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Tradução para o português de Maria Angélica Borges com a colaboração de Silvia Salvi
(trad.it. di E. Cantimori Mezzamonti, Per la critica dell´econmia K.Marx-F.Engels, Opere scelte, Roma, Editori Riuniti, 1966, pp.340-
política, Roma, Editori Riuniti, 1972, p.70). 341).
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como ponto de partida os complexos que funcionam, de ideal, isto é, o complexo de idéias que determinam as
modo elementar, ao invés de querer entender suas leis posições teleológicas, constitui também aqui o momento
isolando artificiosamente alguns "elementos" e da iniciativa, mas é ao mesmo tempo o momento da
concatenando-os de maneira mecânico-metafísica. Onde realidade (concordância ideal com o real) e o critério da
conduz este último caminho, pode-se ver com facilidade realização.
considerando-se a crítica dirigida por Marx a tese de Anteriormente vimos como tal papel do
James Mill, segundo a qual, sendo cada compra uma momento ideal não elimina absolutamente a legalidade
venda (e vice-versa), com isso assegura-se objetiva do processo global. No momento em que cada
"metafisicamente" um permanente equilíbrio na troca de posição teleológica pretende pôr em movimento cadeias
mercadorias. Mil1 diz: "Nunca pode haver insuficiência de causais reais, a legalidade desenvolve-se como síntese da
compradores para todas as mercadorias. Quem quer que ponha à sua dinâmica objetiva, na qual se afirma necessariamente,
venda uma mercadoria, exige receber uma outra em troca, e é então à revelia dos produtores singulares, prescindindo-se das
comprador somente pelo fato de ser vendedor. Compradores e suas idéias e intenções. Isto não significa, porém, que a
vendedores de todas as mercadorias tomadas no seu conjunto, devem contradição descrita seja irrelevante. Ao contrário.
então equilibrar-se em virtude de uma necessidade metafísica". Precisamente, a diversidade das formas fenomênicas, dos
Marx contrapõe de saída o simples fato da circulação das efeitos, etc. que nas diferentes formações econômicas
mercadorias: "O equilíbrio metafísico das compras e das vendas são diferentemente suscitadas pelo complexo elementar
limita-se ao fato de que cada compra é uma venda e cada venda é M-D-M, representa um momento de grande relevo no
uma compra, o que não constitui um grande conforto para os processo econômico global. Marx sustenta ainda que, em
portadores das mercadorias, os quais não conseguem vender, estágios mais avançados da economia, tornados sempre
tampouco comprar".15 A tese de Mill baseia-se precisamente mais sociais, está implicitamente contido o germe das
na idéia da isolabilidade e no isolamento típico da ação crises econômicas. Mas somente o germe, porque o
dos "elementos" do mundo econômico. Em sentido realizar-se da crise "exige todo um conjunto de relações que, do
gnosiológico ou lógico, abstrato-formal, pode-se também ponto de vista da circulação simples das mercadorias, ainda não
afirmar com aparente segurança que cada compra é uma existe".18 Assim sendo, embora tais nexos entre
venda e vice-versa. Na circulação real das mercadorias, "elementos" dinâmico-simplistas do ser social constituam
ao contrário, acontece que a mais simples, a mais decisões alternativas teleológicas e o processo econômico
elementar forma de troca é uma corrente, cujo elo mais global seja considerado por Marx com grande cautela
simples é representado pelo nexo mercadoria-dinheiro- crítica, a sua análise revela com clareza que as leis
mercadoria ou dinheiro-mercadoria-dinheiro. E já nessa econômicas objetivas, independentemente da decisão
forma elementar aparece a contradição: "Ninguém pode individual, aliás independente também da somatória
vender, sem que outro compre. Mas ninguém precisa comprar logo, social, definitivamente são na sua estrutura e dinâmica
só pelo fato de ter vendido". 16 Na vida econômica, isto é, reconduzíveis a esses "elementos", às características das
quando se considera o ser autêntico e não uma figura posições, à sua dialética de ideal e real. Por meio da
artificialmente isolada, deformada na abstração, não crítica ontológica das generalizações teóricas de fatos
existe nenhuma necessidade "metafísica" pela qual venda econômicos elementares, concretiza-se em Marx a
e compra devam ser idênticas. Ao contrário. E isto no característica de última instância das conexões mais
plano ontológico depende mais uma vez do fato de que gerais na sua relação com as respectivas leis concretas.
cada ato econômico apóia-se numa decisão alternativa. Como vimos, estas têm sempre o caráter histórico-
Quando alguém vendeu sua mercadoria e está na posse concreto, de "se ... então". A sua forma generalizada, a
do dinheiro, deve decidir se compra ou não com esse sua elevação ao conceito, todavia, não é - em contraste
dinheiro uma outra mercadoria. Quanto mais com Hegel - a forma mais pura da necessidade e, nem
desenvolvida a economia, quanto mais socialmente mesmo, como pensam os kantianos ou os positivistas,
determinada a sociedade, tanto mais complexa se torna uma mera generalização intelectual; ao contrário, no
essa alternativa, tanto mais indispensável se torna a sentido meramente histórico, é uma possibilidade geral,
causalidade, a relação heterogênea entre compra e venda. um campo real de possibilidades para as realizações
De fato, a divisão do trabalho "é um organismo natural legais concretas de "se ... agora". Em uma das suas
espontâneo de produção, cujos fios foram tecidos e continuam a ser exposições sobre a teoria da crise, Marx sublinha
tecidos à revelia dos produtos de mercadoria".17 Ela torna tão fortemente esta diferença: "A possibilidade geral da crise é a
unilateral o trabalho, quanto tornam-se multilaterais as metamorfose formal do capital mesmo, a separação temporal e
necessidades. Para o produtor singular isso significa que espacial de compra e venda. Mas esta não é jamais a causa da
a sua produção é o resultado de posições teleológicas que crise. Porque não é senão a forma mais geral da crise, eqüivale
- seja pela quantidade, seja pela qualidade, podem ser dizer a crise mesma na sua expressão mais geral. Procura-se a sua
justas ou falsas em relação às necessidades sociais que causa, quando se quer saber por que esta é a sua forma abstrata,
devam satisfazer e em relação ao trabalho socialmente na forma da sua possibilidade, da possibilidade tornada
necessário -, diz respeito àquela produção. O momento realidade".19 Sobre, a importância decisiva desta
15 K. Marx, Zur Kritik etc., cit., pp.86-87 (trad.it.cit. pp.77-78). 18 Ivi, p.78 (ivi, p.146).
16 K. Marx, Das Kapital, I, cit., p.77 (trad. It.cit., p.146). 19 K. Marx, Theórien über den Mehrwert, II, 2, cit., p.289
17 Ivi, pp.70-71 (ivi, p.139). (trad.it.cit.p.557).
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concepção da legalidade, voltaremos a falar ainda A análise até agora conduzida a respeito da
profundamente no capítulo dedicado à ideologia. No constituição ontológica da esfera econômica dá a esta
momento, nos limitamos a observar que Marx, também união dialética entre causalidade e teleologia - embora
nesse caso, entende a possibilidade no sentido da heterogeneamente - uma figura mais concreta do que a
dynamis aristotélica e não simplesmente como uma inter-relação acenada entre momento ideal e real. A
categoria gnosiológica da modalidade. concretização ontológica depende objetivamente do fato
Aparece claro, então, como a estrutura que, se de que diante da causalidade natural não existe mais
exprime na recíproca polaridade dialética de ideal e real, somente a posição teleológico-humana que a move mas,
por nós agora indicada, atravessa de um ponto a outro ao invés, já no campo da economia pura, o ser social
toda a esfera econômica e - sem ao menos prejudicar o também, menos composto, é movido pelas atividades
objetivo dos nexos legais - exerce uma influência humanas. Quando a troca de mercadorias realiza-se,
determinante sobre o conteúdo e sobre o modo de temos um processo que acontece diretamente e no
apresentar-se das suas realizações. A objetividade e a terreno do ser social, onde obviamente a intervenção
legalidade específicas da realidade econômica têm como teleológica na causalidade natural - não importa quando
sua base indispensável o fato de ser e Marx sublinha mediado - é a base suprimível, o que porém não elimina
muitas vezes - um processo histórico, que é criado pelos o caráter essencialmente social da troca de mercadorias, a
próprios homens que estão interessados e constituem a índole social das suas categorias. Aqui, de fato, no campo
sua história, realizada por eles mesmos. Aqui, também, a da economia pura, não precisamos dizer que isto se
teoria marxiana do ser social, discutindo precisamente a verifica sempre no intercâmbio orgânico com a natureza,
problemática do seu fundamento material, a economia, onde são movidas aquelas posições teleológicas cuja
põe luz à interdependência dialética, à referência finalidade é a de influenciar outros homens. Atrás da
recíproca, à indissolubilidade ontológica na economia fórmula M-D-M esconde-se, em cada caso, a realidade de
entre as atividades humanas preparadas de forma ideal e um grande número de posições teleológicas desse feitio;
a legalidade econômico-material desenvolvida a partir algumas se realizam, outras não. O homem que cumpre a
delas. Analisando a ontologia do trabalho, Marx posição teleológica no âmbito da economia, está também
demonstrou que é insustentável a tradicional diante da totalidade do ser, e enquanto o ser social aí
contraposição entre teleologia e causalidade. Disso desenvolve um decisivo papel de mediações, pois o
resulta que a dinâmica do ser natural é determinada pela confronto com o ser natural nunca pode ser totalmente
causalidade sem a teleologia. Conclui-se disso que a imediato, mas passa sempre pela mediação econômica,
interligação da causalidade e teleologia é uma no curso desse desenvolvimento torna-se sempre mais
característica ontológica primária do ser social. Por um mediatizado. O momento ideal da posição econômica,
lado a representação ou a intenção subjetiva de uma aquele que agora nos interessa, tem como seu oposto
posição teleológica torna-se algo puramente mental, ou polar o momento real, que tais mediações tornam
seja, uma intenção humana sem eficácia, quando não põe predominantemente social. Isto retroage no tipo de
em movimento - diretamente ou de modo fortemente decisões alternativas que intervém, em relação à
mediado - as correntes causais da natureza inorgânica ou componente ideal. Como o simples fato da interligação
orgânica. Na ontologia do ser social não há teleologia entre teleologia e causalidade ter significado uma ruptura
enquanto categoria do ser, sem uma causalidade que a radical com todas as velhas soluções filosóficas sobre
realize. Por outro lado, todos os fatos e eventos que esta relação, então a situação geral que existe no âmbito
caracterizam o ser social enquanto tal são resultados de da economia nos fornece um ulterior ponto de apoio
elos causais postos em movimento teleologicamente. para iluminar as relações da atividade humana, da práxis
Como é óbvio, há eventos causais que não são postos humana, com a legalidade daquele ser que para esta
teleologicamente (terremotos, tempestades, o clima, etc.), representa o pressuposto, o ambiente e o objeto. A partir
que muitas vezes têm efeito relevante para o ser social do momento em que, tanto neste caso, como também no
concreto; e não somente em sentido destrutivo, mas trabalho, temos que lidar com a gênese do complexo de
também positivo (uma boa colheita, um vento favorável, problemas constituído pela liberdade e necessidade, a
etc.). Nos confrontos de determinados fenômenos questão não pode mais ser tratada aqui, no seu nível
naturais desse tipo, até a sociedade mais desenvolvida, máximo de desenvolvimento.
ainda encontra-se vulnerável. Isto não exclui, porém, que E, embora a possibilidade e necessidade
o desenvolvimento econômico do ser social tenha uma ontológicas de decisões alternativas representem a base
força decisiva no domínio de forças naturais de qualquer de toda liberdade - para aqueles seres que não devem e
tipo. Por outro lado, aqueles mesmos eventos naturais nem podem ter alternativas como fundamento prático da
que, de alguma maneira não são dominados, provocam própria existência, a questão da liberdade não se põe
posições teleológicas e resultam assim inseridos a tampouco -, as duas coisas não são idênticas entre si.
posteriori no ser social. E também se esse domínio da Sem entrarmos por ora no problema da liberdade,
natureza pode apresentar-se apenas como tendência em podemos todavia dizer, como resultado da ontologia
contínuo progresso é nunca como estado modificado, é marxiana do ser social, que na práxis não existe nenhum
contudo evidente que a origem teleologicamente posta ato que não tenha como seu fundamento uma decisão
dos eventos e das objetividades constitui o elemento alternativa. Uma contraposição metafísica entre
ontológico específico do ser social. necessidade (não liberdade absoluta) e liberdade jamais
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existiu no ser social. Existem simplesmente estágios de história da filosofia, só foi visto por Aristóteles e Hegel.
desenvolvimento da práxis humana, que se podem E mesmo assim de modo parcial e não em todas as suas
individualizar na sua gênese, determinados pela dialética conseqüências. Nìcolai Hartmann foi o único filósofo
histórico-social que, em correspondência as suas burguês de nossos dias que, dentro de certos limites, viu
condições e exigências, com modos diferentes de o sentido real dos problemas do ser; ele tentou recolocar
apresentar-se, com formas e conteúdos diferentes, não para o público filosófico a análise de Aristóteles, embora
produzem, reproduzem, desenvolvem, problematizam, trazendo exemplos tirados do campo do trabalho, da
etc., socialmente a essência, sempre e em cada caso arquitetura e da medicina, para iluminarem
fundada sobre decisões alternativas. Isto deriva da concretamente a maneira de ser da teleologia; no
constituição ontológica do ser social, na qual nunca entanto, incorreu na incoerência de fundar sua teleologia
aparece uma necessidade não determinada na gênese por do mesmo modo que a sua concepção da natureza.
atos conscientes. Evidentemente, como vimos na análise Hartmann vê, com justo sentido crítico, que na teleologia
do trabalho, as conseqüências causais dos atos aristotélica estão excluídos todos os processos "que não
teleológicos afastam-se das intenções dos sujeitos que são guiados pela consciência"; consequentemente, as
põem aliás, indo muitas vezes até em sentido oposto. concepções da natureza e da história têm somente
Mas quando, só para repetir um exemplo do qual nos caráter teleológico. Hartmann, além disso, completa a
servimos freqüentemente, a tentativa de obter um super- análise aristotélica, que distinguia noesis e poiesis,
lucro num estágio determinado de desenvolvimento subdividindo posteriormente o primeiro ato em "posição
capitalista determina a queda da taxa de lucro, da finalidade" e o outro em "seleção de meios". Com
defrontamo-nos com um processo que ontologicamente isso, ele realiza um progresso real na aproximação do
difere daqueles que se realizam, determinados pelas leis fenômeno, dando passos essenciais em direção à visão
naturais, como as diferentes constelações, uma pedra concreta da posição teleológica, quando nos mostra que
rolando de cima para baixo, ou alguns vírus provocando o primeiro ato contém em si um endereçar-se do sujeito
uma doença no organismo. ao objeto (somente pensado), enquanto que o segundo é
Assim, a totalidade do ser social, nos seus traços uma "determinação retroativa", enquanto são
ontológicos fundamentais, é construída sobre as posições construídos retroagindo, a partir do novo objeto
teleológicas da práxis humana; isto, no seu sentido planificado, os passos que lá conduzem.20 Os limites da
formal, sem levar em conta o grau de correção com o concepção de Hartmann mostram com a máxima
qual o ser, falando em geral, é captado pelos conteúdos evidência que ele não analisa posteriormente o ato da
teóricos destas posições, dado que elas podem somente posição da finalidade e contenta-se em afirmar, não
realizar suas finalidades imediatas, e, obviamente sem incorreta mas insuficientemente, que esta posição parte
levar em conta a correspondência ou não entre as da consciência, em direção ao futuro, em direção a
intenções dos sujeitos que põem e seus efeitos causais. alguma coisa que ainda não existe. Mas na realidade, a
Do ponto de vista objetivo, o que conta são quais as posição da finalidade tem uma gênese e uma função
cadeias causais postas em movimento por estas posições social muito concretas. Estas provêm das necessidades
e quais efeitos produzam na totalidade do ser social. Para dos homens, não simplesmente das necessidades em
vermos com toda clareza os problemas ontológicos que geral, mas de desejos explícitos, particulares, de obter a
daí derivam, nos parece necessário considerar um pouco satisfação efetiva; por isso, são estes desejos junto a
mais de perto estas posições teleológicas, com referência circunstâncias e aos meios concretos e possibilidades
seja à sua constituição objetivo-estrutural, seja à sua ação socialmente existentes, que determinam de fato a posição
sobre os sujeitos que põem. Já que sobre este ponto, os da finalidade, e fica claro que a seleção de meios, assim
simples fatos da ontologia do ser social contradizem como a forma de realização, tornaram-se ao mesmo
absolutamente algumas veneradas tradições fìlosóficas tempo possíveis e são delimitadas pela totalidade das
que, partindo dos fenômenos mais evoluídos e circunstâncias. Somente assim, a posição teleológica
complexos, os examina no seu isolamento metafísico, pode tornar-se o veículo central do homem - seja no
lógico, gnosiológico; consequentemente, jamais plano individual, seja genérico -, só assim ela se mostra
conseguirão penetrar na sua gênese, no real fundamento categoria específica elementar que distingue
do ser, na chave para decifrar a sua ontologia. No plano qualitativamente o ser social do ser natural.
objetivo, os "elementos" do ser social aqui indagados não Uma tal concretização - que se coloca muito
implicam em outra coisa que: cadeias causais reais podem além das considerações abstrato-gnosiológicas, como
ser movidas por uma posição teleológica. As aquela segundo a qual o movimento parcial entre este
interligações causais existem completamente complexo iria do sujeito ao objeto, ou vice-versa - é
independentes de qualquer teleologia; esta, ao contrário, absolutamente necessária para compreender que também
pressupõe uma realidade que, seja movida pela primeira: uma outra questão secular ainda não resolvida na história
as posições teleológicas são possíveis só num ser da filosofia, pode encontrar a correta resposta
determinado causalmente. De fato, são realizáveis só ontológico-genética, precisamente a partir deste
quando podemos contar de maneira absoluta com o complexo. Referimo-nos ainda ao problema da liberdade.
funcionamento contínuo de uma cadeia causal cujo Igualmente para a relação entre causalidade e teleologia,
conhecimento prático seja concreto. Embora isso resulte
simples, este nexo entre causalidade e teleologia na 20 N. Hartmann, Teleologisches Denken, cit., pp.65-67.
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de acordo com a maneira de ver precedente, temos que pode verificar que esta estrutura é válida em todos os
sublinhar que o problema da liberdade pode ser posto de campos nos quais apareçam posições teleológicas,
maneira sensata apenas numa relação de observando qualquer colóquio: de inicio, pode-se
complementaridade com a necessidade. Se na realidade também ter um objetivo geral e que se quer perseguir por
não existe nenhuma necessidade, tampouco seria meio deste colóquio, mas a cada frase pronunciada, seu
possível a liberdade, a qual não existiria no mundo efeito ou a sua falta de efeito, a réplica e talvez o silêncio
dominado pelo determinismo de Laplace, do "eterno do interlocutor, etc., dão lugar forçosamente a uma série
retorno" de Nietzsche, e assim por diante. Já temos de novas decisões alternativas. No entanto, quer seu
acentuado várias vezes a característica, existente de fato, campo de possibilidades seja maior, mais extenso, etc. do
do "se .:. então" da necessidade e estamos certos de que que aquele que se tem em sentido restrito no trabalho.
o problema da liberdade pode ser posto de modo correto físico, não será nenhuma surpresa para qualquer um que
e colado na realidade somente partindo do ser deste saiba o que estamos falando sobre os dois tipos de
complexo, da forma normal de seu funcionamento e da posições teleológicas.
sua gênese enquanto parte constitutiva do ser social. No Assim sendo, já delineamos nos seus traços mais
entanto, é evidente que aqui podemos discutir e dar elementares o "fenômeno originário" da liberdade no ser
resposta apenas à última questão. O complexo global da social dos homens. Isto é, todos os momentos do
liberdade pode ser estudado adequadamente somente no processo da vida sócio-humana, quando não têm uma
quadro da Ética. Mas de qualquer forma, para colocar o característica biológica totalmente espontâneo-necessária
problema corretamente, essa questão precisa ser (respirar), são resultados causais de posicionamentos e
analisada através do esclarecimento da sua gênese. Nesse não simplesmente anéis de cadeias causais.
caso, a gênese, da qual de fato temos falado, é a decisão Naturalmente, a decisão alternativa dos homens não se
alternativa, sempre e necessariamente presente no restringe simplesmente ao nível do trabalho; de fato,
processo de trabalho. Na verdade, também em seu vimos que as posições teleológicas que não se destinam
sentido primordial, é incorreto simplificar a coisa e ao intercâmbio orgânico com a natureza, mas são
limitar-se a vê-la somente na posição da finalidade. direcionadas à consciência de outros homens, com
Indubitavelmente esta é uma decisão alternativa, mas a relação a este aspecto revelam a mesma estrutura e
sua realização, tanto nos preparativos mentais quanto no dinâmica. E embora sejam complexas as manifestações
seu traduzir-se em prática, unicamente, não é um simples da vida produzidas pela divisão social do trabalho que se
evento causal, a simples conseqüência causal de uma elevam até as máximas atividades espirituais dos homens,
precedente deliberação. Nos devidos termos da sua na sua base funcionam as decisões alternativas.
realização, esta deliberação assume o significado de um Naturalmente isto significa que a especificidade da
programa concreto, isto é, de um campo de possibilidade gênese conserva-se em termos extremamente gerais e
real, delimitado e consequentemente tornado concreto. consequentemente abstratos. Conteúdo e forma sofrem
Não é necessária uma análise profunda - isto continuamente mudanças qualitativas radicais e, por isso,
pode ser confirmado por cada experiência cotidiana - não se pode e nem se deve simples mente "deduzi-los"
para ver que tanto nos preparativos mentais do trabalho, da forma originária da gênese, entendendo-os como suas
sejam eles científicos ou apenas empírico-práticos, meras variantes. Mas o fato de que esta forma originária,
quanto na sua execução efetiva, nos encontramos sempre apesar de todas as mudanças, permanece presente, revela
diante de uma completa cadeia de decisões alternativas. que se trata de uma forma elementar e fundamental do
Desde a escolha entre os gestos da mão, dos quais cada ser social, da mesma maneira como, por exemplo, a
vez procura-se aquele mais oportuno e recusa-se aquele reprodução do organismo, que apesar de todas as suas
menos apto, até a escolha entre procedimentos parecidos mudanças qualitativas, permanece analogamente uma
efetuados no curso da planificação mental, é sempre forma continuamente da natureza. Sabemos ainda, como
visível, com toda evidência, esta série de deliberações, sublinhamos anteriormente que o desenvolvimento e a
igualmente entre o campo concreto do plano concreto constituição dos tipos fenomênicos superiores de
global. O fato é que na cotidianidade média esse decisões alternativas, ainda que possam ser discutidos de
processo, que nem sempre é considerado por todos, maneira adequada, sobretudo na Ética, todavia, também
deriva diretamente da experiência do trabalho, a qual neste lugar é possível antecipar algumas observações
baseia-se substancialmente na fixação em reflexos muito gerais, podendo-se dizer alguma coisa a respeito
condicionados e também em atos "inconscientes" de da essência e da sua realização real. Desde o início, para
ações singulares que já se mostram eficazes; mas, não haver mal-entendido, revelamos que a usual
geneticamente, cada reflexo condicionado foi alguma vez generalização filosófica de uma única e - metafisicamente
objeto de decisões alternativas. Naturalmente isso não - indivisível liberdade é para nós uma construção
anula o processo causal como conseqüência da posição intelectual vazia. O desenvolvimento da sociedade
teleológica; simplesmente este não vem movido produz sempre novos campos da práxis humana, nos
novamente por uma única posição teleológica, mas vem, quais o que vem geralmente chamado de liberdade em
ao contrário, continuamente diferenciado, ajustado, geral, aparece repleto de conteúdos diferentes, plasmado
melhorado, ou piorado, pelas decisões singulares da em estruturas diferentes, operando com diferentes
realização objetiva, obviamente dentro da linha de fundo dinâmicas, etc. Entretanto, esta multiplicidade não leva a
estabelecida pela posição da finalidade geral. E cada um algo de heterogêneo e descontínuo, nem do ponto de
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vista da sucessão histórica, nem mesmo da presença objetivações. E isto vale também para aqueles eventos
simultânea numa mesma sociedade; estas diversas naturais não transformados que intervém no ser social
encarnações relacionam-se umas com as outras, sem (talvez porque não sejam transferíveis). O vento é um
porém nunca se fundirem completamente numa unidade fator da natureza que por si só não tem nada a ver com
(por exemplo, a liberdade jurídica com a moral). Apesar as idéias de valor. Os navegantes, porém, desde tempos
de todas as modificações históricas e sociais, permanece antiquíssimos, sempre falaram de ventos favoráveis ou
o dado da multiplicidade, e isto significa que no refletir desfavoráveis; de fato, pois no processo de trabalho da
sobre ela, quando não se quer violentar os fatos como navegação à vela, do lugar "x" para o lugar "y", há uma
são, precisa-se respeitar sempre a especificidade das força e direção do vento e o mesmo rumo que, em geral,
esferas, do campo, etc. Por isso, temos que adiar a tem as propriedades materiais do meio e do objeto do
exposição e a análise na Ética, onde este crescimento em trabalho. Nesse caso, então, o vento favorável ou
direção da complexidade poderá ser tratado em termos desfavorável é um objeto no âmbito do ser social, do
histórico-sociais, em direção do nível - de imediato - intercâmbio orgânico da sociedade com a natureza; e a
puramente espiritual e individual; onde este pluralismo validade e não-validade fazem parte das suas
das liberdades poderá receber uma fundamentação propriedades objetivas, enquanto momentos de um
ontológica, ao invés de mero conceito abstrato, complexo concreto do processo de trabalho. O fato de
metafisicamente unitário, da liberdade como tem sido que o mesmo vento seja considerado favorável por um
aceita em muitos sistemas filosóficos. navegante e desfavorável por outro não introduz
Apesar disso - embora permanecendo nenhum subjetivismo na valorização: o vento, de fato,
plenamente nesta concepção pluralista -, tem sentido somente num determinado processo concreto torna-se
ontológico discutir em geral as decisões alternativas. momento de uma objetivação social; só dentro desse
Quando falamos que a decisão de um homem primitivo, complexo essencial suas propriedades podem ter valor
ao polir uma pedra, ao colocar a mão um pouco para o ou desvalor, e seu modo de manter-se inteiramente nesta
alto à direita e não em baixo à esquerda é uma decisão, conexão é precisamente objetivo e não subjetivo.
alternativa tanto quanto aquela de Antígona que sepultou Se podemos então dizer que nas decisões
o irmão contra a proibição de Creonte, não registramos alternativas do trabalho se esconde o "fenômeno
simplesmente uma peculiaridade abstrata comum a dois originário" da liberdade, é porque ele põe em movimento
processos fenomênicos completamente heterogêneos, os primeiros atos nos quais e por meio dos quais surgem
mas enunciamos alguma coisa que capta seus as objetivações, as quais, de um lado, conforme seu ser
importantes aspectos comuns. O lado objetivo desta diferem-se das simples transformações espontâneas de
ligação interna entre fenômenos completamente um ente em um ser-outro e, de outro lado, podem
heterogêneos é constituído pelo fato de que seus atos são tornar-se, consequentemente, o veículo através do qual
repletos de valores. Já dissemos, falando do trabalho, que surge alguma coisa de realmente novo; podem tornar-se
seu produto é por necessidade ontológica bem sucedido algo que não apenas transforma objetivamente o ser
ou não, útil ou inútil, etc.; com isso temos que, no ser social, mas que torna a transformação objeto de uma
social, os objetivos têm uma constituição completamente posição desejada pelo homem. Assim sendo, o
estranha a cada objetividade natural; sua base é formada "fenômeno originário" não consiste na simples escolha
exclusivamente pelo processo de reprodução social. entre duas possibilidades - algo parecido acontece
Todas as transformações que o trabalho, também na vida dos animais superiores -, mas na escolha
primordialmente, exerça sobre os objetos naturais são entre o que possui e o que não possui valor,
mediadas pela relação formada entre seu decurso e seus eventualmente (em estágios superiores) entre duas
resultados por um lado, e o processo de reprodução pelo espécies diversas de valores, entre complexos de valores,
outro; e a aplicação desta medida tem uma ineliminável precisamente porque não se escolhe entre objetos de
característica de valor que quer dizer que existe maneira biologicamente determinada, numa definição
objetivamente a polaridade alternativa entre válido e não estática, mas ao contrário, resolve-se em termos práticos,
válido. Que a valorização aparece imediatamente como ativos, se e como determinadas objetivações podem vir
um ato subjetivo, não nos deve induzir a errar. O juízo realizadas. O desenvolvimento da sociedade humana -
subjetivo da aptidão ou não desta ou daquela pedra para considerada sob o ponto de vista dos sujeitos humanos -
polir outras pedras baseia-se no fato objetivo da sua consiste substancialmente no fato de que todos os passos
aptidão; em casos singulares, o juízo objetivo pode da vida do homem, desde aqueles mais cotidianos aos
também não considerar a validade ou não-validade mais elevados, são dominados por estas decisões.
objetiva, mas o critério real de qualquer forma possui Qualquer que seja a consciência que os homens têm
caráter objetivo. E o desenvolvimento social consiste deste fundamento de todas as suas ações - em cada
precisamente na afirmação tendencial na práxis do que é sociedade a vida produz continuamente circunstâncias
objetivamente válido. Igualmente, sempre nos cursos dos que podem ocultar esse estado de coisas -, eles têm de
movimentos desiguais e sempre no quadro de que para qualquer forma alguma sensação, embora muito
as ações dos homens é cada vez realizável pelo hic et nunc indistinta, de fazer a própria vida, por si só, por meio
histórico-social. O motivo de tal insuprimibilidade das dessas decisões alternativas. Por isso, nunca pode
valorizações está no fato de que os objetos do ser social desaparecer completamente da sua vida emotiva aquele
são, não simplesmente objetividade, mas sempre complexo de experiências anteriores nas quais apoia-se a
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idéia filosófica da liberdade; consequentemente, as idéias os conhecimentos acerca da essência de alguma
de liberdade e as tentativas de traduzi-las em prática são conexão natural podem ter efeitos sociais
uma constante na história humana e aparecem, em parte, revolucionários, seja no desenvolvimento das forças
em primeiro plano, em cada tentativa dos homens de produtivas (vapor, eletricidade, etc.), seja, da mesma
esclarecerem eles mesmos as suas atitudes em relação ao forma, na ideologia (os efeitos da astronomia copérnica
mundo, assim como aparece também, em parte, no na imagem do mundo possuída pelos homens).
primeiro plano, no seu pólo oposto, ou seja, a Depois desta rápida e obrigatória digressão,
necessidade, ela também experimenta continuamente na podemos voltar ao ser social mesmo, iniciando nosso
vida cotidiana. Mas nossas considerações tencionavam discurso com a importante enunciação metodológica de
chegar só até o ponto em que o problema resultasse Marx - que se refere contudo à totalidade complexa do
visível na sua generalidade. As exposições concretas problema fenômeno-essência - a qual soa: "Toda ciência
poderão ter lugar somente na Ética. seria supérflua se a aparência das coisas coincidisse diretamente com
Então, se queremos entender em termos ao sua essência"21. No célebre capítulo sobre o caráter do
menos aproximadamente adequados a estrutura essencial fetiche da mercadoria, Marx ilumina, pode-se dizer, a
e dinâmica interna da economia no ser social, devemos - estrutura originária do mundo fenomênico da economia,
especialmente aqui, onde nosso interesse à dirigido à em contraposição com a essência que está na sua base:
colocação e função ontológica do momento ideal e, mais "O mistério da forma das mercadorias consiste simplesmente no
adiante, da ideologia - dar uma olhada no problema fato de que tal forma, como no espelho, restitui aos homens a
ontológico do fenômeno e da essência no ser social. Não imagem dos caracteres sociais do seu próprio trabalho, fazendo-lhes
é este o lugar para analisarmos esta relação nas outras aparecer como caracteres objetivos dos produtos do seu próprio
formas de ser. Existe de fato uma especificidade, uma trabalho, como propriedades sociais naturais daquelas coisas, e
diferença qualitativa, ou seja, que o mundo fenomênico então restabelece também a imagem das relações sociais entre
do ser social constitui o fator pelo qual é posta em produtores e trabalho existente fora deles".22 Este é
movimento a maior parte das posições teleológicas que naturalmente só um caso típico mais originário do
determinam imediatamente sua constituição e movimento do ser social que estamos examinando por
desenvolvimento, assumindo também uma parte ora, no setor da práxis econômica. Quanto mais
importante na dialética objetiva do fenômeno e essência; evoluída, quanto mais social se torna a vida econômica,
a natureza, ao contrário - a natureza em-si, não enquanto tanto mais. claro nela .se torna o predomínio desta
terreno do intercâmbio entre sociedade e a natureza -, relação entre fenômeno e essência. No conjunto com o
mostra-se completamente indiferente às reações seu fundamento ontológico, isto resulta visivelmente
suscitadas pela sua essência e pelo seu modo de claro quando Marx discute a forma fenomênica,
apresentar-se. Resta um mero problema cognitivo, difundidíssima no capitalismo, do dinheiro que,
privado de conseqüência ontológica, aquele de saber se aparentemente, gera dinheiro. Ele conclui sua análise
os observadores da natureza de se detêm no fenômeno com esta caracterização do fenômeno: "Mas isto é expresso
(apenas na aparência), ou se penetram até a essência. apenas como resultado, sem a mediação do processo, do qual este é o
Isto, para dizer a verdade, não se refere mais à natureza resultado".23 Vem assim precisado com exatidão no plano
como objeto. do intercâmbio orgânico com a sociedade, ontológico um importante traço comum dos modos
mas também aqui o conhecimento e a posição fenomênicos no processo econômico: no ser social e
teleológica daí derivada podem influenciar somente os antes de tudo no campo da economia, onde cada objeto
efeitos provocados no mundo sócio-econômico das é, por sua essência, um complexo processual; este,
legalidades naturais e não estas mesmas legalidades. Para porém, no mundo fenomênico, apresenta-se muitas
evitar qualquer mal-entendido, repetimos com toda vezes como um objeto estático, firmemente definido; o
energia o caráter "se...então", já várias vezes sublinhado, fenômeno, aqui, torna-se fenômeno precisamente
de todas as relações necessárias entre as legalidades. De fazendo desaparecer, de imediato, o processo ao qual
fato, quando se absolutiza abstratamente termos lógicos deve sua existência de fenômeno. E é de grande
ou gnosiológicos, o conceito de necessidade, nos casos importância social essa maneira de a essência apresentar-
em que a ciência natural produz (por exemplo, de modo se, isto é, do processo econômico. Em outro lugar, Marx
experimental) fenômenos que não aparecem na natureza nos oferece um panorama em que vemos quais
por nós conhecida, pode-se ter a falsa aparência de que relevantes orientações teóricas dos pensadores de
se trata de fenômenos novos em relação à natureza. Na primeiro plano, quais decisivas orientações práticas de
verdade, pode-se afirmar somente que, por exemplo, períodos culturais inteiros são decorrentes de um tal
uma experiência iluminou uma nova relação "se ... então" modo de apresentação do dinheiro. A gênese real do
por nós ainda não encontrada na realidade conhecida até dinheiro, em nada misteriosa, foi descrita por Marx, no
hoje; isto comprova a real possibilidade ontológico- âmbito da análise da relação da mercadoria, de modo
natural precisamente desta relação "se ... então", ontologicamente restrito como simples, óbvia
enquanto por ora não haja prejuízo se e, eventualmente, necessidade de sua gênese econômica. Ele de fato
quando e onde a natureza mesma produza uma tal
relação "se ... então" prescindindo do homem.
Qualitativamente diferente é, pelo contrário, o papel da 21 K. Marx, Das Kapital, III, 2, cit., p.352 (trad.it.cit., p.930).
22 K. Marx, Das Kapital, I, cit., p.38 (trad.it.cit., p.104).
natureza no intercâmbio orgânico com a sociedade. Aqui 23 K. Marx, Das Kapital, II, cit., p. 21 (trad.it., p.49).
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mostrou como a forma geral do valor transformou em Pior que superficial seria ridicularizar como
figura independente da vida econômica a sua encarnação preconceito da época primitiva a mitificação do poder do
já adotada na prática, o dinheiro: "O ouro apresentase como dinheiro, a sua fetichização na vida cotidiana, e orgulhar-
dinheiro nas relações das. outras mercadorias só porque já se das visões maduras das formações superiores. De fato,
anteriormente tinha se apresentado como mercadoria nas suas a formação capitalista desenvolvida produz uma análoga
relações. Ele também funcionou como eqüivalente, como todas as forma fenomênica distorcida, que para os homens
outras mercadorias: seja como equivalente singular em atos isolados práticos na sua ação e para os portavozes teóricos desta
de troca, seja como equivalente em particular ao lado de outros práxis é tão pouco transparente, quão pouco o era para
equivalentes de mercadorias. Aos poucos ele tem funcionado, em os gregos o enigmático poder do dinheiro. Referíamo-
esferas mais ou menos amplas, como equivalente geral; logo que nos ao ocultamento econômico espontâneo da práxis
conquistou o monopólio dessa posição na expressão do valor no capitalista inevitável da mais-valia por obra do lucro;
mundo das mercadorias, tornou-se mercadoria-dìnheiro, e somente aquele mundo fenomênico capitalista, em que a mais-
no .momento em que ele tornou-se dinheiro ... a forma geral do valia desaparece completamente atrás do lucro e que a
valor foi transformada na forma de dinheiro". 24 Bem, esta clara conseqüente reificação, que deforma a essência do
perspicácia da real gênese econômica da essência está em processo torna-se a sólida base real de cada práxis
contraste no mais alto grau com a opacidade capitalista. Marx descreveu com a máxima exatidão
fetichizadora, muitas vezes mítica, do mundo também esse processo: "A mais-valia, enquanto é posta pelo
fenomênico que a ela corresponde. Também nesse ponto capital mesmo e medida pela sua relação numérica com o valor
Marx nos oferece uma clara exposição sintética que global do capital, é o lucro. O trabalho vivo apropriado e captado
devemos citar, apesar de sua amplitude, para tornar pelo capital apresenta-se como força vital do capita1 mesmo; como
visível concretamente o contraste entre a relativa sua força auto-reprodutora, além disso modificada pelo mesmo
simplicidade da gênese e a constituição da essência, ao movimento do capital, a circulação, e pelo tempo conexo ao seu
invés da confusão do mundo fenomênico da economia. movimento, o tempo de circulação. Somente assim o capital é posto
Diz Marx: o dinheiro "não é uma forma simplesmente como valor que se renova perenemente e se multiplica, enquanto se
mediadora da troca de mercadorias. E uma forma do valor de troca distingue, como valor pressuposto, por si mesmo como valor posto.
surgida do processo de circulação, um produto social que se produz No momento em que o capital entra inteiramente na produção, e
por si, através das relações em geral que os indivíduos estabelecem como capital suas várias partes constitutivas distinguem-se apenas
entre si na circulação. Não apenas ouro e prata (ou qualquer outra formalmente uma da outra, são, isto é, todas na mesma medida,
mercadoria) desenvolvem-se como medida de valor e meio de soma de valor; a criação do valor é imanente na mesma medida a.
circulação ... Eles tornam-se dinheiro sem a intervenção e sem a elas todas. Além disso, do momento em que a parte do capital que
vontade da sociedade. O seu poder aparece como um fato, e a se troca com trabalho tem efeitos produtivos apenas junto às outras
consciência dos homens, especialmente em situações sociais que partes do capital- e a relação desta produtividade pela grandeza do
determinam o mais profundo desenvolvimento das relações do valor valor etc, pela determinação recíproca diferente destas partes (como o
de troca, rebela-se contra o poder que um objeto, uma coisa obtém capital fixo, etc.) - a criação da mais-valia, do lucro, apresenta-se
frente a ele, contra a autoridade do metal maldito, que aparece determinada na mesma medida para todas as partes do capital.
como mera loucura. E somente no dinheiro, nesta que é a forma Por um lado, porque para uma parte, as condições do ,trabalho são
mais abstrata, mais absurda, mais inconcebível- uma forma em que postas como e1ementos objetivos do capital, e por outro lado, o
cada mediação é superada - e no dinheiro as relações sociais trabalho mesmo é posto como uma atividade nele incorporada, o
recíprocas aparecem transformadas numa relação social que fixa, processo de trabalho inteiro é posto como processo próprio do capital
domina, e assume sob si os indivíduos. Fenômeno tanto mais duro e a criação da mais-valia se apresenta como mais um de seus
quando surge do indivíduo privado, atomisticamente e produtos, cuja grandeza por isso mesmo não é medida por meio do
arbitrariamente livre, que está em relação com outra pessoa na mais-trabalho que ele obriga o operário a fazer, mas com a
produção somente através de necessidades recíprocas ... Os filósofos produtividade majorada que ele confere ao trabalho. O produto
antigos, mesmo Boiguillebert, consideram isto como uma perversão e verdadeiro e próprio do capital é o lucro. Nesse sentido, o capital é
um abuso do dinheiro, o qual de servo torna-se patrão, despreza a agora posto como fonte de riqueza". 26
riqueza natural, suprime a simetria dos equivalentes. Platão na Ainda mais uma vez temos de lidar com um
República quer constranger o dinheiro a ser simples meio de mundo fenomênico surgido da dialética própria da
circulação e medida, não quer que se torne dinheiro enquanto tal. produção econômica, com um mundo fenomênico que
Aristóteles, na forma M-D-M, em que o dinheiro funciona no seu ser-próprio-assim é a realidade, não a aparência; e,
somente como medida e moeda, vê então o movimento que ele chama de fato, na prática cotidiana do capitalismo constitui-se a
econômico e que considera como natural e racional; enquanto base real imediata das posições teleológicas, sem que
condena como antinatural, contrário à finalidade, a forma D-M- estas últimas - como aconteceria se fossem embasadas
D, chamada por ele de cremástica. O que aqui é combatido, é só o numa aparência não correspondente a nenhuma
valor de troca como tal; o fato de que o valor como tal se torne realidade - acabassem por rebocar a si mesmas, uma vez
finalidade da troca e adquira forma independente, antes de tudo na que põem alguma coisa de irreal. Ao contrário: a
forma simples e manifesta do dinheiro". 25 constituição assim dada deste mundo fenomênico é o
24K. Marx, Das Kapital, I, cit., pp.36-37 (trad.it.cit.,p.102). política, in K. Marx, Seritti inediti di economia política, Roma, Editori
25 K. Marx, Grundrisse, cit., pp.928-929 (trad.it. di M. Tronti, Riuniti, 1963, pp. 105-107.
Frammento del texto primitivo (1858) di “Per la crítica dell’economia 26 Ivi, pp.706-707 (trad.it., Lineamenti ecc., cit., II, pp. 562-563).
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fundamental real e imediato de todas aquelas posições sempre mais irreconhecível e não se revela no fenômeno, mas deve
pelas quais a reprodução real do sistema econômico ser descoberta como um mistério escondido". 31
inteiro pode-se conservar e crescer ulteriormente. Esta distorção fenomênica da essência,
Também aqui a verdade sobre o mundo fenomênico produzida pelo desaparecimento do verdadeiro processo
pode iluminar apenas a indagação ontológico-genética a produtivo, não pode ter lugar também na produção
respeito da essência; apesar disso, como já observamos direta da mais-valia. Sabemos que a essência do
analisando o trabalho, pode constituir um sólido progresso econômico consiste, antes de tudo, no fato de
fundamento imediato para as posições teleológicas da que o trabalho necessário à reprodução da vida daqueles
práxis cotidiana. Marx descreve essas relações da mesmos que trabalham, representa pouco a pouco uma
seguinte maneira: "Mais-valia e taxa de mais-valia são, em porcentagem sempre menor do trabalho global que eles
sentido relativo, o invisível, o essencial a descobrir, enquanto a taxa socialmente prestam. Este desenvolvimento da essência
de lucro e então o lucro, forma da mais-valia, mostram-se na verifica-se, embora em muitos aspectos desiguais, a partir
superfície do fenômeno". 27 É claro que a constituição aqui do momento em que surgiu a escravidão. E a estrutura
descrita do mundo fenomênico da economia domina o das formações econômicas é, na substância, determinada
complexo problemático inteiro, já lembrado muitas pelo modo no qual - sob tais condições, entre tais
vezes, das taxas médias de lucro; e, de fato, sua base determinações econômicas - tem lugar o nascimento e a
econômico-ontológica foi dada pelo desaparecimento da apropriação do trabalho excedente (mais-valia). Ora,
mais-valia atrás do lucro. A relação essencial, aqui Marx demonstra que não apenas neste desenvolvimento
decisiva, que no mundo fenomênico desaparece, é econômico existem desigualdades substanciais, mas que
iluminada por Marx da seguinte maneira "A progressiva os modos de apropriação presente nas diferentes
tendência à diminuição da taxa geral de lucro é tão somente uma formações ou revelam, ou escondem esta relação. E
expressão peculiar ao modo de produção capitalista,, do interessante notar como o feudalismo é a única formação
desenvolvimento progressivo da força produtiva social. do trabalho". na qual a relação entre o trabalho prestado para a
28 reprodução própria e a mais-valia vem à luz, em termos
Do processo econômico do capitalismo, separados e distintos, enquanto que, tanto na escravidão
desenvolve-se necessariamente, a reificação da como no capitalismo, embora de maneira contraposta,
objetividade social como mundo fenomênico objetivo; e, esta diferença desapareça sob as formas de exploração.
naturalmente também o espelhamento deste Marx expõe esta diferença da seguinte maneira: "A forma
correspondente na consciência dos homens que do salário esconde cada vestígio da divisão da jornada de trabalho
cumprem suas posições práticas neste mundo em trabalho necessário e trabalho excedente; entre trabalho
fenomênico imediato que vivem neste mundo, cujas remunerado e trabalho não remunerado. Todo trabalho aparece
ações são respostas às perguntas que ele subleva. A como trabalho remunerado. Nas prestações de trabalho feudais, o
transformação da mais-valia em lucro é aqui fator trabalho do servo feudal por si mesmo é distinto no espaço e no
decisivo. Marx o descreve nestes termos: "Na mesma tempo, de maneira tangível e sensível, do trabalho coercitivo para o
medida em que a imagem do lucro esconde seu núcleo interno, o proprietário fundiário. No trabalho escravo, até a parte da jornada
capital assume uma figura sempre mais coisificada; de uma relação, de trabalho em que o escravo só reintegra o valor dos próprios meios
se transforma sempre numa coisa, uma coisa que se confronta assim de subsistência, em que ele então trabalha na realidade para si
mesmo com uma vida e uma autonomia fictícia, um ser mesmo, aparece como trabalho não remunerado". 32 Também
sensivelmente ultra-sensível; e nesta .forma de capital e lucro neste caso, para colher a verdadeira essência diretamente
aparecem na superfície, como um pressuposto acabado. É a forma das formas fenomênicas, é necessária a gênese sócio-
de sua realidade, ou melhor sua verdadeira forma de existência".29 ontológica em termos objetivos, científicos.
Tal realidade impõe-se em cada relação que nasce nesse Da economia de Marx, nós escolhemos aqui
terreno. Assim acontece pois, a causa da distorção da apenas alguns dos complexos problemáticos mais
reificação: é que a renda fundiária apresenta-se como um importantes. Poderíamos continuar à vontade, mas
produto do solo: "A renda, como cada figura criada da acreditamos que o discurso até aqui conduzido seja
produção capitalista, aparece ao mesmo tempo como um pressuposto suficiente para clarear a dinâmica real da esfera
fixo, dado, presente em cada instante e, então, para o indivíduo econômica e refutar os freqüentes juízos errôneos que se
independente. O arrendatário deve pagar uma renda, em particular dão a seu respeito. Principalmente entre aqueles que não
um tanto para uma unidade de medida conforme a qualidade do desvalorizam o significado da economia no contexto
terreno".30 No momento em que, no mundo fenomênico global do ser social - incluindo um grande número de
do capitalismo desaparece a mais-valia, aparecem intelectuais burgueses -, em especial entre marxistas que
entidades reificadas deste tipo, nas quais sua subjetiva fundam sua metodologia, ou sobre o período da Segunda
unidade comum, propriamente a mais-valia, "torna-se Internacional, ou sobre o período do stalinismo, é
difundida a idéia segundo a qual a esfera da economia
constituiria uma espécie de segunda natureza, que
27 K. Marx, Das Kapital, II, 1, cit., p.17 (trad.it, cit., p.69). distinguir-se-ia qualitativamente pela estrutura e dinâmica
28 Ivi, p.193 (ivi, p.261). das outras partes do ser social, do que é chamado
29 K. Marx, Theorien liber den Mehrivert, III, cit., p.555 (trad. It. Di
p.17-18.
por moderno, sente-se substantivamente chamado a
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satisfazer uma necessidade religiosa e não a combater a importância não somente as legalidades fundamentais,
religião, como acontecia nos últimos séculos. mas também a relação instituída entre essência e
Para a pesquisa que estamos conduzindo não são fenômeno. A práxis imediata reage ao mundo
de interesse substancial os detalhes e as nuances desse fenomênico não sem razão, já que precisamente é ele que
complexo de fenômenos mas, ao invés, o fluxo que corre representa a realidade imediata. Já examinamos tais
da vida cotidiana manipulada às interpretações das divergências no interior da economia; agora nos
ciências exatas e daqui de volta à vida cotidiana, o deteremos naquelas entre economia e superestrutura. As
irresistível espelhar-se destas visões entre a elite falsas ontologias que tão freqüentemente encontramos
intelectual e a falta de uma atitude crítica nos confrontos têm aqui, por assim dizer, a sua "base de ser".
destas tendências. A coisa que mais me impressionou - e Falta à nossa época uma verdadeira crítica
vale a pena parar um momento para observá-la - é que a ontológica. Como já mostramos, Nicolai Hartmann é o
teoria do conhecimento não subleva objeções; aliás, no único que se aventurou nesta temática com competência
complexo estas tendências são muito mais apoiadas por e acuidade e, pelo menos na ontologia do ser natural,
ela quando a sua crítica não lhes obstaculiza. Isto parece também com sucesso. Todavia, em princípio, com
paradoxal somente a quem não tem examinado suas cautela e reserva de juízo, sobre as questões concretas e
funções no passado e, consequentemente, não viu que a especializadas, suas exposições mostram
gnosiologia em geral costuma canonizar acriticamente as conscientemente ou não - que a penetração da ontologia
formas metódicas: dominantes nas ciências do próprio cotidiana na ciência da natureza vai muito além do que
tempo e então imaginam-se - como fundamento da sua pensam os que julgam de todo irrelevante as
crítica do conhecimento - tipos de ser que possam dar interpretações filosóficas na questão em si, mesmo de
uma base ontológica ao modo cognitivo canonizado. quem opera nesse campo, inclusive os melhores. A partir
Basta pensar em Kant. A pergunta inicial "como são de Marx foi superado o dualismo entre filosofia e ciência,
possíveis" anuncia esta estrutura de método. Depois, se que ainda era predominante em Hegel e que não
vamos às questões essenciais, vemos que Kant, obstante algumas geniais observações críticas em torno
afrontando a "coisa em si", parte corretamente da de importantes problemas singulares, todavia conduzia
autonomia de cada conhecimento, para derivar disso, uma inaceitável arrogância da filosofia em relação à
porém a conclusão, logicamente possível mas ontológica ciência. A filosofia, porém "não deve renunciar a
e perfeitamente infundada, que ela por isto deva ser considerar criticamente os resultados da pesquisa
incognoscível. Já Hegel observou que o incognoscível científica". E o ser representa para ela o ponto de apoio
pode fundar-se somente na abstração vazia - que de Arquimedes. Não, se pode mais, então, como
prescinde de cada concretude ontológica, que se reporta freqüentemente em Hegel, por simplesmente em,
ao mero em geral -, mas logo que a coisa possua algum confronto alguma afirmação definitivamente ontológica
conteúdo do ser, por exemplo, das propriedades, esta da ciência, com as exigências conceituais da filosofia, mas
incognoscibilidade derivada da abstração acaba.42 E, por ao invés - suponhamos -, se nos movemos no campo da
outro lado; atribuir ao conhecimento do mundo física, sucede confrontar o ser físico com os enunciados
fenomênico o monopólio da produtividade da científicos da física. A filosofia pode e deve requerer
consciência, por sua vez, não significa outra coisa que apenas que cada ciência não entre em contraste com a
absolutizar abstratamente o fato de que a sua função em especificidade do ser cujas leis ela esforça-se para
relação ao ser é mais um espelho passivo ("fotográfico"); iluminar. Hartmann, como sabemos a este propósito
a delimitação ao mundo fenomênico é uma conseqüência revelou muito corretamente a importância da intentio recta,
lógica desta extremização abstrata da produtividade que da cotidianeidade através da ciência conduz à
criativa da consciência. Da combinação destas abstrações filosofia, em contraposição à intentio obliqua, da
nasce, novamente por via lógica (não ontológica), a gnosiologia e da lógica; no entanto, e já o havíamos
contraposição entre mundo existente e mundo aparente assinalado a tempo, também nesta questão ele não foi
que se excluem reciprocamente; e também aqui Hegel sempre suficientemente concreto e conseqüente como
viu a falsidade abstrativa. Então não é chegar a uma crítico. Mas, como já discutimos os princípios
sombria crítica ontológica que o domínio da gnosiologia ontológicos de Hartmann, podemos nos limitar, para
necessariamente esconde: a uma crítica ontológica de ilustrar a situação, a alguns casos particularmente
cada ciência, dos seus métodos e dos seus resultados, evidentes.
confrontando-os com o ser, ao invés de "deduzir" este Se relembrarmos o discurso de Heisenberg
último pela via abstrata das necessidades da ciência. Mas acima mencionado, podemos utilmente contrapor o
para esta finalidade devem existir na cotidianeidade sóbrio quadro ontológico que Hartmann nos oferece a
mesma tendências aptas a promoverem esta orientação. respeito da posição do pesquisador: "O investigador que
Seu nascimento e seu desenvolvimento são determinados pesquisa uma determinada lei, sabe, por antecipação, que esta, se
pela constituição econômico-social da respectiva subsiste em geral, subsiste independentemente da sua procura e do
sociedade. E por causa do entrelaçamento imediato entre seu resultado. Não lhe ocorre acreditar que o resultado surja apenas
teoria e práxis que se tem na vida cotidiana, aqui tem por este fato: ele sabe perfeitamente que existe sempre e que não
muda enquanto resultado. O investigador vê na lei um ente em
42G. F. W. Hegel, Wissenschaft der Logik, cit., IV, p.121 sgg. (trad.it., II,
pp.542 sgg.).
42
si".21 Hartmann refere-se, porém, somente aos cientistas penetrar até as suas legalidades específicas, enquanto
naturais de velho estilo, que distinguem rigorosamente o que, quando se parte do que na sua espécie já está
que era por eles pensado (seu aparato de idéias) do ser desenvolvido ou até concluído, facilmente acontece que
que aspiravam a conhecer. Assim Hartmann admite sem se pesquisem e se comparem não mais as espécies
reservas que Einstein, quando diz que a simultaneidade particulares do ser, mas ao invés, seus tipos conceituais
em determinados fenômenos físicos não é aceitável, generalizados. Desse modo, desaparecem também
baseia-se em fatos físicos reais e por nada cai vítima do aquelas motivações histórico-sociais que, num
subjetivismo. Completamente outra é a situação quando determinado período, são dominantes ou desagregam e
o problema é generalizado em termos ontológicos. A contradizem na vida espiritual um determinado modo de
simultaneidade é ontologicamente um fato insuprimível, ver, ontologicamente certo ou errado. O lado social geral
que "nada tem a ver com os limites da contabilidade”.22 A crítica deste problema será discutido a fundo na próxima seção
ontológica de Hartmann, então, não está dirigida contra do presente capítulo. Aqui interessam-nos somente as
as tentativas de medir a simultaneidade, contra os forças que determinam a "concepção de mundo" do
métodos especiais da física usados nestas mensurações, homem singular na sua vida cotidiana, onde nunca se
mas somente contra a sua generalização ontológica; e por deve esquecer de que cada corrente social é a síntese
isso o decurso objetivo e real do tempo tornar-se-ia mais (não porém a soma mecânica) de posições singulares de
rápido ou mais lento segundo as circunstâncias. Existem homens singulares. Que as forças aí operem, e como
filosofias contemporâneas que acreditam poder fazem isso, apesar de que os nexos sejam intrincados, é
apreender o curso da história com particular também um problema social geral, o qual, por motivos
"conformidade ao tempo", se estivéssemos embasados que já enumeramos adequadamente, não é
sobre tal ontologia. Assim por exemplo, Ernst Bloch, o absolutamente considerado por Hartmann. Por isso, seus
qual quer introduzir na história um tempo "riemanniano" próximos passos, por mais significativos que sejam em
(Riemann é para Einstein a grande autoridade da alguns aspectos, acabam por encalhar.
relativização ontológica do espaço), pelo qual, em Marx viu o problema com toda clareza. Escreve
explícita polêmica contra Hartmann, estabelece que, por numa ocasião a Engels acerca de Darwin: "Divirto-me com
exemplo, entre pré-história e história sucessiva, ou ainda Darwin, ao qual dei novamente uma olhada, quando diz que
mais, entre natureza e história há diferenças qualitativas aplica a 'teoria de Malthus' também às plantas e aos animais,
no decurso do tempo, que se desenvolvem com maior como se o suco do senhor Malthus não consistisse precisamente no
rapidez ou maior lentidão.23 Onde se pode constatar fato de que esta não venha aplicada às plantas e aos animais, mas
aquela ontologia da atual cotidianeidade que, usando ao invés - com geométrica progressão -, somente aos homens, em
teorias físicas, criou uma nova filosofia correspondente contraste com as plantas e os animais. E notável o fato de que, nos
às necessidades ontológicas dos intelectuais que vivem animais e nas plantas, Darwin reconhece sua sociedade inglesa, com
no capitalismo do século XX. sua divisão do trabalho, a concorrência, a abertura de novos
Apesar da importância desta questão, agora não mercados, as 'invenções' e a malthusiana „luta pela existência‟. É a
podemos entrar em maiores detalhes. Interessa-nos guerra de todos contra todos de Hobbes, e faz lembrar Hegel na
exclusivamente evidenciar as interações entre 'Fenomenologia', onde representa a sociedade burguesa como 'um
pensamento cotidiano e teorias científico-filosóficas de reino animal ideal', enquanto em Darwin, o reino animal é
uma época. A seu tempo, criticamos por extenso a configurado como a sociedade burguesa".24 Já Marx e Engels
incompletude e as contradições da doutrina estão porém muito longe de sub-avaliar; por esta relação,
hartmanniana, numa linha de princípio muito fecunda, da o significado científico, ou seja, ontológico, de Darwin.
intentio recta; nela reprovamos o não ter condicionado o Engels, de fato, depois de ter lido o livro deste, escreve a
problema – extremamente relevante precisamente do Marx: "Por um certo aspecto, a teleologia não tinha ainda sido
ponto de vista ontológico – da gênese. No contexto eliminada, e agora se tem feito isso". E, muito tempo depois,
atual, vê-se como são deletérias as conseqüências daquela Marx afirma: "Eis aqui o livro que, embora desenvolvido
atitude errada, já que somente a gênese pode iluminar as gnosiologicamente à moda inglesa, contém os fundamentos histórico-
formas, tendências do movimento, estruturas, etc. naturais do nosso modo de ver". 25 Do ponto de vista da
ontogicamente concretas de um determinado tipo de ser avaliação ontológica do nexo entre "concepção de
no seu concreto ser-próprio-assim, e, por este caminho, mundo" da cotidianeidade e teoria científica, não há
contradição entre estes dois discursos. Tanto mais que
Marx, na primeira carta, põe a questão da gênese
21 N. Hartmann, Zur Grundlegung der Ontologie, Mesenheim am Glam,
1948, p.163 (trad.it.di. F. Barone, La fondazione dell‟ontologia, Milano,
intelectual da imagem do mundo darwiniana sem uma
Fabbri, 1963, p.258) Aqui há concordância com a opinião de Lênin atitude avaliadora; simplesmente revela as. Sugestões,
por nós mencionada acima. Esta contradição, na realidade, já foi aliás, admitidas pelo próprio Darwin, provenientes de
revelada precedentemente outras vezes. E também sob a ótica da Malthus (e, sobretudo da realidade econômica do
gnosiologia: por exemplo, Rickert lamenta-se de que os cientistas
naturais não pensem “ciriticamente” (isto é, nos termos idealísticos da
gnosiologia), mas são, ao invés, “realistas ingênuos” sustentando que 24 MEGA, III, 3, pp.77-78 (lettera del 18 giugno 1862, trad.it. in K.
este comportamento, em contraste com aquele “crítico” Marx – F. Engels, Opere complete, XLI, cit. P.279).
(gnosiológico) do filósofo, é tirado da “vida”. H. Rickert, Der 25 MEGA, III, 2, p.447 (lettera dell’11 o 12 dicembre 1859, trad. It. In
Gegenstand der Erkenntnis, Tübigen, 1928, p.116. K. Marx – F. Engels, Opere complete, XL, cit., p.551) e p.533 (lettera
22 N. Hartmann, Philosophie der Natur, Berlin, 1950, pp.237-238. del 19 dicembre 1860, trad. It. In K. Marx – F. Engels, Opere complete,
23 E. Bloch, Differenzierungen im Begriff Fortschritt, Berlin, 1956, pp.32-33. XLI, cit. P.145).
43
capitalismo). Avaliação aqui não significa, naturalmente, homens pela divisão social do trabalho. Mas,
simples comparação de uma relação, como nas ciências analisando o trabalho, já vimos que não pode ser assim,
da natureza, mas sim que interações desse gênero entre ao passo que a sua crítica infalível exercida em direção às
cotidianeidade e ciência (também filosofia e arte), idéias do sujeito trabalhador possui esta infalibilidade
conforme as circunstâncias, o período, a personalidade, somente com referência à finalidade imediata do
etc. podem ter efeitos válidos e não-válidos. A sugestão trabalho. Quando há uma ampla generalização, mesmo o
por parte de Malthus tem certamente, para Darwin, no processo laborativo dá apenas respostas incertas. A
conjunto, conseqüências válidas, do momento em que a atividade conhecida, que - imposta pela dinâmica da
guerra de todos contra todos tornou mais aguda a sua visão divisão do trabalho - tornou-se autônoma, teve por sua
para determinados fenômenos naturais (não é este o vez que elaborar maneiras de operar e possibilitar o
lugar para se indagar se aqui também não há exageros, controle autônomo. Neste ponto, o problema da crítica
etc.). A propósito de um escrito de F. A. Lange, para ontológica voltou a ser central. A filosofia grega, com sua
cada caso Marx sublinhou o aspecto dessa ligação que espontaneidade veemente e fascinante, nada pode contra
não vem em proveito do caráter científico: do momento sua força; tampouco a doutrina platônica das idéias.
em que para Lange, "a história inteira pode ser resumida numa Quando lemos a crítica desta em Aristóteles já
grande lei da natureza", isto é, a lei da "luta pela existência", encontramos a pergunta inicial sobre a possibilidade de
esta última transforma-se numa frase vazia.26 Para o que a essência exista separada daquilo que é a essência e
marxismo então, é necessário entender estas inter- isso constitui a preparação ontológica da resposta: "Como
relações na sua concretude social e submetê-las à crítica as idéias poderiam ser separadas das coisas, precisamente quando
ontológica. Somente através da análise concreta da elas são a sua substâncìa?”.28 Esta não é mais uma discussão
situação concreta, como costumava falar Lênin, pode vir entre fìlosofias com argumentos tirados dos seus
à luz a verdadeira concretude e se demonstrar válido ou específicos aparatos conceituais; é, ao invés, a intentio recta
não-válido o verdadeiro conteúdo, que de imediato é na obra, a qual, partindo da vida cotidiana, pressiona em
certamente individual, já que exprime a relação de uma direção ao próprio complemento conceitual, controlado
pessoa com um complexo de problemas objetivos, pelo ser.
embora - e ao mesmo tempo - ele avance na pretensão Naturalmente aqui não é possível seguir nos
de objetividade (não fosse outra, a causa do seu caráter pormenores a história dessa maneira de comportar-se.
de alienação). Também por isto, nos clássicos do Mas, sem dúvida, é evidente que o domínio do
marxismo, contrariamente aos seus epígonos, estas cristianismo, o qual quer regular dogmaticamente a vida
conexões apareceram muito complicadas e fortemente cotidiana dos homens por meio de uma ontologia
desiguais. É característico, por exemplo, que Lênin, em transcendental que promete garantir a salvação de suas
pleno debate a respeito do empiriocriticismo, durante o almas, não criou um território favorável a uma crítica
qual ele combate com paixão o idealismo na ontológica da intentio recta da cotidianeidade. Somente
interpretação da natureza, escreva uma carta a Gorki na com o Renascimento tem-se na vida e no pensamento
qual admite que um artista possa receber impulsos um movimento libertário unilateral; e neste processo de
positivos também da filosofia idealista.27 Na relação entre emancipação rico em lutas, podemos ver que de
teoria e arte, essa desigualdade manifesta-se naturalmente Maquiavel a Hobbes existem nessa direção movimentos
nos termos mais evidentes, mas está presente em todos os mais diversos. Mas o impulso mais apaixonado e mais
os campos do pensamento e da experiência humana. penetrante - na medida em que isso era possível nas
É preciso, então, clareza crítica nas análises da condições histórico-sociais de então – nós o
intentio recta entre vida cotidiana e formas superiores de encontramos na doutrina baconiana das idola. Na história
objetivação da consciência social dos homens. A forma da filosofia Bacon aparece, sobretudo como sustentador
originária da intentia recta aparece no trabalho. No dos métodos indutivos. Na doutrina das idola, trata-se,
intercâmbio orgânico com a natureza, não apenas torna- porém, de outra coisa, de algo a mais, do oposto. Bacon
se um ente social mediante objetivações e alienações, afirma que a realidade é mais complicada, mais
como também cria um meio comum para se entender multiforme que os dados imediatos por nós obtidos, seja
com os outros, para acumular e comunicar experiência, com a nossa sensibilidade, seja com o nosso aparato de
cumprindo todas essas coisas na relação prática, coisas pensamento. Aqui ele quer referir-se àquilo que
essas nas quais o objeto da práxis exercita sucessivamente a dialética tem designado como a
ininterruptamente uma crítica prático-ontológica em infinitude extensiva e intensiva do mundo dos objetos e
direção às representações e aos conceitos que ao que ela tem reagido, afirmando o caráter por princípio
precedentemente os homens deliberaram. Ora, não nos aproximativo de cada conhecimento. É verdade que
encontraríamos diante de nenhum problema, se esta Bacon está somente nos primórdios desse processo; mas
forma da práxis não constituísse o modelo geral da sua ele já vê com grande clareza o primitivismo das
realização, mas fosse, ao invés, um modelo concreto para aproximações baseadas na sensibilidade, e ainda mais
todos os objetos cujo conhecimento é imposto aos claramente vê que os aparatos conceituais tradicionais
muito freqüentemente, mesmo porque perseguem idéias
racionais, acabam perdendo de vista este complicado ser-
26 K. Marx, Briefe na Kugelmann, Berlin, 1924, p.75 (trad. it. cit., p.146)
27 Lenin und Gorki (Documente), Berlin-Weimar, 1964, p.96 (trad.it. di
I. Ambrogio, in Gorki, Lenin, Editori Riuniti, 1975, p.87). 28 Aristoteles, Metaphysik, cit., A, 9, p.43 (trad.it.cit.,p.40).
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mesmo-assim da realidade. E, quando mais tarde, a humano".31 Também assim estão as coisas para o tema
função geral de fiscalizar criticamente o processo de que falamos, o qual, por si mesmo, não nos ofereceu
cognitivo e seus resultados vem confiada a uma uma resposta à pergunta do que seja a ideologia e como
gnosiologia baseada na análise dos métodos científicos funciona; todavia, criou-nos uma possível base social real
até aquele momento revelados eficazes (e isto, a partir de para poder fazê-lo, facilitando em muito a tarefa de
Berkeley, pode variadamente ser utilizado também para quem quiser levá-la à luz e compreendê-la no plano
defender idealmente os momentos da imagem do mundo ontológico.
religioso que eram ainda vivos e operantes), Bacon põe
em confronto a atividade científica do homem com o seu
viver e pensar na cotidianeidade. Descobre assim no
pensamento do homem cotidiano todo um sistema de
preconceitos, por ele chamados idola, que está em
condições de impedir, aliás, de anular completamente, no
processo cognitivo, a atitude do homem que se põe
frente à natureza sem obstáculos e produtivamente. A
crítica das idola serve então para eliminar estes freios
cognitivos no homem mesmo.29 Sobre tal base, Bacon
fornece uma tipologia dos idola, da sua origem e do seu
modo de operar. Agora não vale a pena analisar nos
pormenores estes momentos concretos do seu método.
Ele estava precisamente no começo deste novo
desenvolvimento e isto significa que, desde então,
mudaram radicalmente, qualitativamente, não somente
os métodos do conhecimento científico, mas, sobretudo
os caracteres essenciais da vida cotidiana. Marx indicou
com eficácia o lugar de precursor que cabe a Bacon na
sua esplêndida grandeza e no seu primitivismo: "Em
Bacon, enquanto o seu primeiro criador, o materialismo engloba em
si, de um modo ainda ingênuo, os germes de um desenvolvimento
unilateral, a matéria, no seu esplendor poeticamente sensível, sorri
ao homem inteiro”.30 Seqüencialmente alude-se às suas
contradições. Mas o esplendor da natureza em relação ao
homem todo mostra com evidência que aqui se está
falando da vida dos homens, da sua vida pessoal,
subjetiva, como se desenvolve nesse âmbito. Na
tipologia das idola vemos então que Bacon, já que
procura distinguir entre ídolas puramente pessoais,
induzidas por indagações cognitivas erradas, e ídolas
puramente sociais, ainda não está em condições de
entender o homem singular da cotidianeidade
diretamente como ente social (nem o será, séculos mais
tarde Nicolai Hartmann). Assim, a crítica ontológica da
vida cotidiana, do seu influxo sobre o conhecimento
científico e da influência que este exercita sobre ela seria
possível somente com o marxismo. E mesmo agora não
a temos; no entanto, está implicitamente contida no seu
método. Mas nos parece útil lembrar os precursores de
maior peso, se não por outra coisa, porque assim torna-
se visível que o significado do marxismo não deve ser
limitado à sua ruptura radical com determinadas
tendências metafísicas e idealísticas da filosofia burguesa,
como se proclama no pensamento de Stalin-Zdanov,
mas para usar uma expressão de Lênin, está no fato de
que ele tem "assimilado e reelaborado o que havia de mais válido
no desenvolvimento mais que bimilenar da cultura e do pensamento