ‘sepy “aueyog v anus opeiuca 49s apod opU oujaden o ayuouspemnyeN, ‘a. aulpjepneg op ewaod sjanbe niSans oyuousyoaruunsaud ‘anb wa eood9 ‘osst 2 G81 2p Eien 40d ‘Suvg wo sazeyruEs snos ap 2 ojeden wn op soyued so euosaide ojg 7 “seupd sios 2y]-eoIpep zs dados, aparece af como fundador de uma raca, ¢ esta néo pode ser outra sendo a proletéria, Em 1838, Granier de Cassagnac publicou a sua His- toire des classes ouvriéres et des classes bourgeoises. Essa obra quis dar conhecer a origem dos proletérios: eles constituiriam uma raga de ho- miinculos, resultante do cruzamento de ladrées com prostitutas. Serd que Baudelaire conheceu tais especulagies? E muito provavel. Certo é que Marx travou conhecimento com elas e saudou em Granier de Cassagnac “O Grande Pensador” do reacionarismo bonapartista. A sua teoria das ragas ficou registrada no Capital na concepgao de uma “raga de peculia~ res donos de mercadorias” , entendida ai como o proletatiado, Exata- mente nesse sentido é que aparece a raca que se origina de Caim, em Baudelaire. £ claro que este nfo teria conseguido defini-la. E a raca daqueles que nao possuem outra mercadoria sendo a sua forca de tra- balho. Esse poema de Baudelaire esté no ciclo inttulado “Révolte” ®. As trés partes que 0 compéem mantém um tom fundamentalmente blasfemo. satanismo de Baudelaire néo deve ser levado muito a sétio. Se ele tem alguma importancia, & somente por ser a tinica atitude em que Bau- delaire podia manter a longo prazo uma posi¢do ndo-conformista. A Ultima parte do ciclo “Les litanies de Satan” é, por seu conteddo teold- ico, 0 miserere de uma liturgia Grfica, Sata aparece em sua lucifera coroa de raios: como guardiao do saber profundo, como instrutor das habilidades prometéicas, como padroeiro dos obstinados e inquebranté- veis. Entre as linhas lampeja a tenebrosa cabeca de Blanqui: “Tu que dis a0 proscrito este calmo olhar de { Que dana todo um povo em toro de uma fore” Manx, K Das Kapital, Kriik der poliischen Oskonomle. Texto integral de acordo Gom’a 2 ed. de 1872, Pretécio de Kari Korsch. V. 1. Berl, 1932. p. 173. IS'No titlo segue ume aate que fol siprimida nas edigSes postsriores. Qualifiea os Poems desea pare como uni imilagdo allamenteliteraria “dos sofismas da ig0o- Finca eda rare’: Na verdade nem se pode falar de imitaslo. A procuradora do Estado do Second Empire entendeu so e também asim 0 eotenderam os sos Socesores, Com amila nonchalane isto € confewado pelo Barto de ellie em Sta iterpretagto’ do poema ini, Denominase “Le realement de Saint-Pierre" content os verso Revaietu de cet jours.../Od, le owur tout gonflé despoir et do vaillanee,/ ‘tu touctais tous ces vls marchands bout de bras/O% tu fas male enfin? Le Temords watal pas/Pénstre dans ton flane plus avant que ia lance?” (lp. 136) ESontavas aqules das (.--)/ Quando, bravo corapio pleno de esperanca,/ Buinaste © ehicote em todos os mercadores/ E forte final, Mestre? Sera que 0 remorso/ N&O Penetrou teu flanco mais fundo que a langa? (N. do T.)] Resees remords 0 iénico excgsta perce 4 auto-acusisio "por ter dexado escapar ty la oportunidad deed dara prkaiga” (Sub si Emest: Baudelafe, Pat, 1931. p. 193). 4, ps 138, roi qui sais au prosrit ce regard calme ot haut/Qui damne tout un peuple amour d'un échafoud Este Saté que o rosério de invocagées também caracteriza como “confessor dos (...) conspiradores” ® & distinto do infernal intrigante que 0s poemas chamam de Saté trismegisto, de Deménio, e 0s textos em prosa satidam como Vossa Alteza e cuja morada subterranea fica bem perto do bulevar. Lemaitre apontou a ambigiidade que, af, uma vez faz do diabo “o autor de todo o mal e, por outro lado, o grande vencido, a grande vitima” ™, Seria apenas colocar o problema de outro modo caso se lancasse a questo de saber o que levou Baudelaire a dar uma formu- lacdo teolégica radical ao seu radical repidio aos dominadores. ‘Apés a derrota dos proletérios nas Intas de Junho, 0 protesto contra ‘0s conceitos burgueses de ordem ¢ honradez ficara mais bem preservado entre os dominadores do que entre os dominados. Aqueles que postula- vam liberdade € direito viam em Napolego III ndo o Imperador-Soldado que ele pretendia ser conforme o seu antepassado, mas 0 aventureiro fa- vorecido pela sorte. Assim é que a sua figura ficou registrada nos Cha- timents. Por sua vez, a bohéme dorée via que nos embriagadores festejos de que se rodeava em sua corte os seus sonhos se tomavam realidade. As memérias em que 0 Conde de Viel-Castel descreve 0 grupo que rodeava 0 Imperador fazem com que uma Mimi ¢ um Chaunard até parecam bas- ‘ante filisteus e honrados, Na camada alta, o cinismo fazia parte do bom- tom; nas baixas, a argumentagdo de tipo rebelde. Vigny, no seu Eloa, havia rendido, em sentido gn6stico, suas homenagens a0 anjo cafdo, a Liicifer, seguindo os passos de Byron. Por ouiro lado, Barthélemy, em seu Némésis, havia associado 0 satanismo aos dominadores: faz. com que se reze uma missa do Agio © se entoe um salmo & renda*, Essa face dupla de Sata é mais que familiar a Baudelaire. Para ele, Satd nao fala apenas pelos sulpmetidos, mas também pelos superiores. Marx dificilmente poderia ter desejado um melhor leitor para as seguintes linhas do Dezoito Brumério: “Quando os puritanos se queixaram, no Concilio de Constanga, sobre a vida ligenciosa dos papas (...), 0 cardeal Pierre d'Ailly trovejou contra cles: ‘S60 diabo em pessoa é que ainda pode salvar a Igreja Catélica, © vocés af estio querendo anjos!” Assim clamava a burguesia pds. 0 golpe de Estado: $6 0 chefe da Sociedade 10 de Dezembro é que ainda pode salvar a sociedade burguesa! $6 0 roubo, a propriedade; 0 perjrio, a religido; a bastardia, a familia; a desordem, a ordem” ™, Mesmo em suas horas de rebeldia, Baudelaire, o admirador dos jesuftas, do queria desistir completamente e para sempre desse Salvador. Os seus 3 *Confestcur des pendus et des conspirateurs”, BAUDELAIRE, C. Oeuvres completes. Paris, Pldiade, 1961. p. 118. (N. do T.) EMATTRE, Tules. Lee contemporains. Etudes et portralts Utérares. 4. séic, 14. ed, Paris, 1897, p. 30. STCt, Baxrnéuinny, Auguste Marseille, Némésis. Satire hebdomadaire. Pasi, 1834. v. I.'p. 228 (*Liarcheveché et Ia bourse") BiMakx, K. Der achzehnte Brumaire des Louls Bonaparte, op. cit. p- 124 ‘ersos se reservavam 0 que a sua prosa no se havia proibido. Por isso 6 que neles se instaura Sata. A ele 6 que devem a sua forca sutl, mesmo ha ittitago desesperada, por no anunciarem plenamente a0’ séquito ‘aquito contra 0 qual se indignavam a compreenséo ¢ a humanidade. confissio de tipo religiosa quase sempre soa em Baudelaire como um grito de guerra. Ele néo quer deixar que lhe tirem Sati, Esse 6 0 ve Gadeiro conflito que Baudelaire tinha de sustentar com a sua incredul dade. A questo nfo gira em torno de sacramentos oragées, ela gira em torno da precauedo luciferina: ultrajar Sata, em cujas malhas se cai ‘Com a sua amizade por Pierre Dupont, Baudelaire andou querendo se mostrar como um poeta social. Os textos critcos de d’Aurevilly tragam uum perfil desse Autor: “Nesse talento e nessa cabeya, Caim tem a supremacia sobre 0 doce Abel — esse Caim dspero, faminto, invejoso e selvagem que foi para as cidades saborear 0s pomos da discérdia que ali se acumulavam Partihar das idéias falsas que ai celebram o seu triunfo” ®, Essa caracteristica revela com bastante exatidio © que fazia com que Baudelaire fosse solidério com Dupont. Como Caim, Dupont “foi para a cidades” € se afastou do idiico, “A cangdo idilica, tal como ela foi entendida por nossos pais, (...) alg mesmo a simples romanga, esta completamente afastada dele.” Dupont sentiu chegar a crise da poesia lirica com a crescente ruptura entre campo e cidade. Um de seus versos reconhece isso sem rodeios: diz. que 0 poeta “empresta 0 seu ouvido altemadamente as matas © as massas". As massas prestaram atencio a ele; por volta de.1848, Dupont estava na boca de todo 0 mundo. Depois que, umas apés as outras, as conquistas da Revolueio se perderam, Dupont compés 0 seu Chant du vote. Na poesia politica daguela época ha muito pouco que se possa medir com o seu estribilho. E uma folha de louros que Karl Marx entéo reclamava para a “tenebrosa e ameagadora fronte” + dos combatentes de Junho. “Vencendo, 6 Repiblica, & astécia, Fagas ver, agora, a essas perversies ‘A tua grande face de Medusa, Em meio a rubros clardes!" ‘SO DAUaEVILy, Jules-Amédée Barbey. Les oeuvres et les hommes. (XIX® sibel.) 3. parte: Les poites, Pars, 1862. p. 242 Laxousse, Pietre. Grand dievionnaire universel du XIXe sidle,v. 6, Pars, 1870. p. 1413 (Artigo, “Dupont”, 4Manx, K, "Dem Andenken der Juni-Kimpfer", apud Karl Mare als Denker, ‘Mensch und Revoludondr. Ein Sammelbuch. Orgonizado por D. Rjszknov. Viens, Berlin, 1928. p. 40 S2Duronr, Piette. Le chant du vote, Paris, 1850. np. 87 Foi um ato de estratégia literdria a introducao com que Baudelaire colaborou em 1851 para uma edigdo de poemas dupontianos. Af se en- contram as seguintes curiosas assertivas: “A ridicula teoria da escola de art pour Fart exclui 2 moral e freqiiente- ‘mente até mesmo a paixio; com isso, ela necessariamente se torna ester" E, mais adiante, referindo-se evidentemente a Auguste Barbier: “Quando um poeta, que apesar de algum desacorto eventual quase sempre se revelou grande,’ apareceu em cena, proclamando tanto a sacralidade dda Revolugdo de Julho quanto escrevendo entio poemas sobre a miséria nna Inglaterra e na Irlanda em versos igualmente inflamados, (...) a questo estava eliminada de uma vez por todas e, desde entio, a arte se tornou insepardvel tanto da moral quanto da uilidade”,"— Isso no tem nada daquela profunda duplicidade que da asas a poesia do proprio Baudelaire. Ela assumia os oprimidos, mas tanto em suas ilus6es quanto em sua causa. Dava ouvidos as canoes da Revolu- 0, mas também a “voz superior” que soa no retumbar dos tambores das execugdes. Quando Bonaparte assume 0 poder através do golpe de Es- tado, Baudelaire fica furioso por um momento. “Depois ele encara os acontecimentos da ‘perspectiva providencialista’ se submete como um monge.” ““Teocracia e comunismo” ** néo eram para ele convicgBes, mas sussurros que disputavam 0 seu ouvido: um nao tio seréfico, ou outro nio tio Tuciférico quanto talvez pensasse. Néo demorou muito e Baudelaire jé tinha abandonado o seu manifesto revoluciondrio e, apés uma série de “A graga e a docura feminina de sua natureza 6 que Dupont deve as suas primeiras cangoes. Felizmente, a atividade revolucionéria que, entio, arrastava quase todos consigo no o desviou completamente do seu ccaminho natural” *, A abrupta ruptura com art pour art s6 tinha valor para Baudelaire ‘como postura. Permitia-lhe anunciar o espago de que dispunha como literato, Esta era a sua vantagem sobre os escritores de sia época — sem excetuar af os maiores deles. Assim se torna claro e evidente aquilo que 0 coloca acima da vida literéria que 0 rodeava. diuturno oficio literério tinha girado por 150 anos em torno de revistas. Por volta do final do primeiro tergo do século isso comegou a 211, p. 4035. 44 Dpssanois, Paul, Pottes contemporains. Charles Baudelaire. Revue Bleue (revista politica err), Pars, ano 24,3 série ¢ 16,2 semeste, m1 2 ful 1887, p18 58. se alterar, Por meio do folhetim, a beletristica logrou um mercado nos jomais. As modificagdes acarretadas pela Revolucao na imprensa se re- sumem a introdugio do folhetim. Sob a Restauragio, nimeros isolados de jomnais nao podiam ser vendidos: 56 se podia conseguir um jornal ‘mediante assinatura. Quem nao podia custear a elevada quantia de 80 francos para uma assinatura anual ficava dependendo de cafés, onde, com freqiigncia, havia vérios leitores em torno de um tinico exemplar. Em 1824, havia em Paris 47 000 assinantes de jornais; em 1836, havia 70 000 ec, em 1846, 200000. © jornal de Girardin, La Presse, desempenhou ‘um papel decisivo nessa expansio. Ele tinha trazido de fato trés impor- tantes inovagSes: a redugdo do prego da assinatura para 40 francos, a propaganda comercial e © romance em folhetim, Ao mesmo tempo, a informagdo curta e direta comegou a fazer concorréncia ao relato longo formal. Ela se recomendava por sua utilidade comercial. O assim cha- mado réclame abriu o seu caminho: por réclame entendia-se uma noticia aparentemente independente, mas, na verdade, paga pelo editor, através dda qual se fazia referéncia, na parte redacional, a um livro para o qual, na véspera ou até mesmo naquele mesmo niimero, havia-se reservado um aniincio comercial. J4 em 1839 Sainte-Beuve se queixava dos desmorali- zadores efeitos disso. “Como & que se pode condenar” na parte da critica literdcia “uma obra (...) sobre a qual, duas polegadas mais abaixo, pode-se ler que 6 uma ddas maravithas da época. A forga de atracio das letras cada vez maiores {dos antincios comerciais passou a preponderar: representava uma mon- tanha magnética que desviava a bussola.’ © réclame esté. no comego de uma evolugdo cujo término é a bolsa de noticias jornalisticas pagas pelos interessados. Dificilmente a histéria da informagio pode ser escrta separadamente da histGria da corrupgdo da imprensa *. ‘A noticia precisava de pouco espaco; ela, ¢ nfo o artigo de fundo rem 0 romance de folhetim, € que ajudava o jornal a ter uma aparénci nova a cada dia, mediante uma esperta variaco na paginaco, no que re dia, aliés, uma parte da sua atraclo. Precisava ser constantemente reno- vada: boatos da alta sociedade, intrigas do mundo teatral, mesmo “o que vocé precisa saber", constitufam as suas fontes prediletas. Desde 05 pi meiros momentos jé se podia perceber essa elegincia barata que se toma to caracteristica do folhetim. Em suas Pariser Briefen (Cartas parisien- ses] Mme. de Girardin sada a fotografia do seguinte modo: ‘Sr Sqnwre-BEwvE, C._A. De la littérature industrielle. Revue des Deux Mondes, 4. séte, 1839, p, 6823. {SS Este tema de Benjamin foj desenvolvido por HAnERMAS, Jrgen. Mudanca estru- tural da esfera publica, ‘Trad. Flavio R. Koike, Rio de Janeiro, Tempo Brasiei, 1984. (N. do T) 59 “Atualmente muito se fala do invento do Sr. Daguerre © no hé nada mais ridiculo do que as explicagdes.pretensamente sérias que nossos sébios de saldo ficam enunciando sobre ele. O Sr. Daguerre pode ficar sossegado: eles no vio roubar-lhe o segredo (...) Realmente, a st escoberta € maravilhosa; mas no se entende nada dela; ela jé foi ‘explicada demais” #, Nio foi tio genética nem tho ripida a aceitacéo do estilo folhetim. Em 1860 e 1868 apareceram em Marseille e em Paris os dois volumes das Revues Parisiennes do Bario Gaston de Flotte. Assumiam a tarefa de lutar contra a superficialidade dos dados histricos, especialmente n0 fo- Ihetim da imprensa parisiense, Nos cafés, durante 0 aperitivo, a infor- ‘ago ia inchando. ‘O costume da hora do aperitivo (...) se estabelecew junto com o surgimento da imprensa de bulevar. Anieriormente, quando $6 existiam fos grandes periédicos sérios (...) io se conhecia a hora do aperitivo. Ela € a conseqléncia l6gica da ‘crénica parisiense’ e dos boatos de sociedade.” © horfrio eo modo de funcionamento dos cafés treinou os redatores para © ritmo do noticiério jornalistico antes mesmo que a aparelhagem deste estivesse bem desenvolvida, Quando se passou, por volta do final do Second Empire, a usar 0 telégrafo elétrico, 0 bulevar perdera o seu mono Polio. A partis dai, as catésrofes e os erimes do mundo inteiro podiam ser contados. Portanto, a assimilacao do literato a sociedade em que ele vivia efe- tuou-se no bulevar. No bulevar 6 que ele se punha & disposigdo de qual- quer evento interessante, de um jogo de palavras ou de um boato. No bulevar € que ele desdobrava os ouropéis de suas relacSes com colegas & pessoas da vida: ¢ ficava tio dependente dos seus efeitos quanto as mere- trizes em relagio A sua arte de vestir ¢ travestir*!. Ele passava no bule- var as suas horas de lazer, exibindo-se &s pessoas como se fosse uma parte do sen tempo de trabalho. Comportava-se como se tivesse apren- dido de Marx que 0 valor de toda mercadoria € determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessério & sua produgdo. Assim, o valor de sua prépria forca de trabalho passa a ter algo de quase fantéstico, em vista do ampliado no-fazer-nada que, aos olhos do piblico, é necessério WGuanom, Mme. Emile de, nascida Delphine Gay. Oeuvres completes. v. 4: Lettres parlslennes 1836-1840. Paris, 1860. p. 289-90. SM Guutewor, Gabril. Le boheme. Physionomies parsiennes. Tustrado por Hadol. Pais, 1868. p. 72. “Com tum pouco de argicia, faclmente se reconhece que uma garota que pode fer vista as olto horas vestindo um elegante costume é a mesma que, 38 nove, parece como a costireirinha Grisette © as dez se mostra como camponesa.” (BéRAUD, ELPCA. Let filles publiques de Pars, e la police qui les régit. v. 1. Paris, Leipig, 1839. p. 51.) para o Seu aperfeicoamento. Em uma tal avalia¢do, 0 piiblico no estava sozinho. A elevada remunetacio do folhetim daquela época mostra que cla estava fundada em circunstancias sociais, Havia, de fato, uma corre- Tago entre a queda no preco das assinaturas, o ineremento do sistema de amincios e a crescente importancia do folhetim. “Por causa do novo arrangement" — a redugio do prego das assinatu- ras — “o jornal precisa viver de antincios (...); para obter muitos andincios, a pigina 4, que acabou sendo destinada & publicidade, devia hogar ao maior mero possivel de assinantes, Tornou-se necesséria uma isea que se dirigisse a todos sem levar em consideragdo a opinigo particular deles e que tinha a vantagem de colocar a curiosidade no lugar da politica. (.,.) Tendo uma vez sido dado o ponto de partida, © preco da assinatura de 40 francos, passando-se pelo antincio, chegou-se or necessidade quase absoluta ao romance de folhetim.” 52 Exatamente isso explica a elevada remuneragio de tais colaboragées. Em 1845, Dumas acertou um contrato com 0 Constitutionnel e com a Presse, pelo qual eram-Ihe garantidos, por cinco anos, honorérios anuais minimos de 63.000 francos para uma produgdo anual minima de 18 volumes ®. Pelos Mystéres de Paris, Eugene Sue recebeu um adiantamento de 100 000 francos. Calcularam-se em 5 milhdes de francos 0s honorérios de La- martine no periodo de 1838 até 1851. Para a Histoire des Girondins, primeiramente publicada como folhetim, ele havia recebido 600 000 fran- cos. A opulenta remuneracdo da mercadoria literdria nos diérios levou necessariamente a situagdes negativas. Chegou a acontecer que, a0 ad- quirirem manuscritos, editores se reservavam o direito de fazer com que fossem assinados por um autor de sua livre escolha. Isso pressupunha que alguns dos romancistas mais exitosos néo eram nada escrupulosos com a sua assinatura. Maiores detalhes sobre isso sio dados por um panfleto: Fabrique de romans. Maison Alexandre Dumas e Cie. A Revue des Deux Mondes escreveu entao: “Quem conhece os titulos de todos os livros que © Sr. Dumas assinou? ‘Ser que ele mesmo os conhece? Caso ele néo tenha um livro-caixa com ‘Deve e ‘Haver, didrio, entdo ele certamente (...) jf esquecen mais, de uma das criangas das quais ele € 0 pai legitimo, o pai natural ou 0 pai adotivo” 8, SNerremenr, Allred. Histoire de la titéraure francaise sous le Gouvernement de Jule, v. 1. 2 ed. Paris, 1859. p. 301-2, SCE Lave, Ernest, Histoire de. France contemporaine. Depuis la. révolution jusquia fa paix de 1919, v. 5: Cuanuéry, 8. La monarchie de Juillet (1830-1848). Pans, 1921. p. 352. CE Minicourr, Eugene de Jacquot. Fabrique de romans. Maison Alexandre Dumas et Compagnie, Paris, 1845. S'Ttsusrnac, Paul: Du roman actuel et de nos romanciers. Revue des Dewe Mondes, ano 14, t 2, nova strc, 1845, p. 953-4 61 Corria 0 boato de que 0 Dumas empregava em seus pordes toda uma companhia de literatos pobres. Ainda 10 anos depois das observagées dessa grande revista — em 1855 —, pode-se encontrar num pequeno Srgio da bohéme a seguinte pitoresca descri¢fo da vida de um exitoso romancista, que o autor chama de Sr. de Santis “Ao chegar em casa, o St. de Santis abre uma portinbola oculta atrés de sua biblioteca. Em seguida ele se encontra num gabinete bastante sujo ‘e mal iluminado. Ali esté sentado, com uma longa pena de ganso na ‘mio, um homem Iigubre, de cabelos emaranhados ¢ olhar submisso. ele se reconhece, a uma milha de distincia, o verdadeiro romancista de garra, ainda que seja apenas um antigo funcionério de algum minis- tério que aprendeu a arte de Balzac lendo © Constituionnel. 0. verda- deiro autor da Schuddelkammer [Camara dos crinios] é ele: ele é que é (© romancista” ®, Durante a Segunda Repiblica, © Parlamento francés procurou combater © recrudescimento do folhetim. Trecho apés trecho, impunha-se um im- posto de 1 centime a toda continuacao de romance ou novela. Com a reacionéria Lei de Imprensa, que, através de restrigSes A liberdade de opinido, valorizou ainda mais o folhetim, tal prescrigéo deixou de vigorar depois de pouco tempo. A clevada remuneracio do folhetim, junto com.o seu grande con- sumo, ajudou os escritores que nele colaboravam a alcancarem grande renome entre 0 piblico. Nao era dificil para o individuo combinar a sua fama com os seus recursos. Disso resultaram novas formas de corrupeio: € elas tiveram conseqiiéncias bem mais amplas do que o abuso do renome de autores consagrados. Uma vez despertada a ambicio politica do lite- rato, era facil a0 régime indicar-the 0 correto caminho politico, Em 1846, Salvandy, 0 Ministro das Coldnias, ofereceu a Alexandre Dumas realizar as custas do governo — o empreendimento estava orgado em 10 000 francos — uma viagem a Tinis para fazer propaganda na colénia, A expedicdo fracassou, consumiu muito dinheiro ¢ acabou numa pequena erpelagdo na Camara. Mais sorte teve Sue, que, base do éxito de seus Mystéres de Paris, nao s6 elevou 0 mimero de assinantes do Constitu- tionnel de 3 600 para 20000, mas, em 1850, foi eleito deputado com 130.000 votos dos trabalhadores de Paris. Os eleitores proletérios nao andaram ganhando muito com isso; Marx chama essa eleigio de um “débil comentario sentimental” * dos ganhos do mandato anterior. Se a SSxurNieR, Paul. Du roman en général et du romancier moderne en particulier. Le Bohéme: Journal non politique, an0 1, n. 5, 29-abr. 1885, p. 2. © emprego de tais “negros" no sé restringia a0 folhetim. Para o dislogo de suas’ pogas, Seribe empregava uma série de colaboradores andnimos. "Manx, K. Der achcehnte Brumaire des Louis Bonaparte, op. cit. . 68. 62, literatura podia abrir, assim, aos premiados uma carreira politica, entio essa carreira pode ser, por Sua vez, utlizada para a avaliagio critica dos seus textos. Lamartine € um exemplo disso. Os éxitos marcantes de Lamartine, as Méditations ¢ as Harmonies, remontam a uma época em que o campesinato francés ainda estava des- frutando as terras recém-obtidas. Em uns vers0s ingénuos a Alphonse Karr, 0 pocta equipara a sua criagao postica & atividade de um camponés que produz, vinho: “Todo homem pode com orgulho vender o seu suor! Vendo a minha uva como tu yendes a tua flor, Feliz quando 0 seu néctar, sob 0 meu pé que a esmaga, Corre em meus varios tonéis, riachos de Ambar, Produzindo para o seu mestre, bébado por sua alta paga: Um bocado de ouro para pagar um bocado de liberdade!” ssas linhas, em que Lamartine louva a sua propria prosperidade ‘como uma prosperidade camponesa e se vangloria dos honorérios que 0 seu produto consegue no mercado, so muito esclarecedoras quando exa- minadas menos do lado moral ® do que como uma expressio do senti mento de classe de Lamartine. A classe do pequeno camponés. Af jaz tum pedago da hist6ria da poesia de Lamartine, A situagio do pequeno campesinato se tomou critica nos anos 40. Ele estava endividado. O seu minifiindio “nfo estava mais na ‘patria’, mas no registro de hipote- cas” ®, Com isso, desmoronava o otimismo burgués, fundamento da con- templagdo transfiguradora da natureza que era peculiar a lirica de La- martine. “Se © minifindio recém-instalado era, por natureza, religioso em sua consonincia com a natureza, em sua dependéncia em relagio as forcas a natureza e em sua submissio & autoridade que do alto o protegia, toma-se naturalmente irreligioso © minifindio endividado, jsolado da sociedade e da autoridade, arrastado para além das suas pr6prias limi tages. Para 0 pequeno pedago de terra recém-conseguido, © céu era ‘Lawanrive, Alphonse de. [Oeuvres poétlques completes. Paris, Ed. Guyard, 1963. p. 1506 (Caria a Alphonse Karr). [Tout homme aver fierté peut vendre sa sueur!/Je vends ma grape en fruit ‘comme tu vende ta fleus,/Heureux quand son nectar, sous mon pied qu la foule,/ {Dans mes tonneaux nombreux en ruisseaux d'ambre coule,/Produisant & son maitre, fore de sa charlé,/Beaucoup dor pour payer beaucoup de liber") !8'Nama carla aberta'a Lamartine, 0 ultramontano Louis Veuillot escreve: “Caso 0 fenhor fealmente nfo saiba que ‘ser live’ quer dizer muito mais “desprezar o Ouro. E para se arranjar esen espéeie de Hiberdade que se compra com ouro, 0 senhor prodiuz os seus livros de tim modo to comercial quanto os seus legumes ov © seu Minho!” (Veuitiot, Louis. Pages choles, Introdulo ctica por Antoine Albalat Lyon, Paris, 1906. p. 31 G Manx. K. Der atlizehnte Brumaire des Louls Bonaparte, op. cit. p. 122-3. ‘um belissimo adendo, especialmente porque fazia o tempo; tomava-se ‘uma agressio assim que colocado como substtutivo do proprio. mini- ftindio.” © Exatamente daquele céu é que os poemas de Lamartine haviam sido con- figuragdes nebulosas, como jé em 1830 Sainte-Beuve havia escrito: “A poesia de André Chénier (...,) € até certo ponto a paisagem sobre a qual Lamartine estendeu 0 céu’* 2, Tal céu caiu para sempre quando os camponeses franceses votaram, em 1849, a favor da presidéncia de Bonaparte. Lamartine havia ajudado a preparar 0 voto deles “Certamente cle no havia pensado", csereve Sainte-Bewe sobre 0 seu papel na Revolugio, “que estivesse predestinado a tornar-se 0 Orfeu que, com a sus lira dourads, deveria guiar © suavizar aquela inspiragio. de birbaros.”* s ee ate Secamente Baudelaire qualifica-o de “um pouco putinho, um pouco pros- tituido” Para os aspectos problemiticos desse brilhante fendmeno, dificil- mente alguém poderia ter um olhar mais penetrante do que Baudelaire sso pode estar ligado ao fato de ele sempre ter sentido quo pouco brilho ali havia. Porché acha que até parecia que Baudelaire no tinha podido escolher onde encontrar colocagdo para os seus manuscritos ®. Ernest Raynaud escreve que “Baudelaire tinha ai de levar em conta préticas de larépios; tinha de tratar com editores que especulavam com a vaidade das pessoas da sociedade, dos amadores e dos principiantes © que $6 aceitavam manus- critos quando se fazia uma assinatura” bid. p. 122. 2 Vie, poésies et pensées de Joseph Delorme. Nova ed. (Potsies de Sainte-Beuve, 1 partie.) Paris, 1863. p. 159-60 ©.’ partir de relat6rios do entio embaixador russo em Paris, Kisseliow, Pokrowski demonstrou que os acontecimentos transcorreram exatamenie como Marx ja os fexpusera em 4s lutas de classe na Franca. A 6 de abril de 1849, Lamartine garan- tira ao embaixador que as tropas se agrupariam na capital uma medida que, ‘mais tarde, a burguesia, com as demonstragdes operérias de 16 de abril, procurou justifiear, A observagio'de Lamartine de que ele precisaria de cerea de 10 diss para Concentrar as tropas lanca, de fato, uma luz ambigua sobre essas demonsiragces. (Ct, Poxxowsts, Michail N. Historische Aufsitze. Uma coletanea. Viena, Berlim, 1928. p. 108-9.) 7 Sainte-Beuve, C. A. Les consolations, op. cit. p. 118. ‘Apod Ponca, Frangis. La vie donfouewse de Charles Baudelaire, Pais, 1926 p. 248. Sid, ibid. p. 156. © Ravnavb, Ernest, Charles Baudelaire, Estado biogrético e extico seguido de um ‘ensaio de bibliogratia © iconografia baudelairianas. Paris, 1922. p. 319. oa, 64 (© comportamento do proprio Baudelaire corresponde a um semelhante estado de coisas. Ele pde 0 mesmo manuscrito & disposicdo de vérias redagées ou permite segundas edigdes sem caracterizé-las enquanto tais Desde cedo ele encarou o mercedo literério sem quaisquer ilusdes, Em 1846 escreve: “Por mais bela que seja uma casa, ela tem — e antes que a gente se detenha em sua beleza — tantos € tantos metros de altura e tantos © tantos metros de comprimento. Assim também a literatura, que configura, 4 substncia mais incomensurével, & antes de mais nada um preenchi- ‘mento de linhas; © © arquiteto literdrio, a0 qual o nome simplesmente nfo garante por si ganho algum, precisa vender a qualquer prego” ®. Até o final de sua vida, Baudelaire ficou mal situado no mercado litera- rio. Calcula-se que, com toda a sua obra, ele nfo ganhou mais que 15 000 francos. “Balzac se arrebenta todo com café, Musset se embota com absinto (...), Maurger morre (...) num sanatério, assim como hé pouco Baudelaire. E nom sequer um desses escritores eta socialista.” Quem escreven isso foi Jules Troubat, secretério particular de Sainte- Bouve. Certamente Baudelaire mereceu o rotulo que essa altima frase Ihe aplica. Mas nem por isso ele deixou de perceber a situacao real do liteato. Compari-lo — e a si proprio em primeiro lugar — com a pros- tituta era-the corrente. Disso fala 0 soneio ditigido & musa que pode ser comprada: “La muse vénale”. O grande poema introdutétio, “Au lecteur", apresenta o poeta na postura nada vantajosa de quem ‘aceita moedas sonantes por suas contissdes. Um dos poemas mais antigos © que nfo entrou nas Fleurs du mai é dirigido @ uma prosttuta de rua. A sua segunda estrofe reza: “Para ter sapatos, ela vendew a sua alma; ‘Mas o bom Deus riria se, ante infimia tal, Eu desse de tartufo © macaqueasse 0 Senhor, Eu que vendo 0 pensamento ¢ quero ser autor” *, A Gltima estrofe, “Cette bohéme-lé, c'est mon tout” [Essa boémia, cla é tudo para mim), inclui sem reservas essa criatura na irmandade da boémia, Baudelaire sabia bem o que ia se passando na realidade com o Titerato: como fldneur ele se dirige para o mercado, achando que é para dar uma olhada nele, mas, na verdade, j4 para encontrar um comprador. STH, p, 385. (9 Aptd Cnéver, Eugéne. Charles Baudelaire. Estodo biogrifico, revisto ¢ atualizado por Jacque Crepet. Paris, 1906. p. 196-7 FOr, p. 208. P Pour avoir des soulirs, elle a vendu son Ame:/Mais le bon Diew riait i, pris de cette Inflme,/Je wranchais du tartufe et singeais Ia hauteur,/Mot qui vends fia pensée et qui Yeux etre auteur”) 0 flaneur Tendo uma vez posto o pé no mercado, o escritor ficava olhando ‘a0 redor como num panorama, Um género literério proprio guardou as suas primeiras tentativas de orientacéo. E a literatura panorimica. Le livre des Cent-et-un, Les francais peints par eux-mémes, Le diable a Paris, La grande ville, gozavam, no por acaso mesma época que os panora mas, da preferéncia da capital. Esses livros consistem em esbocos isola- os que, com a sua roupagem anedética, o plano frontal daqueles pano- amas e 0 seu fundo informativo, imitam simultaneamente também os seus extensos bastidores. Numerosos autores colaboraram neles. Assim, essas obras coletivas so uma sedimentacéo daguele mesmo coletivo tra balho beletristico a que Girardin havia aberto um espago no folhetim. Eram a indumentéria de sala de um tipo de texto que, por sua origem, estava destinado a ser consumido na rua. Nesse tipo de texto, os singelos cadernos em tamanho de bolso — que eram chamados de “physiologies” — assumiram um lugar de destaque. Buscavam tipos como aqueles que so encontrados por alguém que dé uma volta pelo mercado. Desde 0 cameld de bulevar até os elegantoes do foyer da épera, nao havia nenhuma figura da vida parisiense que 0 physiologue nao tivesse desenhado. O ‘grande momento desse género ocorre no comego dos anos 40. Ele é a escola superior do folhetim; a geracio de Baudelaire freqlientou essa escola, Que ela pouco tivesse a dizer para ele revela quio cedo ele tomou o seu préprio caminho. Em 1841, computavam-se 76 novas fisiologias "!. Depois desse ano, © género decaiu; com o desaparecimento do reinado burgués, ele também se foi. Desde as raizes ele era pequeno-burgués. Monnier, 0 mestre do sgénero, era um filisteu dotado de uma inconmum capacidade de auto-obser- Yyacdo. Essas fisiologias em nenhum momento transpuseram um horizonte dos mais limitados. Apés ter-se dedicado aos tipos humanos, a série Chegou a fisiologia da cidade. Apareceram Paris la nuit, Paris a table, Paris dans Veau, Paris & cheval, Paris pittoresque, Paris marié. Quando também esse filo se esgotou,” ousou-se encarar uma “fisiologia” dos povos. Nao foi esquecida uma “fisiologia” dos animais, que desde sempre jf se tecomendava como um tema inocente. O que importava era a ino- fensividade. Em seus estudos sobre a hist6ria da caricatura, Eduard Fuchs chama a atencdo para o fato de que nos primérdios das fisiologias estdo as assim chamadas Leis de Setembro: as medidas’ mais severas da censura de 1836. Através delas, de uma s6 tacada foi afastado da politica todo TCE Louaoe, Charles. Statistique litéraire. De Ia production intellectuelle en France depuis quinze ans. Demnire parte. Revue des Deux Mondes, ano 17, t. 20, nova série, 15 nov. de 1847, p. 6867 tum grupo de artistas capazes ¢ adestrados na escola da sétira. Se isso teve éxito no setor gréfico, a manobra governamental tinha de ter éxito de um modo todo especial na literatura. Pois nela néo havia nenhuma ‘energia politica que pudesse ser comparada a de um Daumier. A reacio 6, portanto, o pressuposto “a partir do qual se explica a colossal revisfo da vida burguesa que (...) se estabeleceu na Franga. (...) Tudo ai desfilava: dias de alegri dias de tristeza, trabalho e lazer, hibitos matrimoniais e hébites de solteiras, familia, casa, filhos, escola, sociedade, teatro, tipos, profissses"*, ‘A pachorra de tais quadros se ajusta 20 hébito do jlaneur, que vai exercer a sua botinica no asfalto. Mas jé naquela época no se podia perambular por toda a cidade. Antes de Haussmann, eram raras as cal- {gadas largas; as estreitas ofereciam pouca protecao contra os veiculos. Sem as passagens, dificmente a fidnerie poderia ter alcangado a sua relevincia. “As passagens, uma nova inveasfo do luxo industrial”, diz em 1852 um guia ilustrado'de Paris, “sio vias cobertas de vidro e revestidas de mér- ‘more por dentro de todo um conglomerado de casas, cujos proprietérios se uniram para tals especulagSes. Dos dois lados dessas vias, que rece- bbem a sua luz do alto, so sucedem as mais elegantes lojas comerciais, de tal modo que uma’dessas passagens € uma cidade, um mundo em miniatura.” Nesse mundo o fldneur esté em casa; ele encaminhava o seu cronista ¢ © seu fil6sofo “ao lugar predileto dos perambuladores e fumantes, ao picadeiro de tudo quanto é métier imaginivel” ®. Para si mesmo ele arranjava, no entanto, um remédio infalivel contra o tédio que facilmente medrava sob o olhar de basilisco de uma reagio de peso. “Quem estiver em condigées", assim diz uma palavra de Guys transmi- tida por Baudelaire, “de se’ entediar numa multidio humana € um imbecil. Repito: um imbecil, um desprezivel imbecil.” * ‘A passagem ocupa uma posicio intermediria entre a rua e o inte- rior de uma residéncia, Caso se queira falar de um artificialismo das logias, entao & preciso falar do jé testado pelo folhetim: fazer do bulevar tum interior de residéncia. A rua se torna moradia para 0 fldneur, que sid to em casa entre as fachadas das casas quanto 0 burgués entre as ‘2 Fucus, Eduard. Die Karikatur der europdischen Vatker. Erstet Tel: Vor Altertum bis zum Tabre 1848. 4, ed. Munique, 1921. p. 362 "Vow Gatt, Ferdinand. Paris und seine Salons, v. 2. Oldenburg, 1845. p. 22. "4, p. 333 67 suas quatro paredes. As reluzentes placas esmaltadas das firmas sio, para ele, uma decoragio de parede to boa — ou até melhor — quanto para © burgués uma pintura a éleo no saldo; paredes so 0 palpito em que le apsia o seu caderninho de notas; bancas de jomnal sao as suas biblio- tecas e os terracos dos cafés sio as sacadas de onde, apés cumprido 0 trabalho, ele contempla a sua casa. Que em toda a sua multiplicidade, na inesgotavel riqueza de suas variagSes, a vida medre tfo-somente entre (0s paralelepipedos cinzentos ¢ ante 0 fundo gris do despotismo — esse era 0 pensamento secreto dos textos de que as fisiologias faziam parte. Mesmo socialmente, esse tipo de texto ndo era suspeito. A longa série de caracterizagdes, simples ou céusticas, simpéticas ou severas, que as fisiologias apresentam, tem um ponto em comum: séo inofensivas, cheias de bonomia. Uma tal visio dos outros homens estava demasiado istante da experiéncia real para que no deixassem de ser escritas a partir de causas incomumente polémicas. Provinha de uma inquictacao muito peculiar. As pessoas tinham de acertar contas com uma circuns- ‘incia nova, bastante estranha, peculiar as grandes cidades. Numa for- mulacio bastante feliz, Simmel assinalou 0 que aqui esté em questa “Quem vé sem escutar fica muito (...) mais inquieto do que quem uve sem ver. Ai esté algo caracterisico para a sociologia da. grande Cidade, As reiagGes entre os seres humanos nas grandes cidades (...) Caracterizam-se por uma expressiva preponderancia da atividade da vista Sobre a do ouvido. As principais causas disso sio os meios de transporte piblico. No século XIX, antes do desenvolvimento dos Gnibus, dos trens, fos bondes, as pessoas’ ndo conseguiam ficar diversos minutos ou até hhoras tendo de st olharem umas as outras sem se dirigirem a palavra” "8, Como Simmel reconhece, a nova situacéo no era muito trangiiila. Jé Bulwer instrumentava a sua descrigo dos homens da grande cidade no Eugene Aram referindo-se observagdo goetheana de que todo homem, tanto o melhor quanto o mais miscrével, traz consigo um segredo que, eas0 fosse conhecido, torné-lo-ia odioso a todos os demais". Para por tais concepgses inquietantes de lado como irrelevantes, as fisiologias eram exatamente adequadas. Elas colocavam, caso nos seja permitida a ex- pressio, viseiras e antolhos no “‘citadino tapado” *, do qual Marx também falou. Até que ponto limitavam de modo fundamental a visio onde isso fe fazia necessério, mostra-o uma descrigdo do proletério no Physiologie de Vindustrie francaise de Foucaud: WSpasL, Georg. Mélanges de philosophic rélativiste. Contribution A Ia culture Plilosphigue, Trad. de A. Guilin, Paris, 1912. p, 26 MCE, Lyrrox, Edward George Bulwer. Eugéne Aram. A tale, By the Author of Pelham, Devereus, etc, Batis, 1832. p. 314. M Marx, K. ¢ Exopts, F. Feuerbach. [deologla alema, parte 1. In: Marr-Engels- ‘Archiv (Revista do Instituto Marx-Engels de. Moseou, editads por D. Riszanov), ¥. 1; Frankfurt aM, 1926, p. 272. “Para o trabalhador, gozar trangiilamente algo é extremamente estafante Por mais rodeada de verde que seja a casa em que ele mora debaixo dde um céu sem nuvens, por mais perfumada por flores ¢ animada pelos ttinados dos. passaros — se ele esté ocioso, continua inacessivel aos atrativos da solidio. Mas se um tom mais agudo ou o apito de uma {Gbrica distante por acaso atinge o seu ouvido, se ele escuta o monstono ruldo proveniente do maquindrio de uma fabrica, ele logo ergue a sua fronte. (...) Ele ndo sente mais 0 seleto perfume das flores. A fumaga do alto da’ chaminé, 0s golpes estremecedores da bigorna fazem-no estre- ‘mecer de alegria. Ele recorda os venturosos dias de seu trabalho guiado pelo espirito de descoberta" 7, (© empreséiio que lesse uma descrigao dessas talvez fosse descansar mais sossegado do que normalmente. ‘© que mais se queria, de fato, era dar uma imagem alegre ¢ cordial das pessoas entre si. Com isso, as fisiologias teciam, & sua maneira, na fantasmagoria da vida parisiense. Mas tal procedimento nao podia levar ‘muito Tonge. As pessoas se conheciam entre si como devedores e credo- res, como vendedores e clientes, como patrdes e empregados — sobre- tudo elas se conheciam entre si como concorrentes. Despertar nelas, a longo prazo, A idéia de que esses seus parceiros seriam basicamente ino- fensivos nao parecia ter grandes perspectivas. Por isso é que, desde cedo, se formou nesse tipo de texto uma outra visio da questo, que poderia influenciar de um modo muito mais forte. Retroage 2s fisiologias do século XVIII: tem, no entanto, pouco a ver com as preocupacdes bem mais sélidas daquelas, Em Lavater ou em Gall entrava em jogo um ‘auténtico empirismo junto com a especulagao © a extravagincia. As fisiologias viviam de seu crédito, sem nada dar de si. Asseguravam que qualquer um seria capaz de, sem ser perturbado, decifrar — por conhe- cimento de causa — a profisséo, o carter, a origem e 0 modo de viver dos transeuntes. Neles esse dom se apresenta como um talento que as fadas confeririam de berco aos habitantes da grande cidade. Com tais eer tezas, Balzac estava, mais do que qualquer outro, em seu elemento. A sua preferéncia por assertivas sem limitagSes se casava bem com isso. Ele escreve, por exemplo “O génio € téo visivel no homem que pessoa menos culta, ao andar por Paris © ai cruzar um grande artista, logo saber a quantas anda” ®. Delvau, 0 amigo de Baudelaire ¢ © mais interessante entre os pequenos ‘mestres do folhetim, pretendia distinguir tao sutilmente 0 pablico de Paris segundo as suas diversas camadas quanto um ge6logo distingue for- mag6es rochosas. Caso algo semelhante pudesse ser feito, entio a vida na grande metr6pole nem de longe seria tio inquietante quanto ela pro- TFoveavn, B. op. eit. p. 222.3. Tw Batzac, Honore de, Le cousin Pons, Paris, Ed. Conatd, 1914. p. 130. * avelmente parecia as pessoas. Entio se trataria apenas de ret6rica a pergunta lancada por Baudelaire: o que sio, afinal, os perigos da selva e do campo se comparados com ‘05 chogues cotidianos e os conflitos do mundo eivilizado? Que 0 homem fagarre a sua vitima no bulevar ou transpasse a sua prest_em matas remotas — ser que no continua sendo, tanto cé quanto 16, 0 maior dos animais de rapina?” Para essa vitima, Baudelaire emprega a expressio “dupe”: esse termo Indica o pateta, 0 bobo, 0 maris-vai-com-as-outras, e a sua antitese é ‘© bom conhecedor dos homens. Pensava-se que quanto menos tranqila Se tomasse a grande cidade, tanto maior 0 conkecimento humano neces- Sirio para agir nela, Na realidade, a concorréncia cada vez mais aguda leva, sobretudo, a que cada um afirme cada vez mais imperiosamente os Seus interesses. O conhecimento preciso desses interesses serve freqiiente- mente muito melhor do que a sua esséncia quando se trata de avaliar comportamento de alguém. O talento do qual o fléneur tanto gosta de se vvangloriar é, por isso, antes o de um dos {dolos que Baco acaba colo- feando no mercado. Baudelaire venerou bem pouco esse {dolo. A crenca hho pecado original imunizou-o contra a crenga no conhecimento dos fhomens. Como de Maistre, reunia de vez o estudo do dogma com 0 estudo de Baco. Em pouco tempo, os pequenos calmantes que os fisiologistas pre~ Paravyam jé nfo valiam mais nada. Pelo contrario, um grande futuro ava destinado a literatura que se atinha aos aspectos inguietantes © fameacadores da vida citadina. Essa literatura também tem a ver com a massa, Mas ela procede de um modo diferente das fisiologias. A ela [pouco importa definir tipos humanos; ela persegue muito mais as funcdes ue sio proprias da massa na cidade grande. Entre elas se impunha uma que j4 € destacada em um relatério policial por volta de 1800. “£ quase impossivel”, escreve um agente secreto parisiense em 1789, “manter um bom padrio de vida em meio a uma populagéo altamente massificada, onde, por assim dizer, cada um 6 um desconhecido para todos 08 demais , por isso, niio precisa envergonbar-se na frente de ninguém.” Aqui a massa aparece como o asilo que protege o elemento associal frente a seus perseguidores. Entre os seus aspectos ameacadores, esse se Anuncia com maior rapidez. Ela esta na origem da hist6ria de detetive 1Nas épocas de terror, quando cada um tem em si algo de um cons- pirador, cada um também chega a ter a oportunidade de desempenhar Th, p, 637. WApud Scudapr, Adolphe. Tableauy de ta révolution francaise. (Publiés sur les Bans oct Spartement et dela police Surte de Pars). v3. Lip, 160 p33). 70 fo papel de detetive. A fdnerie € 0 que Ihe dé a melhor chance para isso. “0 observador”, diz Baudslaire, “é um principe que consegue estar incégnito por toda parte.” Se, desse modo, o fldineur chega a ser um detetive contra a sua propria vontade, trata-se de algo que socialmente Ihe cai muito bem. Legitima a sua vagebundagem. A. sua indoléncia é apenas aparente. Atrés dela se esconde a vigilancia de um observador que nfo perde 0 malfeitor de vista. Assim, o detetive vé se abrirem vastos campos & sua sensibitidade. Ele constitul formas de reagdo adequadas ao ritmo da cidade grande, Colhe as coisas em pleno v6o; com isso, ele pode se imaginar bem pré- ximo ao artista. Todo mundo louva o répido lépis do desenhista. ‘Balzac fem geral quer ligar.a maestria artistica & rapidez de percepeio ®. ‘Sagacidade criminalistica conjugada & nonchalance do fldneur deli- rneiam 0s Mohicans de Paris de Dumas. O seu her6i resolve entregar-se a aventura, perseguindo um pedago de papel que ele deixou ser levado polo vento. Qualquer que seja o rastro que o fldneur venha a seguir, cada tum deles ha de conduzi-lo a um crime. Com isso se indicia como a hist6ria de detetive, caso nfo se leve em conta o seu frio calculismo, coopera na fantasmagoria da vida parisiense. Ela ainda nao glorifica o ctiminoso, mas glorifica 0 seu antagonista ¢, sobretudo, os motivos da cacada em que eles se envolvem, Messac mostrou como af ho em- penho de aduzir a isso reminiscéncias de Cooper. O interessante na influéncia de Cooper & o seguinte: ela nfo é escamoteada; pelo contréio, 6 exibida. No jé citado Mohicans de Paris, a exibigio jé esté no proprio titulo 0 Autor promete ao leitor abrir-Ihe em Paris uma selva ¢ uma pradaria, Recortado em madeira, o frontispicio do terceiro volume mostra uma rua cheia de macegas e, naquela época, pouco transitada; a legenda dessa vista reza: “A selva da rua d’Enfer”. O prospecto da editora para essa obra descreve 0 contexto com um soberbo floteio ret6rico, no qual se pode imaginar a mao do autor maravilhado, consigo mesmo: “Paris — os moicanos (....) esses dois nomes se chocam entre si como ‘© Qui vive? de dois gigantes desconhecidos. Os dois estio separados por lum abismo: este 6 percorrido e sacudido pelas chispas daquela fuz elé- ttica que tem seu foco em Alexandre Dumas’ J antes Féval havia posto um pele-vermelha em aventuras metropolita- nas, Seu nome era Tovah e conseguia, durante uma viagem num fiacre, S11, p, 333. SS Em Seraphita, Balzac fala de uma “visio répida, cuias percepe6es colocam & opo1 sed 05) (-~*) ofoy onb 8 Sats ae sun 2 an ost on tano seas oss wan tone? Seuvo se euoo anb ‘suafenareo sep aps © 9 peter e sean nad seu sexsfax vues anb opSerygafo tuna ost sore} sazonb eluoD SUNY “Toure 9p souwtuo! ovonbod orton 0 opuooy rea eed sypoaquaseny Resuated op sopeina? anh ay 89a Teme ep Soma ree, -uoudipy o19popy ‘a9 ors sey SezTe 9ERT WO yf “Je;IfJo pusnor ou seiouanbas seHIYA wo naoasede anb o1xat Op eonaqep operant v zesqumipa opod os Satumsoo 9 Sosn sey ty ‘sassod ap eysondinq eu eSaredear — ezamyeu epundos ‘uinu reypsuao 28 eposs® ciwowo[o Ou anb —oqonU09 op opSttar nb tm ouesiso 9p UpTU py OEN “opedede sivouteaneonsusis 9 od Rox 0 “sjwempersadso “> oupondosd-opu op eunjosd visa ® SOpeaqns OFS “opeuungns 9 sopepsonisar tsse soolgo sop yewoumush no Tos soles (© Sopey stop win osssoo1d 0 anb seoaqu0asap opod 28 Oru OssINy “OI su. 421 9p 2p oFey oF ommend opr ‘rapa “POL TOg0Sy oH a8 ow seg) wn epren8 wzamnyeu © owtoo Sse 788s nos © opueprend sen 2 opuafzqoid ‘Soygssane snas so sopo) Woo opringusa wary 9159 onb ‘wo “ououuny 395 op s0ueqoa ap ajozdsa gum oO v-aqeou0D “ojNSED 2p ayopdso wun vus0s 28 vipeioE © — ausduucy puoo2g op [PUI] Op ofns9 © justamyoyy 0 vreq “oveiu09 sonbyenb 9 opor ap vase B wreAzesuOD amb ‘edjay 9 opnyaa ap seuiaqoo se azajaid “Sofois9 o seyursqea ‘Seanyo-eprend 2 sasauye) ‘Seyurs8n 9 sonoupuusa ‘osjoq 2p so‘dojer 9 soqouryo woo as-ednaoaid ‘5072/90 ap algs vu 9p vidoo v vumnuse ee ‘eluoUaAesuLOU “soygsuayn 9 omnsdoo ap sofmue sn2s sop spaesie opjuo ‘ezs0) em sep snos sod ou 9§ £109 ot sonst Was sBromgns aextop 95 OBL Wo ¥UOY UNS B frsod asso wp 95 outoa g “sapared aienb sens op azyuop osst einooud SI “spuerd epepi eu epeaud epra vp sozisex op 128 op oMuaduta 0 wisonfing wu renuooUs 2s-epod od sin 9ps9qr “su pues opepip zjod opeztyewiinse ouroo soaqu0.e1 05 soure opdoxd o sojau anb opout je) ap wmmnsso os tossuynut wand ens Y ze .2PUP opueid wuune opisins saya anb,, Sosa s9sso 21905 serip o8 s9[9p ajoyHadns ~Y nosy wepnegmy, “wEsNSEsUEN © onb 30120 “iat so 9 ojuako © weusous anb soiayenb so anua esmidnx epunjord eum a idxo asenb ,1ueFeAesyx9 iN OWOD,, OPuIPE O q ON,, rewo aquyifas ep ejuasoude os eumnnop v ‘euns wl ‘aor .9PEpHWUEPOW 9p VI-FUIEYD niyUUIed sou soya] O “syUDseId pia wssow ep “zeny. “ea ‘ezajaq @ aued vpoy sod noosng ofa, Loup 9 shng a1qos orwsua op steuly sezA Jy} opyse00.® nb somfoqaud soe ( ie va opetseuop sepunyoide as 9[9 3g “Tb198 oporgu o “vor8o] v ‘eand ouze © opu anb vsioo ez]NO apepsyuE vu IEpnise anb ojonbep Ty, yusapoul ‘up seotsenb ops vigo ep opSezidsul v 9 wiougisqns © foednnsuod ® ein] 28 apepmanue ep se[9pou ropse9 0 ‘eHoa Esse opundag “euIapour au 1B algos sulejopneg op eH0a} B ajusWeLTEUOLIqUI® W9TUOD 0 USS, apeprurepow ep syueussoxdes ayueyodun strut 0 9 oo ‘oyssoud xe “Sp eouoy epeuoxrede ens seSes8 ‘oyiua “opopmsnue” ep eurxoxde bs soufey, “oonyurp ossmo1d mos ou 9 BID) NAS OP THLODSD TU ‘e:0j wssop eaqUaINE 2 EpEUN oBsuEdxD wv ‘aja exed ‘o\uE}UD OM ‘B10 roudoyy “OBapy Wo oss: nsDayodar autwjapnegt anb 9 soseo soonod wo 9s 9 ‘isofesicoo y “apepinaaue vp v-opuemxoide ‘eaodg wisou oe anb vSs03 odu: owsou ov wztajeee9 ‘woods wun wzuoiDeseD opepluzapow Y sox wS0W202qU09 29p anb seuesp sou 9 seuig0d sou (-°*) eBNUE wip9sen'e 9 vaIssyp> 9po e reMUOysuEN ‘O-n0A9} OUNSP Oy, “o8ney so}01A wo vsn8yu0d 95 oxst ‘auTeJopNE ered “~eperfaraud 9 opepmnTiiuE woo opSeyer ‘anua apeplusepour v anb wo saobejor sv Sepor wa “apepruuapour v reinSquos :reynoad yj fens e opuas otoo viasndust 96 ousour ajo anb ware) v omen ‘somazoRy in 2p ,souegen,, Sop ‘oO1sSy}9 9104 Op HONE, up oMuer euTxo:dy bs epeu “ojaia onb wo eood9 vu ‘ojo weg "vjaley wssap wouD.OsUOD E 10 ‘ovist00 2p sewaod F oysenb opeaiasar oynuH noxtop © 2nb O ojaid op wzamnyeu ejod EpeLD ovIse20 ep estioas,, Eun ax BOW UyPS AAz}sND ‘ouleoe O1IRU! 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Sem esse segundo elemento, © primeiro nao poderia ser assimilado” Nao se pode dizer que isto va muito a fundo na questio. A teoria da arte modema é o ponto mais fraco da visio de Bau- delaire sobre a modernidade. Esta apresenta os motivos modernos; 0 objeto da teoria bem que poderia ter sido uma discusso sobre a arte antiga. Baudelaire nunca tentou nada parecido. A sua teoria nfo domi- nou a rentincia que, em sua obra, aparece como perda da natureza ¢ perda da ingenuidade. Sua dependéncia de Poe, inclusive em suas for- mulagdes, € uma expresso da sua parcialidade. A sua orientagio polé- mica é outra; ela se destaca do fundo homogéneo do historicismo, do alexandrismo académico em voga com Villemain e Cousin. Nenhuma das suas reflexes estéticas apresentou a modernidade em sua interpenetracao om antiyidade, o que no entanto ocore em certs poemas das Fleurs iu mal. Entre eles prevalece o poema “Le eygne”. O seu caréter aleg6rico no € gratuito. A cidade, em geral em constante movimento, cai em torpor. Torna-se frgil como vidro, mas também transparente como vidro fem relagdo ao seu significado (“a forma de uma cidade/Muda mais ré- pido — ai de mim! — que 0 coracéo de um mortal!” °°), A estrutura de Paris é frégil; ela é toda rodeada por simbolos de fragilidade. Sim- bolos da criacto — a negra ¢ o cisne; e simbolos histéricos — André. maca, “vidiva de Heitor e mulher de Heleno”. O denominador comum neles € a tristeza sobre 0 que foi e a falta de esperanca quanto a0 porvir Em tiltima andlise, aquilo em que a modernidade mais se aproxima da antigiidade € nessa transitoriedade. Sempre que aparece nas Fleurs du ‘mal, Patis ostenta essa marca. “‘Crépuscule du matin” € 0 amanhecer da cidade descrito como o despertar de pessoas; ‘Le soleil” mostra a cidade transparente como um pano velho & luz do Sol; 0 anciéo que a cada dia de novo pega, resignado, os seus instrumentos de trabalho, pois as preo- ‘cupagSes com a sobrevivéncia no terminaram com a idade avangada — ele € a alegoria da cidade; e as anciés — “Les petites viilles” — sio entre 0s seus habitantes as tinicas a cultivar o espitito. Que esses poemas tenham atravessado décadas sem serem corroidos, eles o devem a um cuidado que os protege, Trata-se da prevencio contra a cidade grande. Ela distingue esses poemas de quase toda a poesia sobre a grande cidade que veio depois deles. Uma estrofe de Verhaeren é suficiente para com preender do que aqui se trata: “E que me importam os maldosos ¢ as horas dementés E as cubas do vicio onde a cidade fermenta, TT, p. 326, 2001, p. 99, (La forme d'une ville/Change plus vite, hélas! que le exur d'un morte”) | a ‘ Se algum dia, do fundo das névoas ¢ dos véus, Ha de surgir um novo Cristo, esculpido em luz, ‘Teazendo para si mulheres © homens, todos, Batizando-os ao £0g0 dos astros, novos” Baudelaire nao conhece tais perspectivas. Seu conceito da caducidade da grande metr6pole est na origem da perenidade dos poemas que escre- veu sobre Paris, "Também 0 poema “Le eygne” é dedicado a Hugo: talvez. como um dos poucos cuja obra, segundo parecia a Baudelaire, manifestava uma nova antigiidade, A’ medida que for possivel falar disso em Hugo, a sua fonte de inspiragio € completamente diversa da de Baudelaire. Hugo desconhece a capacidade de entorpecimento que — caso seja per- mitida uma imagem biol6gica — se manifesta, como uma espécie de tmimese da morte, centenas de vezes na poesia de Baudelaire. Em con- trapartida, pode-se falar de uma disposigdo cténica de Hugo. Sem ser diretamente mencionada, ela se manifesta nas seguintes frases de Charles Péguy. Delas se deduz onde deve ser buscada a diferenca entre @ con- cepgdo de antigiidade de Hugo ¢ a de Baudelaire. “Quanto a isso, pode-se ter certeza: quando Hugo via © mendigo na cniada, (.)'ele'o va como ele na relidade (.--) am extada tntiga, o antigo mendigo, o antigo suplicante. Quando via 0 revestimento de marmore de uma dessas nossas chaminés ou o tijolo cimentado em tuma dessas chaminés modernas, entéo ele os via como eles slo: ou Seja, pedra de chaminé. Pedra de chaminé da antighidade. Quando ele via a porta da casa e 0 umbral (que normalmente é uma pedra traba- Thada), reconhecia. nessa pedra trabathada a antiga linha cléssica, a linha do umbral sagrado, que é bem igual.” 2 Nao hé nenhum comentério melhor sobre o seguinte trecho dos Miséra- bles: “As tabernas do Faubourg Saint-Antoine se pareciam com as tabernas do Aventino erigidas sobre a gruta da Sibila e ligadas as sacras inspi- ragdes; as mesas dessas tabernas eram praticamente tripés Bnio fala do vinho da Sibila que ali se bebia” 8, Da mesma concepeao resulta a obra em que aparece a primeira imagem de uma “antigilidade parisiense”, 0 ciclo de poemas de Hugo “A T'Arc GO Vensaenen, Emile, Ler villes tentaculaires. Paris, 1904. p. 119 ("Liime de la ville" EE ap emcee escheat ee co ee a core ee al Se ee eee ee ee oe eee eer ate, area Oras cee ere ee 108 de Triomphe”. A glorificacdo desse monumento parte da visio de uma campina parisiense, de uma “immense campagne” onde perdurariam ape- nas trés monumentos da destruida cidade: a Sainte-Chapelle, a Coluna Vendome ¢ o Arco do Triunfo. A alta relevancia que esse ciclo tem na obra de Hugo corresponde a posi¢ao que ocupa na criacao de uma ima- gem da cidade de Paris do século XIX adaptada a uma imagem da anti- giidade. Baudelaire certamente o conheceu, E de 1837. 4a sete anos antes, o historiador Friedrich von Raumer anota em suas Briefe aus Paris und Frankreich im Jahre 1830 [Cartas de Paris € da Franca em 1830] “Da fore de Notre-Dame, ontem, dei uma olhada nessa giganteca cidade; quem constule «primeira cata, quando. desmoronard's tina tro solo de Parks hid so uasemelar a9 de"Tebas& da Habioaa?! 2 Hugo descreveu esse solo como ele viria a ser quando um dia “esta margem, onde a gua rebenta nos arcos sonoros das pontes, for restituida aos juncos murmurantes que af se inclinam’" 25: & “Mas nfo, tudo estaré morto. Nada mais nessa planicie, Exceto um povo perdido, do qual ainda esté replena’ #6 Léon Daudet, cem anos apés Raumer, lanca de Sacré-Ceeur, outro lugar clevado da cidade, um olhar sobre Paris. Em sua visio, a hist6r da Tmodernidade” se espelha até o atual momento numa horspilante con- rradigac “Olha-se 14 de cima para esse amontoado de palicios, monumentos, ‘casas e barracos, e se fica com a sensagio de ser ele predestinado & luma ou mais catéstrofes — meteoroldgicas ou sociais (...) Passel horas no alto de Fourvigres com a vista sobre Lyon, no alto de Notre- -Dame de la Garde com a vista sobre Marseille, no alto de Sacré-Ceur com a vista sobre Paris. (...) O que mais nitidamente se percebe a partir desses pontos elevados € a ameaca. As aglomeragoes de pessoas So ameagadoras; 0 homem precisa de trabalho, certaments, mas ele também tem outras necessidades. (...) Entre outras necessidades, ele tem & do suicidio, inerente a ele e a sociedade que 0 consttui: © € mais forte do que 0 seu instinto de sobrevivéncia, Sendo assim, fica-se admi- ado, olhando do alto de Sacré-Coeur, de Fourvitres e de Notre-Dame de Ja Garde, que ainda existam Paris, Lyon e Marseille” 2", Sr Ravatn,Frcvch von, Briefe aus Paris und Fraeich im Jahre 130. Se ate ee ee p. 127. LNT Rcaret Ethuco,'¥. Ocwres competes, on ct. Poti v, 3: Les chans du cepa Les volx intérieurs, Les rayons ‘et les ombres. Patis ). (“A TAre de er vt ire 5 arg 1880, pr 284 (CAE de Std hid. 248 (CA Tare de Triomphe VII") {Mat non, tout sera moc Ph a da, cote resp Sranout dont alee eno pce 2 Divot Hon. Pars view Rive doe lus de 46 compositions une ‘esu-forte originale par P. J. Poitevin. Paris, 1930. p, 243-4, at 109 Esta 6 a feigdo que a passion moderne, que Baudelaire reconheceu no suicidio, acabou assumindo no século atual ‘A cidade de Paris entrou neste século com as feigGes que Hauss- ‘mann Ihe conferiu, A radical transformacio por ele feita nas feigdes da cidade foi efetuada com os mais humildes meios imagindveis: pas, enxa- das, alavancas e coisas semelhantes. E que grau de destruigio ja provo- caram estes limitados instrumentos! E, desde entao, como cresceram, com fas cidades grandes, os meios que podem deixi-las ao rés-do-chao! Que imagens do porvir elas evocam! ‘0s trabalhos de Haussmann estavam no seu auge; bairros inteiros iam sendo demolidos, quando, numa tarde de 1862, Maxime Du Camp se encontrava na Pont-Neuf. Esperava por seus éculos perto da loja de um oculista. “O autor, & beira da velhice, experimentou um daqueles momentos em ‘que © homem, refletindo sobre a vida passada, vé em tudo estampada ‘2 sua propria’ melancolia. A pequena reducdo da sua visio, acusada ‘ha consulta a0 oculista, fez com que se lembrasse da lei da inevitivel transitoriedade de todas as coisas humanas. (...) Ele, que viajara pelo Oriente e que se familiarizara com os desertos, cujaareia ¢ 2 pocira dos mortos, teve de repente a idéia de que também esta efervescente cidade a seu redor deveria, um dis, morrer como morreram tantas ceapitais. Ocorreuthe que hoje estarfamos extremamente interessados em tuma deserigio exata de Atenas nos tempos de Péricles; de Cartago, nos tempos de Barca; de Alexandria, nos tempos dos Ptolomeus; de Roma, nos tompos dos Césares. (...) Gragas a uma intuigo fulminante, que as vezes faz nascer um tema extraordindrio, ele projetou eserever o'livro sobre Paris que os historiadores da antighidade no haviam escrito sobre fs suas prépriss cidades. (...) A obra da sua maturidade apareceu perante a sua imaginagao.” #8 No poema de Hugo “A l’Are de Triomphe”, na grande descrigio técnico- -administrativa de Maxime Du Camp quanto a sua cidade, pode-se reco- nhecer a mesma inspiracao que modelou decisivamente. a idéia de Bau- delaire sobre a modernidade, ‘Haussmann comecou a sua obra em 1859. Ela jé estava encaminhada através de projetos de lei e a sua necessidade j& fora h4 muito pressentida. Du Camp escreveu no referido livro: “Apés 1848, Paris estava na iminéncia de se tornar inabitével. A cons- tante expansio da rede ferrovidria (...) acelerava o trfego e 0 aumento opulacional da cidade. As pessoas sufocavam nessas velhas ruelas s- freitas, sujas, confusas, em que se apertavam como gado encurralado por néo haver outra solueso” 2 0s Bouncer, Paul, Discours académique du 13 juin 1895. Succession & Maxime Du Camp. Lanthologie de TAcadémie francais. v. 2. Paris, 1921. p. 191-3 BiDy Canr, Maxime, Paris, ses organes, see fonctions et sd vie dans la seconde moitié du XIX* siele. y. 6. Paris, 1886. p. 253 110 No inicio dos anos 50, a populacdo de Paris comecon a se resignar & idéia de uma inevitavel e grande purficagao do quadro geral da cidade. E de se supor que essa limpeza poderia, em seu tempo de incubagio, atuar com muita forca, ou até com mais forga entio, sobre um espirito fantasioso do que a vista dos pr6prios trabalhos de urbanizagao. Joubert afitma: “Os poetas sio mais inspirados pelas imagens do que pela propria pre- senga dos objetos” =, (© mesmo é vilido em relagio aos artistas. © que se sabe que em breve no se saberd mais 6 transformado em imagem. Isso ocorreu com as ruas de Paris daquela época. Em todo caso, a obra, cuja relagio subter- rinea com a grande transformagdo de Paris nao se pode por em diivida, jd estava conoluida alguns anos antes dessa radical transformagio ter sido iniciada. Eram as gravuras de Meryon sobre Paris. Ninguém ficou mais impressionado com elas do que Baudelaire, Para ele, a visio arqueolé- sgica da catéstrofe, tal como se encontrava subjacente aos sonhos de Hugo, ndo eta a que mais o comovia. Para ele, a antiglidade tinha de surgir de uma s6 tacada, uma Atenas parida da cabeca de um Zeus ileso, da modemnidade ilesa. Meryon acentuou a visio da cidade enquanto an- tigildade sem dela abandonar sequer um paralelepipedo. Esta visto do problema é 0 que Baudelaire incessantemente perseguira na concepgdo de modernité. Tinha uma admiracéo apaixonada por Meryon. ‘Ambos tinham afinidades eletivas. O ano de nascimento deles & 0 mesmo; o falecimento de um dista poucos meses do falecimento do outro. Ambos morreram solitérios ¢ seriamente perturbados: Meryon como de- ‘mente em Charenton; Baudelaire sem poder falar, numa clinica particular. Para ambos a fama demorou a chegar. Durante a vida de Meryon, Bau- delaire foi quase 0 tinico a defendé-lo*, Nos seus poemas em prosa, ppouea coisa pode ser comparada com o curto texto sobre Meryon. Tra. tando de Meryon, presta homenagens a modernidade; mas homenageia nela a feicdo de antigtidade; em Meryon também aparece, inconfundivel, essa forma de dupla exposicao que é a alegoria. Em seus croquis, a le- genda é importante. Se a loucura se insere em seu texto, a sua obscuri- dade sublinha entéo apenas o “significado”. Os versos de Meryon sobre 8 vista da Pont-Neuf estdo, enguanto interpretagao e sem prejuizo de sua sutileza, bastante préximos do'“Squelette laboureu:” 210 JouneRT, Joseph. Pensées. Précédées de sa correspondance. D'une notice sur Sa vig son ‘caracdr et ses travaux par Poul de Rayna. Se. ¥. 2. Pai, 1869. p. 267, jot ig Potes Son lus inspirés par les images que par ta présence méme des objets." 311'No século XX, Meryon encontrou um biéprafo em Gustave Geffroy. Nio 6 por acaso que a obra-prima deste Autor seja uma biografia de Blangui conc m1 “Aqui jaz da antiga Ponte Nova ‘A bom exata semelhanga: ‘Toda retocada de novo, Por ordem da governanéa. © médicos to sibios, © cirurgibes tio habeis, Por que nfo conosco fazer (© que com a ponte de pedra se fez?" 22, Geffroy descobre certeiramente o mago da obra de Meryon, bem como 0 parentesco dele com Baudelaire, mas, sobretudo, acerta a fideli- dade na reprodugio da cidade de Paris, que logo estaria semeada de éreas ‘em ruinas; isto quando ele procura a peculiaridade dessas imagens em aque, “embora confeccionadas diretamente conforme a vida, dio a impressio de Vida jé acabada, de vida quo jé esté morta ou que est para morter”™. © texto de Baudelaire sobre Meryon dé a entender, por baixo do pano, a relevincia de tal antigiidade cléssica de Paris. shee fe Sine, oases et aceasta yo ta eer oe coor ae a eee ie ne ane eee eee er ee eat Serer oeet ine mater tet Oc Ge ge hee ae Bae ea ee eet heres ey eee a ae re a eae er cee Be eae ae ae ee ete eat a eee on ee Be arr ee car nn aetna eles Er cai coca ma 0 areas ren oe eee Pear ee aes eee eee eae Pe eee aaa een asa Pee eae Scar ace renee re eter ded ee ce ene BR ee et nese ea Be eg ea ea Gee eee eee ae acres arr ocoea tere ait oe eee Beco nate na gr a a Pe Ser anes cea ay 112 Et acidic ei Sacies al eathiene Ma Be ee oie see pe er om eons ee ee ee On teriam tido mais sentido do que hoje nelas se percebe, Entre essas cida- des, Roma estava, para ele, em primeiro lugar. Numa carta a Leconte de Lisle, confessa a sua “natural predilecao” por esta cidade, Provavel- ‘mente chegou a isso devido aos vindutos de Piranese, onde as ruinas ndo- -restauradas ainda aparecem como fazendo parte da nova cidade, O soneto que figura como trigésimo nono poema das Fleurs du mal ‘comeca assim: “Estes versos so teus: e se © meu nome Feliz aportar em épocas vindouras, E cérebros fizer sonhar por uma noite, Barco favorecido por um vento bom, ‘A tua meméria, parecendo um tambor, HE de, fabula incerta, fatigar o leitor” 2 Baudelaire queria ser lido como um clissico. Este desejo entrou em ‘vigor com espantosa rapidez, Pois o futuro longinquo, as époques loin- taines de que fala o soneto, chegou: mas tantos decénios apés a sua ‘morte quanto Baudelaire talvez. tenha pensado em termos de séculos. E verdade que Paris ainda continua de pé; e as grandes tendéncias da evo- ugao social continuam ainda as mesmas. Mas quanto mais constantes elas se mantiveram, tanto mais precétio se tornou, ao serem percebidas, © que se postulara sob 0 signo do “realmente novo". A modernidade ficou minimamente idéntica a si mesma; e a classicidade que nela deveria cxistir coloca, na realidade, a imagem do antiquado. an, p23 Haphotor, M. A propor de Baudelaire, op. ct p. 656. Bhp 3 it t'donne ces vers afin que si mon nom/Aborde hurewement aux époques Ioinaines/Et fait revern soir les cervelleyhumaines/Waiseau favonsé fat frand asilon//Ta mimoit, parle sux fables incertae, Fatigue ie lecce sia 4 oO es eS ite ale neat 113 “Pode-se reencontrar Herculano sob as cinzas; mas alguns poucos anos obrem os costumes de una sotedade bem melhor do que toda a peira A classicidade de Baudelaire € a romana, $6 num ponto a antigti- dade grega penetra em seu mundo. A Grécia Ihe fornece a imagem da herona que Ihe parecia digna possivel de ser transportada para a mo- demnidade. Gregos — Delphine e Hippolyte — sdo os nomes das figuras femininas num dos maiores ¢ mais famosos poemas das Fleurs du mal. E um poema dedicado ao amor lésbico. A lésbica 6 a heroina da moder- nnité. Fio condutor da eroticidade em Baudelaire — essa mulher que fala da dureza e da masculinidade —, ela foi penetrada por um temério his- t6rico: 0 da grandeza no mundo antigo. Isto faz com que a posigio da mulher lésbica nas Fleurs du mal se torne inconfundivel. Explica por que Baudelaire pensou em dar a esses poemas o titulo de Les lesbiennes. De resto, Baudelaire esta bem longe de ter descoberto a lésbica para @ arte. Balzac jé a conhecia na sua Fille aux yeux d'or; Gautier, em Mademoi- selle de Maupin; Delatouche, na Fragoletta. Ela também’ veio a encon- tro de Baudelaire através de Delacroix: um tanto veladamente na critica dos seus quadros ele fala de uma ‘“manifestagdo herdica da mulher mo- dema na ditecao do infernal” 2, Este motivo se encontra albergado no saint-simonismo, que, em suas veleidades cultistas, empregou freqiientemente a idéia de androginia. A las pertence o templo que deveria brilhar ma “Nova Cidade” de Devey- rier. Um adepto desta escola observa sobre ele “0 templo tem de representar um andrégino, um homem ¢ uma mulher. (...) A mesma divisio deve ser prevista para toda a cidade, até mesmo para todo 0 eino © a terra toda? haveré.o hemisfério do homem ¢ da smulher” 22 Nas concepgdes de Claire Demar, de modo muito mais compreensivel do ‘que nesta arquitetura que nao chegou a ser construida, esté a utopia saint- -simoniana em seu conteido antropolégico. Claire Demar acabou sendo esquecida em face das fantasias megalomanfacas dé Enfantin, O mani- festo que ela deixou esta mais préximo do cere da teoria de Saint-Simon — on seja, a hipéstase da inckstria enquanto forga que move o mundo — do que 0 mito da mae em Enfantin, Neste texto também se trata do mito da mae, mas essencialmente com uma outra opiniao do que aquelas espe- culagdes que sairam da Franca para ir buseé-lo no Oriente. Na imensa literatura daquela época relativa ao futuro da mulher, esse texto tem uma "AUREVILE, Barbey. Du dandysme et de G. Brummel. Memoranda, Paris 1887. p. 30, B10 Th p. 162, 320 D/ALLonacne, Honry-René, Les sainr-simoniens 1827-1837. Preticio de Sébastien aquua tympanon] Charly. Paris, 1980.'p. 310, { 114 posigio singular por sua forca e paixio. Apareceu com o titulo de Ma Joi davenir. No seu pardgrafo final pode-se ler: “Abaixo a maternidade! Abaixo a lei do sangue! Eu digo! Eu digo: abaixo a maternidade. Uma vez tendo a mulher (...) se libertado de hhomens que Ihe paguem o preso do seu corpo, (...) entéo ela deverd 4 sua existéncia (...) apenas ao seu préprio trabalho. Para tanto, ela precisard dedicar-se a uma atividade © cumprir uma fungio, (...) Vooés também tém de decidir, portanto, no sentido de passar o recém- -nascido do peito da mae natural para’ os bragos da mae social, pata ‘0s bragos da ama empregada pelo Estado. Assim, a crianga terd uma educagio melhor. (...) 6 entio, e no antes, 6 que os homens, as ‘mulheres e as criangas serdo libertados da lei’ do sangue, da lei da cexploragio do homem pelo homem” 221, ‘Ai se mostra, em versio original, a imagem da mulher herofna que Baudelaire andou assimilando. A sua variante Iésbica nao foi levada a feito primeiro pelos escritores, mas pelo préprio circulo saint-simoniano. © que af deve ser considerado em termos de testemunhos no estava, certamente, nas melhores mios estando ao encargo dos cronistas da pré- pria escola. Mesmo assim, de uma mulher que aderia & doutrina de Saint- Simon tem-se a notavel confissio seguinte: “Comecei a amar a minha préxima, a mulher, tanto quanto ao meu proximo, © homem. (...) Deixei para o homem a sua forga fisiea e & espécie de inteligéncia que the € prépria, mas coloquei a0 lado dele, ‘como equivalente, a beleza corpérea da mulher e os dons espitituais, ‘que Ihe so peculiares" #2, ‘Como um eco dessa confissdo ressoa uma reflexio critica de Baudelaire, quanto & qual nfo pode haver nenhum equivoco. Refere-se a primeira heroina de Flaubert. “Madame Bovary, naquilo que ela tinba de mais enérgico © de mais ambicioso ¢ também de mais sonhador, nisso Madame Bovary era um hhomem. Como Palas Atena, saida do cérebro de Zeus, esse bizarro andrégino guardou todas as sedugées de uma alma’ viril em um ‘charmoso corpo feminino.” = BiDmay, Cake. Ma fo dovenr, Obra péstuma publinda por Suzanne, Pari 1834. p. 58-9. Se i ma nie #2) Rpud Matsano, Frmin, La lgende de a femme émancipée, Histoire de femmes pat seri & thisoire coniemporsine. Parl 4p 65 FE" Baudelae: "dre": ea Benin? “Geis?” Cepito). (N. do 7) uh. {A"versio orginal de Baudelie € a seguine: “(...) madame Bovary, pout ce quil ya en ele de plus énerpigus ct de pus ambieot eau de pos Téveur ‘madame Bovary est reaée un homme. Conime la Pallas armée,sosie do cerven Se’ Zen, ce iare done 4 até fuse sedutons dune ime vie dans tn charmant corps feminn” Baboetatnn, ©. Oeuvres comple. Pare Fiend, 1961. p. 652. (N. do T.)] ae ‘ + ra a te vt 115 E, além disso, sobre o proprio escritor: “Todas as mulheres intelectualizadas saberdo ser-lhe gratas por ter ele- vado a ‘mulherzinha’ a um nivel (...) em que ela participa da dupla Inatureza que constitui o homem perfeito: tanto ser capaz de caleulo quanto de devaneio” 5, De uma $6 tacada, como s6 ele sabia fazer, Baudelaire promovia a esposa pequeno-burguesa de Flaubert a heroina. Na poesia de Baudelaire ha uma série de fatos importantes ¢ até ‘mesmo evidentes que passaram despercebidos. Um deles € a orientagio antitética dos dois poemas Iésbicos que, em Les épaves, se seguem um ‘a0 outro: “Lesbos” é um hino ao amor lésbico; “Delphine et Hippolyte”, ‘a0 contrério, € uma condenacio, ainda que a tremer de medo, dessa paixio. “Que querem conosco as leis do justo e do injusto? Vitgens do coragio sublime, honra do arquipélago, Vossa religifo, como outra qualquer, & augusta, E 0 amor hd de rir do Inferno e do Céu!” = Isto 6 dito no primeiro desses poemas; no segundo: “Descei, descei, lamentaveis vitimas, Descei © camiho do eterno inferno!” = A evidente discrepincia se esclarece do seguinte modo: ja que Bau- delaire no via a mulher lésbica como um problema — nem de ordem social nem de estrutura psiquica —, ele também nio tinha (poder-se-ia dizer: enquanto homem do mundo prosaico) nenhum posicionamento {quanto a ela, Mas, no quadro da modernidade, ele tinha um lugar para ela; ele néo a reconhecia inserta na realidade. Por isso 6 que escreve sem maiores preocupagées: “Conhecemos a filantropia que escreve, (...) a poetisa republicana, a ‘poetisa do futuro, seja ela da linha de um Fourier ou de um Saint- ‘Simon #28 — mas nunca podemos acostumar 0s nossos olhos (...) @ HOT, p. 448. i {A versdo original ¢ a seguinte: “(...) toutes les femmes intellectelles tui sauront gr€ @avoir élevé Ia femelle & une si haute puissance, si loin animal pur ets prés de homme idésl, et de avoir fait partciper & ce double caractere de aleul et de réverie qui constitue Tétre parfait” 1d,, ibid. p. 655. (N. do T:)] S01, p. 137 ‘“Gue nows veulent fes lois du juste et de Finjuste?/Vierges au coeur sublime, hhonneur de Varchipel,/Votre religion comme Une autre est auguste,/Et Tamour s¢ fra de "Enter et du Cil!") TT, p. 161. 2 Descender, descendes, lamentables victimes,/Descendez Ie chemin de Venfer Semel) ‘asTalvez uma velada referéncia A Ma loi @avenir de Claire Demar. todo esse comportamento forgado e repugnante (...), a essas imitagSes do espirito masculino” 2%, Seria absurdo supor que Baudelaire tenha alguma vez. pensado em defen- der, com a sua poesia, publicamente a mulher Iésbica. Isto pode ser com- provado pelas propostas que ele fez ao seu advogado para a sua defesa no processo contra as Fleurs du mal. A proscri¢lo burguesa ndo 6, para ele, separdvel da natureza herdica dessa paixio. O “descendez, descen- dez, lamentables victimes” so as tiltimas palayras que Baudelaire dirige & mulher Iésbica. Ele deixa que ela se aniquile, Ela nfo pode ser salva, pois a confusto de Baudelaire quanto a cla € insoldvel. século XIX comegou a valorizar, sem reservas, a mulher fora das atividades domésticas, no processo de producto. Fez isso preponderante- mente de um modo bem primitivo: empregou-a em fébricas. Com 0 correr do tempo, tragos masculinos tinham de acabar aparecendo nela, 4 que 0 trabalho de fabrica a condicionava, entao, sobretudo, fazendo com que ela ficasse mais feia. Formas mais refinadas de produgdo, mesmo de luta politica enquanto tal, poderiam favorecer tracos masculinos em uma forma mais nobre. Talvez.0 movimento das “vésuviennes” possa ser entendido neste sentido. Ele colocou a disposicéo da Revolugio de Feve- reiro um batalhdo composto de mulheres. “'Nés nos chamamos de vésuvidnnes", pode-se ler nos estatutos, “para com isso dizer que em cada mulher ‘a nds incorporada esti operando tum vuleéo revolucionacio.” #7 Em tais alteragSes do comportamento feminino surgiram tendéncias que bem podem ter ocupado a fantasia de Baudelaire. Nao seria de se admi- rar que a sua profunda idiossincrasia contra a gravidez. também tenba ai estado em jogo, A masculinizacio da mulher dizialhe algo. Baude- laire aprovava, portanto, todo esse processo. Mas, ao mesmo fempo, era- -lhe importante deslocé-lo da tutela econémica. Assim, ele conseguia dar a essa evolugéo um acento puramente sexual. © que ele nao podia perdoar a George Sand era, talvez, ela ter profanado os tracos de mulher lésbica através de sua aventura com Musset. A atrofia do elemento “prosaico” que se revela no posicionamento de Baudelaire ante a mulher lésbica também é significativa para ele em outros textos.. Ela causava estranheza em observadores atentos. Em 1895, Jules Lemaitre escreve: 2011, p. 534, £30 Parls sous la République de 1848. Exposition de la Bi historiques de la ville de Patis, Paris, 1909. p. 28, 31.Um fragmento de 1844 (I, p. 243) parece ser aqui a chave, — O conbecido esenho, a bico do pena, da madrasta feito por Baldelaite mosira um jeito de andar gue impressionanemente parecdo como de ume mulher grids, S10 nfo {estemuniha contra a idiosincrasia, jothaque et des travaux 117 “Bsti-se ante uma obra cheia de artificios e contradiges intencionais (...) No instante em que se compraz na descrigdo mais crassa dos detalhes mais chocantes da realidade, cle parte para um espiritualismo ‘que fica bem longe daquela primeira impressio que as coisas exercem sobre nés. Baudelaire considera a mulher como uma escrava ou um ani- mal, (...) mas presta-the as mesmas homenagens que & Virgem Maria. Amaldigoa o ‘progresso’, abomina a indistria do século stual (...) e ‘mesmo assim, compraz-se na atmosfera toda especial que essa industria, tem acarretado para a nossa vida de hoje. (...) Crefo que o especifi- ‘camente baudelairiano consiste em sempre juntar duas espécies opostas de reagdo, poder-se-ia até dizer: uma passada e uma presente. Uma cobra-prima da vontade (...): a ditima novidade no Ambito da vida sentimental” 2, Imaginar essa atitude como grandioso ato de vontade era algo que cabia bem no esquema baudelairiano. Mas o seu reverso é uma falta de convicgdo, de conhecimento, de perseveranga. Baudelaire estava sujeito a mudangas bruscas, de choque, em todas as suas reacdes. Tanto mais se- dutor lhe era viver de um outro modo, nos extremos. Isto se forma no clima encantatério de muitos dos seus versos mais perfeitos: ele até chega @ se autodenominar em alguns deles. “Mire e veja esas canoas, Barcos a dormir pelos canis, ‘Com humor téo vagabundo: 6 para ver saciado Quaiquer desejo seu, Eles vém, do fim do mundo.” *° Um ritmo embalador caracteriza esta famosa estrofe: 0 seu movi- ‘mento atinge as embarcagées que se encontram amarradas no canal. Ser embalado entre os extremos, como € privilégio dos navios, a isso € que Baudelaire aspirava. A imagem deles emerge quando se trata de sua di- retria bésica, secreta paradoxal: ser levado pela grandeza, estar a salvo nna grandeza, “Bssas belas e imensas embarcagées, veja como elas s40 imperceptivel- mente embaladas pelas guas trangiilas, essas embarcagdes fortes, que parecem tio ansiosas e tio ociosas — sera que elas nio nos perguntam, ‘puma linguagem muda: quando iremos 1a para a felicidade?” = Nas embarcagdes se retine a nonchalance com a disposigéo para um supremo emprego de forcas. Isto lhes confere um secreto significado. Dé-lhes uma constelagéo peculiar em que no homem também se unem 32 Lesalras, J. Les contemporains, op. ci ‘OI, p. 67. ‘rNois ‘sur ces canaux/Dormir ces vaisseaux/Dont Vhumeur est vagabondey/ {Ces pour assouvir/Ton moindre désir/Quils viennent du bout du monde."| TL, p. 630. p. 2831, 118 grandeza ¢ paz interior, Isso governa a existéncia de Baudelaire. Ele a decifrou, chamando-a de ‘‘modernidade”. Quando ele se perde no espe- taculo das embarcagSes no ancoradouro, isso ocorre para ai decifrar uma comparagao. O her6i € téo forte, tao repleno de sentido, to harmonios0, tio bem construido quanto esses veleiros. Mas o alto-mar em vao acena para ele. Pois uma estrela mé guia a sua vida. A modernidade revela-se como a sua fatalidade. Nela o herbi néo esté previsto: ela nao tem ne- hum emprego para esse tipo de gente. Ela o prende para sempre num porto seguro; ela o entrega a uma eterna ociosidade. Nesta sua ultima ‘encarnagao, 0 her6i aparece como dandy. Ao encontrar uma dessas figu- ras que, gracas & sua forca e serenidade, so perfeitas em cada um de seus gestos, entio se diz: “esse que af passa talvez seja rico; mas certamente nesse transeunte se esconde tum Hércules, para o qual nfo existe nenhum trabalho” Ele dé a impress de ser carregado por sua propria grandeza. Por isso & compreensivel que Baudelaire acreditasse a sua fldnerie vestida em certas horas com a mesma dignidade que a intensidade de sua forea postica. Para Baudelaire, o dandy se constituia num descendente de grandes antepassados. Para ele, o dandismo “o iltimo lusco-fusco do heréico em perfodo de decadéncia” *¥*, Agradou-lhe descobrir em Chateaubriand ‘uma referéncia sobre indios que eram dandys — testemunhos do passado florescimento dessas tribos. Na verdade € impossivel desconhecer que os tragos que estio reunidos no dandy tém um registro histérico bem defi- nido. O dandy € marcadamente inglés, dos ingleses que dominavam o ‘mercado mundial. Nas maos dos operadores da Bolsa de Londres é que cstava a rede comercial que se estendia por todo o planeta: as suas malhas sentiam as mais diversas, freqiientes e insuspeitas vibragdes. © homem de negécios tinha de reagir a elas, mas sem trair as suas reagdes. A con- tradiglo nelas gerada através disso foi adotada pelos dandys. Aperfeicoa- ram 0 engenhoso treifio necessério para controlar isso. Souberam con- jugar a reagio fulminante com tragos fisiondmicos ¢ uma mimica des- contraidos ¢ como que adormecidos, A mania que, por algum tempo, foi considerada elegante 6, até certo ponto, a representacdo desajeitada e menor dessa problemética. Muito significative quanto a isso € 0 se- ‘guinte: “0 rosto de um homem.elegante precisa sempre (...) ter algo de convulsive e distorcido. Caso se queira, pode-se atribuir tis caretas a ‘um satanismo natural” #7, BL, p. 352. welt, p. 351, 281 Lee Petts-Pare, Pat les auteurs [Taxile Delord etal] des Mémoires de Bilboguet. v. 10: Parlsvlveur, Paris, 1884. p. 26. 119 ‘Assim se desenhava na mente de um boulevardier parisiense a figura de uum dandy londrino. Assim é que ela se espelhava fisionomicamente em Baudelaire. O seu amor pelo dandismo néo foi nada feliz. Ele néo tinha © talento de agradar e, na arte do dandy, agradar & um elemento impor- tantissimo. O que nele por natureza aparecia como estranho ¢ tinha de set transformado em mania acabou levando a0 mais profundo abandono, pois, com o erescente isolamento, aumentou a sua inacessibilidade. ‘Ao contrério de Gautier, Baudelaire néo gostou de sua época nem pode, como Leconte de Lisle, enganar-se quanto a ela. Nao Ihe servia 0 hhumanitarismo idealista de um Lamartine ou de um Hugo, nem Ihe era dado, como a Verlaine, refugiar-se na devogio. Por nao ter convicgBes, préprias, assumia sempre novas figuras. Fldneur, apache, dandy ¢ tra- peiro eram, para cle, outros tantos papéis. Pois 0 heréi modemno no é lum her6i: apenas representa o papel de her6i. A modernidade herdica mostra ser uma tragédia em que 0 papel de her6i esté vago. © proprio Baudelaire aludiu veladamente a isso numa observagao marginal do seu “Sept vicillards”: “Numa certa anh, enquanto na triste rua ‘As mans6es, a que névoa alongava a altura, Simulavam os dois cais da cheia de um rio, Decoragio a copiar © coragio de um ator, E uma bruma suja ¢ amarela a tudo inundava, L& vinha eu, nervos tensos feito um hersi, A diseutir com minha alma to cansada, Pela rua sacudida por carrogas pesadas” 26, Cenétio, ator ¢ her6i se retinem de forma inequivoca nestas estrofes. (0s contemporiineos nao precisavam de qualquer esclarecimento. Courbet, ao retratéclo, queixava-se de que Baudelaire parecia diferente a cada dia. E Champfleury atribui-lhe o talento de conseguir alterar a sua expresso fisionémica como um condenado em fuga*¥, Valles, em seu maldoso necrol6gio, mas comprovando muita perspicécia, chamou Baudelaire de cabotino #2, Por trés das méscaras que usava, 0 poeta em Baudelaire resguar- dava o incégnito, Por mais provocador que pudesse parecer no trato, tanto mais cuidadoso ele era em sua obra. O incSgnito é a lei da sua 2061, p. 101 "Un matin, copendant que dans la triste rue/Les, maisons, dont ta brame allongeait Ia hauteury/Simulaient les deux quais une riviére avcrue,/Et que, décor Semblable & ['lme de Tacteur,//Un broulllard sale et jaune inondait tout Vespace,/ ‘Ne suivaiy roidissant mes nerfs comme un héros/ Et discutant avec mon ime dé) lase,/Le faubourg secous par Tes Tourds tombereaux.") a0 Cf. CuaMoriuuny, J. H. Souventrs et portratis de jeunesse. Pari, 1872. p. 135. 20 Copiado de “La sition” por BILLY, André. Les écrivains de combat. Paris, 1931. p. 189, 120 poesia. A sua construcdo dos versos & compardvel ao plano de uma grande cidade, na qual se pode movimentar-se sem ser percebido, enco- berto por blocos de casas, portdes ou pitios. Neste mapa, as palavras tém, como eonspiradores antes de estourar uma rebeligo, os seus lugares indi- cados com toda precisio. Baudelaire conspira com a prOpria linguagem. Passo a passo calcula os seus efeitos. Que ele sempre tenha evitado se desvelar ante o leitor é algo de que se ressentiram exatamente aqueles que melhor o conheciam, Gide observou af uma bem calculada diver- ‘géncia entre imagem e coisa, Rivitre destacou como Baudelaire parte da palavra rara, como ele a ensina a aparecer de leve enquanto cautelo- samente vai se aproximando da coisa, Lemaitre fala de formas que sao estruturadas de tal modo que impedem a explosio da paixio * e La~ forgue destaca a comparacio baudelairiana que, ao mesmo tempo, des- mente a pessoa lirica ¢ a insere no texto enquanto perturbadora da paz. “A noite se tormava espessa como um tabique” ™ — “outros exemplos podem ser encontrados em abundancia” *, acrescenta Laforgue * ‘A separacdo das palavras entre as que pareciam adequadas a um uso elevado ¢ outras que estariam excluidas dele influenciou toda a produedo poética e andou vigente para a tragédia no menos que para fa poesia lirica. Nos primeiros decénios do século XIX, esta convengao permaneceu, inconteste, em vigor. Na encenacdo do Cid de Lebrun, a palavra chambre despertou um murmtrio desfavordvel. Ofelo, numa tra- Gugao de Alfred de Vigny, fracassou por causa da palavra mouchoir, cuja ‘mengao parecia intolerivel em sua tragédia. Victor Hugo tinha comegado 1 aplainar na poesia a diferenca entre as palavras da linguagem corrente as da linguagem clevada. Sainte-Beuve havia procedido de forma seme- Ihante. Em Vie, poésies et pensées de Joseph Delorme declarou: “Tentei (...) ser original a meu modo, de um modo modesto, bem Dburgués. (....) Dei o nome aos bois, mesmo nas coisas da vida intima; ‘mas, nisso, a cabana me estava mais proxima do que a aleova” *% Baudelaire ultrapassou tanto o jacobinismo verbal de Victor Hugo quanto as liberdades bucélicas de Sainte-Beuve. Suas imagens sdo originais devido 30°CE Gabe, A. Baudelaire ct M. Faguet, op. cit. p. 512. MICE Rivas Jacque, Buen (8d. Pat, 1548p. 15) 20CE Lewatmns, J. Les contemporains, op. ct. p. 29 244 (La nuit s'épaissisait ainsi qu'une clolson.”| Evora, Jule: Malngespostame. Pay 190, p11 348 Dessa espécie: “Nous voulons au passage un plaisir clandestin/Que nous pressons bien fort comme une Vieille orange." (hp. 17): “Ta gorge triomphante est une belle armoire.” (I, p. 65); “Comme un singlot coupé para un sang éoumeux/Le chant du coq au loin déchirait Tair brumeux.” (1, p. 118); "fa te avec Faas dea cre sombre/Et de ae bijux prsiews/Sir la table de nult, comme une renoncule,/Repose.” (I, p. 126). 1347 Sunre-Beuvs, C. A. Vie, podsies et pensées de Joseph Delorme, op. cit. p. 170. 121 & baixeza dos elementos comparados. Procura ver 0 processo banal para aproximé-lo do postico. Fala dos “vagos terrores dessas noites me- donhas que comprimem o coracdo como se amassa um papel” *, Essa postura verbal que caracteriza o artista em Baudelaire s6 se torna real- ‘mente significativa no plano alegérico. Confere & sua alegoria 0 des- concertante que a distingue das alegorias comuns. Lemercier foi o sltimo a povoar com elas o parnaso do Empire; assim fora alcangado 0 ponto ais baixo da poesia neocléssica, Baudelaire nfo ficou preocupado com isso, Junta alegorias em penca: mediante o contexto verbal em que ele as desloca, altera profundamente o carster delas. As Fleurs duc mal si0 0 pri- meiro livro a também empregar na lirica palavras nao s6 de provenincia prosaica, mas urbana, Nisso elas nao evitam, porém, de jeito nenhum, construgdes que, livres da pitina poetizante, chamam a atengio por sua natureza esteteotipada. Elas conhecem quinguet, wagon ou omnibus; nao fogem horrorizadas de bilan, réverbére e voirie. Assim, esté montado 0 vvocabulério lirico em que, de repente e sem qualquer aviso, aparece uma alegoria. Se o espirito da linguagem de Baudelaire pode ser fixado nalgum ponto, entao € nessa brusca coincidéncia. Claudel formulou isso de modo Aefinitivo. Disse uma vez. que Baudelaire havia reunido o modo de escre- ver de Racine com 0 de um jomalista do Second Empire. Nenhuma pa- lavra do seu vocabuldrio esté predestinada & alegoria. Recebe tal encargo de caso em caso: conforme 0 assunto de que se trata, conforme o tema estiver sendo abordado, analisado e elaborado. Para esse golpe de Estado que, em Baudelaire, se chama fazer poesia, ele recorre & alegoria, S6 ela esta de posse do segredo, Onde se _mostram la Mort ou le Souvenir, le Repentir ou le Mal, ai esté 0 centro da estratégia poética. O sibito surgimento dessas cargas, recognosciveis por sua maidscula ¢ encontré- veis no meio de um texto, texto que nao rejeita 0 vocdbulo mais banal, mostra que af esté presente a mao de Baudelaire. A sua técnica € a de uum putschista Poucos anos apés a morte de Baudelaire, Blanqui coroava a sua carreira de conspirador mediante uma memorével obra-prima. Foi de- pois do assassinato de Victor Noir. Blanqui queria ter uma visio geral do estado de suas tropas. De vista, ele conhecia basicamente apenas os seus chefes subalternos. Nao se sabe até que ponto ele conhecia todos os membros de sua corporacdo. Geoffrey descreven isso do seguinte modo: langui (...) saiu de casa armado, disse adeus as suas irmas © assumiu ‘9 seu posto nos Champs-Elysées. Conforme entendimentos com Granger, af deveria ocorrer o desfile das tropas cujo misterioso general era Bla ui. Ele conhecia os chefes e, agora, deveria ver atrés de cada um deles, 1, p. 57. ‘ChVagues terreurs de ces affreuses muits/Qui compriment Je ewur comme un papier qu'on frosse."] em passadas uniformes ¢ formagGes regulares, o pessoal deles desfilando fa seu lado. Aconteceu como combinado. Blangui efetuou a sua revista, Sem que ningugm desconfiasse de algo nesse estranho espeticulo. No ‘meio da multido que o olhava — e para a qual ele também olhava —, 6 velho homem estava Fecostado a uma Srvore e via atentamente 0s seus Companheiros chegando em colunas, aproximando-se mudos, mas mur- ‘murando, a todo momento interrompendo isso através de aclamagies" *°, A forga que tornava isso possivel esté preservada em palavras com a poesia de Baudelaire. “Baudelaire também quis reconhecer, ocasionalmente, no conspirador fa figura do her6i moderno. “Fora com as tragédias!”, escreveu ele no Salut Public durante os dias de Fevereiro. “Abaixo a histéria da Roma ‘antiga! Sera que nfo somos hoje maiores do que Brutus?" 2° Maior do {que Brutus era, por certo, um exagero. Pois quando Napoleso TIT assu- miu o poder, Baudelaire nio reconheceu nele um César. Nisso Blangui ihe era superior. Mais profundas que as divergéncias entre os dois eram, contudo, as stias convergéncias: a grande persisténcia e a impaciéncia, a forca da indignagio e do dio, mas também a impoténcia. Numa passa- gem famosa, Baudelaire se despede, com o coragao leve, de um mundo fem que a acio nfo é irma do sonho” #!, © seu sonho nfo estava tio abandonado quanto the parecia. A ago de Blanqui foi a irma do sonho de Baudelaire. Ambos esto intimamente entrelacados. Sdo duas méos entrelagadas sobre uma lépide em que Napoledo IIL havia enterrado as esperangas dos combatentes de Junho. 4360 Gurrnoy, G. Lenfermé, op. cit, p. 276-7. ‘20 Apud Cxéer, E. Charles Baudelaire, op. cit. p. 81. ih p. 136. See. te Ae baja op se we oe Ree eat 3. PARQUE CENTRAL * 1 A hipétese de/Laforgue quanto a0 comportamento de Baudelaire no bordel recoloca sob o enfoque correto toda a abordagem psicanaltica que ele lanca sobre Baudelaire. Esta se harmoniza, trecho apés trecho, com fa abordagem “*hist6rico-lierdria” convencional, [A beleza tha especial de tantos infos de poemas baudeliranos 6; a pmagéncia 1d dof ise. Stephan George traduziu spleen et idéal por “Truebsinn und Ver- stigung” (melancolia ¢ espiritualizacao), acertando com isto o signt- ficado ideal do Ideal em Baudelaire. Caso se possa dizer que a vida modema é, em Baudelaire, o funda- mento das imagens dialéticas, entio af esté incluido 0 fato de Baude~ laire ter'se 1a de modo semelhante ao do século XVII em relagio a antigiidade classica. Caso se considere tudo 0 que Baudelaire, enquanto poeta, tinha de respeitar em termos de suas prépriss leis, concepgdes ¢ tabus, bem como, por outro lado, quéo minuciosamente estavam prescritas as tarefas de seu labor poético, surge nele entdo um trago herdi Pe 18 BE fa Van net mrogndo de manson, Walt, Zena. In: —.. Geanilic Shite. ** we Ore. gor Rell Tademann e Hernan Schweppeahiuact Frankfurt aM, Sata Veilng 1974. - 65530.

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