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"Se a Economie € o motor da Hata, esta € © motor do Direto. No se pode compreender 0 Dirito senda histrcanents, 0 que demons a impertnca deste Ir da professorsdeFLAMALAGES DECASTRO”" ‘Alexandre Fras Camara No pode interpreta coretamente lid seu tempo quem nao conhece 0 proesso volvo denassosstemajden. "Nessa linha @ obra de FLAMIA LAGES DE CASTRO ¢ um gua sepwo pa conhever a nossa ‘evotugo. que, se ais, porstso,jeea demonstra de un quaroevlutve, sku deste lio, escrto com inwuigardidtca e complete, permite uma anpla compreensio dos twansformaydes que marceram # ciénciajuiica, desde tempos remotes a€ peiodos mais contemporanes: cristiano Chaves de Farias "Resultado de uma pesquis competene arofundae, escrito de forms simples, 0 lurode FLAVIALAGES DECASTRO cunpre afuncic hoe inispensével de oferecer 20 studs 20 profisiona doDietoocanhecmento acetea distria que esti na base de tuo aque que (0 ite €. Com isso, estutiosose profsionas tn dante de ia opartunidade de entender ‘melhor asa feramenta de trabalho estar no d-a-a en contigs bastante satsttsias. $6 porissoc lnrajvaleserlda," Geraldo Prado ISBN 978-85.375 2502] Al wi WN Rogisto (05825. Visite 0 HISTORIA 00 DIREITO: GERAL E ‘worlivaralumenjris.com.br eas ‘veton0 yee : Flavia Lagés de Gastro- eee BD] bon Jee merg acs si escle a Confecsio de Mapas: Daniel Leal Ventura Historia do Direito Geral e Brasil 6®edigio Sumario Pratacio INTRODUGAO: HISTORIA E HISTORIA DO DIREITO Histéria . Direito.. Histéria do Direito.. Objotivos do Estudo de Histéria do Dielto... Este Livro. ppeye CAPITULO I: 0 DIREITO DOS POVOS SEM ESCRITA 1. Caracteristicas Gerais dos Direitos dos Povos Agrafos. 2. Fontes dos Direitos dos Fovos Agrafos, 3. Transmissio das Regras. CAPITULO I: AS PRIMEIRAS LEIS ESCRITAS E 0 CODIGO DE HAMMURABI 1. 0 Crescente Fértil @ as Primeiras Lois Escritas 2. Algumas Consideracdes Sobre as Leis Anteriores a Hammu: rabi... 3, A Babilénia de Hammurabi se 4. Sociedade e Economia da Babiléaia Hammurabiana 4.1. Questées Acarca dos Escravos 5, Alguns Pontos do Cédigo de Hammurabi CAPITULO II: DIREITO HEBRAICO Introdugio .. A Sociedade @ a Vida Economica, A Lei Mosaica ‘A Formagao do Direito Hebraico ~ da Legislagio Mosaica aos Dias de Hoje. 5, Algumas Leis do Deuterondmio CAPITULO IV: 0 CODIGO DE MANU 1. Introdugio. 2. Contexto Historico uw 2 13 15 16 7 27 28 29 a1 32 43 43 3. Sociedade 4 3.4.2 Divisio Baseada na Aplicabilidad® www 99 4. Religiao 46 3.4.3, Divisio Baseada no Sujeito. 88 5. Alguns Pontos do Cédigo de Manu cn A 3.6. Capacidade Juridica de Gozo. 93 3.5.1, Status Libercatis. 94 CaPfruto v: GRECIA 3.5.2, Status Civitatis 9 1. Introdugao... cnn 8B 3.5.3, Status Familiae 96 2. Esparca 68 3.54. Causas Restritivas da Capacidnde Juridica de 2.1. Sociedade... : er Gozo cnn 97 2.2. Eeonomia.... 69 36. Direito de Familia : 97 23. Politica. n 3.6.1. 0 Patrio Poder 98 2.4, Cultura © Ldoologia wwe n 3.6.2. 0 Casamento . 99 3. Atenas : co 2 363. 0 Divércio : oo 103 3.1, Drécon z z 73 | 3.6.4. 0 Dote 104 3.2. Sélon ssn ™ | 3.6.5. A Adogéo cons 104 3.2.1, Beonomia« m | 2.7. Tutela ¢ Curatela 105 3.2.2 Sociedade 75 BTA Titel coe 105 3.2.3. Politica. "75 1 3.7.2. Curatela. “ 106 2.8, Sucessao 107 CAPITULO VE ROMA E 0 DIREITO ROMANO | 3.8.1. Heranga snvunnnn senna 108 1. Introdugao. ~ 7 | 3.8.2. Testamento: 108 2, Histéria de Roma: Divisao Politica 78 3.9, Posse e Propriedade 109 2.1, A Realoza 0 suas Instivuigées Poiticas . 7” 3:10, Delites ce a 10 2.2. A Repiiblica e suas Instituigdes Politicas 0 3.10.1. Causalidade : na 2.3. 0 Império e suas Instituigges Politicas 82 3.10.2. Impurabilidade.... Cnn 192 2.8. As Mudangas em Roma Apés as Conquistas 8 3.10.3. Extingao da Punibilidade : 13 3. 0 Direito Romano 83 i 3.10.4, Co-Delingiiéncia va us 3.1, Definigdes © Caracteristicas 83 i 3.10.5, Rotroatividade da Lei Penal... 14 3.2, Peciodizagao do Dieito Romano 84 3.10.6. Alguns Delitos.. ana 3.2.1, Periodo Arcaico 84 | 3.11. 0 Bstudo do Diteito © 0s Advogados em Romana 115 3.2.2, Periodo Classico 85 i 32.3, Periodo Pés-Classico 85 CAPITULO VII: A EUROPA MEDIEVAL 3.3, Fontes do Direito Romano... 86 : 1. Introdugao. se se 119 3.3.2. Costume sss 36 2, Sistema Feudal on : 120 3.3.2 Leis @ Plobiscitos so 87 2.1. Caracteristicas a coins 120 3.3.3, Eaito dos Magistrados 38 2.2. Contrato Foudo-Vassalico.. : 122 3.3.4, JurisconsultO8 suns ceo 89 2.2.1, Os Eleltos do Contrato Poudo-Vassalico 123 3.3.5, Senatus-Consultos 90 2.2.2. 0 Fim do Contrato Feudo-Vassilico 124 3.3.6, Constivuig6os Imperiais oe a 2.2.3, Os Direitos de Uso e Propriedade no Contrato 3.4, Diviséo do Direito Romano 92 Foudo-Vassélico 125 3.4.1, Divisdo Baseada na Origem..n« a 2.8. As Relagios Feudo-Vassilicas 0 a Justiga. 126 3. Os Direitos da Idade Média... soon 127 3.1. Direito Germénico..... sone 127 3.1.1. O Reino Vandalo.. 129 3.1.2. O Reino Ostrogodo. . 130 3.1.8, O Reino Visigodo...... 130 3.1.4. 0 Reino dos Burgiindios... 131 3.1.8. O Reino dos Francos. . 131 3.2, 0 Diroito Can6nic0nvenn 132 3.3. 0 Direito Romano ' 135 4. A Inquisicao . 137 4.1. 0 Thibunal do Santo Oficio e os Tuibunais Seculares 138 CAPITULO VIE 0 ISLA 1. Introdugao 45 2. 0 Ambionto do Surgimento do Isla ve 146 3. A Fundagao do Islamismo...... soon 147 4, O Diteito dos Mugulmanos son 180 5. 0 Alcordo. os von 152 5.1, Alguns Pantos de Alcoria...... ce 184 CAPITULO Ix: 0 DIREITO INGLES 1. Introdugéo... oe 181 2. Direito Inglés ~ A Histéria © a Formagao do Statute Law... 182 3. A Divisdo do Direito Inglés vom 196 CAPITULO X: DA MONARQUIA ABSOLUTA AO ILUMINISMO 1. O Absolutismo Monarquico 199 1.1. A Franga de Luis XIV. 200 2. O Tluminismo e as Criticas ao Estado Absolutista, 205 3. Cesare Beccaria. 210 3.1. As Idéias de Cesare Boccaria.... 212 4. Outros Pensadores ~ Criminalistas do lluminismo, 222 CAPITULO XI AS REVOLUGOES ~ ESTADOS UNIDOS E FRANCA NO SECULO XVII 1. A Independéncia dos BUA... 225 1A. Introduglo ... 225 1.2. 0 Inicio do Processo de Independéncia e a Decaragao de Direitos do Bom Povo da Virginia 230 1.3, A Declaracdo de Independéncia Oo a36 1.4, A Constituigao Norte-Americana 1.5. A Equity e a Common Law nos Estados Unidos. 2. A Revolugio Francesa. 2.1. Introducao. 2.2. Conjuntura Politico Econémica Pré-Revolucionéria 2.3. A Ascombléia Constituinto © a Declaragao dos Direitos do Homem e do Cidadao 2.4. A Declaragao dos Direitos da Mulher e da Cidada, 2.8. As Constituigdes Revolucionaiiae x... 2.6, Era Napolednica e o Cédigo Civil. CAPITULO XII: AS LEIS PORTUGUESAS 1. Os Primeiros Habivantes e a Romanizacéo 2. Os Mugulmanos na Peninsula, 3, O Nascimento de Portugal. 4, A Bra das Ordenagoes. 4.1. As Ordenagées Afonsinas 4.2, As Ordenacées Manuelinas. 4.3, Ag Ordenag6es Filipinas 5. 0 Periodo Pombatino. 6. As Constituigdes Portuguesas. CAPITULO XII: BRASIL COLONIA 1. Sem Fé, sem Lei, sem Rei 2. Os Tratados Antes do Brasil ¢ Limites de Terras 3. O Antigo Sistema Colonial e os Primeiros Documentos Juri- dicos na Colénia 4, O Municipio, 0 Governo Geral e a Montagem de um Apara- to Juridico na Colénia, 5. 0 Direito sob 0 Dominio Holandas no Nordeste Brasileiro 6. A Legisingao Especifica da Regio das Minas. os CAP{TULO XIV: BRASIL REINO 1. Introdugao : 2. A Corte Portuguesa no Brasil ¢ a Subordinagao a Inglaterra 2.1. A Chegada da Corte e a Abertura dos Portos.. 2.2. A Liberagao de Manufaturas 2.3. A Reorganizagéo do Estado Portugués no Brasil ¢ a En. trega do Mercado Brasileiro. 237 243 245 245 245 2a7 251 259 260 267 269 270 272 272 277 281 291 293 297 300 302 304 ait 314 319 gat 321 324 327 capiruLo 1 2 3 4. 2.4. A Justiga no Periodo Joanino 25. A Slovagdo do Brasil & Condigéo de Reino Unido. |RASIL IMPERIO ‘A Independancia do Brasil e a Constituinte de 1823 ‘A Constituicdo Outorgada de 1824 : 2.1, Alguns Pontos da Constituicao de 1824. (© Codigo Criminal de 1830 0 Géaigo de Proceso Criminal de 1832 ¢ o Ato Adicional de 1834 vo 4.1. 0 Cédigo de Proceso Criminal. 42. 0 Ato Adicional, 4.3, Outras Leis do Periodo Imperial... Nascimento da ‘Tradigéo Juridica Brasileira, ‘A Escravidao @ a Lei: Condigdes © Aboli¢ao 6.1, As Lels Abolicionistas 6.1.1. A Lei Eusébio de Queiroz 6.1.2. A Lei do Ventre Livre. 6.1.3. A Lei dos Sexagendrios. 6.14. A Lei Aurea CAPITULO XVE REPUBLICA VELHA 1 a 3 ‘A Proclamagao da Republica e a Constituigdo do 1891, 1.1, Alguns Pontos da Constituigéo de 1891 1.1.1. A Repiiblica Federativa dos Estados Unidos do Brasil 1.1.2, 0 Poder Executive, 1.1.3. O Poder Judiciario, 1.14.0 Poder Legislative. 5, O Sistema Eleitoral. 118. As Novidades da Constituigao de 1891 (© Cédigo Ponal de 1290. 2.1. Alguns Pontos do Cédigo Penal de 1890... 0 Codigo Civil de 1916... CAPITULO XVII: ERA VARGAS - 1930 A 1946 1 ‘A Revolugao de 1930 © o Governo Provisério, 1.1, A Organizagio das Cortes de Apelacao do Distrito Fe- eral ¢ a Criagdo da Ordem dos Advogados Brasileiros 1.2, O Cédigo Eleitoral de 1932 333 341 345, 354 355 371 381 382 384 385 385 387 394 397 398 402 405 407 as 418 416 416 420 422 424 427 428 434 439 aaa 443 i i { 2. A Constituigéo de 1934 . 2.1, Caractetisticas Gerais do Estado Brasileiro 2.2. A Competéncia para a Elaboragao de Legislagao 2.3. Municipios .. os 2.4, Poder Executivo Federal 2.8, Poder Legislativo Federal 2.6. Poder Judiciario. 2.7. Conselhos Técnicos . 2.8. 0 Voto e 0 Sistema Eleitoral 2.9, Garantias Individuais, 2.10. ‘Trabalho. 2.11. A “Justiga” do Trabalho, 2.12. Nacionalismo. 2.13. Educagao. 2.14, Assisténcia do Estado e Casamento.. 2.18. A Mudanga da Capital 3. A Constituicéo de 1997 e a Ditadura Estadonovista 3.1. Antecedentes 3.2. A Constituigao de 1937 3.2.1. A Justificativa da Constisuicao 3.2.2, Uma Constituicao de Ditadura: Todo Poder ao Exacutivo Federal. 3.2.3, 0 Conselho da Economia Nacional 8.2.4, O Poder Judiciério. 3.2. Voto. 3.2.6. Os “Diteitos e Garantias Individuais" 3.2.7. Bducagao ¢ Familia 3.28, Trabalho 3.8. 0 Gédigo Penal de 1940 6 0 Cédigo de Processo de 1941, 3.4. A Policia, a Justiga e Outras Ingunioes da Era Var gas 4, Movimento Operirio: Da Déceda de 20 a GLI. CAPITULO XVII: BRASIL ~ DE 1946 A DITADURA MILITAR 1. O Fim do Estado Novo e a Constituigao de 1946 1.1. A Constituigéo de 1946 LLL. 0 Poder Executivo. 1.1.2, 0 Poder Legislativo. 1.1.8. 0 Poder Judiciétio.. 444 446 447 449 480 452 455 457 458 459 460 462 462 464 467 468 469 469 478 477 478 482 483 484 484 488, 490 ann 492 496 505 508 506 808 510 1.1.4. Ministério Pablico. 1.1.5. Bstados e Municipios 1.1.6. Os Dizeitos: 2. ADitadura Militar 2.1, Antecedents ... 2.2. 0 Ata Institucional (0 n® 1) 2.3. 0 Ato Institucional n2 2... 2.4.0 Ato Institucional ne 3. 2.5. 0 Ato Institucional n0 4 @ a Constituicao de 1967 2.6. O Ato Institucional n° 5. smn 2.7. Outras Leis do Regime Militar e a Emenda Constitucio- nal ne 1 de 1969 CAPITULO XIX - A REDEMOCRATIZAGAO E A CONSTITUIGAO DE 1988 1, O Fim do Regime Militar 2. A Constituinte de 1987, . 3. Caracteristicas Gerais da Constituicao de 1988. Referéncias Bibliograficas Anexos. 516 S17 519 523 523 ve 628 . 834 543, 544 550 557 561 862 563 665 873 Prefacio Fol com grande prazer que recebemos 0 convite da Professora Flavia Lages pare prefaciar seu livro Histéria do Direito ~ Geral e Brasil. Sabemos que sua escolha nao foi, como poderia parecer a priori, por sermos historiadoras nem por nosso conhecimento do Direito Romano. ‘Temos certeza de que a amizade nasceu entre nés no Mestrado em His- t6ria da USS quando fomos professoras, ¢ sua Orientadora foi responsé- vel pela gentileza de Flavia, Naquela ocasido a autora iniciava sua ca- minhada na dificil “arte de escrever", quando defendeu com brilhantis- ‘mo sua Dissertagao de Mestrado ¢ redigiu seu primeiro trabalho como historiadora. Nossa alegria foi enorme ao vé-la continuar seu caminho, escrevendo este livro, onde procura defender verdades incontestes, nem sempre compreendidas pela comunidade académica. Referimo- nos & importancia que muitas vezes nao é concedida ao conhecimento histbrico por especialistas de algumas areas das Ciéncias Sociais. Flavia, ao consoguir desenvolver de forma sintética assunto téo abrangente e complexo, mostrou sua inclinagéo para Pesquisa Cientifica, revelando que a defesa de sua Dissertagio néo foi somente uma exigéncia para concluséo do Curso de Mestrado em Historia Social. A Historia do Direito & condigio sine qua non para que os futuros advogados possam melhor conhecer as estruturas, as conjunturas € 0 contexto que levaram os legisladores a elaborarem as normas do Direito. A leitura de sua obra é importante nao sé para os estudantes que desejam conhecer a histéria do Direito, mas também para os profissio- nais © o piiblico om goral. A oscrita do livro de Flavia nao se reduz a uma narrativa histérico- linear, “fragmentada em migalhas". E um trabalho que incentiva 0 leitor A pesquisa ¢ & reflexao critica, Sou estilo é objetivo, despojado, elegante e de agradavel leitura, ‘embora sua narrativa pouco convencional reflita sua personelidade, sua formagdo ¢ um profundo conhecimento da Metodologia Cientifica, No decorrer da leitura de seu Texto, sente-se sua constante preccupagéo em realizar ensaios roflexivos acerca do Direito dos diferentes poves, inclusive especificamente a trajetéria brasileira no campo de sua anélise, Seu livro constitul um amplo painel sobre 0 Diteito de diferentes CivilizagSes, compreendidas sob 0 ponto de vista politico, econdmico e cultural. Em decorréncia deste fato, podemos consideré-lo ao mesmo tempo analitico, sintético e polémico, ‘Nao 6 por apresentar uma viséo de conjunto sobre a histéria do Direito que deve ser considerado genérico ou apenas como um simples Manuel, Embora este tipo de abordagem possa conduzir a gene- talizagées, isto nao acontece com Flavia porque seu Texto nao perde de vista a reflexdo, Seu mérito repousa justamente na contundéncia com, que a autora procura a reflexio e no no fato de revisar ocorréncias, passadas, . livro da autora trata de forma sintética de aspectos importantes da evolugao juridica, mas néo 0 fez de forma linear © cronolégica ‘porque analisa, critica e interpreta os fatos. Nolo a historia do Direito & vista em um vids pouco explorado em obras similares porque contém informagao. reflexao e fundamentagao. ‘Como especialista em Histéria Romana, dentre tantos pontos que consideramos fundamentais, e absolutamente indispenséveis, analisa- dos por Fldvia Lages @ que podem ser considerados polémicos, comen- taremos especificamente aqueles que se referem ao Direito Romano, ‘A autora, ao afirmar a grande importéncia do Direito Romano na atualidade para os advogados e juristas, é profundamente pertinente. Nao é possivel que se ignore o legado do Direito Romano para 0 ‘pensamento juridico ocidental nem sua importancia para o Dizeito Civil ‘om seu ordenamento juridico. A Lei das Doze Tabuas também néo foi esquecida pela autora. Como deixar de lembrar a Lei que assinalou a passagem do direito oral para o dieito escrito, a primeira compilagao do Direito Romano que serviria de base ac Diceito Publico de Rome até a época do Imporador Juliano? (© simples fato de admitir a igualdade de todos os cidadaos romanos perante a Lei e a soberania do povo faz da Lei da Doze Tabuas ‘um documento de grande relevancia para conhecimento da histéria do Direito, 0 Corpus luris Civilis, codificagao do Direito, feita na época de Jus- tiniano, teve influéncia significativa nos Cédigos Modernos e permitiu ‘© comhecimento das obras dos grandes jurisconsultos romanos. E dificil avaliarmos 0 valor de nosso débito intelectual para com Roma no que se refere ao legado do Direito Romano, pois os romanos fundaram, desenvolveram e sistematizaram a jurisprudéncia no mundo, ‘Todas estas premissas lembradas por Flavia corroboram para defesa de sua propositura a necessidade do estudo do Direito Romano. ‘Gostariamos de continuar analisando toda a Sintese elaborada pela autora, mas certamente néo terminariamos a redagao deste Prefacio. Nao podemos, porém, finalizar esta Introdugéo sem deixar de enfatizar um dos pontos mais relevantes do traballio de Flavia Lages. ‘A autora conseguiu redigir uma obra geral sobre a Historia do Direito baseada em uma pesquisa profunda ¢ acurada de Fontes Primarias, 0 que torna a leitura do seu Texto indispensavel para todos os estudiosos do Direito. Convidamos o leitor a percorrer a Histéria do Direito ~ Geral e Brasil de Flavia Lages e @ olhar com admiracao 0 excelente trabalho empreendido pela jovem e talentosa historiadora, MMarliaa Corréa Cirtbeltt Dostora em Historia pela USP Pés-doutora em Historia Social pela UFR INTRODUGAO, HISTORIA E HISTORIA DO DIREITO © que 6 Historia? O que 6 Historia do Direito? Quais pontos His- t6ria e Direito tém em comum? Qual o objetivo do estudo de Histéria do Direito? Ao responder a estas perguntas, estaremos mais aptos a compreender de fato a Historia do Dizeito dos Povos e das Culturas que estudaremos a seguir. Esta necessidade do conhecimento do objeto antes de uma ana- lise de seus pontos é a base para a compreensdo global do objeto de estudo de qualquer ciéncia. 1, Historia (Quando se pensa em Historia a palavra “passado” logo nos vem a mente, O passado seria historia? Todo 0 passado? Tudo no passado? Uma bela frase pode iniciar nosso raciocinio: ‘A histéria 6 a mem6ria da humanidade, mas no 6 suficiente recordar para sor historiador."? ‘Sem diivida, 0 tempo é a dimensao do trabalho do historiador, mas analisemes: = 6 possivel “histéria das baleias"? = nao parece menos estranho “historia da caga as baleias"? A “histéria das baleias" no 6 possivel porque as haleias no transformam, nao se transformam... A transformagao 6 a esséncia da Histéria © somente o ser humano pode executar tal tarefa. Por isso a “Histéria da caga as baleias” parece soar menos estranho aos nossos ouvidos. Quem caga é 0 homem, esta atitude (que hoje em dia é um ‘tanto estiipida) mudou no tempo. (T” EHRARDE e PALMADE apud CHAUNU, Pierte. A histéria como eiéneia social, Rio de Janeiro: Zaha, 1978.23. EB ¥ d isa Lagos de Castro Pode-se, entdo, chegar a primeira conclusio acerca da Histéria seu objeto 6 0 homem, isto 6, 0 estudo da Histéria concentra-se no Ser Humano ¢ a sucessio temporal de seus atos.* (© Ser Humano estudando o ser humano, qual o objetivo? Por que isto nos 6 t4o caro? Por que 6 tao importante mesmo para pessoas ‘comuns? Paul Veyne apresonta dois motivos: “Primeltamente, 0 fato de pertencermos = um grupo nacional, familiar... pode fazer com que 0 passado desse grupo tenha um atrativo parti cular para nés; a segunda tazso ¢ a curiosidade, soja anedética ou acompanhada de uma exi- géncia da inteligibilidade."3 2. Direito A palavra “Dizeito”, bem como ele préprio no sentido amplo da Ciéncia do Dizeito, vem dos Romanos antigos e 6 a soma da palavra DIS (muito) + RECTUM (roto, juste, certo), ou 9eja, Direito em eua origem significa o que 6 muito justo, o que tem justica Entende-se, em sentido comum, o Direito como sendo 0 conjunto de normas para @ aplicacao da justiga © a minimizagao de conflitos de uma dada sociedade.4 Estas normas, estas regras, esta sociedade nao 80 possiveis sem o Homem, porque ¢ 0 Ser Humano quem faz 0 Direito 6 para ele que 0 Direito 6 feito, Esta dependéncia do fator humano é exteriorizada por Vicente Réo da seguinte manera: diroito prossupde, necessariamente, a exis- téncia daquele ser e daquela atividade. Tanto va- lo dizer que pressupse @ cooxisténcia social, que 0 proprio homem."5 2 BLOCH are ntrodusdo &histéria. Sina: Buropa-Améria, | 18-— |. CARR, B, H. Que 6 Bistria? Rio do Janos: Par ¢ Tora, 1078 BESSELAAR, J. V. D. Introdugto aoe fetudorhiréricr, 3c, Si Pa: Hordor, 1970. 2 VEYNE, Paul Como.se ascreve a hstia:Foveaitrevoluciana a histéria 4, od rasa Universidade de Bross, 1995.62 4 Nio'se pretend aut ofrecer melhor definigto de Diroto, mas, 6 0 euciente para tua ands que possiblte «comproonsao de lsc do Dirito 5 RAO. Vicente. O dirito wa vida dos direitos 5 od. Sio Palo: 1999 p. 51 ‘istéa do Dielto Geral Bras © Jurisconsulto romano Ulpiano nos da uma ligdo do que 6 0 Direito, indicando os tipos de direito @ definindo-os. Vale a pena en- cerrar esta definicdo com a licéo, dedicada aos estudantes de Direito, deste mestre da Antiguidade: "Os que so vao dedicar ao estudo do Direito devem comogar por saber donde vem a palavra ‘tus’. Na verdade, provem de ‘iustitia’: pois (re- tomando uma elegante definiggo de Celso) 0 Giroito € arte do bom e do eqitativo. § 1. Pelo que hé quem nos chame de sacerdotes. Na ver- dade, cultivamos a justica e, utilizando 0 conheci: mento do bom e do eqiuitativo, separamos o justo do injusto, distinguimos o licito do ilicito.. §2. HA duas partes neste estudo: o direito piblice, que diz respelto ao estado das coisas de Roma; eo privado, relativo & utilidade os particulares, pois cortas utilidades sao piblicas e outras, privadas. 0 direito pitblico consiste (nas normas relativas) as coisas sagradas, aos sacertiotes ¢ magistra: dos. O direito privado 6 tripartido: 6, de fato, coli- gido de preceitos naturais, ou das gentes, ou civis."6 3, Historia do Direito Jé foi possivel perceber que Histéria ¢ Direito tém algo em comum: ‘© Homem. Assim, partindo do Ser Humano, 6 necessario salientar al- guns pontos primordiis, (© Homem é naturalmente produtor de Cultura, Ndo somente aqui- Jo que chamam comumente de cultura, como saber sobre autores clés- © ULPLANO. Digesta de Justiniano, Lier Pamus. I: DE [USTITIA BT TURK, “Tri operam leturi pus noms oportst nde nomen kins docendat, Bae automa sta appalatunm: ‘bam (at eloganter Cosus deft) lus est ars ban! et aequl $1. Cujus mézto quis nos {noerdotes appallet Jusitiam nanque climus, ct bon! ot equ notitiam prottemr ‘Sequim ab inquo roparantes,leitum ab ijetum discernetas..§2. ulus sued dae ‘Eine positioner: publoum us ot, quod ed statum rl romane spect: pevatum » quod 2 ‘Singulon uutatem: sunt enim quaodam puplce va, quaedam prvatim, Publi jus In sacris in sscerdotinus, in magistratibus consi. Pivatum Jus teipertcam (Shloctum etenim est ex neturabius prasceptinas, aut gnc, aut cvlbas ‘iva Lagos de Casto sicos, vinhos caros e literatos, mas a Cultura no sentido correto da palavra. Entende-se por Cultura “o processo pelo qual 0 homem acumula as experiéneias que vai sendo capaz de realizar, discerne entre elas, fixa as de efeito favoravel e, como resultado da agdo exercida, converte com idéins aa imagens © lombrangae (..)."7 Isto 6, tudo o que o homem produz faz parte da cultura do homem, ‘A caltura 6 temporal, historica. Ela depende do momento em que determinedo individuo ou comunidade esto vivendo para ter as caracteristicas que a definem. Assim como afirma 0 velho professor Bloch baseando-se em um ditado arabe: “0 Homem se parece mais com seu tempo que ‘com seus pais."® Pode-se concluir, portanto, que, sendo 0 Direito uma produgso humana, ele também é cultura @ é produto do tempo historico no qual a sociedade que 0 produziu ou produz esta inserida. Plagiando 0 ditado frabe, poderiamos afirmar que 0 direito se parace com a necessidade histérica da sociedade que 0 produziu; é, portanto, uma produgao cultural e um reflexo das exigéncias desta sociedade Conforme as belas palavras de Jayme de Altavila: (0s direitos dos povos esquivalem precisamente 0 sou tempo e se explicam no espaco de sua gestagio. Absurdos, dogmaticos, licidos © li- Derais - foram, todavia, os anseins, as conquistas ‘© 0s baluartes de milhoes do sores que, para eles, levantariam as méos, em gesto de suplica ou de centerecido reconhocimento.”? 4. Objetivos do Estudo de Histéria do Direito ‘A Historia do Diteito 6 primordial para o estudante de Direito na me- dida em que o auxilia na compreensao das conexdes que existem entre 7 BINTO,¥ spud ARANHA, ML do A. Martins, H.P Flosofande: nsrodueso & Sosa Sto Palo Moderna, 2086, BLOCH, Mare. Op. cit, p. 36 §ALTAVILA. Jayme de. Origem do dirlte dos poves. 7. ed. Sio Panto: cone, 198, p. 16 usta do Ditto Geral © Brast asociedade, suas caracteristicas, ¢ 0 direito que produziu, “treinando-o para uma melhor visualizagao e entendimento do proprio direito. ‘A Histéria em si tom muito deste objetivo; ela 6, nas palavras de Collingwood, para “autoconhecimento” néo somente pessoal ou social, mas também no exercicio de tarefas profissionais. “Conhecer-se a si mesmo significa saber o que se pode fazer. E como ninguém sabe 0 que pode antes de tentar, a tinica indicacéo para aquilo que ‘ohomem pode fazer 6 aquilo que ja fez. O valor da historia esta entdo em ensinar-nos o que o homem, tem feito e, deste, modo, o que o homem 6.":0 Portanto, o valor do estudo da Histéria do Direito nao esté om ensinar-nos nao somente o que o direlto tem “feito”, mas o que o direito 6. Tendo isto em mente, podemos avancar neste estudo, buscando ‘compreender nao somente as regras de povos que viveram no pasado, ‘mas sua ligagao com a sociedade que a produziu para assim, e somente assim, entender 0 “nosso” Diteito. 5. Este Livro © Principal objetivo deste livro é dar ao leitor um espectro geral da Historia do Direito a partir da compreensao da sociedade que envolveu a elaboragao das leis. Tomando por pressuposto logico que nio so as leis que formam uma sociedade, mas que estas, hist6ricas om si, s20 feitas a partir do que uma sociedade pensa ou deseja de si. Para quo isto pudesse ser feito, dada a abrangéncia do tema, fo- ram escolhides cronologicamente alguns povos ¢ respectivas legis lagdes que pudessem contribuir para a compreensao da ligagdo entre 0 ovo e suas lels 6/0u para o entendimento da legislagéo brasileira c sua historia. ‘Tomando pot base fontes secundarias de histéria e Direito, bem como fontes primérias relativas as leis propriamente ditas, analisamos pormenorizadamente, sempre que possivel, a conexio sociolegal exis- tente. 70 COLLINGWOOD, R G. A Idéia de histéria Lisboa: Preseogs, 1972. p. 17 ‘iva Lages de Caso Assim podemos pensar de fato em uma Histéria do Direito. Nao com um olhar descritivo sobre leis do passado que parecem ter surgido do nada, mas a partir do carater, intengao e nogées de moral e objetivos dos povos que acharam por bem escrover suas normas. CAPITULO I O DIREITO DOS POVOS SEM ESCRITA Embora algumas vezes as pessoas confundam Direito @ Lei escri- 1a, se partirmos do pressuposto de que um conjunto de regras ou nor. mas que regulamentam uma sociedade pode ser chamado (ainda que humildemento) de direito, todas as comunidades humanas que existom ou existiram no mundo - indiferentemente de quaisquer caracteristicas que tenham ~ produziram ou produzem seu “Direito”, 86 podemos estudar Histéria e, portanto, Historia do Direito a par- tir do advento da escrita (que varia no tempo de povo para povo), antes disso chamamos de Pré-histéria, A Pré-historia do direito 6 um longo caminho de evolugao juridica que povos percorteram e, apesar de podermos supor que foi uma es- trada bastante rica, temos a dificuldade, pola falta da escrita, de ter acesso a ola, Esta riqueza pode ser comprovada polo fato de as sociedades a0 0 utilizarem pela primeira vez da escrita (@ do direito escrito) 34 terem instituigdes que dependem muito de conceitos juridicos, como casa ‘mento, poder paternal ou maternal, propriedade, contratos (ainda que verbais), hlerarquia no poder pubblico etc. ‘As origens do Direito situam-se na formagdo das sociedades e isto remonta a épocas muito anteriores & escrita eo que se mostra mais interessante neste estudo especificamente 6 que, dependendo de povo de que tratamos, esta "época” ainda é hoje, Povos sem escrita ou agrafos (a= negacao + grafos= eserita) nao tém um tempo determinado. Fociem ser os homens da caverna de 3.000 .C, ou 08 Indios brasileiros até a chegada de Cabral, ou até mesmo as, tribos da floresta Amazénica que ainda hoje néo entraram em contato com o homem brance. Diante desta multipticidade de povos e tempos podemos somente comentar algumas caracteristicas gerais destes grupos, Em geral, nao tém grande desenvolvimento tecnolégico e somente uma minoria des- tes tem agricultura. Sao, em sua maior parte, cagadores-coletores © co- mo tais semindmades ou némades, Os povos 4grafos que possuem Alia Lages de Casto agricultura so sedentarios e todos eles, sem excegao, baseiam seu dia a dia em uma religiosidade profunda, Pela quantidade destes direitos ¢ a diversidade destes buscamos entdo, como introdugao ao estudo de Histéria do Direito, apontar ca racteristicas e fontes do direito comuns que auxiliam na compreensao de um todo tae distinto, 1. Caracteristicas Gerais dos Direitos dos Povos Agrafos! 1 Sao Abstratos: como séo direitos nao escritos, a possibilidade de abstracao fica limitada. As regras devem ser decoradas © passadas de pessoa para pessoa da forma mais clara possivel, {Sao Numerosos: cada comunidade tem seu préprio costume & vive isolada no espace @, muitas vezes, no tempo. Os raros con- tatos entre grupos vizinhos (que porventura vivem no mesmo tempo e dividem 0 mesmo espaco) tém como objetivo a guerra. \\_ Sao Relativamente Diversificados: Esta distancia (no tempo e no fespago) faz com que cada comunidade produza mais disse- melhangas do que semelhiancas em seus direitos. ‘S40 Impregnados de Religiosidade: como a maior parte dos fendmenos sao explicados, por estes povos, através da religio, fa regra juridica néo foge a este contexto. Na maior parte das vezes a distinggo entze regra religiosa @ regra juridica tora-se impossivel. {Sao Direitos em Nascimento: a diferonga entro que 6 juridico & © que ndo & muito dificil. Esta distingdo sé se torna possivel quando 0 direito passa do comportamento inconsciente (deri- vadlo de puro reflexo) ae comportamento consciente, fruto de reflexao. {i Net pont seguiremos de pero oe epontamantos de GILISSEN, J. Introdugio histéri- (rao diretg. 2 ed Lshow Calooee Gulbolian, 199, p, Stes 2. Fontes dos Direitos dos Povos Agrafos Entendemos come “fontes de direito” tudo aquilo que ¢ utilizado como base ou “inspiragéio" para a feitura de regras ou codigos, Os povos agrafos basicamente utilizam os Costumes como fonte de suas normas, ou seja, 0 que é tradicional no viver © conviver de sua comunidade torna-se regra a ser seguida.12 Entretanto, o costume néo é a tinica fonte do direito destes povos. Nos grupos sociais onde se pode distinguir pessoas que detém algum tipo de poder estes impdem regras de comportamento, dando ordens que acabam tendo carter geral e permanente. precedente também 6 utilizado como fonte. As pessoas que julgam (chefes ou ancigos) tendem a, voluntéria ou involuntariamente, aplicar solugdes jé utilizadas anteriormente. 3, Transmissio das Regras Muitos grupos utilizam 0 procedimento de, em intervalos regu- lares de tempo, terem suas regras enunciadas a todos pelo chefe (ou chefes) ou ancidos. Outras formas so os Provérbios e Adagios que de- sompenham papel decisive na tarefa de fazer conhecer as normas da comunidade. 2 O costume, em maior eu menor gu, ¢ fonte de todo Dist Uma sociodade, por male snologioamente quo soja io pods doscartar sua tsdiga0 sua meval como { | CAPITULO I AS PRIMEIRAS LEIS ESCRITAS E O CODIGO DE HAMMURABI 1. O Crescente Fértil e as Primeiras Leis Escritas ‘Ha um lugar 20 mundo onde quase tudo que consideramos “civi- lizado” nasceu: o Crescente Fértil, onde hoje esté o Traque, uma parte do Ira e parte de seus vizinhos. Este lugar tem este nome por causa da fertilidade que os rios Tigre e Eufrates dao a uma regiao que é se- melhante a uma lua crescente de cabega para baixo Nesta regiéo o homem primeiro dividiu as horas, os minutos e os sogundos em sessenta, fez tijolos e erigiu grandes construgses com eles, criou (para a felicidade dos olhos e da alma) a jardinagem, inven- tou 0 Estado e 0 Governo, fez as primeiras escolas, inventou a cerveja, ‘Mae, a male grandiosa invongée desea gento da Mesopotamia foi passar para uma superficie simbolos que expressavam idéias; a isso chamamos de escrita."8 O tipo de escrita que inventaram foi a cunei- forme.14 Nao se pode estranhar, portanto, que tenham sido estas pessoas as primeiras a terem leis escritas. Tem-se noticia de um chefe da cidade de Lagas de nome Urukagina, no terceiro milénio antes de Cristo, ser apresentado pelos textos de época como um grande legislador e reformador. Bouzon informa, contudo, que as inscrig6es de Urukagina ‘nao transmitem leis ou normas legais, mas medidas sociais adotadas para coibir abusos e corrigir injusticas vigentes.16 © compo de leis mais antigo que se conhece 6 o de Ur-Nammu (fundador da terceira dinastia de Ur, 2111-2094 a.C.) do qual chegou até 12 Mesopottmia (= entre os) fi nome dado pelos regos & regio entre os ros Tiga © “M4 "Cunslorme: siteme de eseita, som civids 0 mai antigo conhecido, o canerme (do latim enous, ‘ounha” forme, forms), fo iaventado pelos sumerianorsoguremonte des ‘do 0 do mimic. © trmo cunciforne caracteiaa 0 aspectoanguloso dos simbole, im pressos em aga tinida ou, raramente, em para (.).” AZEVEDO, A.C. do A.Dicionério ‘ds nomen, termos e concoitoshlstricos, Hua de Janette: Nova Fonts, 1990, 110 16 BOUZON, 2.0 Cédigo de Hammurabi 6, od, Potspalis: Vozee, 198, p. 22. ‘via Lagee do Casto és somente dois fragmentos de um tablete de argila. Em 1948 outras leis foram identificadas também na mesma regido; sao as leis de Eshunna. No final de 1901 ¢ inicio de 1902 4.C. uma expedigao arqueclégica francesa encontrou uma estela (ou pedra) de diorito negro de 2,25 mn de altura contendo um conjunto de leis com 282 artigos, postos de ma- neira organizada, ao qual chamamos hoje de Cédigo de Hammurabi por ter sido feita 2 mando do Rei Hammurabi, que reinou na Babilénia entre 1792 @ 1750 0.0.16 2. Algumas Consideragées Sobre as Leis Anteriores a Hammurabi Antes de tratarmos especificamente do Cédigo de Hammurabi ¢ interessante que nos detenhamos, ainda que rapidamente, nas ca- racteristicas gerais das leis escritas anteriores a Hammurabi. ‘Tanto UrNammu quanto Eshunna foram reis de Cidades Estado ho Crescente Fértil e dao nome as primetras els escritas que conne- cemos; a influéncia que Ur-Nammu (rei sumeriano) exerceu sobre as leis de Eshunna sdo tao grandes quanto a que estas duas legislagoes provocaram no Cédigo de Hammurabi. A questao da justiga, aliés, era importantissima ja para os sumerianos, desta forma explica Kramer: “A lei a justica eram conceitos fundamentais da antige Suméria, que impregnavam a vida social e econdmica sumeriana tanto na teoria como na pratica, No decurso do século passado [sée. XXX 4.C.|, 08 arquedlogos revelaram, a luz do dia, mi- heres de tabuinhas de argila representando toda ‘espicie de documentos de ordem juridica: con tratos, atos, testamentos, notas promissérias, re- clbos, acérdaos dos tribunais. Entre os sumérios, © estudante mais adiantado consagrava uma grande parte de sou tempo ao estudo das leis © exercitava-se regularmente na prética de uma terminologia altamente especializada, bem como ‘A peda (ou Eatela) pode ser vists hoje em dia 90 Museu do Louvre, em Paris 2 Mitéria do Diriz Geral e Brast na transcrigéo dos cédigos logais © dos julga- mentos que tinham formado jurisprudéneia."17 O diteito privado sumeriano reconhecia alguma independéneia em relagao ao marido. O divércio era realizado através de decisao judicial ¢ poderia favorecer a qualquer dos cdnjuges, O repidio da mulher acarretava uma indenizacdo pecuniaria e somente era permitido pelos motives indicados pela loi. O adultério era um delito, porém sem conseqiiéncias se havia o perdao do marido. O filho que renegasse seu pai poderia ou ter a mao cortada ou ser vendido como escravo, A esposa era responsdvel pelas dividas do marido. As leis penais dos sumerianos muitas vezes substitufam o Prin- cfpio da Pena de Taliao (que ser4 explicado a seguir) por multas ou por indenizagées legais. 3. A Babilénia de Hammurabi Embora a Babilénia mais famosa seja 2 do rei Nabucodonosor (s8c. V a.C.) por causa da participagao deste na Histéria dos Hebreus contada na Biblia, a Histéria da Babil6nia remonta o segundo milénio da era pré-Crista, quando um grupo némade (arcadiano) fixou-se em. ‘uma localidade chamada Babila ou Bab lim (Babilénia ou Babel - porta de deus), as margens do rio Eufrates. (© xoque deste grupo arcadiano, Sumuabum (1894-1881 a.C.), co- megou a expansdo territorial da babildnia, mas foi seu sucessor, Sumu- la’el (1880-1845 a.C.), que, com vitérias sucessivas sobre os vizinhos, consolidou a independéncia da cidade. Os reis posteriores incorporaram a cultura suméria e somaram-na & cultura arcédica; entretanto, om termos de expanséo tertitorial somente em 1792 a.C. com a ascensao ao poder de Hammurabi a Babi- onia cresoeu om poder. Hote rei, com imonsa habilidade om politica de aliangas, mais que dobrou o territério que seu pai havia deixado. rei Hammurabi construiu um grande império que abrangia os verritérios dominados anteriormente pela dinastia de Agadé ~ do mar Inferior e do Elam até a Siria e 0 litoral do Mediterraneo. Ele assumiu 8 titulos de rei de Sumer, rei de Acad, rei das Quatro Regi6es, rei do 17 KRAMER apud GIORDANI, M, C. Hisérla da antiguidade oriental. 11, ed, Potrpale ores, 2001p. 138 ry ‘via tages de Gastro Universo e, 0 mais interessante: “Pai de Amurra” (Amurru significa Ocidente). Hammurabi ndo foi apenas um grande conquistador © um ex- celonte estrategista; foi, antes de mais nada, um eximio administrador. Conforme afirma Emanuel Bouzon: ‘Seus trabelhos de regulagem do curso do Eufrates e a construgo @ conservacéo de canais, para a irrigagdo e para navegacao incrementaram enormemente a produgo agricola e 0 comércio. Em sua politica externa Hammurabi preocupou- se, sempre, em reconstruir as cidades vencidas © om reedificar e ormamentar ricamente os templos dos deuses locais (..."18 Em seu territério existiam varios povos diferentes, de linguas, ragas, culturas diversas. Para exercer sou poder eram nocessérios me- canismos de unificagso em meio a tanta heterogeneidade. Hammurabi utilizou-se de trés elementos para empreender esta unificagéo: a lin- gua, a religido © 0 dircito, 0 acédio tornou-se lingua oficial, 0 pantedo de deuses fixou-se. © Cédigo de Hammurabi foi feito utilizando-se de toda a legislagéo pre- cedente, Este teve uma penetragéo e uma utilizagdo surpreendente e ‘sem paralelos na histéria: mil anos depois de sua redacao era aplicado ainda na Babilénia e em Ninive, por exemplo. Hammurabi nao apenas ordenou a feitura do Cédigo. Para uma melhor utilizagao do Direito como ferramenta de controle ele também reorganizou a Justiga (em moldes muito proximos aos que hoje utili. zamos} “O poder judiciério, na Caldéia anterior ao reina- do de Hammurabi, era exercido nos templos pelos sacerdotes em nome dos deuses. Na Babtionta, dosde o inicio da I dinastia, comegaram a ser or: ganizados, & imitagdo do que jé existia em Sumer, tribunals civis dependentes diretamente do so berano. Hammurabi conferiu & justiga real supre- macia sobre a justiga sacerdotal; deu-lhe unifor- 1B BOUZON, &, op. cic. p.20, Histdta do Dieto Geral e Brasil. midade de organizacéo e regulamentou cuidado- samonte o processamento das acbes, compreen- dendo nessa regulamentago a propositura, 0 recebimento ou nao pelo juz, a instrugéo com- pletada pelo depoimento de testemunhas © diligéncias ‘in loco’ e, finalmente, a sentena, Fot estabelecida entao uma organizagio judiciéria que incluia até © ministério pitblico e um direito processual."!2 Apés a morte de Hammurabi a dinastia manteve-se por aproxi- madamente 150 anos, mas em 1594 os Hititas invadiram e incendiaram a Babilénia, abandonando-a em soguida. A queda da dinastia de Hammurabi fez ascender os Cassitas que iniciaram um novo perfodo da Hist6ria da Babilénia 4. Sociedade e Economia da Babilénia Hammurabiana A Sociadade da Babilénia da época do Hammurabi 6 dividida, conforme indica o préprio cédigo, em trés camadas sociais: \ Os “awilum” : 0 homem livre, com todos os direitos de cidadao. Este 6 0 maior grupo da sociedade hammurabiana e compreen: dia tanto ricos quanto pobres desde que fossem livres. Os ‘muskénum": so uma camada que ainda suscita muita diavida por parte dos estudiosos. Parecom ter sido uma camada intermediaria entre os awilum 6 os escravos, formada por fun cionarios piblicos, com direitos @ deveres especificos. Os escravos: eram a minoria da populacao, geralmente prisio- neiros de guerras.20 A economia era basicamente agricola ¢ a maior parte das terras era de propriedade do Palacio, ou soja, do governo. Mas havia comércio © este era bastante forte, principalmente 0 externo conforme mostra 0 19 GIORDANT, M,C. Historia da Antiguidade...Op cit, p. 185 2 O Cédigo de Hammurabi dso nome de wardum para eecravo @ amtum para esravas. ‘via Lagos de Castro proprio Cédigo que afirma existirem inclusive banqueiros que finan- ciavam as expedicoes. (0 pequeno comércio varejista estava nas maos de mulheres, as “taberneiras” que vendiam no somente bebidas, mas também géneros de primeira necessidade. O veiculo de pagamento, que hoje Genominamos mooda, ora a covada ou 2 prata. Assim nos indica 0 Cédigo de Hammurabi “Se uma tabereita nfo aceitou cevada como tego da cerveja, (mas) aceitou prata em peso grande ou diminuiu 0 equivalente de cerveja em relacéo 20 curso da covada, comprovardo (isso) contra a taberneira e a langarao na équa."21 4.1, Questées Acerca dos Escravos A medida que utilizaremos amplamente, principalmente na An- tiguidade, a nogao de escravidéo, faz-se nocessério empenhar-nos em entender o que significa a Instituigéo Escravidao. Isto faremos levando ‘om conta a Escravidao como um todo, nao somente na Babil6nia, que 6 © tema deste Capitulo. Definir escravidao néo 6 somente considerar que todo aquele que trabalha sem nada receber é escravo: muitos de nés seriamos, até mes- ‘mo 08 honrados voluntarios que existiram e existem no mundo, colo- caddos nesta posigdo, que nao é verdadeira no caso deles. Escravo é propriedade, bem alionavel, ou seja, algo que pode ser comprado, vendido, alugado, dado, eliminado... Escravo 6, portanto, ‘Na Antiguidade néo era condicéo imporiosa ser de outra raga para tomar-se esctavo. De fato, a escravidao originava-se de guerras - quan- do 0 indtviduo era, apés a derrota de seu grupo, pego pelos voncedo- es —; de dividas — quando 0 individuo penhorava o proprio corpo ou de ‘um membro da familia, como garantia de pagamento e no o fazia~ ou por nascimento, ‘Assim define 0 Dicionério de Nomes, Termos e Conceitos Histéricos: “Instituigao secular caracterizada pola situacao do individuo juridicamente considerado um obje- at B06, 6 Histria do Ditelto Gera Brasil to, do qual outra pessoa pode dispor livremente exercendo direitos de propriedade. A escravidéio conheceu extraordindria difusdo no mundo anti- go, otiginando-se, de modo geral, da guerra - ce- leiro inesgotével -, das dividas © da heredita- Fiedade (.., 0 fildsofo Aristételes explica a escraviddo desta forma: “A producéo precisa de instrumentos dos quais, uns s4o inanimados e outros, animados. Todos os twabalhadores sao instrumentos animados neces- sarios, porque os instrumentos inanimados nao se movem espontaneamente (as Iangadelras nao tecem panos por si proprias). O escravo, instru- ‘mento vivo como todo trabalhador, constitui ademais ‘uma propriedade viva’. A nogao de pro- priedade implica a de sujaigdo a alguém fora dola "8 5. Alguns Pontos do Cédigo de Hammurabi a) A Pena de Taligo Principio da Pena ou Lei de Talido 6 um dos mais utilizados por todos os povos antigos. & apontado por alguns como sendo a primeira forma que as sociedades encontraram para estabelecer as penas para seus delitos. Este principio, que ¢ exemplificado na Biblia com a frase “olho por olho, dente por dente”, nao é uma lei, mas uma idéia que indica que a pena para 0 delito 6 equivalente ao dano causado neste. Assim sendo, ninguém softe “pena de talido", mas, baseado neste principio, softe ‘come pena o mesmo sofrimento que impés ao cometer o crime. 2 AZEVEDO, Antonio Catios do Amaral. Dionisio de nomes, termos € concetes bis Xésicos, Roc Jansuo: Nova Brontelss, 1980, p. 157. 23 ARISTOTELES apud GORENDER, Jacob, O escravismo colonal Sao Paulo: Ate, 1988 pa, iia tages de Castro © Cédigo de Hammurabi utiliza muito este principio no tocante a anos fisicos, chegando a aplicé-lo radicalmente mesmo quando, para conseguir a equivaléncia, ponaliza outras pessoas que nao o culpado. “Se um awilum destruiu o olho de um outro awilum, destruirao seu olho."24 “Se um construtor edificou uma casa para um. avrilum, mas néo reforgou seu trabalho, ¢ a casa, que construiu, caiu ¢ causou a morte do dono da casa, esse construtor seré morto.”25 “Se causou a morte do filo do dono da casa, matardo o filho desse construtor.”26 © Principio da Pena de Taligo nao contava quando os danos fisicos eram aplicados a escravos 4 medida que estes podem ser definidos como bens alienaveis; o dano contra um bem deve ter ressarcimento material 1b) Falso Testemunho © falso testemunho ¢ tratado com severidade pelos povos antigos porque provas materiais eram mais dificeis; assim sendo, contavam na maior parte dos processos ~ somente com testemunhas, Cédigo separa uma causa de morte de uma causa que envolve pagamento, nesta iiltima o 6nus do falso testemunho é 0 pagamento da pena do proceso. Em outros casos a sancdo para falso testemunho 6 a Pena de Morte. “Se um awilum apresentou-se em um processo ‘com testemunho falso ¢ néo pode comprovar 0 que disse: se esse processo é um proceso capi- tal, esse awilum seré morto."27 24 8108 25 329 25 §230. 803, istéia do Dieta Geral Braet Je se apresentou com um testemunho (Falso em causa) de cevada ou prata: ele carregaré a pena desse processo,” 28 ©) Roubo © Receptagao © Cédigo Hammurabiano penaliza tanto 0 que roubou ou furtou quanto 0 que recebeu a mercadoria roubada, “Se um awilum cometeu um assalto ¢ foi preso: ‘esse awilum seré morto."29 “Se um awilum roubou um bem de propriedade de um deus ou do palécio: esse awilum sera ‘morto; e aquele que recebeu de sua mao o objeto roubado ser4 morto."29 4) Estupro © estupro sem pena alguma para a vitima era previsto neste cédigo somente para “‘virgens casadas” (como na legislagao mosaica), ou seja, mulheres que, embora tenham o contrato de casamento fir mado, ainda néo coabitavam com os maridos. “Se um awilum amarrou a esposa de um (outro) awvilum, que (ainda) néo conheceu um homem e mora na casa de seu pai, dormiu em seu selo, ¢ 0 surpreenderam, esse awilum seré morto, mas a mulher sera lubertada."*1 ©) Familia O sistema familiar da Babildnia Hammurabiana era patriarcal e 0 casamento, monogdmico, embora fosse admitido o concubinato. Esta aparente discrepancia era resolvida pelo fato de uma concubina jamais, Flavia Lages de Costo, tor o “status” ou os mesmos direitos de esposa. O casamento legitimo era somente valido se houvesse contrato: “Se um awilum tomou uma esposa e néo redigin © sou contrato, essa mulher nao ¢ esposa."22 Havia também a possibilidade de casamentos entre as camadas sociais © 0 cédigo ndo somente admitia isto como regulamentava a heranca dos filhos nascidos deste tipo de casamento: “Se um escravo do palicio ou um escravo de um ‘muskénum tomou por esposa a filha de um awilum e ela Ihe gerou filhos, o dono do escravo indo poderd reivindicar para a escravidao os filhos da filha de um awilum."33 © casamento era no que chamamos hoje “regime de comunhao de bons”, “Se, depois que 2 mulher entrou na casa de um awilum, recaiu sobre eles uma divida, ambos overdo pagar a0 mercador.”34 4 Escravos Havia duas manoiras bésicas de tomnar-se escravo néo somente na Babil6nia, mas também na Antiguidade como um todo. Como prisionelzo de guerra ou por nao conseguir pagar dividas e assim ter que entregar-se a si mesmo, a esposa ou aos filhos, mas Hammurabi {assim como os Hebrous posteriormente) vai limitar o tempo desta escravidéo por divida. “Se uma divida pesa sobre um awilum 0 ole vendeu sua esposa, seu filho ou sua filha ou os entregou em servico pela divida, durante tes anos trabalhario na casa de seu comprador ou a ame 33 9175 3 $182 Histéria do Ditieo Goal Brast daquele que os tém em sujeigéo, no quarto ano serd concedida sua libertagao.” 35 ‘Uma escrava, tomada como concubina por seu senhor ou dada por sua senhora ao marido, tinha uma situagdo bastante interessante so dosse a este flhos que ole reconhecesse. Ela nao mats poderta sor vendida conforme atosta 0 artigo 146 do referido Codigo. 9) Divércio © marido podia repudiar a mulher nos casos de recusa ou negligéncia em “seus deveres de esposa e dona-de-casa”” Qualguer dos dois cénjuges podia repudiar 0 outro por ma con- duta, mas neste caso a mulher para repudiar o homem deveria ter uma conduta ilibada "Se uma mulher tomou aversio a seu esposo disae-the: "Tu no teréa relagSes comigo’, ou ‘caso sera examinado em seu distrito. Se ola se guarda e nio tem falta e seu marido 6 um saidor ea despreza muito, essa mulher néo tem culpa, ela tomard seu dote e ird para casa de seu pai." h) Adultério Somente a mulher cometia crime de adultério, o homem era, no méximo, ciimplice, Desta forma, se um homem saisse com uma mulher casada, ela seria acusada de adultério e ele de cimplice de adultério e se a mulher fosse solteira, nao comprometida, nao havia crime nem cumplicidade, mesmo porque este 6 um povo que admite concubinato. ‘Quando pegos, os aduilteros pagavam com a vida, entretanto 0 Cédigo prevé o perdéo do marido: “Se a esposa de um awilum for surpreendida dormindo com um outro homem, eles os amarraréo ¢ 08 langaréo n'égua. Se o esposo 36 git 3 ga dobar viver sua esposa, 0 rei também deixaré viver sou servo."37 4) Adogéo Esta sociedade foi bastante humana no tocante & adogao, veja: — So uma crianga fosse adotada logo apés seu nascimento, ndo poderia mais ser reclamada. = Sea crianga fosse adotada para aprender um oficio ¢ 0 ensi- namento estivesse sendo foito, ela ndo poderia ser reclamada. Caso este ensino nao estivesse sendo feito, o adotado deveria voltar & casa paterna. - Se acrianga, ao ser adotada, jé tivesse mais idade e reclamasse por sous pais, tinha que ser devolvida. ~ Em outros casos, se 0 adotado renegasse sua adogao, seria severamente punido. Seo casal, apés adotar, tivesse filhos e desejasse romper o con: trato de adogdo, 0 adotado teria direito a uma parte do patri- miénio deles a titulo de indenizacéo.® |) Heranga No caso da divisdo da heranga, a sociedade hammurabiana nao previa a primogenitura, ou seja, os bens néo ficavam somente com 0 filho mais velho, entretanto este poderia, na hora da partilha, ser 0 primeiro a escolher sua parte. A tendéncia era sempre dividir em artes iguais indiferentemente de quem era a me da crianca, bastava © reconhecimento do pai. ‘Se a primeira esposa de um awilum the gerou filhos © a sua escrava Ihe gerou filles, (se) 0 pai, durante a sua vida, disse aos flhos que a escrava Ihe gerou: ‘Vés sis meus filhos' e os contou com. os filhos da primeira esposa, depois que 0 pai ‘morrer, os flhos da primeira esposa e os filhos da cescrava dividirdo em partes iguais os bens da casa oF ei, 38 BS 10588 22 sstdrta do Diet Geral Brast patema, mas o herdetro, filbo da primeira esposa, escolherd entre as partes e tomara para si." Estavam excluidas da heranga as filhas jé casadas, pois estas j4 haviam recebido o dote. As filhas solteiras, quando casassem, recebe- iam sou dote das mos dos irmaos.40 ‘Mas os filhos, mesmo reconhecidos, ou frutos de casamento, podiam ser deserdados, mas para isto deveria haver um exame por parte dos juizes. “Se um awilum resolveu deserdar seu filho © disse aos juizes: ‘Eu quero deserdar meu filho’, os juizes examinarao a questo. Se 0 filho nao come- teu falta suficientemente grave para exclu-lo da heranga, 0 pai nao podera deserdar seu filho."¢t k) Processo As leis babilénicas desta época permitem e prevéem a mistura do sagrado e do profano no julgamento, embora a justica leiga tenha tido maior importancia que a sacerdotal 4 época de Hammurabi. Um juiz podia ser um leigo, um sacerdote e até forgas da natureza como neste caso onde quem “julga” 0 tio: “Se um awilum langou contra um (outro) awilum (uma acusagéo de) feitigaria, mas ndo péde comprovar: aquele contra quem foi langada (a acusagio de) feitigaria iré a0 tio © morgulharé no rio, Se o rio purificar aquele awilum e ele sai ile- so: aquele que langou sobre ele (a acusagao de) feitigaria ser morto e o que mergulhou no rio tomaré para si a casa de seu acusador."42 0 juiz leigo néo poderia, contudo, alterar seu julgamento apés 0 encerramento do processo: 3 sim 40 1830 184 41 8168 @ 66 ‘ivia Lagos de Casto “Se um juiz fez um julgamento, tomou uma de- cisio, fez exarar um documento selado e depois alterou o seu julgamento: comprovaro contra ‘esse juiz a alteragdo do julgamento que fez; ele pagaré, entao, doze vezes a quantia reclamada esse proceago ©, na aseemblia, fé-lo-4o lovan- tarse do sou trono de juiz. Ele ndo voltaré a sentar-se com os juizes em um processo."43 1) Trabalho © Cédigo de Hammurabi aborda leis sobre trabalho. Ele, por ‘exomplo, prevé e pune o erro médico:*# “Se um médico fez em um awilum uma operagao Gificil com um escapelo de bronze © causou a ‘morte do awilum ou abriu o nakkaptum de um awilum com um escapelo de bronze e destrulu 0 ‘lho do awilum, eles cortaréo a sus méo."4S ‘Ao mesmo tempo este Cédigo 6 0 primeiro que conhecemos indicar néo somente © pagamento que um médico deve ter, mas tam- >bém o pagamento de inimeros profissionais como lavradores, pastores, tijoleiros, alfaiates, carpinteiros etc.4¢ m) “Defesa do Consumidor” Na Babilénia de Hammurabi havia leis que protegiam os cidadaos do mau prestador de servigos. pelo menos em alguns casos (pode-se atestar esta idéia j4 no pardgrafo 108 - 0 quo trata da taberneira — citado anteriormente): 505, ‘So orro médiao fol comtdo em tm escave oressarcimento é material, 218. “Emboca muitas partes destes parSorafostenham sido apagadas pelo tompo, podemos Confers ena lst de "honoririos” © pagamentos nos partgeatoe 218 8217, 287,261 271, mez ease a7 em 489205, sein do Dirt Geral « Brash “Se um pedreiro contrulu uma casa para um awilum endo executou 0 trabalho adequada- ‘mente @ o muro ameaca cair, esse pedreiro deverd reforgar o muro as suas custas."47 “Se um barqueiro calafstou um barco para um awilum @ no executou 0 set trabalho com cul- dado e naquele mesmo ano esse barco ademou ou sofreu avaria, 0 barqueito desmontaré esse arco, reforgé-lo-4 com seus préprios recursos, © entregara 0 barco reforgado ao proprietario do barco."42 CAPITULO III DIREITO HEBRAICO 1. Introdugéo Os Hebreus so um povo de origom semita que vivia na Meso- potémia (entre os rios Tigre e Eufrates no Crescente Fértil) no final do segundo milénio a.C. Por esta época iniciaram um deslocamento que terminou por volta do século XVIII aC. na rogiao da Palestina. ‘A Palestina pode ser dividida em varias regides: uma de planicie costeira ao longo do Mediterraneo, uma de picos elevados no centro, € outra, 0 curioso vale do Jordéo, que fica quase totalmente abaixo do nivel do mar. ‘A terra dos Hebreus tem, portanto, o mar Mediterraneo de um lado, 0 deserto de outro e, o mais importante, a qualidade de ter sido 0 local de passagem entre a Africa o a Asia, isto 6, 0 Egito e a Mesopo- tamia, Os Hebreus, como a maioria dos povos da regiao, eram agri- cultores — pastores. Viviam do pastoreio de ovelhas o, principalmente, cabras, do plantio de uvas, trigo, @ outros produtos. Mas havia neste povo um diferencial que na Antiguidade era tinico: eram Moncteistas (mono = um, théos = deus). Esta caracteristica marca toda a histéria ‘desse povo, bem como toda e qualquer produgdo cultural que tenham realizado. ‘A Histéria destas pessoas pode ser acompanhada pela Biblia, mais especificamente pelo Antigo Testamonto, que reine a Tord (ou a Lei), 08 Profetas e os Escritos. O Novo Testamento inclu a histéria (e 08 ensinamentos) de parte dos Hebreus que acreditaram que Jesus 6 0 Mesias que 0 Antigo previa. Eles acreditavam em um sé Deus, que por vontade prépria havia 9e revelado a um Patriarca, Abraao, e, a partir deste momento, iniciou um relacionamento entre Ele e os que chamava de “Povo Escolhido". Este era seu diferencial, os wnicos da face da terra com um Deus, iniciando a histéria do monoteismo que hoje é dominante no mundo. Gen ia, te0 a livia Lages de Cosu0 Este relacionamento de tal modo intrincado que nao se pode compreender este povo, sem vislumbrar a interferéncia de Deus em suas vidas. Para eles, Deus escolhia os lideres, Deus escolhia 0 lugar onde ficariam, Deus dava fartura ou nao, Deus, dependendo de seu merecimento, dava a vitéria ou a derrota na guerra, Nao é de estranhar, portanto, que para este povo a lei tenha sido inspirada por Deus ¢ ir contra ela seria o equivalente a ir contra Deus. Entdo, o leigo e o divino interagem de tal modo que pecado e crime se confundem, o direito é imutavel, somente Deus pode modificé-lo, Os rabinos (chefes religiosos) podem até interpreté-lo para adapté-lo & evolugéo social, entretanto nunca podem modificé-lo. 2. A Sociedade e a Vida Econémica Os hebreus, a principio, se dividiam em tribes de acordo com os niimeros de filhos de Jacé (12); estas tribos se subdividiam em familias e toda a organizacéo politice e social girava em torn deste status quo. Das doze tribos, onze cuidavam, basicamente, da agricultura @ do pastoreio, a décima segunda ndo tinba terras, era a tribo dos levitas que tinham fungées sacerdotais (ou melhor dizendo, de auxiliares dos sacordotes que descendiam de Aarao). Havia também outras duas camadas sociais: a dos escravos ¢ a dos estrangeiros. Os primeiros podiam ser distintos entre os escravos hebreus (provavelmente tomados como escravos pelo néo-pagamento do uma divida) e estrangeiros. Ambos tinham tantos direitos que mul- tos autores confessam hesitar em chamé-los de escravos, pois, embora tenham as principais caracteristicas, eram cercados de muitas con- sideragdes, inclusive direitos. “A ambos assistiam cortos direitos assegurados quer pela prépria legislagéo mosaica quer pelo costume. Assim, por exemplo, entre os direitos do escravo estrangeiro salvaguardados pela tradicao judaica, podemos enumerar: casar-se com uma escrava, possuir bens, converter-se 20 judaismo, roceber liberdade, em determinadas circunstancias."®° ‘BO GIORDANT, Mt. C. Historia da antiguidade oriental 11, ed. Potrépolis: Vases, 2001, p. 233. Histria do Dieto Gara ¢ Brasi Os estrangeiros, livres ndo gozavam do mesmo direito dos he bbreus. Dois tipos de estrangeiros eram distintos: os que tinham alguma ligagdo com alguma tribo de Israel e, portanto, desfrutavam de alguns direitos, e 0s que ndo tinham quaisquer ligagdes néo tendo direito algum. ‘Apés os quarenta anos no deserto, depois de se libertarom da escravidao no Egito, ao chegarem a Terra Prometida, os Israelitas pas- saram de somente pastores (como eram antes, pelo seu nomadismo) a agricultores-pastores, Entrotanto, se por séculos estas atividades agro- pastoris foram 0 cerne da economia desta sociedade, a indstria tam- bém conheceu um certo desenvolvimento, principalmente aquela que utilizava 0 cobre como matéria-prima. © comércio atingiu seu auge no period de Davi e Salomao e sempre foi presente na vida deste povo, visto que a regiao que habitam 6 uma verdadeira oncruzilhada nas rotas da Mesopotéimia, Egito, Mar ‘Vermelho e do deserto. 3. A Lel Mosaica Por volta de 1800 a.C. fortes secas obrigaram os Hebreus a sairem da Palestina em direg3o ao Egito. Nesta época um povo, chamado Hicsos, tentava conquistar as planicies do Nilo; nao se sabe se os He- breus enfrentaram ou se aliaram aos hicsos; sabomos, entrotanto, que em 1680 @.C., depois da oxpulsdo destes, os Hebreus passaram a ser perseguidos no Egito, passando a pagar pesados impostos e chegando ‘até mesmo a escravidao.* Moisés lideraria este povo, aproximadamente em 1250 a.C., de vol- ta A Palestina, em um episédio chamadio éxodo, ot fuga. Conta a Biblia que Moisés teria sido criado por uma princesa egipcia que 0 havia encontrado em uma cesta boiando no rio e que, apés chegar a idade aduita, teria tomado consciéncia de suas raizes hebraicas e, depois de ‘um exilio, teria voltado ao Egito para liderar a libertagao dos Hebreus. ‘Antes de chegarem A Palestina, segundo a Biblia, os Hebrous teriam passado quarenta anos no deserto e ai teriam forjado, sob a lideranga de Moisés, toda a base de sua civilizagao, inclusive suas leis. {LA Biblia conte « histéia aida para o gto a pari da histéna de José que teria sido endide pelos ses ioe como escravo indo paar no Soito e chegando a ako fun Condo do fared (ot Gen. Capitulo de 97a 50). livia Lages de Casto Acreditam alguns que a Tora (que contém a lei dos Hebreus) foi criada polo proprio Moisés ©, embora este dado esteja um tanto desa- creditado hoje em dia, continuamos denominando a legislacdo de “Mosaica’, mesmo porque, provavelmente, foi apés a saida do Egito que este povo comecou a estruturar as bases de seu diroito, A bazo moral da Legislage Mosaica pode ser encontrada nos Dez ‘Mandamentos, que teriam sido escritos “pessoalmente” por Deus no ‘Monte Sinai, como forma de Alianca entre Ele @ 0 Povo Escolhido. ‘A Tord, também chamada Pentateuco, 6 formada pelos cinco primoiros livros da Biblia: o Génesis, o éxcdo, 0 Levitico, o Nameros @ 0 Douteronémio, Em toda a Tord encontramos leis; entretanto, hé no Jiltimo livro uma reuniéo maior de leis, repetindo inclusive alguns preceitos vistos nos outros livros, mesmo porque é esta a intengao do Deuteronémio, que significa “segunda lei”. “la simplicidade} se reflete poderosamente na lei mosaica, cuja virtude principal reside no fato de ter transformado num verdadeiro cédigo as normas nao escritas da primitiva socledade de némades."52 A maioria dos autores afirma nao ser a lei de Moisés uma legis: lago que distinga entre direito sacro e profano, apontado-a como um direito religioso. Isto 6 fato; entretanto, apenas definir este direito des- ‘ta forma simplifica uma visdo quo pode ser ampliada © pode auxiliar-nos na compreenséo desta sociedade ¢ sua relagéo com a lei e a religio. Se enalisarmos © povo hebreu, poderemos constatar, como ja afir- mado anteriormente, que é um pove que traz em tudo 0 fator roligioso « isto se dé, principalmente, porque sua religido, e a esséncia desta, 0 ‘monotefsmo, foi durante muitos séculos exclusividade do povo israe- lita. Desta forma, ao se tentar definir os hebreus, passaremos, obrigato- tiamente e primeiramente, pela questao religiosa, Assim a religiao no 6 somente uma das caracteristicas dos israe- litas, mas pode ser indicada como “a” caracteristica, aquela que dé ali- cerce e 6 0 ponto de convergéncia de toda uma sociadade. Tanto foi as- sim que, praticamente, todas as vezes que este povo descuidou-se da religido, problemas sociais e politicos aconteceram. Eles, obviamente, cexplicavam tais “coincidéncias" como uma vinganga ou desaprovagao 52 RAO, Vp. ct, p17 icin do Divito Geral Brasil da divindade; entrotanto, qualquer que fosse a caracteristica primor- dial de um povo, se fosse desdenhada, desunitia a sociedade trans- formando-a em alvo facil para problemas internos ou externos 4, A Formagio do Direito Hebraico ~ da Logislagdo Mosaica aos dias de hoje [A tradigdo indica Moisés como autor do Pentatouco, portanto autor do Deuteronémio, das chamadas Leis Mosaicas. Esta obra deverd ter entéo a idade de seu criador e deve ser datada no século XIII a.C. ‘Mas 08 anos de 586 a.C. e os seguintes foram primordiais também para a formagao de uma legislagao “extra mosaica”, Em 586 a.C., apés um cerco que durou mais de um ano, 0 rei da Ba- ildnia, Nabucodonosor, conquistou 0 reino dos hebreus e estes foram levados ~ em niimero pequeno, mas significativo, visto que repre- sentavam a elite social e religiosa da nagao ~ para a Babilénia, como Este cativeiro foi o ponto de partida para a formacao de um direito hebraico novo, oral, visto que ao entrarem em contato com diversas culturas diferentes @ fortes (notadamente persas, gregos e romanos) 05 hebreus sentiram a necessidade de afirmar sua cultura, ao mesmo tempo que procuraram adapté-la dentro dos parémetros das influén- clas que estavam recebendo, Este proceso, iniciado na Babilénia, somente iria terminar 900 anos mais tarde. “A lei oral (Torah Cheb'al Pé) atuava ao lado da escrita, isto é, mosaica (Tora Chebikhtav). Esta continuou a ser considerada, séculos afora, a lei suprema, infalivel, sacrossanta. Provalocia sem- pro (mesmo depois da codificagao da lei oral) em qualquer conflto que se verificasse entre as duas. A lei oral, formada pelo Sofrim (escritores), An- chei Haknesset Hagdolah (os homens da Grande ‘Assembiéia) e Tanaiim (sébios), teve sempre um caréter subsidisrio."53 55 RAO, W Op. cf, p. 174 ‘livia Lages de Castro ‘A primeira codificagdo do direito oral foi chamada de Michné (repeticao) © foi feita pelo ultimo dos Tanaim om 192 d.C. Esta codifica- ‘go se divide em seis partes, nas quais a primeira, a terceira e a quarta constituem, segundo poderiamos comparar hoje, 0 corpo do Direito Civil. A primeira trata de leis rurais e propriedade imobiliéria, a terceira ‘ocupa-se do airelto matrimonial © do divércio, a quarta trata do obrigagées civis, usura, danos & propriedade, sucessio, organizagao dos tribunais, processo etc. Para guatdar a fidelidade & Legislagao Mosaica no uso da codifica- do nova, os séculos seguintes produziram discussées, interpretacbes ¢ aprofundamentos do texto da Michnd que deram origem as Guemaras que juntamente com a Michné e a propria Tord contituem o Talmud (que significa estudo), que 6 0 verdadeito corpo da Legislagao Hobraica, Entretanto, com a elaboragéio do Talmud, nao se encerrou a historia do diteito judaico; ela continuou durante todos os séculos subse- iientes, apesar de os judeus estarem dispersos pelo mundo. Hoje, ap6s o estabelecimento do Estado de Israel, o Parlamento Israelita, chamado Knesset, 6 0 poder legislative na concep¢ao moderna do termo, 5, Algumas Leis do Deuteronémio a) Justica A Legislagao Hebraica 6 bastante rigorosa na questao da justiga, prevendo, inclusive, a obrigatoriedade da imparcialidade no julga- mento: “ho mesmo tempo, ordenei a vossos juizes: ‘Ouvi- reis vossos irméos para fazerdes justica entre um. homem e set irmdo, ou 0 estrangeiro que mora com ele. Nao fagais acepcao de pessoa no julga- mento: ouvireis de igual modo 0 pequeno e 0 grande (...)."5* Para a operacionalizagao da justica fica estabelecido que cada cidade tera, obrigatoriamente, que contar com juizes e que estes ndo iondmlo 1, 1617. ita do Jerusalém, Sko Pavle: Paulina, 1985, (fo ne3s0) Mita do Dario Geral Brast poderéo corromper-se. A Legislagéo Mosaica explica esta aversio ao suborno mostrando a légica incompatibilidade entre o que 6 justo ea corrupgao. Estaboleceras julzes © escribas em cada uma das cidades quo Iahweh tou Dous vai dar para ao ‘tuas tribos. Eles julgarao 0 povo com sentencas justas. Nao perverterés o direito, nao faras acepgao de pessoas no julgamento e nem aceita- ras suborno, pois 0 suborno cega os olhos dos sdbios e falseia a causa dos justos."55 b) Processo A questo da justiga, ou melhor, de no cometer injusticas, é muito ‘cara aos Hebreus, mesmo porque ter o “sangue de um justo nas maos” 6 um pecado gravissimo para eles. Neste sentido, este povo so difere ‘um pouco de outros, j4 que, praticamente, nao admite julgamento sem investigagao ou julgamento por forgas naturais ou douses. ‘No exemplo a sogulr parte-se da possibilidade do cometimento de ‘um crime considerado extremamente grave, o de uma cidade adorar a outros deuses e é prevista uma punicao pesada, mas néo sem antes ficar provado através de acurada investigagao. “Caso ougas dizer que, numa das cidades que Iaweh teu Deus te dard para ai morar, homens vagabundos, procedentes do teu meio, seduaziram os habitantes de tua cidade, dizendo: "Vamos servir a outros deuses', que néo conhecestes, de- verds investigar, fazendo uma pesquisa ¢ inter- rogando cuidadosamente, Caso seja verdade, se 0 fato for constatado, se esta abominagao foi pra- ticada em tou meio, deverds onto passar a fio de espada os habitantes daquela cidade.”5¢ ©) Pena de Taliao # a Biblia que primeiro descreve 0 Principio da Pena de Talido (embora o uso fosse mais antigo) S36. Deut. 119-16. (gnfo nosso) Conferc também Deut. 17, 25, livia ages de Castro “Que teu olho no tenha piedade. Vida por vida, ctho por olho, dente por dente, mao por mao, pé por pé."57 Entretanto, embora este principio fosse utilizado entre os He- brous, 0 era de manoira mais amona que entre outros povos porque outros principios limitavam sua aplicagdo, como veremos a seguir. 4) Individualidade das Penas ‘Os pais néo sero mortos no lugar dos filhos. nem os filhos em lugar dos pais. Cada um ser executado por seu préprio crime.”5° Este principio que individualiza as penas minimiza a ag3o do Principio da Pena de Talio entre os Hebreus, fazendo com que aplica- ges da Pena de Talido como no caso visto no capitulo anterior em Hammurabi ~ que o filho do construtor morre por causa da casa que 0 ai foz, 0 quo ac cair matou o filho do dono da casa ~ ndo soja possivel, Depois dos Hebreus (¢ um pouco os romanos), praticamente 36 no século XVIII d.C. vamos encontrar de novo a aplicagao de tao valoroso l6gico principio. e) Lapidagio Lapidagio 6 0 nome que se d& a pena mais comum do Antigo ‘Testamento. £ 2 morte por apedrejamento. Para os israelitas morreriam desta forma os idélatras (Deut. 17, 5-7), 08 feiticeiros (Lev. 20, 27), 05 filhos rebeldes (Deut. 21, 18-21) ¢ as adiilteras. £) Cidades de Refiigio A preocupagdo desta legislagao com a justiga chega ao ponto de prover e obrigar 0 estabelecimento de cidades de reffigio (ou asilo), onde pessoas com problemas poderiam se refugiar para que fosse feita a justiga com calma © nao no calor de fortes emogies. ‘7 Deat 1921 58 Dost. 25.16 ‘iseéra do Direica Geral o Brac “Quando Iahweh teu Deus houver eliminado as nagées (..), © as conquistares e estiveres moran- do om suas cidades e casas, separaras trés cida des no meio da terra cuja posse Iahweh teu Deus te dard, Estabelecerdés 0 caminho, medirés as distancias e dividiras em trés partes o territério (.)i into para que nela ge rofugio © homicida,"59 A uttlidade destas cidades pode ser melhor compreendida em conjunto com 0 préximo ponto. 4) Homicidio Involuntario e Homicfdio Esta legislagdo prevé, como de resto todas as outras, o homicidio 6, na Antiguidade, 0 Principio da Pena de Talido era utilizado como base na penalizagao deste delito. Entretanto, os Hebreus néo permitem a penalizacao do que cometeu homicidio “sem querer”. Nao se deve utilizar o termo “culposo” para um povo que nao concebia negligéncia, inpericia ou imprudéncia como causas de homicidios ou danos. “Hote 6 0 caso do homicida que poderd se refugiar 4 para se manter vivo: aquele que matar seu pré- ximo involuntariamente, sem té-lo odiado antes (por exemplo: alguém vai com seu préximo cortar lena; impelindo com forga © machado para cortar ‘a Arvore, 0 ferro escapa do cabo, atinge 0 compa- nheiro e o mata): ele poder entdo se refugiar nu- ‘ma daquelas cidades, ficando com a vida salva; para que 0 vingador do sangue, enfurecido, nao ‘persiga o homicida ¢ o aleance, porque o camino @ longo ~ tirando-Ihe a vida sem motivo sufi- iente, pois antes nao era inimigo do outro."®0 “Contudo, se alguém ¢ inimigo de seu préximo Ihe arma uma cilada, levantando-se e ferindo-o mortalmente, @ a seguir se refugia numa daque- las cidades, os ancidos da sua cidade enviarao 14 ae ui | -tiviaLages de Castro pessoas para tiré-lo e entregé-lo ao vingador de sangue, para que seja morto."6t h) Testemunhas A prova testemunhal era primordial na Antiguidade e os Hebreus +ém um preceito legal que até hoje pode ser visto, inclusive em nossa legislacao: ‘Uma nica testemunha no é suficiente contra alguém, em qualquer caso de inigiidade ou de pecado que haja cometide. A causa sera esta ‘belecida pelo depoimento pessoal de duas ou trés ‘testemunhas."62 ‘Com tamanha importancia dada prova testemunhal, as penas para falso testemunho eram pesadas geralmente, sendo que, na Legis- lagio Mosaics, a pena para falso testemunho é equivalente a pena que © acusado teria se fosse condenado (Principio da Pena de Talido). ‘Quando uma falsa testemunha se levantar con- tra alguém (...) as duas partes em litigio se apre- sentardo diante de Iahweh, diante dos sacerdo- tes © dos juizes que estiverem em funcso na- queles dias, Os juizes investigardo cuidado- samente, Se a testemunha for uma tostemunha falsa, e tiver caluniado seu imao, entéo vis a tratareis conforme ela propria maquinava tratar 0 ‘sou préximo.” 4) Matriménio # interessante notar que nao hé em hebraico uma palavra que seja sindnimo de matriménio; no Antigo Testamento falta o concelto que hoje temos. Este néo era de direito religioso ou civil, mas era um ‘assunto puramente particular entre duas familias.®4 Deok To, 11-12 2 Deut 16,15 63. Deut, 19, 16-18. Noto-se que a quostio da investigago 6 veforgad. St BORN, A Van Den, Diclondlo encielopédico da Biblia, PesrSpois: Vozos, 1971 p. 958 ‘iseria do Dieito Geral o Brest 5) Adultério Embora nesta sociedade como na de Hammurabi o peso maior do crime de adultério esteja sobre a mulher casada, hé um certo puritanis- mo neste povo que leva o peso do crime também para o homem. “Se um homem for pego em flagrante deitado com uma mulher casada, ambos seréo mortos, 0 ho- ‘mem que se deitou com a mulher ¢ a mulher."®5 k) Divércio ‘Todos os povos da Antiguidade prevéem divércio. Este 56 co- ‘megou a ser proibido a partir do cristianismo, Na Legislagdo Mosaica, enttetanto, somente os homens podem divorciarse, as mulheres néo cabe a iniciativa. Mesmo assim teria que haver algo “vergonioso" (0 que pode ser interpretado de varias maneiras) na esposa para que 0 ‘oaposo pudesse ropudié-la. “Quando um homem tiver tomado uma mulher @ consumaco o matriménio, mas este logo depois, no encontra mais graga a seus ollos, porque vitt nela algo de inconveniente, ele Ihe escreverd entéo uma ata de divércio © a entrogard, dei- ‘xando-a sair de sua casa em liberdade."36 }) Concubinato No deuteronémio o concubinato é considerado como algo normal (somente © Levitico ~ 18, 1858 ~ ordenava que as duas — esposa @ con- cubina ~ no fossem irmas). “Se alguém tiver duas mulheres (..), ¢ ambas Ihe tiverem dado filhos (..)."°7 5 Dent 28,1 ” i | O estupro sem pena para a vitima 6 bora somente em um caso especifico: o de a mulher ter sido violentada ‘em um lugar onde poderia ter gritado sem que ninguém a ouvisse. iéviaLages do Castro revisto nesta legislagéo, em- ‘Se houver uma jovem virgem prometida a um homem, @ um homem a encontra na cidade @ se

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