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@ Rubem Alves Proreto orinco: Flavia da Silva Dutra ILUSTRACOES DE Cara E MdoLo: Flavia da Silva Dutra ‘Cama: Mauro ©, Naxara Revisio: Rita Lopes Edigies Loyola Rua 1822 n® 347 - Ipiranga (0216-000 Sao Paulo, SP Caixa Postal 42.335 — 04218-970 — Sao Paulo, SP @ an 6914-1922 @® an 1ea-4275 Home page © vendas: www loyola com. br Exitorial: loyola@loyola.com br ‘Vendas: vendas@loyola.com.br Todos os cbrttos reservados. Nenana parte desta obra pode ser reproducida ox transntide por quakgeer forma c/o quisquer meias (eletronico ou mecdnico, inctuindo fotocépia e gravagdo} on arguivada em qualquer sistema cu ‘bance de dados sem permissio escrite da Editor ISBN; 978-85-15-03315-7 © EDIGOES LOYOLA, Sio Paulo, Brasil, 2007 Sumario 9 © Introducdo 11 Redes e peixes 19) Amente é um estomago oe & (27 Jogos de palavras 35) oO cientsta fala (43° dogmas cy 51> Muitas linguagens 59) Sofrendmetro 67.) 0 prazer 75) Bibliogratia & Introdugdo VOCE JA PENSOU na semelhanca que ha entre os cientistas e os pescadores? O pescador est diante das aguas do rio. E ele sabe que nas funduras daquelas Aguas nadam peixes que no sao vistos. Mas ele quer pegar esses peixes. © que ¢ que ele faz! Ele tece redes, langa-as no rio € pesca os peixes. Se as malhas forem largas, peixes grandes, Se forem apertadas, vem também 10s peixes pequenos... © cientista esta diante do mar chamado “realidade”. Ele também quer pescar peixes. Prepara entdo suas redes chamadas “teorias”, langa-as no mar e pesca seus peixes. Note: com suas redes o pescador pesca peixes, Nao pesca o rio... Imagine que ele olha para as nuvens e deseja pescé-las, Para isso suas redes nlio chegam. © laboratério de um cientista sao as redes que ele lanca no mar da realidade para pescar conhecimento. Pianos sao instrumentos para produzir musica Eles sfo produzidos de forma cientifica, com a maior preciso. Pianistas no sabem construir pianos. Eles saber fazer 0 O ques cienitico? 3 piano produzir musica, Mas a musica, é ela produzida cien- tificamente, com o auxilio de teoria e métodos? Nao. Eo prazer de ouvir musica, pode ele ser conhecido com 0 auxilio das ferramentas que se usam para cons- . truir 0s pianos? Nao. , . Redes e peixes © prazer na musica é uma qualidade subjetiva que foge as medicdes que a ciéncia exige, Ento, a ciéncia é um instrumento necessdrio e competente para se con- hecer as coisas que podem cair nas suas redes. Mas ha O que esta em jogo ndo é a transmissao uma quantidade enorme de “coisas' que ndio podem ser daguilo que se inventa, mas antes conhecidas cientificamente.A ciéncia é uma ferramenta. y a transmissdio do poder de inventar. A ferramenta vale para executar a funcio para que foi construlda. Nao se pode serrar usando martelos e nem martelar usando serrotes. A ciéncia é uma ferramenta, maravilhosa ferramenta, para se conhecer uma pedaco da realidade, Mas apenas um pedaco. Tolo seria o pes- cador que, depois de pescar seu pexe, se contentasse com isso. Depois de pescar seu peixe o pescador pensa em fazer uma moqueca, Mas 0 prazer de comer uma moqueca com coentro € pimenta, sobre isso a ciéncia nada sabe... Gallleu nos ensinou que as redes da cién- 3 Juan David Nassio ia so feitas com a linguagem dos ntimeros, E assim que ela é precisa e eficaz, Mas fora da linguagem dos nmeros hd uma gama infinita de experiéncias que sé a, podem ser conhecidas através da linguagem da arte. Este livrinho € ura meditaco sobre o jeito que tem a ciéncia de conhecer 0 mundo, sem nos esquecer de que © rio muito maior que os peixes Ss COLEGA APOSENTADO com todas as credenciais e titu- laces. Fazia tempo que a gente no se via. Entrou em meu escritério sem bater e sem se anunciar: Nem disse bom-dia. Foi direto ao assunto: “Rubio, estou escrevendo um livro em que conto © que aprendi ern minha vida. Mas eles dizem que o que escrevo nao serve. Nao € cientifico. Rubio: o que é cientifico?", Havia um ar de indignagio e perplexidade naquela pergunta. Uma sabedoria de vida tinha de ser calada: nao era cientifica. As inquisigdes de hoje, ndo € mais a Igreja que as faz Nio sou filésofo. Eles sabem disso e nem me convi- dam para seus simpésios eruditos. Se me convidassem, eu nao iria, Faltam-me as caracteristicas essenciais. Nietzsche, bufio, fazendo cacoada, cita Stendhal sobre as caracterssticas do fildsofo: “Para se ser um bom fildsofo preciso ser seco, caro e sem iusdes. Um banqueiro que fez fortuna tem parte do caréter necessério para se fazer descobertas er flosofia, isto &, para ver com dareza dentro daguilo que é”. EH Oquescientiico? *. Nao sou fildsofo porque nao penso a partir de conceitos. Penso a partir de imagens, Meu pensamento se nutre do sensual. Preciso ver: Imagens sao brinquedos dos sentidos. Com imagens eu construo histérias, E foi assim que, no preciso momento em que meu colega formulou sua pergunta perplexa, chamada por aquela pergunta augusta, apareceram na minha cabeca imagens que me contam ura historiar Era uma vez uma aldeia as margens de um rio, rio imenso cujo lado de Id ndo se vie, as 4guas passavam sem parar ora mansas, ora furiosas, rio que fascinava e dava medo, muitos haviam morrido em suas Aguas misterio- sas,e por medo e fascinio os aldedes haviam construido altares a suas margens,neles 0 fogo estava sempre aceso, € ao redor deles se ouviam as cangdes e os poernas que artistas haviam composto sob © encantamento do rio sem fim, © rio era morada de muitos seres misteriosos Alguns repentinamente saltavam de suas 4guas, para logo depois mergulhar e desaparecer: Outros, deles 6 se viam os dorsos que se mostravam 2 superficie das Aguas. E havia as sombras que podiam ser vistas desli- zando das profundezas, sem nunca subir a superficie, Contava-se, nas conversas a roda do fogo, que havia monstros, dragGes, sereias e iaras naquelas aguas, e |guns suspeitavam mesmo que o rio fosse morada de deuses. E todos se perguntavam sobre os outros seres, nunca vistos, de nimero indefinido, de formas impensadas, de movimentos desconhecidos, que morariam nas profun- dezas escuras do rio. Mas tudo eram suposicdes. Os moradores da aldeia viam de longe e suspeitavam — mas nunca haviam con- seguido capturar uma Gnica criatura das que habitavarn © rio: todas as suas magias, encantaces, filosofias e religiSes haviam sido indteis: haviam produzido muitos livros mas nao haviam conseguido capturar nenhura das criaturas do rio. Assim foi, por geracbes sem conta, Até que um dos aldedes pensou um objeto jamais pensado. (O pensamento & uma coisa existindo na imaginacio antes de ela se tornar real. A mente é titero. A imaginacao a fecunda, Forma-se um feto: pensamento. Af ele nasce...) Ele imaginou um objeto para pegar as criaturas do rio. Pensou e fez. Objeto estranho: uma porgao de buracos amarrados por barbantes. Os buracos eram para deixar passar 0 que ndo se desejava pegar:a agua. Os barbantes eram necessérios para se pegar 0 que se desejava pegar: 05 peixes, Ele teceu uma rede. Todos se riram quando ele caminhou na direcéo do rio com arede que tecera, Riram-se dos buracos dela. Ele nem ligou, Armou a rede como péde e foi dormir. No dia seguinte, ao puxar a rede, viu que nela se encontrava, pre- sa, enroscada, uma criatura do rio: um peixe dourado. Foi aquele alvoroso. Uns ficaram com raiva, Tinham tentado pegar as criaturas do rio com formulas sagradas, sem sucesso, Disseram que a rede era objeto de feiticaria a soneda sepey Oqueé cientico? z Quando © homem hes mostrou © peixe dourado que sua rede apanhara,eles fecharam os olhos ¢ oameagaram com a fogueira. Outros ficaram alegres e trataram de aprender a arte de fazer redes. Os tipos mais variados de redes foram inventados. Redondas, compridas, de malhas grandes, de malhas pequenas, umas para ser lancadas, outras para ficar 8 espera, outras para ser arrastadas, Cada rede pe- gava um tipo diferente de peixe. Os pescadores-fabricantes de redes ficaram muito importantes, porque os peixes que eles pescavam tinham poderes maravilhosos para diminuir 0 sofrimento e au- mentar o prazer Havia peixes que se prestavam para ser comidos, para curar doencas, para tirar a dor, para fazer oar para fertilizar os campos e até mesmo para matar Sua arte de pescar hes deu grande poder e prestigio, ¢ eles passaram a ser muito respeitados e invejados. Os pescadores-fabricantes de redes se organizaram numa confraria. Para pertencer a confraria, era necessdrio que 0 postulante soubesse tecer redes e que apresentas- se, como prova de sua competéncia, um peixe pescado com as redes que ele mesmo tecera. Mas uma coisa estranha aconteceu. De tanto tecer redes, pescar peixes e falar sobre redes e peixes,os mem- bros da confraria acabaram por esquecer a. linguagem que os habitantes da aldeia haviar falado sempre e ainda falavam.Puseram,em seu lugar, uma linguagemn apropria~ da a suas redes e a seus peixes, que tinha de ser falada por todos os seus membros, sob pena de expullo. A nova linguagem recebeu o nome de ictiolalés (do grego ichthys = ‘peixe’ + latia = fala’), Mas, como bem disse Wittgenstein alguns séculos depois,os limites da minha linguagem denotarn os limites do meu mundo’. Meu mundo & aquilo sobre o que posso falar-A linguagem estabelece uma ontologia, Os membros da confraria, por fora de seus habitos de linguager, passaram a pensar que sé era real aquilo sobre que eles sabiam falar; isto é, aquilo que era pescado com redes e falado em ictiolalés, Qualquer coisa que no fosse peixe, que no fosse apanhado com suas redes, que ndo pudesse ser falado em ictiolalés, eles recusavam e diziam: ‘Nao é real’. Quando as pessoas Ihes falavam de nuvens, eles diziann: Com que rede esse peixe foi pescado!" pessoa respondia 'N&o foi pescado, no 6 peixe'. Eles punham logo fim a conversa:'Nao € real. mesmo acontecia se as pessoas |hes falavam de cores, cheiros, sentimentos, miisica, poesia, amor, felicidade. Essas coisas,ndo hd redes de barbante que as peguem.A fala era rejeitada com 0 julgamento final: ‘Se no foi pescado no rio com rede aprovada, nao é real’ ‘As redes usadas pelos membros da confraria eram boas? Muito boas, Os peixes pescados pelos membros da confraria eram bons? Muito bons. As redes usadas pelos membros da confraria se pres- tavam para pescar tudo © que existia no mundo? Ngo. a ssexred 0 sopey CO queé cientifico? a Ha muita coisa no mundo, muita coisa mesmo, que as redes dos membros da confraria no conseguem pegar So criaturas mais leves,que exigem redes de outro tipo, mais suis, mais delicadas. E,no entanto, sto absolutamen- te reais. Sé que nfo nadam no rio, Meu colega aposentada, com todas as credenciais € titulacdes, mostrou para os colegas um sabid que ele mesmo eriara Fez 0 sabi cantar para eles,e eles disseram: “Na® fol pego com as redes regulamentares; nao é real nfo sabemos o que é um sabié;ndo sabemos 0 que €0 canto de um sabia.” Sua pergunta esté respondida, meu amigo: 0 que é cientfico? Resposta: é aquilo que caiu nas redes reconhecidas pela confraria dos cientistas, Cientistas so aqueles que pescam no grande rio. Mas hd também os céus € as matas que se enchem de cantos de sabiés... Ld as redes dos cientistas ficam sempre varias A mente é um estémago Nada é mais importante que ver as fontes da invengdo que sdo, na minha opinido, mais importantes que as proprias invencoes. Leibniz “NAO HA DUVIDA de que a meméria & 0 estémago dla mente. Da mesma forma como o alimento & trazido & boca pela ruminagao, assim as coisas sao trozidas da meméria pela lembranga." Agostinho, autor dessa afir macao (capttulo 14 do livro 10 das Confissdes)', percebeu com clareza as relacdes de analogia existentes entre 0 ato de pensar e 0 ato de comer: Nietzsche se deu conta da mesma analogia e afirmou que'“a mente é um estémago”. Quem entende como funciona o estémago entende como funciona a cabeca. Analogia é um dos mais importantes artificios do pensamento. Octavio Paz, em seu livro Los hifos de! limo?, afirma que “o analogia torna 0 mundo habitdvel". Ela “é © reino da palavra ‘como’, essa ponte verbal que, sem su- primi-tas, reconclla os diferencas e oposicées”. A analogia nos permite caminhar do conhecido para o desconhe- |, Agostinho de Hipona, Confissdes, Petrépolis, Vozes, s.d, 2, Octavio Paz, Los hijos del limo, Madrid, Planeta, 1995, ° BS Oques cenifico? ab cido, E assim: eu conhego A mas nada sel sobre B. Sei, entretanto, que B é andlogo a A. Assim, posso concluir; logicamente, que B é parecido com A. Aanalogia entre 0 estémago e a mente nos permite saltar daquilo que sabemos sobre o estOmago para 0 que no sabemos acerca da mente. £, em grande medida, gracas as analogias que 0 conhecimento avanga € que © ensino acontece, Quando a ciéncia usa as palawas “onda” e “particula”, esté se valendo de analogias tiradas do mundo visivel para dizer o universo naquilo que ele ‘tem de invisfvel. Um bom professor tem de ser um mes- tre de analogias, Uma boa analogia é um flash de luz. O estémago & érgio processador de alimentos. Os alimentos so objetos exteriores, estranhos ao corpo. Ele os transforma em objets interiores,semelhantes 20 corpo. E isso que torna posstvel a assimilacd "Assimilar”” significa, precisamente, tornar semelhante (de assimilare, “ad" + “similis") ‘A mente & um processador de informacdes. Infor- maces sio objetos exteriores, estranhas 4 mente. A mente os transforma em objetos interiores, isto 6 pen sdveis, Pelo pensamento, as informacses s4o assimiladas, tornam-se da mesma substancia da mente, © pensamen- to estranho se torna pensamento compreendido. Entre todos os est@magos, os humanos so os mais extraordindrios, dada sua versatiidade. Eles tém uma capa- cidade inigualivel para digerir os mais diferentes tipos de comida:leite, café, pio, manteiga,nabo, cenoura, jis, man- ° dioca,alface, repolho, ovo, trigo, milho, banana, coco, pequi, azeite, carne, pimenta, vinho, ufsque, coca-cola etc. Por vezes, essa versatllidade do estémago é subme- tida a restrig6es. Alguns, por doenga, deixam de comer torresmo e comidas gordurosas. Outros, por pobreza, acostumam-se a uma dieta de batatas, como na famosa tela de Van Gogh. Outros, ainda, por religido, adotam um cardépio vegetariano. Hé estmagos que sé conseguem digerir um tipo de comida. E 0 caso dos tigres. Seus est6magos s6 digerem carne, Eles s6 reconhecem came como alimento.Se,num zoolégico, o tratador dos tigres, vegetariano convicto, ‘tentar converter os tigres a suas conviccées alimentares, submetendo-os a uma dieta de nabos e cenouras, € certo que os tigres morrerdo. Diante dos legumes os tigres dirdo:"Isso nao € comida!" Os estémagos das vacas sé digerem capim, com resultados magnificos para os seres humanos. E dificil pensar a vida humana sem a presenga dos produtos que resultam dos processamentos digestivos dos estmagos das vacas sobre © capim. Sem as vacas, nfo terlamos Ieite, café com leite, mingau, queijos (quantos!), fle & parmegiana, morango com leite candensado, sorvetes de variados tipos, eremes, pudins, sabonetes. Os estmagos das vacas, com sua modesta dieta de capim, sao dignos dos maiores elogios. ‘A mente é um estémago. HA muitos tipos de mente- estOmago. Alguns se parecem com os estémagos huma- oO x 8 > 3 3 5 a E Oqueé cientica? % & nos € processam os mais variados tipos de informacdes. Leonardo da Vinci é um exemplo extraordindrio desse estmago omnivoro, capaz de digerir poesia, musica, ar quitetura, urbanismo, pintura, engenharia, ciéncia, cripto- graf flosofia. Outros estémagos se especializaram e 36 so capazes de digerir um tipo de alimento. © que vou dizer agora, digo-o com © maior respeito, sem nenhuma intengao inénica. Estou apenas me valendo cde uma analogia:é assim que meu pensamento funclona,As possiveis queixas, que sejam feltas a Deus Todo-Paderoso, pois foi ele, cu forca andloga, que me deu o processador de pensamentos que tenho. A ciéncia € um de nossos estmagos possiveis, Ndo € nosso estémago original. E um estémago produzido historicamente, por meio de uma disciplina alimentar Unica. E eu sugiro que 0 estémago da igncia 6 andlogo a0 estémago das vacas. Os estémagos das vacas $6 reconhecem capim como alimento.Se eu oferecer .uma vaca um bife suculento, ela me olhard indiferente. Seu olhar bovino me estaré dizendo "Isso nao € comida’, Para o estémago das vacas comida é sé capim, A ciéncia, 4 semelhanga das vacas, tem um estémago especializado que sé capaz de digerir um tipo de comi- da.Se eu oferecer a ciéncia uma comida ndo-apropriada, ela a recusard € diré&:"Nao & comida’. Ou, na linguagem que Ihe é prépria:isso nao € cientifico”. Que 6 a mesma coisa. Quando se diz:"'Isso nao € cientffico”, estd-se di- zendo que aquela comida nao pode ser digerida pelo estémago da ciéncia Quando a vaca, diante do suculento bife, declara de forma definitiva que aquilo nao comida, ela esté em erro, Falta, a sua afirmacdo, senso critico. Sua resposta, para ser verdadeita, deveria ser: “Isso no é comida para © meu estdmago". Sim, porque para muitos outros esté- magos aquilo é comida. Assim, quando a ciéncia diz “isso no € cientifico”, & preciso ter em mente que, para muitos outros estdmagos, aquilo é comida, comida boa, gostosa, que dé vida, que dé sabedoria, Acontece que existe uma inclinagéo natural da mente em acreditar que sé é real aquilo que é real para ela (o que é, cientificamente, uma estupidez) — de modo que, quando normalmente se diz “'sso nfo é clentfico”, se esté a afirmar, implicitamente, que aquilo no é comida para estémago algum. \Y4o me perguntar sobre as razes por que escolhi © estémago da vaca € nao do tigre como andlogo ao da ciéncia. © tigre parece ser mais nobre, mais inteli- gente. Esso escolheu 0 tigre como seu simbolo; jamais escolheria a vaca. Ao que me consta, existe uma Unica instituigo de saber superior cujo nome esta ligado a vaca: a universidade de Oxford. "Ox", como & bem sabido, é a palavra inglesa para vaca, Eu teria sido mais prudente, escolhendo a analogia do tigre, e nfo a da vaca, visto que ambos os estémagos conhecem apenas um tipo de comida. Mas hd uma diferenca. Nao hé nada que facamos com os produtos dos estémagos dos tigres, Mas daquilo que o estémago da vaca produz, os homens fazem uma série maravilhosa de produtos que » a > z § $ O queé cientfica? © & contribuem para a vida e a cultura, J imaginaram © que seria da culindria se nao houvesse as vacas? Assim o estémago da ciéncia, com seus produtos infinitos, in- contéveis, maravilhosos — se nfo fosse por eles eu jd estaria morto —, mais se assemelha ao estémago das yacas que ao dos tigres. Resta-nos revelar a comida que 0 estémago da cién- cia & capaz de digerir:Vou logo adiantando: se nao for dito em linguagem matemtica a ciéncia diz logo:"Nao & cientifico”... Concluo que isso que estou ouvindo agora, a “Rhapsody in Blue", de Gershwin, que me d& tanto prazer, que me torna mais leve, que espanta a tristeza, coisa real pelos seus efeitos sobre meu corpo e minha alma, sso nao € coisa que 0 estémago da ciéncia seja capaz de processar: Nao € cientifico. O cd-player © estémago da ciéncia o digere faci, Mas 2 milsica a faz voritar Jogos de palavras A ciéncia pode classificar e nomear os érgdos de um sabia, mas ndo pode medir seus encantos. A ciéncia nao pode calcular quanios cavalos de forga existem nos en- cantos de um sabid. Quem acumula muita informagao perde 0 condao de adivinhar: divinare. Os sabids divinam Manoel de Barros QUERO SEDUZIR VOCE a jogar um jogo de palavras chamado filosofia. Vocé no se interessa. por filosofta, nunca estudou filosofia, nada sabe sobre os filésofos. Filosofia, coisa chata € complicada, Compreendo. Mas suas alegacSes simplesmente significam que vocé no ‘tem condiges para ser um professor de filosofia. Pro- fessores de filosofia tém de dominar uma tradicao. Mas note: o homem que inventou o alfabeto era analfabeto. © primeiro fildsofo que comesou a filosofar nao tinha atrés de si uma bibliografia flosdfica, Excesso de informacées perturba o pensamento. “Quem acumula muita informagdo perde 0 condo de adivinhar: divinare. 5 sabids divinam”, assim dizia Manoel de Barros, (E poe- ‘ta-crianga, Crianga brinca com brinquedos; poeta brinca com palavras. Essa afirmagao do poeta no € cientifica Nio foi produzida por um método. Ela é magica. Quebra feitigos. Faz voar idéias plantadas) Freqiientemente os professores de filosofa pensam tanto © pensamento de ‘outros que acabam por no ter pensamentos prdpries. ot c 8 omec cient Comecemos, entio, por compreender que o filosofar nfo & conhecimento de uma tradi¢ao de pensamento. © filosofar é um jeito de fazer dangar as idéias. Mudo minha pengunta inicial:"Vamos dancar?” Muitas so as dancas:minueto, marcha, lambada, bole- ro,samba, tango.... As dangas, todas elas, sé parecem com 10 jogos. Futebol, nis, frescobol, voleibol, xadrez, dama, buraco, mau-mau, poquer, truco: todos so jogos. jogos +tam regras fixas e precisas. No jogo existe uma'“danca” entre @ liberdade e a regra fixa. A beleza do futebol estd precisamente risto: a brincadeira da liberdade do jogador dentro de um quadro de regras fixas. Um jogo. como a danga, depende de duas coisas precisamente definidas. As “entidades” do xadrez sfio as pecas: pedo, dama, bispo... As regras so os movimentos possiveis das pecas. As entidades da valsa 80 um homem, uma mulher, um ritmo. Os movimen- tos do homem e da mulher sao definides. Eles devem formar um par: dangar quase abragados. E o par que deve se mover segundo o ritmo da valsa. As marchas nao exigem pares. Cada urn pode dangar sozinho, como 1nos bailes de carnaval. Mas 0 corpo deve se mover num ritmo bindrio. J4 a danga flamenca € outra coisa. Pode ser dangada por uma tinica dangarina ou por um par — sendo que homem e mulher nao ficam abracados e executam evolugées por conta prépria. Sem que disso nos apercebamos, a0 falar estamos fazendo jogos de palavras. Numa outra crénica, muito antiga, descrevi dois jogos constantemente jogados por casais: 0 ténis e © frescobol. © objetive do jogo de palavras “ténis" € tirar 0 outro da jogada. Fim répido. Bjaculagdo precoce. © objetivo do jogo de palavras “frescobol” é manter 0 outro na jogada. Fim adiado. Vaivém prolongado, © bom n&o é a chegada; é a travessia. Hd uma infinidade de jogos, todos eles com regras precisas e fixas. A piada & um jogo cujo objetivo € produzir o ris. Sua estrutura é fixa, Consta de um discurso que eria uma expectativa, um suspense, repentinamente interrompido por uma rasteira seguida de um fim inesperado, Nesse momento acontece 6 rise. lamentagao € outro jogo. Consta de um relato de sofrimentos por que a pessoa passou, cujo objetivo € provocar sentimentos de admi- ragdo em quem ouve o relato. Mas isso nunca acontece porque a outra pessoa, ao término do relato da primeira, diz sempre:"*Mas isso ndo é nada!" — comegando a se- guir 0 relato de seus préprios sofrimentos. Contou-me uma paciente que, em certa regio do Brasil, esse 0 jogo predileto das mulheres pobres, cujo objetivo é ter a gloria de ser aquela que “mais sofreu". Ha uma infinidade de jogos de palavras: a poesia, a seduco, as brigas de casais, os discursos dos politicos, a reza, a psicandlise, os comerciais, a aula (Sim! a aulal). Os professores deveriam parar para pensar no jogo que esto obrigando seus alunos a jogar! Uma das caracte- risticas desse jogo € que o aluno é obrigado a aceitar as S GL nansene: Toy © que é cientfica e 8 g “entidades’ com que deve jogar (disciplinas e curriculos) eas “regras” do jogo que a escola impde. Com alguma freqiiéncia, o professor no quer jogar 0 jogo que a diregdo da escola € as burocracias governamentais Ihe impdem: mas é obrigado a jogar, sob pena de perder o emprego. Nessa situacio s6 Ihe resta um recurso:a burla. Aburla é uma importante possibilidade presente numa grande quantidade de jogos. Futebol, por exemplo, estd cheio de burlas. J4 no vélei as burlas sao praticamente imposs(veis, Nao hé formas de burlar no xadrez, mas a graca do truco é, precisamente, a burla. As aulas de portugues so Um jogo cujo objetivo € ensinar os alunos a jogar jogo da linguagem de acordo com as regras oficiais: usar as palavras certas e a gramatica certa. Nas aulas de portugués, ensina-se 0 jogo da linguagem sem burlas, como se ele fosse idéntico ao jogo do xadrez, Mas a linguagem se parece mais com o truco. poesia e a literatura sdo a arte de burlar as regras da linguagem. Para qué? E sé perguntar a um filésofo zen que ele vai dar a resposta... Filosofia & um jogo de linguagem, um jeito de usar as palavras. Na filosofia, a gente usa as palavras para entender as palavras. Wittgenstein definiu esse jogo de palavras chamado filosofia como “uma batatha contra © feitico do nossa inteligencia por meio da linguagem”’ Freqlientemente as pessoas ficam emburrecidas em decorréncia das palavras que fica grudadas em sua inteligéncia.Tenho notado, por exemplo, que a palavra “Deus” (vejam:eu disse “a palavra" — nao disse “Deus Deus est além das palavras) é uma das palavras que mais se agarram a intelig€ncia, fazendo com que as pessoas parem de pensar: Quem fica enfeiticado, 6 bem sabido, entra em transe,, comega a dangar e no para. Dizern que a madrasta da Branca de Neve dancou até morrer E facil identifi- car a pessoa cuja inteligéncia estd enfeiticada por uma palavra: ela s6 sabe dangar uma danga sé. E quem sé sabe jogar um jogo de linguagem fica burro. E chato, Porque a inteligéncia acontece precisamente nos saltos entre dancas diferentes. E preciso notar que o que enfeitica é sempre uma coisa “fascinante”."Fascinio” — do latim fascinatio quer dizer“encantamento magico", “feiti¢o". O simbolo mégi- co do objeto fascinante: a maga — coisa linda, deliciosa, desejavel —, lugar do conhecimento. A ciéncia & coisa linda, deliciosa, desejével, lugar do conhecimento, eu n&o poderia viver sem ela. Mas, como a maga, ela tem um poder enfeitigante. A medida que da conhecimento de um lado, ela retira conhecimento do outro, Volto a Manoel de Barros: "A ciéncia pode Classificar e nomear os érgdos de um sabié, mas nao pode medir seus encantos”. Dai o poder enfeiticante — paralisante — da formula isso no € cientifico”, Meu amigo, aquele que invadit meu escritério, viu paralisado o canto de seu sabid, quando essa férmula Ihe foi pronunciada pelos feiticeiros, © int ior TD umwcasnir da cidncia. Veio em busca de socorro, Queria palavras — para quebrar © feitco O cientista fala E 0 que comecei a fazer e irei fazendo, porque amo muito a cléncia. Quero que os pescadores continue a pescar e @ preparar os pelxes deliciosos que eles pes- cam no ro da realidade. Mas quero que os pescadores sejam capazes também de ouvir o canto do sabié que nenhuma rede pode pegar: Por vezes, o canto do sabié € mais importante que um peixe que se pesca. Ou, para quem nao entende: por vezes um poema, uma os sonata, um quadro sfio mais importantes para a vida € aalegria que artefatos de saber e tecnologia. Precisamos dos dois: do conhecimento ¢ da beleza, Mas a beleza nao € cientifica Apalavra grega que designa o “sabio” se prende, efimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, 0 degustador, sisyphos, 0 homem de gosto mais apurado; um apurado degustar e alstinguir, um significative dis- cernimenio, constitui, pois, |...) a arte peculiar “3 do filésofo. {..) A ciéncia, sem essa selecdo, sem esse refinamento de gosto, precipita-se sobre tudo 0 que é possivel saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preco, enquanto 0 pensar filoséfico esid sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas. e 8 & 3 Nietzsche 2 gs UM COZINHEIRO COZINHA. Um jardineiro cuida do jardim. Um barbeiro corta cabelo e barba. Um motorista guia carros, Um cientista, o que é que ele faz? A palavra “cientista” é um bolso enorme. Arca de Noé. Lé dentro se encontram os tipos mais variados: astrénomos, geneticistas, clonadores de ovelhas, fisicos quanticos, meteorologistas, quimicos especialistas em aromas, anestesistas, cacadores de virus... A lista néio tem fim, Olhando para aquilo que esto fazendo, eles parecem pessoas que nada tém a ver umas com as ‘outras. No entanto, um Unico nome é usade para to- dos, “cientista”, 0 que quer dizer que, no funds, eles esto jogando 0 mesmo jogo. Qual € © jogo que um cientista joga? “Um cientista, sejo um teérico sefa um experimentador, propde declaragBes, ou sistemas de declaragées, eas testa passo a passo.” E assim que Karl Popper define o que um cientista faz. Popper é, provavelmente, o mais famoso fildsofo da ciéncia de nosso século, Um filésofo da ciéncia B_ oqueecientticor & alguém que tenta entender o que um cientista faz Freqiientemente a gente faz coisas, e as faz bem, mas as faz de maneira tio natural e automiitica que nem se dA conta de como elas so feitas.Tal como aconteceu com aquela centopéia, .. Encontrou-se, um dia, com um. gafanhoto que lhe disse: "D. Centopéia, a senhara é urn cassombro, tantas pernas, todas andanclo ae mesmo tempo, nunca tropecam, nunca se embaralham... D. Centopéi, por favor me diga: quando a senhora voi andar, qual € a primeita pema que a senhora mexe?” A Centopéia se assustou, Nunca havia pensado nisso, Sempre andara sem precisar pensar. “Nao sei senhor Gafonhoto, Mas pprometo da préxima vez que eu anday, prestarei atengéio" Termina ahistéria dizendo que desde esse dia a Centopéia ficou paralitica... Isso € verdadeiro para todos nés. Veja, por exemplo, a fala — n&o € centopéia, € miridpode: mi- Ihares de regras, complicadissimas. $6 que, 20 falar, nfo temos consciéncia dessas regras. Ndo penso nas regras da gramética agora, que estou escrevendo, Escrevo da mesma forma como a Centopéia andava. Os gramaticos tentam entender as regras da fala. © filésofo da ciéncia se parece com o gramatico: ele tenta entender as regras esse jogo linglistico que o cientista joga Contar piada & um jogo de linguagern. Seu objetivo & produzir 0 riso. A gente ri por causa das palavras. Ninguém, ao ouvir uma piada, pergunta se ela € ver dadeira. Piada é jogo do riso, nao € jogo da verdade. ‘A “coisa da piada, © humor, se encontra nas préprias palavras, e no na vida real, fora delas. O sargento berra: “Ordindrio, marche!” Ninguém discute. Os pracinhas se pdem a marcha: Ninguém ri. As palavras do sargento no so piada;s0 uma ordem, Ninguém pengunta se elas enunciam a verdade, Uma ordem nao é para enunciar uma verdade; € um jogo de palavras cujo objetivo produzir cbediéncia.E 0 jogo de palavras que o cientista joga? Qual seu objetivo? As palavras do cientista +8m por objetivo enunciar a verdade, Como num espelho: a imagem, dentro do espelho, nao é realé virtual. Mas,olhando para o espelho retrovisor de meu carro, vejo 0 carro que vai me ultra- passar: A imagem virtual corresponde a uma coisa real. Acredito na imagem. Se nao acreditar, poderei provocar um desastre, Assim sao as palavras do jogo que a ciéncia joga: elas buscam ser imagens figis da realidade: ‘A déncia nasceu da desconfianga dos sentidos. Ela acredita que a realidade € como urna mulher pudica, acre- dita que aquilo que a gente vé nao é a verdade. Ela fica envergonhada quando € vista por meio dos sentidos Esconde-se deles. Dissimula, Engana, A realidade, para ser vista em sua maravilhosa nudez, s6 pode ser vista — pasmem! — com 0 auxiio de palavras. As palavras sao 08 olhos da ciéncia. “Teorias” e “hipdteses”: esses sto os romes que esses olhos comumente recebern, Na verdade, todas as teorias no passam de hipsteses. Uma teoria & uma hipétese que ainda nao foi desbancada, A ciéncia, assim, pode ser descrita como um strip-tease da realidade 2 Ss jo, :s4U9B 0 Oqueé cientfico? S 8 por meio de palavras. Eo que & que a gente vé, 26 final do strip-tease? A gente vé uma linguagem... Quem percebeu isso em primeiro lugar foram os fildsofos gregos, que diziam que Id no fundo de todas as coisas sensiveis se encontra algo que pode ser visto apenas com os olhos da razio. A essa "coisa'" eles derarn o nome de “Logos”, que quer dizer “palavra”. Essa é a razo por que Popper definiu o cientista como alguém que “propie declaracGes ou sistemas de decloragées”. Um cientista brinca com palavras, Mas no qualquer palavra. Muitas palavras so proibidas. Quais sio as palavras que so permitidas! Galileu responde: "0 livro da filosofia € 0 wro da na- tureza, livo que aparece aberto constontemente diante dos nossos olhos, mas que poucos sabem deciffar € ler, porque efe estd escrito com sinais que diferem daquetes do ‘nosso alfabeto, © que sao tridngulos € quadrados, circulos e esferas, cones e pirdmides”. Com isso voltamos aquela aldeia de pescadores que aprenderam a pescar os peixes que nadavam no rio da realidade.... Aprenderam que peixes se pescamn com redes. Contei essa pardbola como analogia para © que fazem os cientistas, pois eles também sitio pescadores que pescam ro rio da realidade. Também eles usam redes para pescar ‘As redes dos cientistas sao feitas com palavras. Sorente palavras que possam ser amarradas com nés de ntimeros, Os peixes que caem nas malhas da ciéncia sio entidades matemdticas — do jeito mesmo como Galieu o disse. Um tolo poderia dizer:“*Que pena que se tenha de usar redes! Nas redes os buracos sio muito maiores que as malhas! A rede deixa passar muito mais do que segural Seria melhor se, em vez de redes, usdssernos lonas de pléstico que nao deixam passar nada. Assim, pegariamos tudo!” Palavras de um tolo, Uma lona de plistico, por pretender pegar tudo, ndo pegaria nada. A rede 36 pega peixes porque seus buracos deixam passar: As redes da ciéncia debxam passar muito mais do que seguram.As coisas que as redes da ciéncia néo conseguem segurar so as coisas que a ciéncia nfo pode dizer. As coisas que “ndo so clentificas”, sobre as quais ela tem de se calar: Estou ouvindo “Eu no existo sem voce", de Tom Jobim. $6 posso ouvi-la por causa da ciéncia. Foi a ciéncia que, com teorias e medic6es, construiu meu computador: Foi ela que, com teorias e medigées, produziu 0 cd, traduzindo a musica em entidades eletrénicas definidas, Mas um engenheiro surdo poderia ter feito isso. Porque as redes da ciéncia nao pegam musica. Pegam entidades eletrénicas quantificaveis. Assim, um cientista que fosse também um fildsofo, ao declarar "Isso nao € cientffico”, estaria simplesmente confessando: "Isso, as redes da ciéncia niéo conseguem pegar Elas deixar pasar Seria necessario outra rede Volto a Manoel de Barros: “A céncia pode classificar fe nomear os érgdos de um sabid, mas nao pode medir seus encantos”. Qutra rede: meu corpo é a outra rede, si yO} Oia O © que é cienicc? 8 feita de coracao, sangue e emosao. Deixa passar 0 que a ciéncia segura. E segura 0 que a ciéncia deixa pasar, N3o mede os encantos do sabié, Mas fica triste a0 owvilo, a0 cair da tarde... Isso também é parte da realidade, Sem ser cientifico, Dogmas Todo conhecimento tem uma finalidade. Saber por saber, por mais que se diga em contrario, ndo passa de um contra-senso. ‘Miguel de Unamuno FICO LOGO ARREPIADO quando ouco alguém afirmar: “Estou convencide de que...” Digo logo para mim mesmo: “Cuidado! La vai um inquisidor em potenciall” Convicgées sfio entidades mais perigosas que os demé- nos. E 0 problema & que nao hd exorcismo capaz de expulsé-las da cabeca onde se alojaram, pela simples raziio de que elas se apresentamn como dadivas dos deuses. Os recém-convertidos esto sempre convictos de que, final- mente, contemplaram a verdade. Daf a transformacio por que passam: seus ouvidos, érgtios de audicao, se atrofiam, enquanto as bocas, drgios da fala, se agigantam. Quem estd convicto da verdade nao precisa escutar Por que es- cutar? Somente prestam atengio nas opinides dos outros, diferentes da prépria, aqueles que nio estio convicts de ser possuidores da verdade. Quem nao estd convicto esta pronto a escutar—é um permanente aprendiz. Quem est convicto no tem o que aprender — é um permanente (eu ia dizer “professor”, Peco perdido aos professores. O professor verdadeio,acima de todas as coisas que ensina, 3 8 2 e ensina a arte de desconfiar de si mesmo, . ) mestre de catecismo, “Boca de forna! Forno! Furtaram um bolo! Bolo...” Dizia Nietzsche que “as convicgies sto piores inimigos da verdade que as mentiras’. Estranho isso? Nao, Absolutamente certo. Porque quem mente sabe que estd mentindo, sabe que aquilo que esté dizendo & um engano, Mas quem esta convicto no se dé conta da prépria bobeira. © convicto sempre pensa que sua bobeira sabedoria, As inguisig&es se fazem com pessoas convictas. O Inquisidor nao esta interessado em ouvir as razSes da- quele que estd sendo inquirido, Interessa-Ihe uma coisa apenas:"As idéias dessa pessoa sdo iguais ou diferentes das minhas?” Se forem iguais, esté absolvido. Se forem diferentes, vai para a fogueira, ‘As consequiéncias mortais e paralisantes das convic~ Ges se espalham por todos os campos. E bem sabido © que as canvicées religiosas fizeram na Idade Média. A igreja catélica as igrejas protestantes, convictas de serem possuidoras de verdades que Ihes haviam sido diretamente reveladas por Deus, mataram nas fogueiras milhares de pessoas inteligentes boas simplesmente pelo crime de pensarem diferente: Joo Huss, Savonarola, Giordano Brunno, Miguel Serveto. Galileu escapou por pouco, gracas 4 mentira. Mas os deménios das convicgdes tém atributos dos deuses: SZo onipresentes. Escorregam da religio. Emi- gram para a politica, Milan Kundera, em A insustentével leveza do ser', escreveu este pargrafo luminoso sobre a relacdo entre as convicges € os crimes politicos: "Aqueles que pensam que os regimes comunistas da Europa Cenwal sdo obra exclusiva de criminosos deixam na sombra uma verdade fundamental:os regimes crimino- 05 ndo foram feitos por criminosos, mas por entusiastas convencidos de terem descoberta 0 Unico caminho para 0 paroiso, Defenciam corajosamente esse carinho, executan- do, por isso, centenas de pessoas, Mais tarde ficou claro que 0 paraiso nao existia, e que, portanto, os entusiastas erarm assassinos”. As igrejas ditas cristis, para proteger suas verdades, valiam-se de meios que elas mesmas lamentavam. “Os fins justificam os meios”, alegavam. A mesma ‘coisa pode ser dita dos govemos dos ditadores, convencidos de que eles estavam a caminho do paraiso. “Que pena que temos de usar a violéncial Mas so eles mesmos que nos obrigam! Querem desviar 0 povo do caminho verdadeiro!” Nenhuma instituicdo esta livre dos deménios das conviccdes, Nem mesmo a ciéncia. As instituicdes Gientificas so movidas pelas mesmas leis sociolégicas, politicas € psicanaliticas que movem as igrejas € os governos. Para entender bem as instituig6es cientficas hd de se ler Maquiavel, Freud e Foucault |. M. Kundera, A insustentivel leveza do ser, Rio de janeiro, Nova Fronteira, 1984 ® B caveeconitenr Os sacerdotes da ciéncia me responderdo: “Pe- guei-tel, Porque um dos dogmas centrais da ciéncia 6 que nao estamos nunca de posse da verdade final, As conclusdes da ciéncia so sempre provis6rias. A ciéncia no tem dogmas!" Certo, certissimol A ciéncia nao tem dogmas quanto ‘a.seus resultados. Pelo menos oficialmente, em sua decla- ragio de intengdes. Mas essa pretenstio € constatada por Thomas Kuhn, autor de A estruture das revolugies ientficas’, Ele afirma, baseando-se em dados histéricos, que a ciéncia tem dogmas sim. E seus dogmas so man- tidos pelos cientistas que se agarram a suas teorias € jamais admitem que a verdade possa ser diferente. Diz Kuhn que, freqtientemente, é sé com a morte desses papas que os dogmas caem de seu pedestal Mas, deixando isso de lado, hé um dogma sobre © qual todos esto de acorde: @ dogma do métado. O que € © dogma do método? |& expliquei: 0 método é a rede que os cientistas usam para pegar seus peixes. E estd certo: é preciso rede para pegar peixe. O dogma aparece quando se diz que “real é somente aquilo que se pega com as redes metadolégicas da ciéncia”. Foi isso que fizeram com meu augusto amigo: ele foi mostrar a seus amigos os pdssaros que havia encantado tocando flauta, e todos disseram: "Nao foi pego com 2. Thomas Kuhn, A estrutura das revolugdes cientficas, SA0 Paulo, Perspectiva, 2003, a as redes metodolégicas da ciéncial Nao é reall Nao merece respeito!’ A loucura chega ao ridiculo. Recebi uma carta de uma jovern que estava fazendo uma tese cientifica so- bre minhas histérias infantis.A pobrezinha me escreveu pedindo que eu respondesse um questionério, Ela, cer- tamente nas mos de um orientador cientifico, possuido pelo dogma do método, me fazia duas perguntas que me fizeram sorrir/chorar, Primeira pergunta; “Qual a teoria que © senhor usa para escrever suas histérias?" Segunda pergunta: “Qual 0 métoda que 0 senhor usa para escrever suas histérias?" AV eu tive de contar para ela que muitas coisas nesse universo, muitas mesmo, nos chegam sem que as pesquemos com as redes da ciéncia, Picasso dizia: "Eu ndo procuro, Eu encontro”. As histérias sio assim. A. gente vai vagabundande, fazendo nada, com uma cocei- ra no pensador, e de repente a histéria chega — nas palavras do Guimaries Rosa — como a bola chega as mos do goleiro: prontinha. Sem teoria. Sem método, E 6 ir para casa e escrever, Uma coisa certa: a historia nnd me chega quando estou trabalhando, quando estou procurando, E € assim que acontece com a poesia, a misica, a literatura, a pintura e inclusive a ciéncia. As boas idéias nido so pescadas nas redes metodolégicas. “Nao hd metodo para se ter idéias boas.” Se houvesse método para se ter idéias boas, bastaria aplicar 0 método que seriamos inteligentes, Freqtientemente 0 resultado do uso do método © oposto da inteligéncia. O tipo est ° langando suas redes, as redes yoltam sempre vazias, € 3 ? s ele nao se da conta dos péssaros que se assentaramn em seu ombro. A obsessio cam o método entope o caminho das boas idéias. Estou preocupade com a devastagao que o dogma do método pode fazer na inteligéncia e no caréter das Muitas linguagens pessoas, especialmente nos dos jovens pretendentes a um lugar nos templos da ciéncia, coroinhas a servico dos bispos. Na inteligéncia, porque ele pode produzir cegueira:s6 € real o que cai na rede ortodoxa. (Vei agora uma idéia — chegou-me gratuitamente, sem mé- todo: o livre do Sararnago, sobre a cegueira, nao ser me A investigacdo cientifica nao termina com seus dados; ela se inicia com eles. O produto uma parébola! Vou investigar...) No cardter, porque ele fnalide cine. é uma leoria ou hipéteses de pode tornar as pessoas intolerantes e inquisitoriais. H4 trabalho e ndo os chamados fatos. sempre o perigo de que a ciéncia — coisa to boa — se exiMead ‘tome uma convicgGo religiosa, um dogma sobre a tinica via metadolégica para conhecer a realidade, 6 a 3 ER UMA VEZ um jovem que amava vadrez. Sua vocacao era o xadrez.Jogar xadrez Ihe dava grande prazer' Queria passar a vida jogando xadrez. Nada mais Ihe interessava. 6 lia livros de xadrez, Estudava as partidas dos grandes mestres. S6 conversava sobre xadrez. Quando era apre- sentado a uma pessoa, sua primeira pergunta era: voce joga xadrez? Se a pessoa dizia que nao, ele se despedia imediatamente. Tomou-se um grande mestre. Mas seu sonho era ser campetio. Derrotar 0 com- putador Até mesmo quando andava, jogava xadrez. Por vvezes, aos pulos para a frente. Outras vezes, passinhos na diagonal. De vez em quando, dois pulos para a frente e um para o lado. As pessoas normais fugiam dele porque era um chato. 56 falava de xadrez. Nada sabia sobre as coisas do mundo como pombas, beijos e sambas. Nao conseguia ter namoradas, porque seu tinico assunto era xadrez. Suas cartas de amor sé falavam de bispos, torres e roques. Na verdade, ele nao queria namoradas. Queria adversérias. Essas coisas como jogo de damas, O que écienifieo? a & jogos de baralho, jogo de peteca, jogo de namoro eram inexistentes em seu mundo. Inclusive, entrou para uma ordem religiosa. Eu viajei ao lado dele, de avido, de S30 Paulo para Belo Horizonte. Cabeca raspada. Durante toda a viagem, rezou o tergo, Nao prestei aten¢do, mas suspeito que as contas de seu tergo eram pedes, cavalos e bispos. Sua metafisica era quadriculada, Deus 60 rei.A rainha & Nossa Senhora. O adversério sao as hostes do inferno. ‘AS pessoas normals brincam com muitos jogos de linguagem:jogos de amor, jogos de poder jogos de saber; jogos de prazer jogos de fazer jogos de brincar: Porque a vida nao é uma coisa s6.A vida é uma multiddo de jogos acontecendo ao mesmo tempo, uns colidindo com 0s outros, das colisSes surgindo falscas. Uma cabeca ligada com a vida € um festival de jogos. E € isso que faz a inteligencia, Mas nosso herd, coitado, era cabeca de um jogo $6. Jogava 0 tal jago de maneira fantdstica, Especializou-se, Sabia tudo sobre o assunto. E, de fato, sabia tudo sobre o mundo do xadrez. Mas © preco que pagou € que perdeu tudo sobre o mundo da vida.Virou um computador ambulante, computador de um disquete 36, Disquetes sto linguagens. O corpo humane, muito mais inteligente que os computadores, é capaz de usar muitos disquetes ao mesmo tempo. Ele passa de um programa para outro sem pedir licenga @ sem pensar: Simplesmente pula, salta.Inteligéncia é isso:a capacidade de pular de um programa para outro, de dangar muitas, dancas ao mesmo tempo, O humor se nutre desses pu- los.O riso aparece no momento preciso em que a piada faz a inteligéncia pular de uma légica para outra. Hé a piada dos dois velhinhos que foram ao gerontologista que, depois de examind-los,prescreveu remédios e uma dieta alimentar a ser seguida por duas semanas. Passadas as duas semanas, voltaram. Q resultado deixou 0 médico estupefato.A velhinha estava linda: sorridente, sattitante, toda maquiada. © velhinho, um caco, trémulo, pernas bambas, dentadura frowea, apoiado na mulher, Coro explicar isso, que uma mesma receita tivesse produzido resultados tio diferentes? Depois de muito investigar 0 médico atinou com o acontecido. “Mas eu mandei o senhor comer aveia trés vezes ao dia € 0 senhor comeu a véia trés vezes a0 dia!" O riso aparece no jogo de ambiglidade entre aveia ¢ 0 véia, Nosso heréi nunca ria de piadas porque ele s6 conhecia a ldgica do xadrez,¢ 0 riso nao esté previsto no xadrez.A inteligéncia de nosso heréi no sabia pular $6 marchar: Faz muitos anos, um fildsofo chamado Herbert Marcuse escreveu um livro a0 qual deu o titulo de © homem unidimensional’. homem unidimensional é o homem que se especializou numa tinica linguagem e vé o mundo somente por meio dela, Para ele o mundo € sé aquilo que as redes de sua linguagem pegam. © resto é irreal |. Herbert Marcuse, One Dimensional Man, Studies in the Kieology ‘of Advanced Industrial Society, Boston Beacon, 1964. we a ‘sueBonBuy souny * ‘Oqueé cient? g s A ciéncia € um jogo. Um jogo com suas regras precisas. Como 0 xadrez. No jogo do xadrez, nfo se acmite © uso das regras do jogo de damas. Nem do xadrez chinés. Ou truco. Uma vez escolhide um jogo @ suas regras, todos os demais so excluidos. As regras do jogo da ciéncia definem uma linguagem. Elas define, primeiro, as entidades que existem dentro dele. As entidades do jogo de xadrez so um tabuleiro quadri- culado € as pecas. As entidades que existem dentro do jogo linglistico da ciéncia so, segundo Carnap, “coisas fisicas’ isto & entidades que podem ser ditas por melo de niimeros, Esses so os objetos do Iéxico da ciéncia. Mas a linguagem define também uma sintaxe, isto 6 a forma como suas entidades se movem. Os movimentos das pecas do xadrez so definidos com rigor E assim também so definidos os movimentos das coisas fisicas do jogo da ciéncia. Kuhn, em seu livro A estrutura das revolucées cient/- ficas?, diz que os cientistas fazem cléncia pelos mesmos motives que os jogadores de xadrez jogam xadrez querem todos provarse “grandes mestres”. Para atingir o nivel de "grande mestre'’ no xadrez ou ra ciéncia, é necesséria uma dedicacZo total. Conselho ao cientista que pretende ser“grande mestre”:/embre-se de que, enquanto vacé gasta tempo com literatura, poesia, namoro, em conversas no bar, hé sempre um japonés 2. Thomas Kuhn, op. cit trabalhando no laboratério noite adentro. E possivel que ele esteja pesquisanda 0 mesmo problema que vocé, Se ele publicar os resultados da pesquisa antes de vocé, ele, € no voc8, serd o “grande mestre". pretendente ao titulo de “grande mestre” deve se dedicar de corpo e alma ao jogo da ciéncia. O centista que assim procede ficard com conhecimentos cada vez mais refinados em sua drea de especializacdo: ele conhe- ceré cada vez mais de cada vez menos. Mas, a medida que seu software de linguagem cientfica se expande, os ‘outros softwares vao se atrofiando. Por inatividade, Cientista se transforma num “homem unidimensional’ vista apurada para explorar sua caverna, denominada “Grea de especializacdo'', mas cego em relacao a tudo © que no seja aquilo previsto pelo jogo da ciéncia. Sua linguagem é extremamente eficaz para capturar objetos fisicos. Totalmente incapaz de capturar relacdes afetivas. Se nao houvesse homens no mundo, se o mundo fosse constituido apenas de objetos, entdo a linguagem da ciéncia seria completa Acontece que os seres humanos mam, riem, tem medo, esperangas, sentem a beleza, apaixonamse por ideais, Meteoros stio objetos fisicos. Podem ser ditos com a linguagem da ciéncia.A ciéncia os estuda e examina a possibilidade de que, eventualmente, um deles venha a colidir com a terra. Dizem, inclusive, que foi um evento assim que pds fim aos dinossauros. A paixdio dos homens pelos ideais nado é um objeto fisico, Nao pode ser dita com a linguagem da ciéncia. susGonduisovme * © que é clenitico? we S No entanto, ela & um néo-objeto que tem poder para se apossar dos homens que, por causa dela, se tornam herdis ou vil6es, fazem guerra e fazem paz. Mas um projeto de pesquisa sobre a paixio dos homens pelas idéias no & admissivel na linguagem da ciéncia. Nao seria aceito para ser publicado numa revista cientifica indexada internacional. Nao cientfico. A diéncia é muito boa — dentro de seus precisos limites. Quando transformada na Unica linguagem para se conhecer © mundo, entretanto, ela pode produzir dog- matismo, cegueira e, eventualmente, emburrecimento. Sofrenémetro Métodos contém sempre uma meiafisica; inconscientemente eles revelam conclusdes que, freqdentemente, afirmam ndo conhecer. Albert Camus SE VOCE ESTA planejando fazer uma reforma em sua casa, aqui vai meu conselho: marque hordrio no"'consul- tério de arquitetura” do arquiteto argentino Radolfo Livingston. Fiquei sabendo sobre ele num artigo “O homem, a casa e a felicidade", publicado na revista ‘Mais vida (jan. 97). E um arquiteto fora do gabarito, es- pecializou-se na reforma de pequenas residéncias se autodefine como médico de casas, Fazio para 0 nome de "consultdrio” que deu a seu escritdrio. “Onde é que sua casa estd doendo?” Assim Rodolfo Livingston inicia suas “consultas”, porque as casas po- dem doer, podem fazer amor. Sio muito mais que estruturas de cimento, tiolos, portas e janelas. Formam um espaco — € esse espaco se constitui num prolonga- mento do corpo. E por isso que elas “doem”. Nao basta que a casa seja feita de forma perfeita, do ponto de vista técnico de engenharia, todas as paredes na vertical, todos 08 célculos de viga corretos, casa que vai durar cento e cinqtienta anos. O fato é que hd casas que nos fazem sentir bem, € outras que nos fazem sentir mal. & O queécienitico? 8 Faz tempo, vi umas fotos da casa da Xuxa, Fiquei horrorizado, Mais rica ndio poderia existir, Mais cheia de solid&o nao poderia existin AS casas, assim, poder ser vistas por dois angulos diferentes: a casa em si mesma, objeto fisico, ¢ a casa como espaco que faz algo as pessoas que moram nela A casa, em si mesma, objeto fisico, é entidade cientfica. Nas faculdades de engenharia se aprende a ciéncia de construir casas. As paredes se erguem com fio de pru- mo.As vigas so feitas com cimento, ferro e matemética, As tintas se fazem com quimica. Os principios cientificos para a construg&o das casas so universais. Valem para todas as casas, de todos os tipos, em todas as épocas, fem todos os lugares. Quem sabe a ciéncia da construcio de casas sabe construir qualquer casa A casa em relagéo as pessoas que moram nela, a0 contririo, é casa como objeto de prazer ou dor Para isso nao ha ciéncia, Nesse momento, estou ouvindo um cd de negro spirituals, que eu amo: “Sometimes | feel like a motherless child”: por vezes eu me sinto como uma criana érfi.., Sinto vontade de chorar Esse cd foi produzido pela ciéncia. E com certeza hé milhares de cds iguais a ele dando prazer a outras pessoas. A ciéncia realiza feitos maravilhosos! Mas possivel que (© técnico que © produziu no goste de spirituals — que prefira rock Assim, musica e a letra que me comovemn o deixar ffio, talveziitado, A técnica de fazer eds pode ser ensinada de forma cientifica. Mas 0 gosto" pela musica — note que “gosto” é palavra tirada da gastronomia, ele se refere a uma “qualidade” que no pode ser explicada, dita, ensinadal —, sim, o gosto pela muisica ndo pode ser ensinado de forma direta. Se quero introduzir minha neta ao prazer dos spirituals, tenho de me assentar com ela e dizer:"'Fique quietinha, escute essa musica que 0 vow ama. Ela é muito bonital” E af, talvez pela contem- plagio de meu rosto, é posstvel que ela sinta o mesmo gosto" que eu sinto, Isso vale para as casas. Ha casas que me emacionam, que prevocam minha imaginacao,, eu gostaria de viver nelas. E outras, ricas, cheias de ob- jetos de arte, me provocam um estranho sentimento de estar num espaco nio-humano. © alemao tem uma palavra curiosa: unheimlich, Hein € lar: Un & a negacéo. Tradugdo: sentimento de estar num espago estranho, que nao é lar Hé algo errado na casa produzida em série, igual para todos, do tipo apartamento gra-fino ou casa de conjunto habitacional. Porque as pessoas so diferentes. Nao so produzidas em série. H4, em mim, algo que nenhum arquiteto sabe, nenhum decorador sabe, nenhum paisagista sabe. A alma humana no po- de ser conhecida "em geral", “cientificamente”. Cada pessoa é tinica. Cada casa, portanto, tem de ser uma coisa Unica. A casa tem de ser a realizagdo objetiva dos espagos que moram em minha meméria postica Hegel diria: “objetivagtio do esplrito”. Marx diria: “espelho onde podemos nos contemplar — e ficar félizes". Freud diria “um sonho de amor tornado visivel”... s & onouqueyos é. ) @ & (© que clenttico? g g Rodolfo Livingston dé um puxio de orelha nas facul- dades de arquitetura e urbanism, “Os estudantes nunca vita um cliente e, depois de formados, falam uma linguo- gem que sé eles entendem. Elaboram projetos funcionais; néio perguntam para a pessoa, durante a reforma, onde @ casa déi. Eu utilizo um ‘sofrenémetro’ e um felizémetro’ para ir entendendo 0 que € importante e o que ndo é, para que meu dente se sinta bem” E claro que ele estd fazendo uma brincadeira. Nao hé aparelhos que possam medir o sofrimento e a félicidade Nao hd maneira de fazer uma pesquisa objetiva, estatis- tica, sobre o sofrimento e a felicidade. Porque “sofrimento: € felicidade nao sao objetos. Sofrimento e felicidade sdo qualidadles de relages”, Para saber sobre relacSes é preciso conhecer a arte de adivinhar, Essa arte rigorosamente proibida aos cientistas. Na verdade, eles nem saber do que se trata, As ciéncias fisicas pesquisam objetos, Co- nhecem objetos. Tudo ignoram sobre qualidades, isto é, © sentimento de felicidade ou infelicidade que um objeto produz numa pessoa.A\ ciéncia produz as conhecimentos de quimica necessérios para a fabricacdo de tintas de todas as cores. Cosa muito boa. Quando compro uma lata de ttinta, quero ter a certeza de que ela é da mesma cor da tinta que jd comprei. A ciéncia garante isso. Ela sabe receitas precisas para a reproducio de objetos, Mas ela nada sabe sobre as reagGes de sofrimento ou felicidade que uma cor pode produzir De que cor vou pintar a Parede? Roxo? Preto? Rosa? Azul? Amarelo? Abdbora? Quando essa pergunta € feita, saimos do campo da © objetividade e entramos no campo da qualidade: o que a cor faz comigo, a relagZo do objeto comigo. Um pesquisador enviou um projeto de pesquisa a FAPESP — Fundacio de Amparo a Pesquisa do Estado de Sao Paulo, Area médica. Propunha uma pesquisa quali- tativa, Nao lhe interessavam dosagens hormonais, estru- turas anatémicas, metastases cancerosas: objetos que po- dem ser conhecidos quantitativamente. Interessavam-lhe sentimentos, essas “coisas” escorregadias que tém a ver com 0 sofrimento e a felicidade dos homens, Recursos para sua pesquisa foram negados. Nao sei se 0 projeto era bom ou nao, O que me interessa sio as alegacbes do assessor: Elas revelam muito. Transcrevo duas delas: 1. Pesquisas qualitativas sdo extremamente vulnerdveis a vids de todos os tipos, dificultando sobremaneira a confia- bilidade, validade, e reprodutibilidade do estuda (que é o objetivo maior da investigacdo cientifica). 2. Esse trabalho dificimente seria aceito para publicagdo em uma revista cientifica internacional. Penso que os recursos da FAPESP seriam mais aclequadamente utilzados em pesquisas cujos resultados sejam confidveis, validos e reprodutiveis”. ‘Acho que 0 assessor, quem quer que tenha sido, nao marcaria hora no “consultério" do Rodolfo Livingston, Fle preferiria uma casa construida em série em algum conjunto habitacional. Que pena que 0s cientistas profbam a investigacdo das coisas que trazem sofrimento ou felicidade aos homens! o & BS coupuiguenos @), { O prazer Contra o positivismo que para peranle oe) os fatos e diz: “HG apenas fatos", » eudigo: “Ao coniratio, fatos € o que no ha; ha apenas interpretacées”. Nietzsche HA OS PIANOS. HA a misica, Ambos stio absoluta- mente reais. Ambos sao absolutamente diferentes. Os pianos moram no mundo das quantidades. Deles se diz: “Como sao bem-feitos!”A musica mora no mundo das qualidades. Dela se diz: Como é bela!” Dos pianos, os mais famosos so os Steinway, prefe- ridos dos grandes pianistas, Sao eles que se encontram nos palcos dos grandes teatros do mundo. Pianos so maquinas de grande preciso, Sua fabricacdo exige uma. ciéncia rigorosa Tudo tem de ser medido, pesado, testado, As teclas devem ter o tamanho exato, devem reagir de maneira uniforme 4 pressio dos dedos, devem ter reagdo instantanea. E hd de se considerar a afinaco. O pianista Benedetto Michelangelo, ao iniciar urn concerto nna cidade de Washington, parou imediatamente apds os primeiros acordes: seu ouvido percebeu que a afinacio nfo estava certa. © concerto foi interrompido para que um afinador desse as cordas a tensSo exata para produzir (9s sons precisos. oaueccientcor QP x 3 oO Um dos objetivos da ciéncia exata da fabricagéo de pianos é a producdo de pianos absolutamente iguais, Se nao forem iguais, o pianista nao conseguird tocar num piano em que nunca tocou. Digo que a fabricagio de pianos é uma ciéncia por que tudo, no piano, est submetide ao critério da medida: tamanhos, pesos, tensdes, Mesmo as afinagdes, que normalmente requerem ouvidos delicados e precisos, podem prescindir dos ouvidos dos afinadores — 0 afi- nador pode ser surdo! — desde que haja um aparelho que mega 0 nimero de vibragSes das cordas. A realidade do piano se encontra em suas qualidades fisicas, que podem ser ditas e descritas na precisa lingua- gem cientifica dos ntimeros. E essa linguagem que ‘torna possivel fazer pianos iguais uns aos outros. Na ciéncia, a possibilidade de repetin de fazer objetos iguais uns aos outros, é um critério de verdade. Coisa de culindria: se digo que uma receita de bolo é boa, todas as vezes que qualquer pessoa fizer a mesma receita, com os mesmos ingredientes, nas medidas exatas, na mesma temperatura de forno, o resultado deveré ser igual. A exatiddo dos ntimeros torna a repeticiio possivel. Assim & a ciéncia, essa culindria precisa e util Tanto os pianos como os objetos da ciéncia so construidos com 0 auxilio de um método chamado quantitativo, isto €, que se vale de numeros. Na ciéncia.e na construcao de pianos, s6 € real o que pode ser medido, Pianos nao so fins em si mesmos. Pianos so meios. Existem para ser tocados. A misica é tio real quanto 08 pianos. Mas a realidade da musica néo ¢ da mesma cordem que a realidade dos pianos. Essa é a razio por que 05 fabricantes de pianos nifo se contentam em fabricar pianos: eles vo aos concertos ouvir a musica que os pianistas tocam.E certo que a misica tem uma realidade fisica, ern si mesma, independente dos sentimentos de quem ouve.A miisica existe mesmo se 0 cd estd sendo tocado numa sala vazia, sem ninguém que a ouga. Mas isso nfo é a realidade da misica.A realidade da musica se encontra no prazer de quem a ouve. © mesmo vale para a comida. As cozinheiras cozinham para dar prazer a0s que comem. Os pintares pintam para dar prazer aos que olham.Também os amantes beijam por causa do prazer, © desejo do prazer move 0 mundo. O prazer é uma experiéncia qualitativa, Nzo pode ser medido, Nao hd receitas para sua repeticdo. Cada vez & tinica, irrepetivel. Um pianista nfo interpreta a mesma miisica duas vezes de forma igual. “Concerto italiano”, de Bach, pde em ardem meu corpo e minha alma. Outra pessoa, ao ouvi-lo, vai dizer: “Que musica chatal” Desde cedo os fildsofos naturals (assim eram cha- mados os cientistas no passado) perceberam a diferenca entre a ordem das quantidades e a ordem das qualidades. Eas designaram com as expresses “qualidades primérias” e “qualidades secundérias”. As qualidades priméiias so aquelas que pertencem ao objeto, independentemen- DO woo x te de nossos sentimentos; elas podem ser ditas em linguagemn matematica, tomiando possivel a repeti¢ao. Com elas se faz a céncia. As qualidades secundirias so aquelas que se referem as experiéncias subjetivas que temos ao "provar” 0 objeto, O frango 20 molho pardo tem uma realidade fisica, Mas 0 “gosto” s6 existe em minha boca, em minha lingua e em minhas memérias de mineiro, Outra pessoa, com boca e lingua anatémica € fisiologicamente idénticas as minhas, mas que néo participe das mesmas memérias (uma pessoa de con vvicgdes religiosas adventistas, por exemplo), sentird um “gosto” diferente do meu, possivelmente repulsive. A experiéncia do gosto, da beleza, da estética pertence a0 mundo humano das "qualidades”, No pertence a0 mundo das realidades quantitativas. A linguagem matemitica da ciéncia ndo dé conta dessa experiéncia Nao é capaz de dizé-la, Faltam-lhe palavras, Faltam-the sutilezas, Faltar-Ihe, sobretudo, intersticios, Mas como dizer a beleza de uma sonata? Lénin, ao falar do que sentia a0 ouvir a sonata “Appassionata’, de Beethoven, usa palavras do vocabulério dos apaixonados. Mas, a0 Ié-las, eu nao fico sabendo como é a beleza da musica Que palavras irei usar para transmitir ao leitor o gosto € 0 prazer do frango ao molho pardo? E,no entanto, essa ‘coisa indizivel é real. A experién- cia estética, ndo-cientifica, qualitativa, se apossa do corpo: ruflam os tambores. Ouco © “Dantbio azul” e tenho vontade de dancar. Ouco a “Serenata de Schubert" e tenho vontade de chorar, Quco a “Ave Maria" © a oragio surge, espontinea, dentro de mim. Qugo 0 "Clair de Lune", de Debussy. e fico trangiillo. Quco o estudo op. 10 n. 12, de Chopin, chamado “revolucionério", ¢ fico agitado. Nada disso € cientifico, quantitative. Mas é real Move corpos.O que comove os homens € os faz agin € sempre 0 qualitative. Inclusive a ciéncia. Os cientistas, a0 fazer ciéncia, nfo sio movidos por razSes quantitativas, cientificas, So movidos por curiosidade, prazer, inveja, competicio, narcisismo, ambicao profissional, dinheiro, fama, autoritarismo, Havia, certa vez, uma terra distante onde pianos maravilhosos eram fabricados, Os fabricantes de piano, envaidecidos por sua ciéncia quantitativa precisa, comeca~ ram a desprezar os pianistas, que tocavam movidos por razSes qualtativas, indiziveis. Concluiram que os pianistas eram seres de segunda classe e terminaram por proibir que eles tocassem.E cunharam a frase cldssica:"Fabricar pianos € preciso, Tocar piano nao é preciso”. Iss0 nfo € fico. E isso esté acontecendo nos meios cientificos brasileiros. As pesquisas “qualitativas” sio rejeitadas porque seus resultados sao imprecisos, nio-passivels de ser repetides, e essas pesquisas ndo so publicdveis em revistas intemacionais. Todos os cientistas devem adorar diante do altar desse novo {dolo: as revistas intemacionais indexadas. E esse idolo que decide sobre o destino das pesquisas ¢ dos pesqui- se2Did 0 ® z sadores. Na comunidade cientifica, somente se permite a linguagem quantitativa. Tem havido casos de cursos de pés-graduacao serem desqualificados pelo fato de suas pesquisas serem feitas no campo do qualitativo. O cientifico é fabricar pianos. O gostar de musica nao. é cientifico. © que leva a solucées cientificas. De que maneira um pianista provaria sua competéncia, com vistas a um grau de doutor de musica? Resposta fécit dando um con- certo. A ciéncia contesta. A ciéncia ndo sabe o que & um concerto, Se © pianista quiser ter o grau de doutor. ele terd de escrever uma tese na qual a “qualidade” que ele sabe produzir é transformada num saber quantita- tivo duvidoso. Guimaries Rosa profetizou que os homens haveriam de ficar loucos em decorréncia da ldgica. E isso jd estd acontecendo em nossas instituigdes de pesquisa.""Vivam ‘9s pianos! Mas os concertos estao proibidos!'" Ke Bibliografia ALVES-MAZZOTTI, A. 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