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Ramsés II

O Deus Vivo, Conquistador de Terras e de Corações

Os Rituais Fúnebres

Vanessa Gouveia nº41015


2015/2016

Licenciatura em Estudos Portugueses

Cadeira de História do Egipto Antigo

Docente: Prof. Helena Trindade Lopes


2

Esta análise afasta-se da literatura romântica presente na obra Ramsés II, O


Deus Vivo, Conquistador de Terras e de Corações, de Helena Trindade Lopes, e centra-
se no contexto histórico do capítulo 6 do romance, nomeadamente, nas cerimónias
fúnebres e nos mitos e rituais presentes nestas cerimónias, seguindo a morte de Seti I,
que é representada na obra.
Não poderemos falar de rituais fúnebres, no Antigo Egipto, sem falar de Osíris,
o deus da morte e submundo (ou “afterlife”1), cujo mito é a base para a compreensão
egípcia da morte. Assim sendo, e muito resumidamente, começamos pela origem de
Osíris.
Osíris casou com a sua irmã, Ísis, e foi coroado Rei do Egipto.2 Contudo, quando
ainda tinha 20 anos, foi assassinado pelo seu irmão Seth, porque Osíris terá cometido
adultério com a mulher de Seth, donde nasceu Anúbis. Isís, entretanto, encontra o
corpo do marido para lhe organizar um funeral próprio, mas Seth descobre e
desmembra-o. Isís, então, procura e encontra os membros e partes de Osíris,
mumifica-o, através de alguns feitiços, e engravida da “múmia” de Osíris, nascendo
Hórus. Nomeadamente no templo de Seti I, em Abido, encontra-se o relato da
concepção de Hórus, numa ilustração peculiar3. Entretanto, Hórus cresce sem
conhecimento de Seth 4 e ao chegar à idade adulta5 vinga Osíris e torna-se rei do
Egipto. Assim, Osíris tornou-se o deus do submundo, devido à sua morte e posterior
ressurreição e «assim como a mumificação restaura a sua integridade corporal,
também a sua posição social e reintegração dentro da hierarquia dos deuses é
restaurada devido à justificação contra Seth e eventos que se seguiram.»6 (tradução da
própria).
Posto isto, é seguro dizer que a mumificação egípcia é baseada neste mito e
que o mito de Osíris é um protótipo desta prática7. Contudo, apesar de ir ganhando
popularidade, é no Império Novo que se torna comum aparecerem nos textos
funerários as ligações entre os mortos e Osíris.
Cada egípcio tinha 5 elementos além de um corpo: o ba, o ka, o akh, o nome e
a sombra. Todos estes elementos tinham de ser preservados e sustentados para
garantir uma vida no mundo dos deuses. Os egípcios acreditavam que a mumificação e
consequente preservação do corpo era a via para o espírito do morto adquirir a forma
“Osíriana”, ou seja, permitir «(…) um novo plano de existência (…) enquanto, ao
mesmo tempo, é-lhe providenciada a sua sustentação e outras necessidades materiais

1
SHAW, Ian, “Ancient Egypt: A Very Short Introduction”, Oxford University Press, 2004, p.115.
2
SMITH, Mark, “Osíris and the deceased”, UCLA, Encyclopedia of Egyptology, University of Oxford, 2008,
p.1.
3
(Shaw; 2004, pag.117).
4
(Smith; 2008, p.2)
5
Nota-se que a idade adulta de um egípcio seria por volta dos 15, visto que a esperança média de vida
rondava os 30 anos, nas elites.
6
(Smith; 2008, p.2)
7
(Shaw; 2008, pag.118)
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(através de feitiços escritos nos túmulos).»8 (Tradução da própria). Mais à frente


veremos porque era a mumificação tão importante. Várias evidências textuais e
materiais constituem uma poderosa fonte sobre rituais funerários.
É de salientar que só a partir do Império Novo é que a mumificação foi
permitida a todas as classes. Antes disso, este processo destinava-se apenas às elites,
mais regulamente, para o faraó e família. Smith e Wilson chamaram a isto a
democratização “of the afterlife” e, é precisamente no Império Novo que isso muda.
Por isso, a mumificação e processos que aqui se tratam são de elites e família real,
visto serem as mais frequentemente estudadas.
Seti I morreu no ano 12799, quase no final do Império Novo e o seu túmulo foi
encontrado em 2010, no Vale dos Reis.10
Os rituais funerários têm 7 procedimentos11.

Entreguei o corpo do meu pai ao “Superior dos Mistérios”,


patrono dos embalsamadores, para que fosse feito o
sepultamento de acordo com a tradição faraónica.
(Lopes, H.T., 2015.pág.68)

1. Procissão à Necrópoles;
Esta era uma procissão que se dava no rio Nilo e que representava a travessia da terra
dos vivos (este) à terra dos mortos (oeste). Isto era visto como uma passagem que
levava à imortalidade. Segundo Harold Hays, o falecido é levado num baú, todo ele
trabalhado e com inscrições, desde o lugar em que morreu até ao templo de
embalsamento. Nas representações dos túmulos, esta procissão é representada com
um barco (neshmet boat, barco de Osíris12) que carrega o baú. Com este, normalmente
são carregados também oferendas que consagram o ka13, mourners – mulheres que
representavam as deusas irmãs de Osíris, Isís e Néftis – e sacerdotes – homens que
representavam Hórus e Thot.

8
SMITH, Mark, “Democratization of the Afterlife”, UCLA, Encyclopedia of Egyptology, University of
Oxford, Los Angeles, 2009, p.1
9
Shaw, Ian, “The Oxford History of Ancient Egypt”, Oxford, Oxford U.P., 2001, pp. 480-489.
10
Artigo de National Geographyc news, Pharaoh Seti I's Tomb Bigger Than Thought, Outubro de 2010.
(em anexo)
11
HAROLD, Hans, “Funerary Rituals (Pharaonic Period)” UCLA, Encyclopedia of Egyptology, Department
of Near Eastern Languages and Cultures, UC, Los Angeles, 2010, pp.3-8.
12
ASSMANN, Jan, “Death and Salvation in Ancient Egypt”, tradução de David Lorton, Cornell University
Press, 2005, USA, p.204
13
Ka é um conceito tipicamente Egípcio e consistia no mesmo que o espírito em algumas religiões; era o
“sopro” que necessitava de um corpo preservado para o individuo que morreu possa viver com os
deuses.
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1. Procissão ao lugar de embalsamento;


Este era o ritual em que se levava o falecido até à “tenda dos deuses”, que estaria
associado a Anúbis, deus do embalsamento.14 Seguido por duas mourners e nove
“friends” (amigos) – nove carregadores de caixão. Harold diz-nos que seriam apenas 4
descendentes do falecido, “Children of Hórus”, e que o número nove seria apenas uma
ilusão. A chegada é anunciada pelos friends e outros oficiais e é seguida de várias
oferendas reais, até à “tenda dos deuses”.

Estas práticas, que preparavam o corpo de Seti I para a sua viagem


ao encontro de Osíris (…) contribuíram para transformar aquele
corpo sem vida num «Osíris X», num espírito imortal (…).
(Lopes, H.T., 2015.pág.68)

2. Embalsamento e mumificação;
Acredita-se que estes dois processos demoravam cerca de 70 dias.
Relativamente ao embalsamento, este nunca era representado nos túmulos. Por isso é
que as representações do antes e do depois são tão importantes e tão frequentes. A
mumificação, por outro lado, foi tardiamente explicada em textos funerários, já na era
romana do Egipto e, ainda assim, não se sabe exactamente como era o processo de
mumificação. Todo o conhecimento, para além dos textos ptolemaicos, é adquirido
com o estudo das múmias. A preservação do corpo através da mumificação era
fundamental na prática funerária porque os egípcios acreditavam que o seu ka iria
buscar sustento ao corpo. Se o corpo estivesse desintegrado ou irreconhecível, o ka
não conseguiria “alimentar-se” e o falecido poderia não alcançar a vida no mundo dos
deuses15. Primeiro removia-se o cérebro. Esta prática era muito praticada no Império
Novo e usava-se um gancho de ferro pelo nariz para fragmentar o cérebro para depois
ser retirado com uma espátula16, antes da mumificação. Contudo, os egípcios
acreditavam que o coração era o centro de inteligência e personalidade, sendo que a
remoção do cérebro era muitas vezes descartada, por não ser muito importante. O
processo de mumificação consistia em desidratar o corpo e preservá-lo com “natron”
(espécie de sal), que protegia a carne das bactérias e fungos. Com o tempo, os
materiais e rituais fúnebres mudaram ligeiramente, também dependendo das
capacidades monetárias e preferências do falecido, mas no geral, eram muito
semelhantes. No Império Novo, reinado de Seth I, os materiais usados para a
mumificação eram, essencialmente, resina, óleos, e, por vezes, alguma terra17: «Depois
verteram para dentro do crânio Já vazio uma mistura de resinas de diversas árvores
coníferas, com cera de abelha e óleos vegetais perfumados (…)». (Lopes, 2015,p.69).

14
(Harold; 2010, p.5)
15
(Shaw; 2004, p.123)
16
Ibidem, p.15
17
DAVID, Rosalie, “Egyptian Mummies and Modern Science, Cambridge University Press, 2008, P.30
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O corpo de Seti I é um exemplo de mumificação muito bem-feita, pois a


preservação do corpo é quase tão excelente quanto de
Ramsés II (seu filho)18. Também fazia parte do processo a
remoção de órgãos internos do falecido. Estes eram
colocados em jarros canópicos, junto do sarcófago: «Os
pulmões, os intestinos, o fígado e o estômago foram
então lavados com substâncias balsâmicas e depois secos
(…) guardados nuns belíssimos vasos canópicos (…) ».
(Lopes, 2015,p.69)19
Segundo a tradição egípcia, a dissecação durava cerca de
40 dias, seguido por um período de 30 dias para recitar as
orações (Livro dos mortos e textos funerários), untar os
Vaso Canópico da rainha Nedmet
Rijksmuseum van Oudheden corpos com os óleos e resina, e finalmente, para cobrir o
Fotógrafo Desconhecio 1
corpo com ligas de linho, acompanhando com fórmulas
“mágicas”. Era com este último processo que o falecido passava de falecido a divino20.
As pinturas nas Máscaras representavam isto, com a carne do falecido, pintada em
ouro (a carne dos deuses era ouro). Os estudos das múmias é que nos revelaram as
condições do individuo mumificado, através das condições da própria mumificação21.

3. Ritual pós-embalsamento;
São rituais normalmente associados a “Hour Vigil” (hora nocturnas), que resumiam os
ritos de embalsamento e as ilustrações que se encontram no livro dos mortos (Book of
the dead), bem como procissões conduzidas nos arredores da necrópole.

No dia seguinte, ao amanhecer, iniciámos, de barco, a Procissão fúnebre


destinada a deposita a múmia do meu pai no seu túmulo no Vale dos Reis.
(Lopes, 2015, p.69)
4. Procissão ao túmulo;
Esta procissão era a que levava o falecido já mumificado para o seu túmulo. Era
acompanhada por cidadãos da alta sociedade e amigos/família do defunto, enquanto
os sacerdotes queimavam incenso e as oferendas eram levadas para o túmulo. O
objectivo era entregar em paz o morto aos deuses, ao sol. Esta travessia física é
também uma travessia divina; o defunto está a ser transportado para o outro mundo
onde irá renascer com o sol.22 O túmulo de Seth I foi encontrado no vale dos Reis.

18
Ibidem, p.15.
19
LOPES, H.T., Ramsés II: O Deus Vivo, Conquistador de terras e de Corações; Verso de kapa, Lisboa 2015
20
IKRAM, Salima, “Mummification”, UCLA, Encyclopedia of Egyptology, Department of Near Eastern
Languages and Cultures, UC, Los Angeles, 2010, p.2
21
(David, 2008, p.35)
22
Ibidem, pag.7.
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Este ritual (abertura da boca) visava regenerar todas as suas funções vitais,
através da eficácia da magia, garantindo-lhe, deste modo,
uma existência plena na Duat.
(Lopes, 2015, p.70)
5. Abertura da Boca;
Este é um processo que permitia simbolicamente que o falecido pudesse comunicar no
outro lado. Primeiramente colocava-se o corpo mumificado de cabeça virada para
sul23, à entrada do templo, seguido de purificações24 com incenso e água (e alguns
perfumes aromáticos). Abria-se a boca simbolicamente com “adze-shaped
instruments”25. De seguida, é feito um ritual de oferendas e “glorifications”, cuja
função é “transfigurar” o falecido em akh, que lhe permite entrar no mundo dos
deuses. Todos estes rituais eram acompanhados por literatura funerária mágica: os
Textos das Pirâmides (gravados nas paredes); os Textos dos Sarcófagos (tal como o
nome indica, escritos nos sarcófagos); e o Livro dos Mortos (continha a compilação de
orações, prescrições e textos mágicos). Acredita-se que o falecido atingia, assim, o
aspecto Osíriano26 e dava-se a consumação do morto com o mundo divino. Por último
a múmia é colocada numa câmara, descrito nos textos como “a entrada do deus no
seu templo”27.
Depois disto, o esquife do meu pai foi depositado na sua morada
eterna, previamente ornamentada com imagens e textos mágicos (…)
(Lopes, 2015,p.70)
6. Serviço mortuário;
Depois de colocado o falecido na sua câmara, praticavam-se serviços sacerdotais,
prestados por sacerdotes. O chefe destes, normalmente o filho do falecido, é quem
praticava estes serviços “and therefore the god Horus to the god Osiris”.28
Os ritos encontram-se completos nos textos das pirâmides, também representados nas
paredes dos túmulos, descrevendo o acto em si.

23
(HAROLD; 2010, p.7)
24
(ASSMANN; 2005, p.313)
25
(Harold: p.7)
26
(SMITH; 2009, p.1)
27
(Harold; p.8)
28
Ibidem, p.8
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Anexos
Ilustração 1

http://www.touregypt.net/featurestories/picture05162003.htm

Webgrafia
www.memphis.edu
 http://www.memphis.edu/egypt/resources/online_biblio/bibliography_
mar2015.html

www.news.nationalgeographic.com
 http://news.nationalgeographic.com/news/2008/04/080417-seti-
tomb_2.html

www.touregypt.net
 http://www.touregypt.net/featurestories/funeral.htm

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