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‘oi ebates arquitetura reyner banham TEORIA E PROJETO PRIMEIRA ERA DA MAQUINA iH } iw PERSPECTIVA fi NY!) INTRODUCGAO: A ERA DA MAQUINA Este livro foi concebido e escrito nos tltimos anos da década de 50, uma época que tem sido al- ternativamente chamada de Idade do Jato, década do Detergente, a Segunda Revolucéo Industrial. Quase todo rétulo que identifique algo que valha a pena identificar neste perfodo chamard nossa atengio para algum aspecto da transformagiio por que passou a ciéncia e a tecnologia, pois estas transformagées afe- taram poderosamente a vida humana ¢ abriram no- vas possibilidades de escotha na ordenagdo de nosso destino coletivo. © acesso a fontes de energia qua- II se ilimitadas 6 contrabalancado pela possibilidade de tornar inabitével nosso planeta, mas também isto € contrabalancado, na medida em que estamos no li- miar do espaco, pela possibilidade cada vez maior de abandonar nossa ilha, que é a Terra, e deitar raizes em outro lugar. Nossas exploracées sobre a natureza da informagiio tornaram posstvel, por um lado, pér a funcionar a eletrénica a fim de eliminar 0 enfado do pensamento de rotina e, por outro lado, talhar o pen- samento humano de forma que ele satisfaca as ne- cessidades de elites do poder de visio estreita. Estes, est claro, siq os grandes panoramas que afetam a economia, a moral e a sociologia, do mes- mo modo remoto ¢ estatfstico que o aperfeigoamento da cavalaria, 0 desenvolvimento das organizagées feu- dais, a ascensao da economia do dinheiro. Mas, ao contrério do que aconteceu com esses desenvolvimen- tos do passado, que praticamente nao tocaram nos objetos da vida diaria, na hierarquia da familia e na estrutura das relagdes sociais, as revolucdes técnicas de nosso tempo atingem-nos com uma forga infinitamen- te maior porque as pequenas coisas da vida também passaram por um audivel ¢ visfvel processo de revo- lugio. Mesmo um homem que nfo possua um barbea- dor clétrico provavelmente utiliza — pelo menos no mundo ocidentalizado — algum produto anteriormen- te inconcebivel, como um creme de barbear em aero- sol que sai de uma lata pressurizada igualmente in- concebivel, e aceita com equanimidade o fato de que se pode permitir jogar fora, com regularidade, lami- nas de barbear que geragdes anteriores teriam guar- dado e cuidado durante anos. Mesmo uma dona-de casa que nao tenha uma méquina de lavar utiliza de- tergente sintético, que vem em pacotes de plastico sintético, em tecidos sintéticos cuja qualidade e de- sempenho fazem os segredos zelosamente guardados da seda parecerem triviais, Um adolescente, grudado a um rddio transistorizado, com circuito impresso, ou a uma vitrola em seu quarto, pode ouvir uma mtisica que, literalmente, nfo existia antes de ter sido grava- da, e que é reproduzida com um nivel de qualidade 2 que 08 ricos de uma década atrés nfo poderiam ter obtido com seu dinheiro. O automével médio de ho- je, correndo por estradas que foram especialmente projetadas para ele, proporciona um transporte mais suntuoso em veiculos mais deslumbrantes do que os imperadores em seus palanguins poderiam desejar. Muitas tecnologias contribuiram para esta revo- Iugiio doméstica mas, muitas delas produzem em nés um impacto sob a forma de pequenas méquinas — barbeadores, méquinas de cortar e secadores de ca- belo; rAdio, telefone, vitrola, gravadores e televisiio; misturadores, amoladores, fogées autométicos, refri- getadores, aspiradores de p6, méquinas de polir... Uma dona de casa, sozinha, freqiientemente dispde hoje de mais cavalos de forca do que tinha um tra- balhador na indtistria no comeco do século, E este © sentido de nossa vida na Idade da Méquina. Vi- vemos numa Idade Industrial ha j4 um século e meio, e podemos muito bem estar entrando numa Segunda Idade Industrial, com a atual revolugdo nos mecanis- mos de controle. Mas j4 entramos na Segunda Ida- de da Méquina, a idade dos aparelhos eletrodomésti- cos e da quimica sintética, e podemos olhar para a Primeira, a idade do poder dos meios e da redugio das m4quinas & escala humana, como um petfodo do passado. Embora os primeiros tragos da Primeira Idade da Méquina devam ter aparecido com a disponibili- dade de gas de carvio para iluminacio e aquecimen- to, o mecanismo da luz e do calor continuou a ser uma chama, como sempre fora desde a Idade da Pe- dra. A eletricidade por fio produziu, aqui, uma mu- danga fundamental, uma das mais importantes na hist6ria da tecnologia doméstica. E mais; trouxe pa- ra dentro de casa pequenas méquinas controladas pe- la mulher, especialmente o aspirador de pé. As téc- nicas trouxeram também o telefone, e pela primeira vez a comunicagiio doméstica e social nao dependia de se mandarem mensagens escritas ou decoradas. ‘A méquina de escrever portétil pés uma mAquina nas mfos dos poetas, os primeiros gramofones fizeram da i3 ceriménia social que era a misica um servico doméstico, Todas estas maquinas ainda estéo conosco na Segunda Idade da Maquina, desenvolvidas e melho- radas por conquistas tecnolégicas mais recentes, mas entre essas duas idades ha uma diferenca que é mais do que quantitativa, Na Segunda, métodos de pro- dugio em massa altamente desenvolvidos distribufram aparelhos eletrénicos ¢ produtos quimicos sintéticos por uma ampla camada da sociedade — a televisio, méquina simbélica da Segunda Idade da Maquina, tornou-se um meio de comunicacdo de massa que for- nece entretenimento popular. Na Primeira, todavia, apenas o cinema estava ao alcance de um amplo pi- blico, cuja vida doméstica tinha sofrido poucas trans- formagées, e foi nos lares da classe média superior que a Primeira Idade da Maquina produziu seus maiores impactos, os lares que se podiam proporcio- nar estas novas, conyenientes e caras colaboragdes para um modo de vida mais agradavel, as casas que tendiam a produzir arquitetos, pintores, poetas, jorna- listas, os eriadores dos mitos e simbolos pelos quais uma cultura se reconhece a si mesma. Assim, foi 4s m&os de uma elite, e no as mas- sas, que foi entregue a maquina simbélica dessa Pri- meira Idade da Maquina: o automével. Era mais do que um simbolo do poder; era também, para a maior parte dessa elite, o gosto inebriante de-um no- vo tipo de. poder’, Uma das curiosidades no co- mentadas do trecho inicial da Idade Industrial é que, a despeito de sua dependéncia macica do poder me- cAnico, poucos da elite da época — talvez mesmo, ninguém — tinham qualquer experiéncia pessoal do controle desse poder. Podiam comprar o uso desse poder com dinheiro, ¢ viajar em seus grandes navios e famosos expressos, mas nfo sujavam as m&os com os controles. Isto era deixado para uma elite da 1, John Davidson Scots, quimico © jomaliste, que morren em 1909, ‘expressou o aspesto da’ motorizagio da elite de um modo mais explicit do que qualquer outro escritor de seu tempo, e comparou esse modo com a das massas que visjavam de trem, um Poema tardio intitulado “The Testament of Sir Simon Simplex con- ing Automobilism’” (Iiteralmente, ©. testamento do Simo Simplério a respeito do automobilismo), do qual sfo tfplcos estes vvorsos: 14 classe trabalhadora formada por maquinistas, moto- ristas e assim por diante, que se aposentavam na classe média quando deixavam de trabalhar. Mas, com o advento de carros mais facilmente compraveis, tornou-se possivel e moda, para as clas- ses formadoras da opinifio publica, possuir ¢ controlar pessoalmente unidades de até sessenta ou mesmo cem cayalos-vapor. Embora trouxessem para esta nova situacio alguns usos e costumes do tempo das cava- laricas, 0 efeito psicolégico dessa mudanca constitui uma revolugio que calou fundo. Muitos deles ti- nham claramente consciéncia de que os homens que faziam e serviam seus carros tinham uma mente ¢ uma constituigéo inteiramente diferentes das daque- les que tinham alimentado seus cavalos e tomado con- ta deles. E além disto, o pulo nas velocidades de umas formidéveis vinte e cinco milhas por hora para umas alucinantes sessenta, com a marca magica das cem constituindo uma meta cada vez mais préxima para aqueles que eram realmente ricos e determina- dos, produziu uma mudanga na experiéncia das pes- soas, que era qualitativa, e nao apenas quantitativa — a dinamica de um carro rapido é de uma qualida- de diferente da de um cavalo de corrida. O Homem Multiplicado pelo Motor, para usar a expresso de Marinetti, era de um tipo diferente dos homens cavyalo- -carroga que tinham dominado o mundo desde o tem- po de Alexandre, o Grande. Class, mass and mob for fifty years and more Had ‘all to travel in the jangling roar ‘Of xeilways, tho nomadic caravan ‘That stifled individual mind in man, Till automobilism arose at last! And things that socialism supposed extinct, Degree, nobility and noble strife, A form, 1 style, s privacy in life Will re-appear; and, crowning nature’s plan ‘The individual and the gentleman In England reassume his lawful place. .® ® “Elite, massa e ralé, por cingiienta anos ¢ mais, / Tiveram todas de visjar "no ettépito eeskdeate |/ Das ferrovits, caravana de ndmades_/ Que sufocaya a mente individual do homem, / Até que o automebilisme surgi finalmentel / ... / B coisas que 0 socfalismo supunha extintas, / Estirpe, mobreza’e nobre disputa, / Uma forma, tum estilo, um isolamento na vida / Reaparecero; e, coroando o plano da natureza, / 0 individuo ¢ cavalheiro / Na’ Inglaterra reassumem seu lugar devido. (...)” (N. do T.) 15 Nestas novas circunstAncias, a barreira de in- compreensio que tinha sido erigida e mantida entre os homens e¢ seu meio ambiente mecanizado durante todo o decorrer do século XIX, tanto na mente de Marx quanto na de Morris, comecou a esfacelar-se. Homens cujos meios de mudar as idéias de um Iugar para outro tinham passado por uma revolucio, em suas mesas de escrever, através da m4quina de escre- ver e do telefone, no mais podiam tratar o mundo da tecnologia com hostilidade ou indiferenga, e se ha um teste que separa os homens dos rapazes em, di- gamos, 1912, € a atitude que tem para com Ruskin, Homens cujos pontos de vista sobre a arte e a fun- gao do design cram os mais variados possiveis uniam- se, apesar de tudo, em seu ddio por ce déplorable Ruskin *, A cadeia humana de Pioneiros do Movimento Moderno que vai de Gropius a William Mortis e, ane tes deste, a Ruskin, Pugin e William Blake, nfo vai além de Gropius. © vaso precioso da estética arte- sanal que tinha passado de mao em mio foi largado € se quebrou, e ninguém se deu ao trabalho de jun- tar os pedagos. Quando Gropius, na Proclamagao da Bauhaus de 1919, falou em habilidade manual, ele estava, de fato, falando para si mesmo, Sua reins- tauragdo como um dos Ifderes do design moderno por volta de 1923 foi efetuada no sentido de reconhecé- -lo como o lider de uma escola dedicada & arquitetu- ra da Idade da Maquina e ao projeto de produtos da méquina, utilizando uma estética da Idade da Maquina que tinha sido elaborada por outros homens em ou- tros lugares. Naturalmente, essa estética da Idade da MAquina nao era uma criagdo inteiramente nova — os homens que a claboraram chegaram A Primeira Idade da M4- quina curvados sob o peso de dois mil anos de cul- tura em suas costas, mas o minimo de equipamento mental novo de que dispunham tinha de dar conta do novo meio ambiente. Num dos extremos, os futuris- tas propunham-se jogar fora sua carga cultural e se- * Esso deplorivel Ruskin, (N, do T:) 16 guir adiante equipados apenas com uma nova sensi- bilidade; no outro extremo, homens como Perret ¢ Garnier, na Franga, sentiam que o novo devia sujei- tar-se, no dizer de Valéry, ao velho ou, pelo menos, as linhas gerais do velho. Entre o dinamismo futu- tista ¢ © cuidado académico desenvolveu-se a teoria e 0 projeto da arquitetura da Primeira Idade da Mé- quina. Se essas teorias e essa arquitetura eram aqui- lo que nés, olhando para trés a partir da Segunda Idade da Maquina, considerariamos como préprias, ou mesmo adequadas, a situacdo em que estavam, 6 uma questo que sera deixada em suspenso até o capitulo final, depois que tiverem sido descritos os eventos e as teorias desse perfodo. Todavia, enquanto nfo te- mos uma teoria adequada & nossa prépria Idade da Maquina estamos indo para a frente em ponto morto com as idéias e a estética que sobraram da Primeira Idade. Portanto, o leitor poderd, a qualquer momen- to, encontrar entre essas reliquias de um passado eco- némica, social e tecnologicamente tio morto quanto as cidades-Estados da Grécia, algumas idéias que ele usa todos os dias. Se isso lhe acontecer, deverd fa- zer-se duas perguntas: primeira, sdo suas idéias tio atuais quanto acha que s&o (esta é a Segunda Idade da Méquina e nfo a Primeira); segunda, quio fora de moda sio, na verdade, as idéias que ele poe de lado como sendo meras modas das décadas do jazz (pois uma Idade da Méquina é mais semelhante a ov- tra Idade da M&quina do que qualquer outra época que o mundo j4 conheceu). A revolugZo cultural que ocorreu por yolta de 1912 foi ultrapassada, mas nao foi revertida, a?

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