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Inrropu¢Ao Na escuta de uma lingua falada, as nuances articulatorias e limbristicas so aparentemente irrelevantes, embora concorram, juntamente com as palavras, na produgio dos sentidos. Sentidos estes que, pelo conhecimento anterior que possuimos da lingua, procuramos adivinhar a todo instante, ao mesmo tempo em que nosso locutor nos ditige a fala. Antes mesmo da articulagiio de certas palavras, em milésimos de segundo, nosso cérebro cnvia mpulsos nervosos a velocidades inimaginaveis, tentando adivinhar © que est por vir, Reside ai a explicago para a n ender as palavras faladas — nfo somos capazes de ouvi-las em suas capacidade em compre nuances minimas, apenas captamos seu sentido. Escutamos prova- velmente a nossa prépria voz interior articulando os sons que saem da boca de nosso locutor, agrupando-os em palavras e dando sen- ido ao seu discurso. Quando, por outro lado, nos encantamos com um sotaque, um timbre ou um modo de falar diferentes, nos per- demos no som, viajamos por galixias distantes na esteira de uma sonoridade inusitada perdemos completamente o sentido das pa- wras.3 Nesse momento escutamos 0 som, a miisica, nfio mais 0 idioma, Em misica, portanto, o que escutamos é 0 som e nos encan- lamos com as sonoridades produzidas. A gama de alturas, dura- des ¢ timbres ¢ infinita (assim como a liberdade do compositor de combind-las e do ouvinte de compreendé-las). © ouvinte guia- se (quando consegue) nao mais por um conjunto de normas que ‘Se na fala cotidiana o som chamasse atengio sobre si mesmo, estarlamos perdidos” (Ferraz, 2001: 518). 22 (GUILHERMENASCIMENTO. Ihe so dadas a priori mas, na maior parte dos casos (especialmente quando se trata de um leigo), pela intuigao, tateando aqui ¢ ali na busca de alguma diregiio no aparente caos sonoro que s¢ forma & sua frente, “Daf para alguns a escuta de misicas recentes parecer tGo incémoda, pois a todo tempo ela traz 0 desconforto de terri- torios movedi¢os” (FrRRaz, 2001: 519). Por isso preferimos dizer que a miisica nfo porta mensagem alguma, que sua linguagem nao tenta comunicar nem informar ‘nada. Ao menos nao deveria, especialmente se pensarmos na lin- guagem como um “sistema de comando”, uma forma de conven- cer alguém de algo. Em seus Postulados da linguistica, Deleuze ¢ Guattari nos mostram que a linguagem nao informa nem commu- nica, tampouco comunica qualquer informagao. A linguagem & ‘uma “transmissio de palavras de ordem [mots d’ordre], seja de um enunciado a outro, seja no interior de cada enunciado, uma vez que um enunciado realiza um ato ¢ que o ato se realiza no enun- ciado” (MP2, p. 17). Para os autores, 0 ato de criar nada tem a ver com significar, “mas com agrimensurar, cartografar, mesmo que sejam regides ainda por vir” (MP1, p. 13). Mario Pedrosa afirma que o artista, ao realizar uma obra de atte, “niio faz nenhuma comunicago ao péblico do que se passa dentro dele, pois ao contrério seria equiparar a forma artistica a um sinal de tréfego que numa estrada avisa da proximidade de uma curva” (1986: 14). A arte “no é dependente do espectador ou do auditor atuais, que se limitam a experimenté-la [...] se tém forca suficiente. E 0 criador entiio? Ela é independente do criador, pela auto-posigao do criado, que se conserva em si” (OQF, p. 213). Para Deleuze, a arte “nfo tem nenhuma ligagdo com a comunicagao; a obra de arte ndo tem nada a ver com a informagao” (apud Ferraz, 2001: 515). ‘io deveriamos procurar significados na obra de arte, ¢ sim entender que conexdes impulsos cla provoca, que mutagies ela engendra dentro do ser, que devires so causados quando entramos em contato com a arte. Falando sobre 0 livro, o que servitia para toda a arte, Deleuze e Guattari assim 0 descrevem: ‘Nao se perguntard nunca o que um livro quer dizer, significado ‘ou significante, nio se buscaré nada compreender num livro, perguntar-se-A com o que ele funciona, em conextio com 0 que es cle faz ow néo passar intensidades, em que mutipl se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem Srgdos cele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora (MP1, p. 12). Para os autores, a obra de arte nao significa nada, apenas tra- a mapas, mesmo das regides que ainda esto por vir. Nao tem Sbjetivo, nem objeto nem sujeito. Nao se dispée a coisa alguma. Como um agenciamento, esta somente em conexio com outros mnciamentos. A arte nfo € a imagem do mundo, ela faz rizoma com 0 mundo, ambos evoluem de forma a-paraleta, “Nao ha imi- tagio nem semelhanca, mas explosiio de duas séries heterogéneas na linha de fuga composta de um rizoma comum que nao pode mais ser atribuido, nem submetido ao que quer que seja de significante” (MPI, p. 19). ‘Tal qual um rizoma, a obra de arte tem entradas miltiplas, seus pontos se conectam a quaisquer outros ¢ seus tragos no se remetem necessariamente a tragos de mesma natureza. Suas entradas podem ser por qualquer lugar ¢ seus caminhos infinitos. Suas diregdes ¢ fronteiras siio movedigas, ela ndo possui nem inicio nem fim, “mas sempre um meio pelo qual cresce ¢ transborda” (MPI, p. 32). "s obra de arte é um “ser de sensagdo, e nada mais: ela exis- te em si” (OOF, p. 213). A sensago ocorre quando passamos de am dominio a outro (desterritorializagio de um dominio ¢ reter torializagio em outro). Quando, por exemplo, saimos do dom io visual de um quadro que retrata pescadores numa manhs ea solarada e passamos para o olfativo do cheiro dos peixes, pars loge em seguida sairmos do olfativo e experimentarmos 0 calor do sol = sentirmos o frio da gua. Neste momento vamos além dos sea mentos ¢ percepgdes. Neste momento salta uma sensacao, isto & c

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