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aParte XX! revista do teatro da universidade de s@o paulo (O teatro, tal como 0 conhecemos no Ocidente, tem vocagio politica. Esta vocagao pode se expressar com mais ou menos intensidade; pode ser explicta e reivindicada, ou velada e nao intencional. O fato é que nio somente o surgimento do teatro, parido na pélis grega, mas também seu desenvolvimento ocidental, indicam a presenga daquilo que Bernard ort ~ pesquisador de teatro e primeiro grande estudioso de Breche na Franga ~ chamou, justamente, de “vocacio politica” do teatro insstindo tna qualidade ontoldgica do fato: Em vez de ficarmos nos perguntando como o teatro pode ser politico, no seria Imelhor refctir sobre o fato de que, de alguma manera, 0 teatro sempre é politico, ‘ologicamente?(Dor.1977, p.366) A pergunta de Dort tem algo de retérica porque sua resposta ¢ evi- ‘dente. Para ele, uma das fungdes do teatro brechtiano ~ que evidente- mente no se confunde com a totalidade das priticas teatrais, mas ra- dicaliza esta vocasio politica ontolégica comum a todo teatro ~ era a ide formar pessoas aptas & decifrar sua propria situasao histdrica. Tarefa ‘eminentemente politica. Nao surpreende que esta andlise a respeito do {teatro ocidental tenha despertado reagies de todo o tipo. Uma delas, reveladora, & a de Florence Dupont, que faz a defesa in- ‘ransigente cle um teatro dos sentidos, opondo-se assimn a um teatro do sen- “Teatro, Verdacde e Poder 161 120m, 2013 tido!. Nada de novo sob o sol, trata-se de mais uma tentativa para matizar ou negar a evidéncia politica do teatro. Louis Althusser, nos agitados anos de 1960, jé analisava a relacio entre teatro € politica nestes termos: A filosofia€ o teauo so fandamentalmente determinados pela poli ‘rctantoclesfazem todos os esforgos para apagar esta determinagio, para negar esta detcrminagio, para fazer de conta que escapam & politica. No fundo da filosofa, como no fundo do teatro, é sempre a politica que fila: mas quando a filosofa ou 0 ‘eatro falam,o resultado € que nio se escuta mais nada da vor da politica. Afilosofia « 0 teatro falam sempre para cobrir a voz da politica. E eles conseguem isso muito bbem. Pode-se mesmo dizer que naimensa maiora dos casos, filosofa eo teatro tém ‘como fungio abafur a vor da politica...) Brecht chamou pelo seu nome ese teatro ‘que faz politica, mas delara que no faz politica: teatro do divertimento vespert: 'o,0 teatro culiniio, o teatro do simples gozoestétco (Althusser, 1999 p. 567568). Seo teatro é“eritica em ato da significagao” (Dort,1988, p.184), sua di- ‘mensio politica nao é mais apenas uma possibilidade, antes Ihe vai cola- dda na pele. Entio, o tema do poder, e da verdade, nao pode ser estranho a ele, que fala, mesmo quando disfarsa, a voz da politica. Sua natureza é necessariamente fransitiva, o que 0 coloca ainda mais decisivamente no coragio do debate piiblico. O teatro, assim, diz respeito a0 comum, a0 social, 0 piblico. Convém lembrar que o projeto brechtiano, cujo cariter ¢ explicita- mente emancipador, nao tem nada de problemético (inclusive porque a autocritica e a incorporagao da dialética sio constituintes do préprio projeto); embora Florence Dupont afirme de pés juntos exatamente 0 contrario, representando um pelotdo coeso na nova defesa da velha arte pela arte, aproveitando para elogiar o teatro energético, pés-moderno, das sensagdes, do ritual, "para além das ideologias” etc. etc. Nao ha pro- blema no projeto brechtiano, também, porque a decifragao da situagao histérica nao ¢ incompativel com o prazer, o divertimento ¢ a necessé- ria liberdade de exploragio (das formas ¢ dos contetidos). E claro que esta invengio nao deve ser confundida, pensando nos dias atuais, com a adocio de um tropicalismo luisa pés-rancor, que seria repetir como farsa ‘uma das falsas saidas experimentadas por parte do movimento cultural na época da ditadura, especialmente depois de 1967 A associagio entre decifracio histérica e prazer ¢, inclusive, uma das sinteses possiveis, quase uma definigio, do projeto artéstico-politico de Brecht. Bernard Dort, antecipando tanto as criticas conservadoras quan- to 0 rebaixamento intelectual do debate, jé tinha feito a adverténcia: 1 Ver Florence Dupont, Aritote ole sampive du titre occidental. 2007. 2. Sobre o assunto, ver 0 esclarecedor texto de Roberto Schwarz, “Verdade Topizal ‘um Percurso de Nosso Tempo" (2o12]-Nio custa lembrar que 1967 €0 ano de Terst, ‘em Transe, de Glauber Rocha, um filme (andlise,balango, critica, mea culpa...) so- brea derrota sofrida peas exquerdas com 0 golpe de 1964.0 filme teria preparado ‘ocaminho para o tropicalismo, ‘Mas a uma pedagogia dogmatica cle [Brech] substituiu uma pedagogia aber, ‘uma maiéutica [..] Seu teatro épico aparece assim como um empreendimento de descondicionamentoe de desteusao dasideologis (Dor, 198,199) ‘Se Brecht é incontornavel na discussio sobre teatro, verdade e poder, dois de seus contemporineos, as voltas com dilemas semelhantes ~ mas solugies proprias -, merecem referencia: Erwin Piscator ¢ Vsévolod Meierhold. Entre 0 muito que ha para lamentar na situacio teatral. do Brasil de hoje, uma delas é a auséncia de debate em torno do teatro poll: tico de Piscator.A lacuna de discussio vale tanto para a ago teatral deste diretor alemao, quanto para o livro (Teatro Politico, 1929), escrito durante a Repablica de Weimar, momento teatrale politico de excepcional efer- vescéncia. O livro € uma stimula do trabalho e das ideias de Piscator até aquele momento. Ele retine descrigGes e andlises, relatos criticas, prestacio de contas e projeto (ou método) de aga. Para justificar a importincia histérica de Piscator, bastaria lembrar {que o teatro documentério proposto por ele, com suas inovagdes formais ‘© opgées politicas, esté na origem do moderno teatro documentirio de Peter Weiss e, por consequéncia, de parte importante do teatro contem- porineo que recusa a matriz. dramatica ¢ 05 procedimentos ficcionais classicos. Tudo isso sem abrir mao da perspectiva critica, Neste raro livro, publicado pela Civilizacio Brasileira em 1968 (sc) ¢ ‘nunca mais reeditado no Brasil, pode-se ler que “a arte nao deve recuar diante da realidade” (Piscator, 1968, p.29).Se 0 episddio de onde 0 autor extrai a ligio nao é dos mais glotiosos (a participagao de Piscator como soldado na Primeira Guerra Mundial, sua paralisia diante da luta no _front e a insignificincia, segundo ele, da profissio de ator frente iquela situagio), conclusio teve e tem um alcance inegavel. Nao apenas a arte (co teatro) frequentemente recua diante da realidade, recusando 0 desa- fio de fazer a“critica em ato da significasa07 mas reforga o oportunismo, © pragmatismo, a conciliacio e, mesmo, o obscurantismo, ao encobrir € enviesar aquilo que em tese pretende ou deveria revelar. Os elementos desta equasio ~ teatro, verdade e poder ~ nio levam a respostas simples, toda tomada de posigao fica sujeita 4s armadilhas do debate politico. Que lugar ocupa o teatro na escala que vai da critica radical e sistémica & submissio diante do establishment? Como evitar 0s riscos da subordinagao da arte aos ditados politicos € ao mesmo tempo niio fazer destes riscos um élibi para o escapismo ou para a inagao? Pis- cator da algumas respostas. Referindo-se & montagem de Dito (1926), cle afirma que “a tentativa de despolitizar o material politico e“ergué-1o a0 postico’ conduz necessariamente & imperfeicio (inconsequéncia)” (idem, p.89). Mas a *imperfeigao/inconsequéncia’ nao é, digamos assim, monopolio do teatro. E a articulagao entre produgio artistica e situagao social geral que pode explicar o funcionamento (incluindo ambigdes, idades ¢ limites) do teatro de determinada época. “Contetidos, “Teatro, Verdade © Poder Parte XX 6] 12am. 2018 problemas ¢ também formas nao slo absolutamente assuntos @ la carte” (idem, p. 105), reforga Piscator. Nao existe milagre, nao basta esticar a ‘mio ¢ escolher temas e meios para “decifrar a realidade”e, eventualmen- te, interferir nela. Hé uma rica dinamica entre forgas sociais e criagio ar- tistica sobre a qual um trabalho de investigaao precisa ser feito, a que, nas palavras de Roberto Schwarz, a “matéria do artista” nao é “informe: € historicamente formada, registra de algum modo o processo social a ‘que deve sua existéncia” (Schwarz, 2007, p. 31). Hoje, dezenas de grupos paulistanos, varios deles apoiados pelo Pro- ‘grama de Fomento ao Teatro, criado no ambito municipal em 2002, sto alterando o panorama teatral da cidade ao se apresentarem como suj do debate politico e ao colocarem em discussio a dimensio social ¢ es- tética das suas miiltiplas intervengbes. Esta nova situagio, que interpela € registra o processo social, ndo ¢ exclusiva da cidade de Sao Paulo, mas nla ganhou amplitude e consequéncia, exigindo um exame criterioso sobre as relagdes entre pélise teatro. . possivel existir efervescéncia cul- tural sem efervescéncia politica? Para entender as relages entre teatro, verdade ¢ poder seria preciso, entio, analisar os enunciados sociais e os ‘enunciados artsticos,fazendo emergir a trama complexa ¢ dialética que ‘les estabelecem entre si: complementaridade, oposicao, sobreposigio, retroalimentagio... Este procedimento repete, por analogia, aquele em- pregado na investigagio da relagio entre forma e conteddo. A partir das reflexes de Adorno Benjamin, a forma seria 0 resul- tado do contetido social precipitado. No nosso caso, a dialética entre produgao artistica e processos sociais gerais seria a chave para compre- ender e agir sobre 0s termos da equacao, evitando 0 conforto da falsa consciéncia. Segundo este método, o futuro aparece como um campo de possibitidades e nio como fatalidade. Portanto, discutir 0 trindmio teatro, verdade ¢ poder, significa, de partida, recusar 0 pensamento metafisico ¢ idealista, alicerces tradicio- nis do teatro que se consolida com a ascensio da burguesia. A forma dramatica burguesa, baseada no conflito de subjetividades e nas vontades individuais, ao excluir as forcas sociais €, por definicao, idealista. Nao é de estranhar que a maior parte da atividade teatral de Meierhold tenha sido, justamente, um combate contra o drama absoluto ¢ auténomo, que a0 pre- tender a universalidade (e, portanto,a verdade) expressa apenas o particular ‘que a sociedade de classes ¢ a forma-mercadoria autorizam. O prego que Meierhold pagou por esta e outrasideias a contrapelo foi altssimo: censu- 1, perseguigao, banimento e, finalmente,o assassinato na prisio stalinista. ‘Ao discutir o teatro épico, Benjamin fez. 0 seguinte relato em 19; ‘Quando perguntado recentemente ao diretorrusso Meieshold,em Berlim,o que listingua, em sua opinio,os seus autores dos da Europa Ocidental sua rexpost fo: “Duas coisas. Primeiro eles pensam, e segundo, pensam materalsticamente,¢ no idealisticamente" (Benjamin, 1985p. 87). 0 fait divers descrito por Benjamin confirma o sentido geral de uma abordagem critica, informada pelo marxismo. Piscator, Meiethold ¢ Bre- cht definiram um campo pritico e conceitual a partir do qual é possivel discutir produtivamente sobre teatro, verdade e poder. Este campo nao parece ter perdido, globalmente, a validade. A estes trés artistas e pensadores do teatro se juntam, obviamente, muitos outros. Um deles,cuja trajetéria continua inspiradora sob varios. aspectos, é Augusto Boal. Em 2009, escolhido embaixador mundial do teatro pela UNESCO, Boal escreveu um de seus diltimos discursos, ¢ nele vai reafirmada uma convicsao: “Teatro é a verdade escondida”. Revelar a verdade seria, entio, nao ontologicamente, mas politicamente, uma das tarefas do teatro. Necessariamente politico, o teatro 6 ¢ critico por opsi0. Daf a neces- sidade de “botar a boca no mundo? como dizia Boal em 1968, quarenta anos antes do discurso da UNESCO, numa entrevista para o primeiro ni- mero da revista aParte. Acrescentando que “o bom cabrito € aquele que mais alto berra’ (Boal, 1968, p.17). ‘Com Boal voltamos 20 Brasil de hoje. Longe de ter aproveitado mo- ‘mentos favoriveis da conjuntura nacional ¢ internacional ~ a nao ser cm alguns aspectos, como o relativo controle da inflagio ~, o pafs no conseguiu se livrar da heranga de um modelo sui generis de desenvol- viento nacional e sociabilidade. Juntando liberalismo ¢ escravidao, cordialidade e autoritarismo, samba e pau-de-arara, forjamos e estamos condenados a perpetuar — persistindo o marasmo atual, bem entendido um modelo extremamente violento ¢ injusto de sociedade. ‘Aos conhecidos alarmantes indicadores sociais (analfabetismo, disparidade de renda e riqueza, assassinatos no campo € na ci téncia e abandono escolar, concentragaio fundisria, fata de acesso a bens culturais, deficit habitacional...), soma-se uma espécie de letargia quan- do 0 assunto sio mudangas estruturais. Nao é nenhum exagero, dado 0 quadro atual, utilizar 0 conceito de “estado de excegio permanente” (a partir de Benjamin, Agamben, Chico de Oliveira e Paulo Arantes). Um dos resultados desta excesdo permanente — utilizada em periodos de ‘normalidade democritica” para a administragio de populagies © a manutencio de privilégios -,€ lig de casa sempre por fazer em maté- ria de direitos humanos e de reparagio dos crimes de lesachumanidade cometidos por agentes do Estado. Situagio que também nao constitui novidade, vista a incompletude crdnica que caracteriza nossa sociedade excéntrica (nos dois sentidos do termo), em que a excegiio, de fato, pare- ce sera regra. 3, Odiscurso de Augusto Boal para o Dia Mundial do Teatro, escrito em 2209, pose set ficilmente encontrado na internet, por exemplo: hiepy/blogIn.ning.com/pro- filevblogscultursbrasilera-e-luto>,consultado em 17 de agosto de 2012, “Teato, Verdade @ Poder 26 12am. 2013 Condenado pela Corte Interamericana de Di 2010 no caso da Guerrilha do Araguaia‘,o Brasil primeiro recorreu, de pois ameagou nao cumprira sentenca, para finalmente iniciar um timi do processo de recuperagio da meméria ¢ estabelecimento da verdade histérica. No entanto, a “justiga” que forma o tripé das reivindicagdes feitas desde 0 final da ditadura por diversos coletivos ¢ movimentos sociais (cxistem Comités pela Verdade, Meméria e Justiga por todo 0 pais), raramente é mencionada ou levada em considerasao pelo poder piiblico. Nas ocasides em que isto ocorre, como no Ambito do judicisrio, € para, invocando a Lei da Anistia, aprovada em plena ditadura, garantir ‘a impunidade para torturadores, assassinos e sequestradores que agiram nna condigao de agentes do Estado. Supremo Tribunal Federal, Governo Federal e Congresso Nacional dio (e lavam) as maos quando se trata de passar realmente a limpo a histdria recente do pais. ‘Aos artistas ¢ grupos de teatro caberia, ent2o, neste novo contexto, que, entretanto, mantém em funcionamento velhos hibitos © antigas estruturas’, “nao recuar diante da realidade’ tal como pedia Piscator € ‘como fizeram muitos dos nossos antecessores durante a ditadura: ¢s- crevendo e montando pesas, inventando formas, propondo agiprops, indo e divulgando manifestos, organizando debates e publicando siuas ideias (a primeira infincia da revista aParte, limitada pela ditadura ‘apenas duas edigdes, ambas em 1968, € um dos exemplos). Dado o histérico de conciliagio por cima, de arranjos feitos sob medi- dda para excluir as vozesdiscordantes (que lembra uma ideia nio muito an- tiga:*Se 0 povo esté descontente com o governo, demitase 0 povo!”),esta- ‘mos mais uma ver diante do desafio de nao recuat, Ou de “responder aos desafios da nossa época’ como sugere, em outro contexto, o dramaturgo bbritinico Edward Bond (2000, p.29).E 0s tiltimos anos mostram que esta Jonguissima etapa de transigao para a democracia ~ nossos vizinhos da ‘América do Sul foram muito mais ripidos ~¢ feta de pequenos avangos parciais. Sao exemplos disso a condenagio do Brasil referente as omissOes do Estado no caso da guerritha do Araguaia e a accitagio de dentincia na csfera penal apresentada pelo Ministério Piblico Federal contra o major ‘Curié (hoje coronel da reserva) ¢ 0 major Licio Augusto Maciel, acusados de crimes cometidos durante a repressio neste mesmo episédio. ‘Outro exemplo foram as condenagies, no segundo semestre de 2012, do também coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra. Conside- rado torturador em acio declaratéria na esfera civel, movida pela familia itos Humanos em 4 Ver Corte Interamericana de Direits Humanos, Caso Gomes Lund eoutrs(*Guerilba do Araguaia”) es. Brasil Sentensa de 24 de novembro de 2010. A sentenga completa pode ser encontrada em

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