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UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE - ENSINO A DISTÂNCIA ®

4
Fascículo

Gestão Social e Coprodução


de Serviços Públicos
Paula Chies Schommer
Augusto de Oliveira Tavares
Copyright © 2017 by Fundação Demócrito Rocha

FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR)


Presidência
João Dummar Neto
Direção Geral
Marcos Tardin

UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (Uane)


Coordenação Geral
Ana Paula Costa Salmin

CURSO GESTÃO SOCIAL


Concepção e Coordenação Geral
Cliff Villar
Organizadores de Conteúdo
João Martins de Oliveira Neto e
Jeová Torres Silva Júnior
Coordenação Pedagógica
Ana Cristina Pacheco de Araújo Barros
Coordenação Executiva
Rebeca Sabóia
Edição de Design e Projeto Gráfico
Amaurício Cortez
Editoração Eletrônica
Cristiane Frota
Ilustrações
Carlus Campos
Catalogação na Fonte
Kelly Pereira
Gerente de Serviços
Valéria Freitas
Produtora
Thais de Paula

Este fascículo é parte integrante do Curso Gestão Social


composto por 12 fascículos oferecido pela Universidade
Aberta do Nordeste (Uane), em decorrência do contrato
celebrado entre a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento
Social – STDS e a Fundação Demócrito Rocha (FDR), sob o
nº 076/2017.

C975 Curso gestão social / concepção e coordenação geral, Cliff Villar;


organizadores de conteúdo; João Martins de Oliveira Neto
Todos os direitos desta edição reservados à:
e Jeová Torres Silva Júnior. – Fortaleza: Fundação Demócrito
Rocha/UANE/BID/STDS-Ce, 2017.
288. il. color; (Curso em 12 Fascículos)

ISBN 978-85-7529-834-3 Fundação Demócrito Rocha


Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora
CEP 60.055-402 - Fortaleza-Ceará
1. Curso – gestão social I. Villar, Cliff. II. Oliveira Neto, João Tel.: (85) 3255.6180 - 3255.6153
Martins. III. Silva Júnior, Jeová Torres. IV. Título Fax: (85) 3255.6271
fdr.com.br
fundacao@fdr.com.br
CDU 304(813.1) uane@fdr.com.br
sumário
1. Introdução................................................................................................ 76

2. Desafios da atualidade e novas formas de participação,


gestão e provisão de serviços públicos ............................................. 77

3. Coprodução de serviços públicos: fundamentos e modelos ....... 79


3.1 Afinal, o que é coprodução de serviços públicos? ............................ 79
3.2 A centralidade da participação cidadã na coprodução ................. 80
3.3 Modelos ou tipos de coprodução ......................................................... 83

4. Como participar da coprodução dos serviços públicos em seu


município? O que esperar e o que não esperar da coprodução? . 87
4.1 Participação em espaços existentes e novas possibilidades ......... 87
4.2 O papel do Estado e do cidadão nos processos de coprodução.... 89
4.3 Limites e obstáculos à coprodução ..................................................... 90
4.4 Como avaliar a coprodução? ............................................................... 91

Síntese do Fascículo .............................................................................. 92


Perfil do Autor .................................................................................... 92
Referências Bibliográficas ................................................................... 95

OBJETIVOS
1. Refletir sobre a necessidade e a possibilidade da coprodução de
serviços públicos e da gestão participativa no contexto atual;

2. Definir o conceito de coprodução de serviços públicos e sua relação


com a gestão social;

3. Apresentar diferentes modelos e tipos de coprodução de serviços


públicos e exemplos de sua realização;

4. Indicar caminhos e alternativas para a participação cidadã na


coprodução de serviços públicos.
As práticas de coprodução estão
presentes em setores como educação,
saúde, segurança pública, assistência
social, meio ambiente, habitação, pla-
nejamento territorial e orçamentário e
controle da administração pública.
A coprodução é capaz de oferecer
respostas às demandas por ampliação
da cidadania via compartilhamento
de responsabilidades entre governos,
organizações públicas e privadas e ci-

1.
dadãos. Não assume um modelo único
e nem é solução para todos os proble-
mas sociais. Cada iniciativa envolve
contínua construção e aprendizagem e
implica desafios institucionais, cultu-

Introdução
rais e políticos.
Sua relação com a Gestão Social é
evidente nos modelos respaldados pela
Coprodução corresponde ao enga- descentralização, participação ativa,
jamento de cidadãos e servidores relações dialógicas, envolvimento de
públicos no planejamento (design) e diferentes atores sociais, aprendiza-
na implementação (entrega ou de- gem coletiva e ação colaborativa.
livery) de bens e serviços públicos. Apresentamos os fundamentos
Usuários e profissionais comparti- conceituais e exemplos de coprodu-
lham recursos, conhecimentos e po- ção, sua relação com gestão social,
der na realização do interesse públi- seus limites e potencialidades, e indi-
co e no atendimento às necessidades camos como o leitor pode reconhecer
da comunidade. e promover a coprodução ao seu redor.

76 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


2.
A realidade atual é marcada por de- mais canais de informação, debate e
safios complexos e possibilidades de monitoramento sobre propostas, deci-
inovação, aprendizagem e desenvolvi- sões e seus efeitos. Mais pessoas que-
mento das capacidades humanas. Por rem saber os detalhes sobre como rea-
um lado, há o esgotamento de recur- lizar, com que recursos, sem iludir-se

Desafios da sos, de visões de mundo e de manei-


ras de produzir conhecimentos, bens e
com caminhos que parecem ser mais
fáceis. As pessoas querem “fazer polí-

atualidade serviços. Certas formas de relação en-


tre as pessoas e destas com a nature-
tica com as próprias mãos”.
Na economia e na sua relação com

e novas za são questionadas. Por outro lado, é


um tempo de múltiplas possibilidades
o meio ambiente, de um lado, há incrí-
veis inovações tecnológicas e novas

formas de para a solução de problemas antigos


e para fazer frente aos novos desafios
formas de produzir bens e serviços. Isso
amplia o acesso e melhora a vida de bi-

participação, que se apresentam.


No âmbito político, vê-se frustra-
lhões de pessoas, e contribui para pre-
servar o meio ambiente. De outro, há

gestão e ção e desencanto, radicalismo e ge-


neralizações. Frases como “são todos
concentração de conhecimento, rique-
za e poder, e práticas devastadoras da

provisão iguais” ou “não tem jeito mesmo” são


evidências disso. O poder político e
natureza e da saúde humana. Os limites
dos modos de produção e do mercado

de serviços econômico ainda é muito concentrado


nas mãos dos homens e de certas fa-
como mecanismo de regulação da so-
ciedade tornam-se mais evidentes.

públicos
mílias, grupos, partidos e corporações. A desigualdade no acesso a recur-
As incertezas e a insegurança são ex- sos, bens e serviços ainda é imensa. Em
ploradas pelos que desejam se colocar meio à abundância de alimentos, de
como “protetores” ou “salvadores”, e riqueza e de tecnologia, grande parte
assim reproduzem uma cidadania pas- da população mundial não desfruta
siva ou tutelada. plenamente de direitos básicos. Entre
Em contrapartida, as pessoas es- eles, a alimentação, a saúde, a justi-
tão mais interessadas em debater, se ça, a integridade física, a segurança, a
posicionar, influenciar decisões, par- educação e a participação na vida po-
ticipar da vida pública, exercer poder. lítica de cidades e países.
Cresce a intolerância a modelos de Desigualdades que conhecemos
gestão autoritários, centralizados, hie- muito bem no Brasil. País no qual, em
rárquicos, manipulativos, coercitivos pleno século XXI, com toda a rique-
e paternalistas. Rejeitam-se sistemas za da qual desfrutamos, a economia
políticos que desresponsabilizam e to- ainda sofre com baixa produtividade
lhem os potenciais das pessoas. Cresce e competitividade e com debilidade
a intolerância com a corrupção e o da infraestrutura. Vemos, também,
desperdício, desde as nossas práticas vínculos escusos entre o setor privado
cotidianas até o âmbito nacional e in- e o setor público e investimentos es-
ternacional. Crescem as expectativas peculativos. Exploramos de manei-
e as exigências sobre a coerência e o ra irresponsável e pouco inteligente
desempenho dos agentes políticos. As nossa diversidade biológica, cultural,
instituições tradicionais são mais de- climática. A baixa qualidade da edu-
safiadas a dar respostas, a demonstrar cação tolhe o potencial econômico e
seu valor para a sociedade. Há mais e político das pessoas e do País.

gestão social 77
Surgem tentativas de respostas, homicídios, de agressões, de mortes no Como viabilizar modelos de ges-
como as práticas produtivas alter- trânsito, de roubos e furtos são absurdas. tão e governança que aproveitem
nativas, a economia de comparti- E, em sua maioria, ficam impunes. Somos melhor os recursos existentes e distri-
lhamento, a economia solidária e a tolerantes à barbárie e desrespeitamos a bua-os de forma mais justa?
coprodução de bens e serviços pú- vida. A injustiça, em vários sentidos, ain- Como valorizar o potencial das
blicos. As perspectivas produtivistas, da é marca de nosso País. pessoas para gerar bem-estar para si
centralizadas e homogeneizadoras O País também vive rápidas mu- e para os demais?
são rejeitadas, em favor do resgate de danças demográficas, incluindo o Como aprimorar e dinamizar os es-
aspectos ecológicos, endógenos e co- prolongamento do tempo de vida e o paços já existentes de participação ci-
munitários, fortalecendo as especifi- envelhecimento da população. Além dadã, tais como conselhos, conferências,
cidades territoriais. Busca-se mostrar disso, o mundo vivencia novas ondas fóruns e organizações da sociedade civil?
que é possível: integrar-se globalmen- migratórias e mudanças nos padrões Como ir além desses espaços e
te sem destruir as capacidades locais; familiares. Estes se tornam mais flexí- inovar nas relações entre governos e
conviver com os limites ambientais; veis e heterogêneos, o que faz crescer a cidadãos, e entre organizações públi-
atender a diversas necessidades das importância das comunidades de ami- cas e privadas?
pessoas sem depender somente de gos e vizinhos, por exemplo. Uma das possibilidades é a copro-
empresas, governos, partidos e outras Em meio ao crescente fluxo de in- dução de serviços públicos, que deta-
instituições tradicionais. formações, pessoas e mercadorias no lharemos a seguir.
As mudanças tecnológicas, os mundo globalizado, há revalorização
ganhos de produtividade e as mu- das comunidades e da proximidade
danças nos padrões produtivos afe- entre as pessoas. Tanto no interior de
tam o mundo do trabalho. Crescem o uma comunidade como nas suas rela-
desemprego, a precariedade e a falta ções com outras, o capital social e as
Questões:
de qualificação para novas funções. conexões em redes são reconhecidas 1. Quais as principais
Volta-se a debater a criação de uma como elementos de identidade e de mudanças políticas,
renda básica universal e a redução da desenvolvimento. socioculturais e
jornada de trabalho, como partes de A estrutura social está mais frag- econômicas que
um novo contrato social. mentada e complexa, tornando as você observa no
No âmbito sociocultural, há mu- exigências sociais heterogêneas e es- seu contexto?
danças de valores em curso. Ao tem- pecíficas. Isso exige respostas mais
2. Como as tensões po-
po em que celebramos a diversidade individuais, concretas, contextuali-
líticas, econômicas
e a interculturalidade, são reforçados zadas. Os sistemas de governo e go-
e socioculturais da
aspectos de identidade e pertença a vernança são desafiados a dar conta
atualidade influen-
comunidades específicas. Há certa ho- dessa nova realidade.
ciam mudanças em
mogeneização global e o convívio com Uma vez que a informação e o co-
seus hábitos e das
intolerâncias de ordem religiosa, étni- nhecimento são mais distribuídos na
comunidades das
ca e cultural. Em meio a novos confli- sociedade; que mais pessoas querem
quais você faz parte?
tos, medos e tensões, emergem novas participar da vida pública e definir
formas de reciprocidade e solidarie- seus rumos na vida privada, podería- 3. Quais alternativas
dade. Estas desenvolvem a confiança, mos perguntar: para lidar com
elemento essencial do convívio social, Quais os desafios para os modelos desafios coletivos
da civilização, da sustentabilidade. tradicionais de regulação e controle, você percebe
O Brasil, em particular, ainda é um na família, no trabalho, na escola, nos ao seu redor?
país muito violento. Nossas taxas de mercados, nos governos?

78 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


3.
Coprodução é uma estratégia que alcançado se cada parte atuasse iso-
permite a produção de bens e ser- ladamente. O valor adicionado pode
viços públicos por meio do com- ser observado na solução criativa
partilhamento de responsabilida- para certo problema, na flexibilidade
des e poder entre agentes públicos, e na adaptação a necessidades locais

Coprodução agentes privados e cidadãos. Essa


articulação se estabelece por meio
e na produção de melhores resultados
com menos recursos.

de Serviços da sinergia que ocorre na realização


dos serviços públicos compartilha-
Seus efeitos principais se verifi-
cam no fortalecimento da confian-

Públicos: dos entre governo, comunidade e


cidadãos que, obrigatoriamente –
ça, da proximidade, da reciprocidade
e da solidariedade entre as pessoas;

fundamentos assim como o aparato administra-


tivo do Estado – interagem para a
no desenvolvimento da cidadania;
na capacidade dos cidadãos de não

e modelos produção dos bens e serviços pú-


blicos. Essa interação se efetua por
meio de redes e parcerias ou outros
apenas opinarem e controlarem o
poder público, mas também de se en-
volverem diretamente na solução de
arranjos societários dos quais par- problemas coletivos.
ticipa o cidadão (SALM, 2014, p. 42). Outro elemento importante da
3.1. Afinal, o que coprodução é a relação contínua,
é coprodução de Apresentamos também as de- de longo prazo, entre usuários e pro-
serviços públicos? finições de Tony Bovaird e de Taco fissionais. Ou seja, embora se possa
Brandsen e Marlies Hoeningh, que são considerar ações pontuais como co-
O conceito de coprodução foi pro- referências nesse tema. Para eles, co- produção, é preferível focalizar as
posto pela economista Elinor Ostrom produção corresponde a: relações mais duradouras de presta-
e seus colegas na Universidade de ção de certo serviço. Pesquisadores
Indiana, no fim dos anos 1970. Referia- Provisão de serviços por meio de também enfatizam que a contribui-
se ao envolvimento dos cidadãos ou relações regulares e de longo pra- ção dos cidadãos para a organização
clientes na produção de serviços, ao zo entre provedores profissionais e os profissionais responsáveis pelo
lado de especialistas ou provedo- de serviços (em qualquer setor) serviço deve ser direta e ativa. Ainda,
res regulares, públicos ou privados. A e usuários de serviços ou outros o caráter voluntário da coprodução é
proposta ganhou repercussão por seu membros da comunidade, sendo assinalado por diversos autores que
potencial de atender a necessidades que todas as partes fazem contri- trabalham com o tema, ponto ao qual
coletivas no âmbito local, reduzindo buições substanciais de recursos voltaremos mais adiante.
custos governamentais e valorizando (BOVAIRD, 2007, p. 847). Cabe assinalar que a coprodução
as capacidades dos cidadãos. não se aplica a qualquer tipo de servi-
O interesse sobre o tema cresceu Relação entre um profissional re- ço público, e, sim, combina-se a outras
a partir dos anos 2000, na busca por munerado de uma organização e estratégias e modelos de provisão.
modelos de gestão pública que alcan- (grupos de) cidadãos individuais que Sua contribuição é especial, sobretu-
cem melhor desempenho econômico requer uma contribuição direta e ati- do, porque a coprodução “[...] empres-
e sociopolítico. As práticas e os estu- va desses cidadãos para a realiza- ta uma nova perspectiva à adminis-
dos sobre o tema, de início concentra- ção do trabalho dessa organização tração pública, pois cria um elo entre
das nos Estados Unidos, Reino Unido, (BRANDSEN e HONINGH, 2016, p. 431). a participação do cidadão e a pro-
Holanda, Suécia e Austrália, hoje dução dos serviços públicos” (SALM e
atraem atenção também em muitos A sinergia mencionada por Salm MENEGASSO, 2010, p. 2). Trataremos a
outros países, inclusive no Brasil. (2014) gera adição de valor, a partir da seguir da participação e sua centrali-
Um dos principais estudiosos bra- relação entre os envolvidos. Ou seja, dade nessa estratégia de produção de
sileiros do tema, José Francisco Salm, por meio da coprodução, é possível serviços públicos.
assim define o conceito: chegar a um resultado que não seria

gestão social 79
3.2 A centralidade
da participação cidadã
na coprodução
A participação abrange todos os aspec-
tos da vida social. O ser humano vive em
grupo desde a sua origem. Sente, assim,
a necessidade de participar da vida en-
tre outros seres humanos. Seja por ques-
tões econômicas (garantir a sobrevivên-
cia), seja por questões políticas (exercer
o poder, estabelecer controles, regular
conflitos), seja por questões afetivas
(partilhar, cooperar). No entanto, a con-
cepção de participação como discurso
e como prática varia de acordo com os
períodos históricos e conjunturais.
A participação tem sido discutida
como um conceito central do debate processos eleitorais, mais democrá- e política. Nesse sentido, está na es-
teórico e prático sobre a democratiza- ticas seriam as sociedades. O termo sência da democracia, a faz funcio-
ção da sociedade, sem que haja, no en- é usado, ainda, como categoria pro- nar melhor e espelha a vitalidade cí-
tanto, um conceito único e consensual. cedimental, quando a participação vica de uma sociedade, comunidade
Está presente nas reinvindicações his- é defendida pela sua capacidade de ou grupo. Incluem-se, nessa corren-
tóricas dos movimentos sociais, das produzir consequências julgadas im- te, as formas de democracia direta e/
organizações sociais e políticas e vem portantes ou valiosas. ou deliberativa.
alcançando o local de trabalho, a es- Mas, afinal, quais as diferentes Entre os teóricos da democra-
cola, a família, o clube, a igreja etc. Ao formas de participação social? Todos cia representativa, há os que veem
mesmo tempo, convivemos com o fe- podem participar ao mesmo tempo e a participação com certa descon-
nômeno da apatia ou formas de parti- da mesma maneira? Quais os efeitos fiança e os que, reconhecendo seus
cipação fragmentadas e difusas. da participação nos assuntos de in- limites, a relegam aos aspectos mais
Na literatura específica, o concei- teresse público? Como ampliar os es- procedimentais, como ao momento
to de participação tem sido utilizado paços nos quais se pode participar? O do voto, por exemplo. Para estes, a
tanto como categoria prática quan- que faz crescer ou diminuir a apatia? participação direta ou deliberativa
to teórica. Ora para referir-se à ação Essas questões nos ajudarão a refletir dos cidadãos nos assuntos públicos é
das classes populares, dos militantes, sobre os fundamentos e os objetivos dispensável ou deve ser mantida sob
e dos excluídos, quando lutam por di- da coprodução dos serviços públicos. controle. O que importa são as “re-
reitos e buscam emancipação. Ora Do ponto de vista conceitual, po- gras do jogo”.
como categoria teórica que subsidia demos delimitar duas grandes corren- Em cada uma dessas abordagens
o debate na teoria democrática, evo- tes: a democracia participativa e a existem diferenciações internas que
cando a participação como o termô- democracia representativa. não aprofundaremos neste fascículo.
metro da democracia. Ou seja, quanto De forma geral, os estudiosos da Importa perceber que há um relevante
mais numerosos e efetivos forem os primeira enxergam a participação debate conceitual e prático quanto ao
espaços participativos, para além dos como um valor em si mesmo, próprio entendimento do papel e da forma de
da condição humana, mobilizador participação dos cidadãos nos assun-
das ações coletivas em busca dos in- tos de interesse público. Esse debate
teresses coletivos. Entendem que a muda de acordo com o contexto his-
participação constitui um processo tórico, a conjuntura política e as ver-
pedagógico de aprendizagem social tentes ideológicas.

80 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


Interessa-nos, particularmente, embora possa ocorrer envolvimento
as abordagens da democracia par- dos cidadãos apenas na deliberação,
ticipativa, vinculadas às possibili- geralmente ocorre também na imple-
dades de ação coletiva que unem as mentação dos serviços.
instituições políticas aos contextos Se as pessoas se reconhecem ca-
sociais dos atores, seus sentidos e pazes de interferir efetivamente nas
anseios. Tanto por meio de práticas questões públicas e há condições ob-
da participação direta ou na sua ver- jetivas e substantivas para isso, elas
tente deliberativa. passam a conferir maior valor e impor-
Lüchmann (2005) sintetiza carac- tância à participação. De igual forma,
terísticas da democracia participativa diante de situações adversas e desin-
e deliberativa. São elas: centivos, tendem a não participar.
Um dos resultados da participa-
a) o resgate da ideia de soberania ção é a possibilidade de um maior
popular, no sentido de um reconhe- controle social das ações do governo.
cimento de que cabe aos cidadãos Ou seja, quando os cidadãos dispõem
não apenas “influenciar”, como de meios institucionais e condições
“decidir” acerca das questões de para fiscalizar o exercício do poder
interesse público (...); b) a ênfase e a prestação dos serviços públicos.
no caráter dialógico dos espaços Podem também atuar diretamente
públicos enquanto formadores da na gestão das políticas e dos serviços
opinião e da vontade; c) o reconhe- públicos. Contribuem, assim, para a
cimento do pluralismo cultural, das permanência de mecanismos e estra-
desigualdades sociais e da com- tégias de participação democrática
plexidade social (...); d) o papel do dos setores organizados da sociedade
Estado e dos atores políticos para bem como intervindo de forma efeti-
a criação de esferas públicas deli- va nos assuntos de interesse público.
berativas e a implementação das No entanto, a construção desse
medidas advindas de processos de- processo não é linear nem livre de
liberativos; e) (...) a importância do conflitos e contradições. As expe-
formato e da dinâmica institucio- riências de participação social, de-
nal (LÜCHMANN, 2005, p. 21-22). pendendo do modelo e forma como
ocorrem, podem representar a sim-
O fundamento principal dessa ples transferência das responsabi-
nova concepção é de que cabe lidades do Estado para a popula-
ção. Ou uma expansão da cidadania
aos cidadãos reunidos em espaços como expressão de um processo de
públicos a legitimidade para decidir, democratização mais amplo da so-
a partir de um processo cooperativo ciedade. Isso fortalece a descentra-
e dialógico, as prioridades e as reso- lização do poder e gera mais envol-
luções levadas a cabo pelas arenas vimento do cidadão nos assuntos de
institucionais do sistema estatal interesse público.
(LÜCHMANN, 2005, p. 21-22). As experiências de coprodução de
serviço público contemplam diferen-
Esse é um fundamento conceitual tes níveis e alcances da participação.
dos processos de participação via con- Salm e Menegasso (2010) elaboraram
selhos de políticas públicas, fóruns e uma síntese, a partir de similaridades
conferências, as chamadas Instituições observadas em diferentes tipologias
Participativas. Já na coprodução, de participação.

gestão social 81
Quadro 1: Tipologias de participação
Tipologias de Participação Descrição

Não participação ou Participação passiva, “o cidadão é manipulado para participar de forma passiva porque
participação por convenção Participação nominal assim o Estado demonstra que faz algo em benefício da sociedade.”

“o cidadão é consultado para fornecer informações ou para se


Consulta, informação,
Participação simbólica obter dele a tolerância ou anuência em relação a projetos ou
pacificação
outras possíveis ações do Estado.”
“o cidadão é um parceiro do Estado. Ele pode receber um
Incentivo, funcional ou incentivo do Estado para realizar uma atividade ou serviço ou
Participação em parceria
instrumental pode oferecer recursos para que uma atividade ou serviço sejam
realizados com o Estado.”

“a interação que ocorre entre cidadãos de uma mesma


Interativa, poder delegado comunidade gera uma forma de poder que está além do poder do
Participação representativa
ao cidadão Estado. Ela também cria oportunidades para que se constitua a
com sustentabilidade
comunidade na aprendizagem (...) pode criar oportunidades para
que venha a ocorrer a participação interativa.”
“a comunidade tem a possibilidade objetiva de vir a exercer
poder sobre o Estado que se expressa no modelo heurístico
da democracia participativa. Na realidade, esses tipos de
Participação do cidadão no Transformacional,
participação exercem maior ou menor poder sobre o Estado,
controle sobre o Estado automobilização
dependendo das circunstâncias e da maturidade política e
democrática da sociedade, em razão de que podem ser incidentais
ou com características de maior perenidade.”
FONTE: ADAPTADO DE SALM E MENEGASSO (2016, P. 9).

As diferentes formas de participação Social, ela precisará lidar com as ten- de produção dos bens e serviços públi-
na coprodução dos bens públicos variam sões e as potencialidades teórico-prá- cos (SALM, 2014, p. 43)
de acordo com os objetivos e as caracte- ticas dos processos participativos.
rísticas das organizações envolvidas e do Sobre essa questão, Salm (2014) O pressuposto é que apenas proces-
modelo de gestão no qual está inserido. esclarece: sos participativos amplos são poten-
O marco da Gestão Social agrega A gestão social e a coprodução dos cialmente capazes de dar maior legiti-
valores e práticas que abrangem as bens e serviços públicos apresentam midade à coprodução de bens públicos.
duas últimas tipologias definidas no múltiplas interfaces. Ambas têm, entre Promover a transparência nos processos
quadro – Participação representativa as suas premissas básicas, a participa- decisórios; evitar burocracias; prevenir
com sustentabilidade e Participação ção do cidadão como agente político o paternalismo e o patrimonialismo; ga-
do cidadão no controle sobre o Estado. na comunidade; a multidimensionali- rantir direitos; construir uma nova cul-
A participação, entendida como dade humana; a primazia do interes- tura política; ampliar a cidadania; for-
valor humano e prática social, é um se público sobre o interesse privado; talecer laços sociais e manter o foco no
conceito-chave para a gestão social e o empoderamento da comunidade; a interesse coletivo. Trata-se, em última
um instrumento indispensável para a responsividade que torna plena a ac- instância, de contribuir com processo de
coprodução de bens públicos. Vai além countability dos agentes públicos; a democratização da sociedade, enfocan-
dos mecanismos institucionalizados na ênfase na autorrealização humana e do a importância das redes de relacio-
vida política, e, nesse sentido, não se na sustentabilidade da biosfera; além namento e os valores intangíveis que se
resume ao ato do votar ou dar opinião. da superação do modelo burocrático constroem nas interações entre indiví-
Onde quer que se pretenda a Gestão centralizador pouco eficiente e eficaz duos, organizações e governo.

82 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


3.3 Modelos ou tipos de coprodução
Diversos autores que trabalham com coprodução, com base nas tipologias
o tema sugerem modelos ou tipos de participação apresentadas no item
de coprodução. Salm e Menegasso anterior. Esses cinco modelos são sin-
(2010) propõem cinco modelos de tetizados no Quadro 2:

Quadro 2 – Modelos de coprodução de serviços


públicos a partir de tipologias de participação
Caracterização do modelo de
Modelo de coprodução Participação do cidadão na coprodução
coprodução

Estratégia para a produção dos serviços


públicos, por meio do compartilhamento
de responsabilidades entre pessoas
Não há participação efetiva e de
Coprodução nominal da comunidade, preferencialmente
poder do cidadão sobre o Estado.
voluntários, e o aparato administrativo
público do Estado, com o propósito,
apenas, de tornar eficientes esses serviços.

Estratégia para envolver os cidadãos


Caráter fundamentalmente
Coprodução simbólica na produção dos serviços públicos para
manipulativo da participação.
demonstrar a presença do Estado.

Estratégia utilizada pelo aparato


púbico estatal para produzir serviços A participação do cidadão ocorre
públicos de maneira mais eficiente e por meio da solicitação dos serviços,
Coprodução funcional
eficaz (orientada pelo menor custo e de assistência ou por ajuste mútuo
pelo resultado), com a participação do com o Estado.
indivíduo, do grupo ou da coletividade.

Resultado da sinergia que se estabelece


Interação do cidadão com o aparato
na realização dos serviços públicos de que
administrativo estatal e/ou delegação de
Coprodução representativa com participam os cidadãos, as organizações
poder pelo Estado. Requer engajamento
sustentabilidade da comunidade e o aparato administrativo
cívico do cidadão e da comunidade,
do Estado que, no seu conjunto, interagem
empowerment e accountability.
em prol do bem comum.

Estratégia para a realização dos


serviços públicos de que participa toda
Permanente mobilização da comunidade
Coprodução para a mobilização a comunidade, orientada por princípios
e busca de superação da organização
comunitária éticos e pela democracia normativa,
burocrática.
com o propósito de manter a sociedade
permanentemente mobilizada.

FONTE: SALM, MENEGASSO (2010); SCHOMMER, ET AL. (2011, P. 43-44)

gestão social 83
Estudos pioneiros sobre o tema, um serviço; ii) os cidadãos cooperam se torna mais saudável ou menos, a
na década de 1980, distinguiam a co- com agentes públicos, a partir de uma depender de como se envolve no pro-
produção individual – quando um oportunidade criada pelos agentes pú- cesso. Ou seja, quando o objetivo de
cidadão interage com o profissional blicos; e ocorre ajuste mútuo entre ci- um serviço envolve a transformação
para realizar um bem ou serviço de dadãos e agentes públicos, havendo de pessoas, sempre envolverá algum
seu interesse; em grupo – quando a in- envolvimento direto de cidadãos e ser- grau de coprodução.
teração ocorre por demanda e benefí- vidores públicos tanto na concepção Nos anos 2000, novas tipologias
cio de um grupo específico; e coletiva da ideia e seu planejamento como na foram analisadas. Uma delas, pro-
– quando a interação envolve um con- sua execução. posta pelo pesquisador britânico Tony
junto mais amplo de cidadãos e bene- Já nessa época observava-se que Bovaird, considera oito diferentes
ficia o coletivo, em certo contexto. alguns serviços, como educação e possibilidades de provisão de servi-
Também se considerava que a saúde, não podem ser produzidos sem ços, a partir da análise dos papéis de
coprodução poderia se referir a situa- algum grau de participação do cida- profissionais e de usuários e suas co-
ções nas quais: i) cidadãos requerem dão ou usuário. Por mais que a respon- munidades no planejamento (design)
assistência aos agentes públicos sabilidade recaia sobre o profissional, e/ou na implementação (delivery) dos
– por exemplo, ao preencher um for- por exemplo, o professor ou o médi- serviços públicos. O Quadro 3 mostra
mulário, fazer sugestões ou demandar co, o estudante se educa, o cidadão essas diferentes combinações.

Quadro 3 – Tipos de coprodução a partir dos papéis desempenhados


por profissionais e por usuários e comunidade
Usuários e/ou comunidade
Não há contribuição
Profissionais planejam os participam do
de profissionais no
serviços sozinhos planejamento dos serviços
planejamento do serviço
junto com profissionais

2. Provisão tradicional dos


Profissionais são os
1. Provisão tradicional de serviços por profissionais,
únicos responsáveis pela
serviços públicos pelos com engajamento de Não se aplica
implementação ou entrega
profissionais ou pelo Estado cidadãos e profissionais no
dos serviços
planejamento e design

Profissionais e usuários/ 3. Entrega por usuários e 4. Coprodução plena, 5. Usuários/comunidade


comunidades participam profissionais de serviços envolvendo profissionais entregam os serviços ao lado
diretamente da entrega dos desenhados apenas por e usuários tanto no design de profissionais, com mínimo
serviços profissionais como na entrega dos serviços planejamento formal

7. Usuários/comunidade 8. Provisão dos serviços por


Usuários/comunidades são 6. Usuários/comunidade
entregam serviços meio da auto-organização
os únicos responsáveis pela entregam serviços
planejados em conjunto por comunitária, sem
entrega dos serviços planejados por profissionais
cidadãos e profissionais participação de profissionais

84 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


O primeiro tipo não é exatamente é feita por meio de comitês e fundos diferentes atores, em diferentes fases
coprodução, pois não há efetivo en- compartilhados, com participação dos do processo. Os cidadãos separam os
volvimento dos usuários ou da comu- diferentes envolvidos. resíduos recicláveis, a coleta é feita pela
nidade. Por exemplo, quando os gover- Um exemplo de coprodução plena Prefeitura ou empresa terceirizada, e a
nos locais, por meio de seus técnicos, (tipo 4) é o de sistemas de esgotamento separação posterior e encaminhamen-
planejam, executam e cuidam da ma- condominial, quando o planejamen- to para reciclagem pode ser feita por
nutenção de uma praça, sem qualquer to do sistema, sua implementação e uma cooperativa de catadores.
participação dos cidadãos (tipo 1). manutenção são feitos com engaja- Algumas iniciativas surgem ini-
O orçamento participativo é um mento mútuo de moradores e técni- cialmente com pouco planejamento
exemplo do segundo tipo. Os cidadãos cos. Envolve compartilhamento de formal, a partir da comunidade, com
participam das decisões, mas quem conhecimentos, de recursos (financei- alguns profissionais envolvidos. Como
executa as políticas e serviços é o go- ros, técnicos e horas de trabalho) e de ocorre em grupos de vizinhos que mo-
verno (tipo 2). Outro exemplo é o design poder nas decisões. nitoram de modo colaborativo a segu-
de serviços públicos com foco no usuá- Na pavimentação de ruas, por rança em uma rua, com participação
rio. Este pode ocorrer quando pacientes exemplo, pode ocorrer o tipo 1, em que eventual de profissionais da área (tipo
de hospitais e suas famílias são con- o governo local planeja, executa e man- 5). Algumas delas tornam-se mais es-
vidados a participar, juntamente com tém a obra. Pode haver participação dos truturadas, com definição do que cabe
profissionais, do desenho de melhorias cidadãos apenas na execução, em muti- à comunidade ou aos profissionais de
no processo de atendimento hospitalar. rões nos quais os moradores executam segurança pública. São definidos pro-
Ainda assim, os serviços são prestados a obra que foi desenhada por técnicos e cedimentos e há orientação e apren-
apenas por profissionais (tipo 2). financiada pela prefeitura (tipo 6). Já em dizagem constante (tipo 4). Diferentes
Em alguns casos, durante esse re- modelos mais plenos de coprodução, os redes de vizinhos compartilham apren-
desenho dos processos, percebem-se moradores definem o projeto e detalhes dizagem entre si e contribuem para
oportunidades de participação dos da obra junto com os técnicos. Além dis- aprimorar o sistema de segurança pú-
usuários também na entrega dos ser- so, participam da execução – com recur- blica como um todo.
viços. No cuidado com idosos, por sos financeiros e/ou horas de trabalho.
exemplo, tem-se buscado envolve-los E também fazem o monitoramento du-
no cuidado consigo e com outros. No rante e depois da obra (tipo 4), comple-
caso de pessoas com doenças mentais, mentando o papel dos técnicos na área.
o envolvimento dos pacientes, famílias Na coleta e no aproveitamento de
e comunidades pode gerar mudanças resíduos orgânicos, pode ocorrer o tipo 8,
nas concepções dos tratamentos. Os no qual a comunidade coleta os resíduos
profissionais da saúde, famílias, comu- e os utiliza em sistemas de composta-
nidades e os pacientes desempenham gem e agricultura orgânica organizados
papéis complementares e integrados. pela própria comunidade. Isso sem qual-
A necessidade de moradia e cui- quer participação do poder público ou
dado com idosos tem gerado diversos de profissionais especializados. Também
modelos de serviços. Um deles é quan- pode haver o planejamento do serviço
do os idosos, suas famílias e os gover- em conjunto entre cidadãos e profissio-
nos locais contribuem com parte dos nais, e a comunidade responsabilizar-se
recursos e do trabalho, enquanto em- inteiramente pela execução (tipo 7).
presas privadas constroem residências Já na coleta de resíduos sóli-
e prestam parte dos serviços. A gestão dos, costuma haver envolvimento de

gestão social 85
Tratando especificamente de edu- 3. coprodução na concepção e houver outra alternativa para o cida-
cação, Victor Pestoff (2012) identificou implementação da essência (core, ou o dão, não se trata de coprodução.
quatro tipos de participação cidadã na coração) de um serviço – os usuários são Entretanto, assim como acontece
coprodução de serviços: considerados essenciais para planejar e com a participação cidadã, pode haver
• econômica, que envolve tempo implementar o serviço que lhes é presta- manipulação e iniciativas de coprodu-
e materiais para manter ou auxiliar o do individualmente – como, por exemplo, ção usadas apenas para sossegar os
funcionamento de um equipamento em situações nas quais alunos definem ânimos dos cidadãos. Não se trata de
da escola; objetivos e atividades de aprendizagem efetivo compartilhamento de poder,
em projetos participativos; e como mostram os dois primeiros mode-
• política, como o processo em
los observados por Salm e Menegasso
que indivíduos se envolvem nas dis-
4. coprodução na implementação (2010), abordados no início do item 3.3.
cussões e tomadas de decisão sobre o
da essência (core) do serviço – os cida-
processo pedagógico e sobre a gestão
dãos estão ativamente envolvidos na
de uma escola;
implementação, mas não na concep-
• social, como contribuição a ção de um serviço individual em que a
eventos sociais e festas em datas co- coprodução pode não ser inerente, mas
memorativas relacionadas à escola; e deliberadamente incluída como parte
• específica do serviço, na qual o da concepção – por exemplo, no caso de
Questões:
usuário, ou um familiar, ou outro mem- alunos que seguem as lições definidas 1. Na sua cidade,
bro da comunidade auxilia a gerir ou rigorosamente, pois sua contribuição é você conhece ou
manter uma instalação da escola. Ou, fundamental para aprendizagem. está envolvido
ainda, quando substitui um profissional A partir dos vários tipos e exemplos em um serviço
que está doente ou em capacitação. abordados, pode-se observar que há prestado por
Recentemente, Brandsen e Honingh casos de coprodução que são simples e meio da relação
(2015) desenvolveram uma tipologia exigem pouca formalização. Outros são direta entre a
baseada em dois critérios: i) envolvi- mais complexos e envolvem diferentes comunidade e o
mento dos cidadãos em aspectos cen- instrumentos legais e financeiros. Isso governo local?
trais ou em aspectos complementares exige flexibilidade e abertura dos go-
2. Se houver, de qual
do serviço; e ii) envolvimento dos cida- vernos e cidadãos para certo grau de
modelo ela mais se
dãos no design e na implementação do risco. Risco que sempre está presente
aproxima?
serviço, ou apenas na implementação. quando há experimentação e inovação.
Combinando esses dois critérios, Há também iniciativas pontuais, 3. Qual o papel
os autores chegaram a quatro tipos: sem continuidade, ainda que tenham dos usuários, da
alcançado bons resultados. Outras comunidade e
1. coprodução complementar na são mais duradouras, contínuas e vão das organizações
concepção e implementação do ser- sendo transformadas. E há setores em públicas e privadas
viço – envolvimento dos cidadãos em que a coprodução é inerente à nature- nesse processo?
atividades que são complementares za do serviço. Como em saúde e edu- 4. Busque um
para a prestação de um serviço por cação, nas quais o objetivo do serviço exemplo bem ou
uma organização, por exemplo, plane- só é alcançado com algum envolvi- malsucedido de
jar e plantar um jardim em uma escola; mento do usuário. Ou seja, a natureza coprodução de
do serviço envolve transformação de serviços públicos e
2. coprodução complementar na comportamentos. o observe a partir
implementação do serviço, como no Outro ponto importante é que só dos fundamentos
caso de um hospital, cidadãos colabo- cabe falar em coprodução se o envol- conceituais
ram com a limpeza, algo necessário e vimento dos usuários e da comunidade abordados no texto.
importante, mas que não é a atividade é voluntário. Se houver qualquer forma
principal do hospital; de coerção ou manipulação, ou se não

86 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


4.
Como participar
da coprodução dos
serviços públicos
em seu município?
O que esperar
e o que não esperar
da coprodução?
4.1 Participação em espaços
existentes e novas possibilidades
No Brasil, dos anos 1990 em diante, Sejam de forma espontânea ou
multiplicaram-se as experiências parti- institucionalizada, tradicional ou ino-
cipativas, impulsionadas pela promul- vadora, com maior ou menor abran-
gação da CF/1988. Institucionalizaram- gência, o processo de participação nos
se formas de participação social nos assuntos de interesse público, deman-
âmbitos municipal, estadual e fe- da valores como confiança mútua, so-
deral, como os Conselhos, Planos lidariedade e engajamento social.
Diretores, Orçamentos Participativos, Como um processo social amplo, a
Conferências etc. participação envolve diversos atores,
Esses instrumentos convivem assume formas variadas e múltiplas
com formas de participação mais iniciativas. Destacamos no Quadro 4,
tradicionais e outras mais inovado- a seguir, alguns âmbitos e práticas já
ras, mobilizadas em redes sociais. A consolidadas de participação cidadã
difusão da internet contribuiu para e outras que demonstram potencial,
mudanças nas formas de relação en- em diferentes áreas.
tre as pessoas e as organizações. Isso
conferiu uma nova dinâmica à ação
coletiva, produzindo novas estraté-
gias e arranjos participativos.

87
Quadro 4 – Âmbitos de participação no município
Iniciativa Ação Descrição

Orçamento Participativo Instrumentos governamentais de democracia participativa que permitem


Plano Plurianual, PPA que os cidadãos em geral e organizações da sociedade civil participem do
Planos Setoriais planejamento e monitoramento dos gastos públicos e das políticas públicas.
Planos de Desenvolvimento Não há uma metodologia única. Costumam ser utilizadas oficinas, assembleias
Planos de Metas e audiências públicas, até a simples indicação de sugestões pela internet.

Os conselhos municipais gestores de políticas públicas são instituições


participativas compostas por representantes da Prefeitura e da sociedade
Governamental civil organizada. Têm funções e limites definidos em regulamento próprio que
Conselhos Municipais
definem sua composição e caráter das decisões. Costumam realizar reuniões
periódicas e discussões, elaborar planos e monitorar sua execução e analisar
as contas públicos relativas à sua área.

Programas governamentais que têm como objetivo promover o desenvolvimento


territorial sustentável. As ações costumam envolver diferentes esferas do
Programas de
Governo (União, Estado e Municípios), organizações locais e a comunidade. A
desenvolvimento territorial
articulação é feita por um conselho territorial ou outra forma de governança que
define um plano de desenvolvimento local e uma agenda de ações.

Administração Indireta
do Estado: autarquias, Têm relativa autonomia de gestão em relação ao governo. A depender do setor
Organizações
fundações públicas, empresas em que atuam e do estilo de gestão, podem ser mais permeáveis a práticas
Públicas
públicas e sociedades de colaborativas e parcerias com usuários e comunidades.
economia mista

Podem ter diferentes


naturezas: individual,
Podem empreender ações de responsabilidade social, trabalho voluntário,
coletiva; com ou sem
Organizações filantrópico, oferta de serviços, campanhas e mobilização de setores sociais, a
fins lucrativos e assumir
Privadas depender da sua vocação específica. Algumas delas recebem subsídios diretos
diferentes formas: empresas,
ou indiretos dos governos ou outros financiadores.
ONGs, associações,
fundações, cooperativas etc.
Presente nas Instituições
Integra a formação acadêmica via processos interativos com agentes públicos,
Extensão de Ensino Superior públicas
privados e comunitários. Tem caráter multidimensional. Atua em forma de
Universitária e em algumas privadas,
ação, projeto ou programa e conta com recursos da própria IES e/ou concorre a
articuladas com o ensino e
editais internos e externos.
a pesquisa
São grupos mais ou menos informais, com laços de solidariedade e confiança
Grupos informais de
que se mobilizam em torno de demandas comuns. Utilizam recursos próprios
estudantes, de vizinhos, de
Comunitária e/ou estabelecem parcerias com atores e organizações públicas, privadas ou
amigos, de praticantes de
governamentais. Geralmente estão voltados para resolver problemas locais
um esporte etc.
comuns, cobrar ou induzir uma demanda.

Individual Algumas iniciativas partem de um único indivíduo que, de uma ideia inicial
O cidadão ativo voltada para o bem comum ou público, desencadeia um conjunto de ações e
mobiliza uma rede em torno da consecução do objetivo.

88 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


O Quadro 4 ilustra espaços de 4.2 O papel do Estado e do cidadão
participação nos quais a coprodução nos processos de coprodução
já existe ou pode ser fomentada. Para
além desses, podem surgir novidades, De acordo com Leo Kissler e Francisco política que afasta governantes e
a partir de variadas necessidades e Heidemann (2006, p. 483), quando a cidadãos. Os partidos políticos, mui-
oportunidades. Iniciativas nesse sen- administração pública deixa de ser fo- tas vezes, se digladiam pelo poder,
tido estão em contínua construção. cada no governo e privilegia a gover- dificultando a construção e a conti-
Experimentam-se diferentes arran- nança, o Estado se converte: nuidade de agendas políticas de in-
jos de governança e variados mix de teresse comum. E, às vezes, as exis-
a. de um Estado de serviço, pro-
recursos. Afinal, a coprodução é um tentes não são efetivas..
dutor do bem público, em um Estado
processo aberto e voltado à inovação. Porém, diferente de um passado
que serve de garantia à produção do
Cabe a governantes e cidadãos obser- não muito distante, hoje dispomos de
bem público;
var as potencialidades presentes em instrumentos pelos quais a popula-
cada contexto. b. de um Estado ativo, provedor ção pode participar mais diretamente
Por exemplo: em certo município, solitário do bem público, em um Estado dos assuntos públicos. A consolidação
existe uma associação de catadores ativador, que aciona e coordena outros dos sistemas de políticas públicas nos
de material reciclável. A Prefeitura atores a produzir com ele; anos de 1990 se afirmou pelo para-
regula o serviço e realiza a coleta; c.de um Estado dirigente ou ges- digma do engajamento popular. Os
moradores, condomínios e estabele- tor em um Estado cooperativo, que instrumentos e instituições participa-
cimentos comerciais não sabem o que produz o bem público em conjunto tivas criadas permanecem importan-
fazer com os seus resíduos. O sistema com outros atores. tes. No entanto, não respondem intei-
de coleta é precário. A Prefeitura é Nas experiências de coprodução, ramente aos desafios da atualidade
pressionada pelo Ministério Público e os servidores públicos são mais valo- discutidos no início do fascículo.
pela população a implantar a coleta rizados por sua capacidade de inter- A crise de representatividade
seletiva. É uma boa hora para reunir mediação, negociação e decisão na política e das estruturas de poder
esses atores. Havendo ação coletiva, ponta, em conjunto com os cidadãos. tradicionais, a burocracia e a cor-
poderão criar alternativas por meio O papel primordial do servidor público rupção nos desafiam a buscar no-
da coprodução do serviço público. é facilitar o exercício da cidadania por vas formas de organização socie-
Identificar essas potencialidades e seus concidadãos. tária. Paralelo a isso, há um reforço
iniciar um processo de articulação no Os cidadãos, por sua vez, são pro- ideológico da importância de incia-
qual todos saem ganhando pode par- tagonistas no exercício do poder po- tivas inovadoras (individuais ou co-
tir de qualquer um dos atores, indivi- lítico. São ativos para expressar suas letivas). Aguardar que as mudanças
duais ou coletivos. preferências, opinar, cobrar e monito- venham de cima para baixo não é
Em todo caso, vale lembrar que rar os governos. Podem, também, par- uma opção válida. Uma gestão pú-
sempre haverá custos financeiros, ticipar diretamente da provisão dos blica maleável aos novos arranjos
materiais e trabalho envolvidos para serviços públicos e contribuir para a participativos é o que nos coloca
entregar serviços de boa qualidade. qualidade da administração pública. mais próximo do ideal de uma so-
Embora esses recursos possam ser Podem adotar uma postura colabora- ciedade democrática.
mobilizados por diferentes atores e tiva, voltada à solução de problemas. A cidadania pode ser definida
ter origem fora do setor público, não Sem perder a capacidade de exigir como atributo de direitos e deveres
há como abrir mão inteiramente dos resposta ou de confrontar os agentes dos cidadãos pertencentes a uma na-
insumos públicos. Portanto, o Estado públicos, quando necessário. São, en- ção. Para além disso, a reflexão sobre
não está isento da sua obrigação de fim, corresponsáveis pela qualidade esse conceito permite ultrapassar o
garantir certos direitos. dos serviços, da administração públi- engajamento cívico. Implica que os ci-
ca e da democracia. dadãos utilizem sua capacidade críti-
No Brasil, de maneira geral, tal- ca e atuem diretamente nos assuntos
vez ainda prevaleça uma cultura de interesse público.

gestão social 89
O ideal-típico do cidadão ativo é potencial de promover transforma- todos os envolvidos – cidadãos, profis-
aquele que: ções. Por isso, é considerada perigosa sionais, comunidades e gestores.
a. Percebe a conexão entre a sua por apáticos, por aqueles que preferem • As ações de coprodução são
vida particular e as decisões de cará- manter status quo. Ou pelos que têm orientadas para o serviço e insistem
ter político mais amplo e é capaz de se muito a perder com os avanços do bem em relações de igualdade e recipro-
mobilizar em torno delas. comum e da justiça social. É perigosa cidade. Porém, no ajustamento mú-
também porque exige exposição do seu tuo entre servidores e cidadãos, a
b. Pratica a solidariedade e se
agente quando participa de forma di- interação não ocorre entre iguais. Os
preocupa com o próximo. Não lhe in-
reta, denuncia e cobra. servidores normalmente têm melho-
teressa conquistar direitos sozinhos.
res recursos e o ajuste necessário nem
Acredita que interesses públicos e pri-
sempre é possível.
vados não são inconciliáveis. O ganho
• O engajamento da administração
coletivo produz também um ganho in-
pública exige certas habilidades pro-
dividual e vice-versa.
4.3 Limites e obstáculos à fissionais dos servidores públicos. Algo
c.Conhece as instâncias participa- coprodução que exige investimentos, capacitação
tivas do seu município, procura parti- e vontade política das lideranças e dos
cipar e aprimorá-las. Embora se considerem os potenciais da próprios servidores que atuam na ponta.
d. Tem um senso ético, crítico e de coprodução, cabe relembrar que esta • Os saberes dos cidadãos e dos ser-
justiça. Não aceita assistencialismo, não constitui uma panaceia para resol- vidores públicos que atuam na ponta
nepotismo, clientelismo, corrupção e ver todos os problemas. Também não costumam ser ignorados pela burocra-
outros vícios da política. Atua para que cabe para qualquer tipo de serviço pú- cia. Alguns profissionais acreditam que
sejam mínimas ou não existam. blico. É uma estratégia que se combina e seu conhecimento e experiência são
e.É capaz de dedicar tempo e complementa outras formas de provisão mais importantes do que os do usuário.
outros recursos a causas sociais, polí- de serviços públicos, seja pelos gover- Muitos profissionais e gestores conti-
ticas, ambientais e humanitárias nas nos, seja por empresas e organizações nuam acreditando que especialização e
quais acredita. da sociedade civil. Os modelos de copro- autoridade são as melhores bases para
f. Sabe que algumas formas de dução podem ser testados, aprimorados governar e relutam em compartilhar
participação social são limitadas e de- e adaptados em cada contexto, utilizan- seu poder. Assim, pode haver resistência
turpadas; portanto, é capaz de discer- do variados instrumentos e processos. dos profissionais, que não confiam nos
nir onde, quando e como atuar. O que funciona em um lugar pode não usuários e na comunidade para lidar
funcionar em outro. Ainda, há barreiras com essa responsabilidade e não que-
g. Prefere estratégias colabora-
sistêmicas e culturais que não permitem rem compartilhar seu trabalho. Se não
tivas do que confrontativas na conse-
que a abordagem seja utilizada mais levados a sério, esses problemas podem
cução dos seus objetivos. Usa o diálogo
amplamente nos serviços públicos. levar o processo a resultados ruins na
como forma de resolução de conflitos,
Entre os limites, obstáculos e de- coprodução, com a piora da qualidade
sem perder a capacidade de confronto,
safios à coprodução, estão: do serviço, ao invés de melhorá-lo.
quando necessário.
• O financiamento das ações de co- • A administração pública é, muitas
h. Faz a conexão entre o respeito produção, que envolve recursos gover- vezes, incapaz de substituir sua ação
às diferenças identitárias e a universa- namentais, dos cidadãos e de organiza- de produtora do bem público por uma
lidade da condição humana, evitando ções parceiras. Isso exige mecanismos ação de agente responsável em coo-
reproduzir sectarismos e preconceitos. legais e de governança e prestação de peração com outros atores.
Características essas que não es- contas mais flexíveis do que os utilizados • Há, de fato, certas tarefas da ad-
tarão reunidas em um único indivíduo. na administração pública tradicional. ministração pública que são mais com-
Embora seja uma característica indivi- • Os recursos são necessários tanto plexas, com as quais os cidadãos podem
dual, a função da cidadania é coletiva. para planejar e executar os serviços como não ter habilidade ou recursos suficien-
Como tal, deve ser preservada, prote- para avaliar os resultados, verificando se tes para lidar. Além disso, os cidadãos,
gida e estimulada. A cidadania ativa é a coprodução gera ou não valor. O valor quando convidados a coproduzir, nem
uma construção cotidiana e tem o real gerado nem sempre é equilibrado para sempre sabem como fazer. Outras

90 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


vezes, simplesmente não querem fazer cidadãos pode levar à realização de são positivos, os cidadãos podem atri-
ou não se interessam em tentar. serviços não desejados, que implicam buir o sucesso a eles mesmos. Assim, a
• A tecnologia pode facilitar práticas custos adicionais e/ou retrabalho. coprodução, em lugar de aumentar a
de coprodução, mas é necessário avaliar • O desafio no balanço de poder en- confiança no serviço público, pode re-
o contexto, a situação da instituição e a tre participantes é sempre presente na duzi-la. Isso dependerá da qualidade
existência de cidadãos capazes de co- coprodução. Alguns têm mais privilé- das relações estabelecidas entre go-
produzir com uso da tecnologia. gios que outros, o que leva a uma repre- vernos e comunidades bem como dos
• A participação cidadã pode ser vis- sentação desigual, podendo distorcer mecanismos de prestação de contas e
ta pelos gestores públicos como com- as necessidades do serviço e vir a im- demonstração de resultados.
petição política. Ainda mais quando os pactar a habilidade dos cidadãos de ter • A polarização de ideias e convic-
cidadãos questionam a legitimidade voz ativa e influenciar as decisões. ções partidárias ou relacionada a te-
do Estado. Esse questionamento vem, • Nas comunidades heterogêneas, mas polêmicos pode gerar tensões e
muitas vezes, porque o Estado falha em quando há usuários múltiplos e visões conflitos que dificultam o entendimen-
responsabilizar-se por serviços públicos conflitantes, é mais difícil chegar a to mútuo necessário à coprodução.
básicos para o bem-estar da sociedade. serviços que respondam às diversas As iniciativas de coprodução as-
• O envolvimento dos cidadãos pode expectativas, inclusive porque as per- sentam-se sempre em contextos es-
ser estimulado, como vimos, apenas cepções de qualidade são diferentes. pecíficos e, quase sempre, desafiado-
para demonstrar a presença do Estado • Além dos conflitos resultantes de res. A percepção dos limites não tem
ou uma pretensa participação, como diferenças de valores, a falta de cla- a função de desestimular a sua práti-
estratégia manipulativa. Entretanto, reza quanto aos papéis e responsabi- ca. Ao contrário, torna os atores mais
a participação sem redistribuição de lidades pode enfraquecer as iniciati- conscientes da sua relevância e aju-
poder é um processo vazio e frustrante vas de coprodução. da a definir estratégias a fim de lidar
para os grupos desprovidos de poder. • Quando a coprodução leva a resul- com esses obstáculos. Enquanto prá-
• Quando o envolvimento das co- tados piores do que o esperado, a orga- tica inovadora, pode contribuir para a
munidades e usuários é superficial, a nização pública costuma ser considera- mudança nos processos institucionais
relação desconectada de governo e da a culpada. Já quando os resultados e na cultura política.

4.4 Como avaliar a coprodução?


Uma vez que se testam novas formas Quadro 5 – Benefícios potenciais do aumento da coprodução de
de realizar um serviço, é natural que
se queira saber se está sendo eficiente serviços públicos e comunitários para os diferentes envolvidos
e efetivo. Se a nova forma está adi- Melhores resultados e qualidade de vida.
cionando valor em relação às formas Para os
Serviços públicos de qualidade superior, mais realistas e sustentáveis,
tradicionais. Ou quais são seus efei- usuários
como resultado da experiência dos usuários e suas redes.
tos e impactos. Essa avaliação será
Para os Aumento do capital social e coesão social.
sempre legítima. Contribui para gerar
cidadãos Garantia sobre disponibilidade e qualidade dos serviços para o futuro.
conhecimento capaz de influenciar
novas práticas, reestruturar as exis- Para
Mais responsabilidade e satisfação por trabalhar
tentes e até abandonar as que não funcionários da
com usuários de serviços satisfeitos.
se mostrarem proveitosas. Mas o que linha de frente
considerar nessa avaliação? Para os
Reduzir as demandas dos serviços.
Um ponto de partida pode ser o principais
Tornar os serviços mais eficientes.
dos benefícios potenciais da coprodu- gerentes
ção. Bovaird e Loeffler (2013) apresen- Mais votos por meio de usuários de serviços mais satisfeitos. Menos
Para os políticos
tam um modelo sintético que sinaliza necessidade de financiamento público e, portanto, impostos mais baixos.
alguns desses possíveis benefícios, (BOVAIRD E LOEFFLER, 2013, P. 3-4). TRADUÇÃO LIVRE.
conforme o Quadro 5.

gestão social 91
Para os autores, a coprodução pode
gerar benefícios diferentes para atores
Questões
1. Quais os instrumentos disponíveis
Perfil dos
diferentes. O tipo de efeito também va-
ria – alguns são de caráter sociopolítico,
no seu município que favorecem a
coprodução de serviços públicos? Autores
outros de natureza econômica. Alguns 2. Como você, a partir do seu grupo
são mais tangíveis e diretos, outros são de vizinhos, de amigos, colegas de Paula Chies Schommer
intangíveis e indiretos. O quadro nos dá trabalho e diversas comunidades, É professora de Administração Pública
uma noção aproximada disso. pode participar da coprodução dos na Universidade do Estado de Santa
As análises dos efeitos não devem serviços públicos no seu município? Catarina, Udesc; líder do grupo de pes-
se restringir ao uso de métodos quan- quisa Politeia – Coprodução do Bem
3. Para além dos resultados diretos da
titativos. Olhar não apenas para os Público: Accountability e Gestão; pro-
coprodução dos serviços públicos,
resultados imediato dos serviços, tam- fessora colaboradora do Programa
quais seus efeitos potenciais no que
bém para o impacto que pode gerar a de Desenvolvimento e Gestão Social
diz respeito à cultura política?
curto, médio e longo prazos. Para tal, da Universidade Federal da Bahia; in-

Síntese do
cabe considerar diferentes variáveis. tegrante da Rede de Pesquisadores
A curto e médio prazos, pode-se em Gestão Social, RGS; membro do

Fascículo
avaliar: qualidade da oferta; economia Conselho Diretor da International
de recursos; satisfação dos usuários e Society for Third-Sector Research,
atores envolvidos; efetividade parti- ISTR; membro de conselhos, comitês e
cipativa etc. A longo prazo, podemos Vimos neste fascículo que são muitos e organizações da sociedade civil; dou-
perguntar se tem gerado aumento do complexos os desafios da atualidade. tora em administração pela Fundação
capital social, com impacto na mu- Se, por um lado, nos sentimos impoten- Getulio Vargas; mestre em adminis-
dança da cultura política. Ou, ainda, se tes e desanimados, por outro, vislum- tração pela Universidade Federal da
foi capaz de transformar as dinâmicas bramos alternativas. A tensão entre o Bahia; graduada em administração
institucionais nos setores envolvidos. ideal e o real é próprio da condição hu- pela Universidade de Caxias do Sul.
Os recortes para análise são di- mana. Está presente nas relações polí- Entre seus temas de pesquisa estão
versos. Podem incluir tanto aspectos ticas e sociais como um motivador de coprodução de bens e serviços públicos,
técnicos quanto contextuais e até da ações inovadoras e criativas. accountability, governança, gestão so-
subjetividade dos atores envolvidos. O A coprodução dos bens públicos cial e desenvolvimento socioterritorial.
importante é que a análise não se limite foi conceituada e classificada teorica-
a uma única dimensão de causa e efeito. mente. Foi abordada como prática de Augusto de Oliveira Tavares
A avaliação da coprodução tem gestão social capaz de contribuir para É Cientista Social pela UECE, mestre
muito a revelar sobre seu potencial lidarmos com os desafios da atualida- em Sociologia pela UFCA, doutoran-
transformador e seus limites. A percep- de. Tanto no planejamento e na entrega do em Desenvolvimento Sustentável
ção e a reflexão sobre suas práticas, em de serviços públicos qualificados quan- pelo CDS/UnB. Professor efetivo da
diferentes contextos, gera conhecimen- to no aperfeiçoamento da cidadania. UFCA, no curso de Administração
to para novas experiências e aprimora- As tipologias ajudaram a compreen- Pública. Coordenador da Incubadora
mento das existentes, e sua combina- der o papel do Estado, das organizações Tecnológica de Empreendimentos
ção com modos tradicionais de gestão públicas e privadas, das comunidades e Populares Solidários (ITEPS/UFCA) e
e provisão. As metodologias para tal dos cidadãos no aperfeiçoamento dos membro da diretoria da Associação
aproximam-se da área de avaliação de serviços públicos e da democracia. Os Nacional de Ensino e Pesquisa do
políticas públicas, medição de impac- exemplos permitiram refletir sobre os Campo de Públicas, ANEPCP. Tem expe-
tos e valor adicionado. Estas contam limites, as potencialidades e avaliar os riência no ensino de Sociologia e disci-
com modelos e instrumentos variados, benefícios da coprodução. plinas afins, e interesse principalmen-
em contínuo aperfeiçoamento, combi- Convidamos o leitor a tomar par- te nos seguintes temas: Participação
nando diversas áreas do conhecimen- te nesse processo. Identificar os meios Social, Políticas Públicas, Economia
to. Importante também que usuários, disponíveis e potencialidades em seu Solidária e Gestão Social.
comunidades e servidores públicos que município. Para, a partir do seu con-
atuam na ponta se envolvam na ava- texto local, contribuir com a produção
liação das iniciativas. dos serviços públicos.

92 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste


Textos Complementares
Texto complementar 1: definições de coprodução
Autor(es) Conceito

Parks; et al., 1981, p. 1002 Mix de esforços produtivos dos produtores regulares e de consumo.
Mix de atividades em que agentes e cidadãos contribuem para a provisão dos serviços
Brudney; England, 1983, p. 62 públicos. Envolve a participação das pessoas, sobretudo aquelas que são beneficiários diretas
do serviço, constituindo-se numa redefinição do padrão tradicional de entrega de serviços.
Levine, 1984, p. 181 A prestação conjunta de serviços públicos por órgãos públicos e consumidores de serviços.

Processo em que insumos utilizados para fornecer um bem ou serviço são entregues por
indivíduos que não estão na mesma organização.
Ostrom, 1996, p. 1073
Implica que os cidadãos desempenhem um papel ativo na produção de bens e serviços
públicos de consequência a eles.
O envolvimento de cidadãos, clientes, consumidores, voluntários e/ou organizações comunitárias
Alford, 1998, p. 128
na produção de serviços públicos, no seu consumo ou na obtenção de outros benefícios.
Prestação de serviços como um acordo e um processo, em que os cidadãos e o governo
Marschall, 2004, p. 232
compartilham uma “responsabilidade conjunta” para produzir os serviços públicos.
Brandsen; Pestoff, 2006, p. 496 Relação potencial que pode existir entre produtor regular e clientes.
Prestação de serviços por meio de relações regulares, a longo prazo, entre usuários de
Bovaird, 2007, p. 847
serviços e profissionais, de forma que ambos contribuam com recursos.
Coprodução significa entregar serviços públicos numa relação igual e recíproca entre
Boyle; Harris, 2009, p. 11
profissionais, usuários dos serviços, suas famílias e seus vizinhos.
Mix de atividades em que agentes de serviços públicos e cidadãos contribuem para a
Pestoff, 2009, p. 22
prestação de serviços públicos.
Coprodução é uma estratégia que permite a produção de bens e serviços públicos por
meio do compartilhamento de responsabilidades e poder entre agentes públicos, agentes
privados e cidadãos. Essa articulação se estabelece por meio da sinergia que ocorre na
Salm, 2014, p.42 realização dos serviços públicos compartilhados entre governo, comunidade e cidadãos
que, obrigatoriamente – assim como o aparato administrativo do Estado – interagem
para a produção dos bens e serviços públicos. Essa interação se efetua por meio de redes e
parcerias ou outros arranjos societários dos quais participa o cidadão.
Estratégia para a produção dos serviços públicos por meio do compartilhamento de
Salm; Menegasso, 2010, p. 3
responsabilidades e poder entre agentes públicos, privados e cidadãos.
Estratégia de produção de bens e serviços públicos em redes e parcerias, contando com o
Schommer; et al., 2011, p. 40 engajamento mútuo de governos e cidadãos, individualmente ou em torno de organizações
associativas ou econômicas.

continua>>

gestão social 93
continuação>>

Autor(es) Conceito
Sinergia entre cidadãos e governos, implicando parceria entre usuários e financiadores, ou
Pestoff, 2012, p. 1103 clientes e fornecedores profissionais de serviços públicos.
Produção entre pares em prol de um resultado compartilhado.
Verschuere; Brandsen; Pestoff, Envolvimento do cidadão na produção de serviços; os serviços não são simplesmente entregues
2012, p. 3 por profissionais ou agências públicas, mas são coproduzidos por usuários e comunidades.
[...] forma de produção do bem público que envolve a participação ativa do cidadão, o qual deve
De Mattia; Zapellini, 2014, p. 574 tomar parte nos processos de definição e geração desse bem conforme suas necessidades e
anseios, que podem assumir diferentes formas e configurações.
Relação entre um profissional remunerado de uma organização e (grupos de) cidadãos
Brandsen; Honingh, 2015, p. 431 individuais que requer uma contribuição direta e ativa desses cidadãos para a realização do
trabalho dessa organização.
FONTE: ADAPTADO DE AGE (2016, P.131-132).

Texto complementar 2: Indicação de fontes de consulta sobre coprodução


Para saber mais sobre o tema, recomendamos algumas fontes de consulta:

Governance International Textos, entrevistas, guias e descrição de casos


http://www.govint.org/ de coprodução em vários países e áreas temáticas
Blog do Grupo de Pesquisa Politeia: Coprodução
Textos, casos, eventos e chamadas de publicações
do Bem Público: Accountability e Gestão
relacionadas a coprodução e accountability
http://coproducaopublica.blogspot.com/
Casos, textos e reflexões sobre novas
New Economics Foundation – Nef – http://www.neweconomics.org/
práticas econômicas e comunitárias
Scottish Co-production networks - Vídeos, notícias e exemplos de práticas
http://www.coproductionscotland.org.uk/ e redes de coprodução na Escócia
Engaging Citizens: a game changer for development?
Curso online sobre engajamento cidadão
https://pt.coursera.org/course/engagecitizen
Casos para ensino, simulações e outros materiais
E-PARCC.org. https://www.maxwell.syr.edu/parcc_eparcc.aspx
sobre conflito e colaboração em rede. Maxwell School
Design de serviços públicos inovadores,
Instituto Tellus - http://www.tellus.org.br/
com o envolvimento do usuário

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Referências
Bibliográficas
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