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Carmem Liicia Brito Tavares Barreto (Coordenadora) ‘Ana Litcia Francisco Simone Dalla Barba Walckof? (Crganizadoras) PRATICA PSICOLOGICA EM INSTITUICAO: diversas perspectivas EDITORA CRV (Curitiba - Brasil 2016 FORMAGAO DO PROFISSIONAL PSICOLOGO: a importancia da tensdo entre teoria e pratica ‘Simone Dalla Barba Watckoif Rofaella Kiiper Nébrega ‘Michelle de Lima Meira Rafueta dos Santos Silva Este capitulo reflete sobre uma experiéncia em um projeto de pesquisa, ensino € extensdo que tem como objetivo principal compreender a atengao psicolégica & ago arendtiana no plantiio psicologico. Discorreremos aqui, ‘mais especificamente, sobre 0 aspecto de ensino e extensio do projeto, pri vilegiando a experiéncia com alunos do segundo ano do curso de Psicologia que participaram e participam dele e as implicagdes dessa em sua formagao. Em tal contexto, partimos da compreensio de formagao da qual parti- mos é desta como um processo diferente da mera aprendizagem, embora a englobe, Como lembra Fonseca (2008), formagao difere da aprendizagem porque ela implica nao sé na apresentagéo de algo novo, mas a constitui- gio de um novo alguém. Esse modo de compreender a formagio revela a importéncia da vinculagao entre ensino extensio. A transmissio do corpo te6rice historicamente constitutive c a prética s80 inseparévcis se desejamos formagiio € no apenas aprendizagem. Podemos ilustrar esta questo da formagiio com uma fala lendéria no esporte. Dizem que antes de uma luta de boxe, 0 boxeador Maguila ao ser ameagado pelo adversirio disse a seguinte frase: “Boca fala o que quer, pa- pel aceita 0 que escreve, mas no ringue é diferente”. Apesar da incerteza do ocorrido, esta frase, que é retomada pela drea esportiva de tempos em tem- pos, é bastante significativa para o que estamos abordando aqui: a relagZo ‘entre teoria e pritica na formagao, Considerando a relagdo entre teoria ¢ pritica, Figueiredo (1996), se re- fere a essa distincia e, a0 mesmo tempo, a uma proximidade entre teoria € pritica utilizando o termo tensfo. Se buscarmos o significado do termo tensio, este diz respeito a “estado do que ameaga romper-se” bem como a “forga ou sistemas de forgas que age sobre um corpo sdlido ¢ é capaz de causar tensio, cisithamento ou tragao” (HOUASISS, 2009, p. 1828). Ambos os significados indicam movimento, seja de rompimento, de transformacgo ou de tragtio, ne Assim, a tenstio existente entre teoria e pritica ndio deve set evitada, mas sim acolhida, pois ela mantém o vigor na produgao de conhecimento. Hannah Arenct (2002), ao abordar a questo do pensamento, afirma que a vida vivida possui uma textura, uma aspeteza que o pensamento nao possti. O pensamento que, segundo ela, é 0 “ato de desgelar compreensées” (2002, p. 97) & 0 que possibilita que olhemos a realidade de outros modos. No en- tanto, é sempre a vida que nos convida para este desgelamento, para a aber- tura e para novas compreensées. Ea experiéncia que nos propicia constituir conhecimentos livres dos aprisionamentos dos quadros teéricos, bem como realizar uma pratica sem as amarras da técnica. Enfim, coma lembra Figneiredo (1996), 6 dante das idas ¢ vindas entre © conhecimento ticito o explicito e os imimeros questionamentos que essa relaco gera, que se torna possivel desgelar conceitos, constituir novos co- mhecimentos, bem como modos de pritica psicolégica que atendam deman- da da populagao e nao fagam apenas reveréncia a uma teoria jd estabelecida, No que se refere & formagiio do profissional de psicologia, ele, via de re~ gra, tem real contato com a pritica nos tltimos anos de sua formacao. Antes disto, se dedica a criagfio de um arcabougo tedrico que, em tese, o torara capaz. de responder as convocagées da pritica quando nela ele estiver. Este modo de pensar a formagdo universitiria é 0 oposto da compreensaio de co- mhecimento, fruto da tensio entre 0 conhecimento tacito e 0 explicito, sendo equivalente ao actimulo de conhecimento préprio da aprendizagem e ndo da formago. Nao cabe aqui diminuir a importéncia da transmissao do conjunto de conhecimentos produzidos na Area, mas sim questioner a primazia da teoria em relacao a pritica na formacao do psicélogo. A relaco implicita entre a experiéncia e o conhecimento sao pilares para uma formagao, que, ao trabalhar o vivido e sua compreensio, auxilia na formagao de profissionais mais bem preparados para os impasses impostos pela demanda do mundo real. Para auxiliar nesta reflexio, traremos aqui irés resumos de diarios de bordo feitos por trés alunas que patticiparam do projeto de pesquisa, ensino e exten- so aqui ja mencionado. Didrio de bordo, segundo Aun (2005), é 0 registro das, afetagdes, reflexdes, compreensdes experienciadas ao longo de uma pesquisa. Aqui, esse instrumento foi utilizado para acompanhar a experiéncia dos alunos na disciplina de Psicologia do Desenvolvimento IV, que envolvia uma parte te- Srica © outra de campo, ministrada no Curso de Graduagao em Psicologia da Universidade Catdtica de Pernambuco (UNICAP), Como o projeto de extensiio implantado no semestre anterior j4 havia retomado o servigo de planto psicols- gico na Clinica-Escola da UNICAP, foi possivel propiciar que a parte de campo da disciplina consistisse na participagio dos alunos no plantio psicolégice, sem- pre acompanhados por um pés-graduando ou um estagiério, PRATICAPSICOLOGICA EM INSTITUIGAO: diversas perspectives 113 (Os atendimentos oferecidos na clinica-escola da UNICAP sto abertos para a populagdo, Sua realizacdo € feita em um determinado dia da semana e ‘0s pacientes so atendidos sem agendamento prévio, por ordem de chegada © planto nao tem tempo determinado. Durante os atendimentos, as supervi- sbes acontecem no momento em que a dupla que est atendendo necessita, Na maior parte das vezes, 0 atendimento é interrompido com a concordéncia da pessoa atendida e os plantonistas vao para a supervisdo, que ¢ feita pela profes- sora-supervisora com a participagao dos outros plantonistas que esto na sala Como os didrios das trés estudantes eram muito extensos, traremos aqui © resumo deles feito por elas mesmas conjuntamente, Seus nomes sao fict ccios ¢ foram escalhidas pelas ahmas. Ox resnmos foram analisados através do método hermenéutico, que segundo Hermann (2002), constitui-se um di- logo entre dois mundos, o texto e seu leitor. Sendo assim, o conhecimento constituido no esté em nenhum dos dois polos, mas é fruto do didlogo que se estabelece entre ambos. Apresentaremos aqui, inicialmente, os resumos para, a seguir, trazermos a compreenstio e discussto deles. Resumos dos didrios de bordo 1. Miranda, 19 anos ‘Aaluna Miranda inicia sua narrativa sobre a experiéncia da articulagao en- tre teoria e prética psicolégica na disciplina em questo com o trecho da mitsica Brincar de Viver: “Vocé vera que é mesmo assim,/que a histéria nao tem finy Continua sempre que vooé responde sim, a oua imaginagiio...". Ao longo do tra- balho a aluna faz amarragdes entre textos, filmes e discuss6es feitas em sala de aula e a experiéncia na pratica clinica, neste caso, o plantao psicolégico. ‘© papel do psicélogo, sua relaco com o paciente, a suposta neutralidade que via de regra é dita como desejével na area psicolégica, foram desencrus- tradas de sua vistio de mundo. Ao longo do plantio o inclinar-se ao paciente, estar disponivel para pessoas narrarem suas historias ¢ deixar-se ser afetado por clas para, assim, poder afeté-las, foram experiéncias que desgelaram com- preensGes dadas, até ento, como certas. ‘Ainda em sua narrativa, parece que contato com a pritica coloca em ‘questiio a nogdo de que a autorizagao para clinicar viria apés varios anos de experignci. Havia uma crenga de que a possibitidade de clinicar deveria vir de uma bagagem nao apenas teérica, mas também cotidiana, para que pudes- se haver uma experiéncia “empética” com o paciente, conceito que também foi questionado ao final da disciplina 04 O desgelamento se tornou possivel num plantiio do qual ela participou no corredor da clinica, que foi iniciado por impeto da paciente, ¢ Miranda sentiu-se intimidada. O pensamento de que o terapeuta possufa uma autori- dade inabalivel em relagao ao paciente, que neste sentido seria de fato um “alguém paciente”, a espera, dispontvel para 0 acontecimento de algo que somente o terapeuta Ihe poderia proporcionar através de seus conhecimentos superiores caiu por terra com este experiéncia. ‘Sua percepeio final desse momento foi que, num atendimento, niio existiam mais do que seres humanos, terapeutas e pacientes. O terapeuta ndo tem a opsao, portanto, de nflo ser afetado pela sittiago, j4 que esta, como todas as outras, se dé no mundo, ele a vive ‘© que ele pensar ou sentiré ndo serd em nenhum momento equivalente aos pensamentos ¢ sentimentos do paciente. Entretanto, no momento do aten- dimento, o paciente aparece para o terapeuta e o convoca a perceber seu mun- do. A ideia de “empatia” que estava encrustada na visto de mundo de Miranda ra o pensar no terapeuta como, por exemplo, alguém que, a0 caminhar no deserto, deveria fazer mais do que sentir 0 calor do sol ou a areia sob seus pés. Ele deveria ter experimentado 0 que é ser o-deserto em primeira mio. Percebeu a disponibilidade para o atendimento para além de uma téc~ nica, a percebeu como uma habilidade, Desta forma, sua questo central pareceu ser a descoberta da existéncia enquanto plantonista para além da razdo instrumental, Segundo ela, ao longo da disciplina, perdeu uma ilusdo de controle sobre 0 que a afetaria e como isso se daria. Assim, uma categorizagéo da afetagao de si pelo mundo (espagos “préprios” da razao ou da emogao, por exemplo) mostrou-se impraticével. 2, Alice, 20 anos Quando confrontada com a saida de uma “interminavel” quantidade de textos e livros para a proposta de uma aprendizagem que também se daria na pratica, Alice se vé saindo do que descreve como uma “zona de conforto”. Ao mesmo tempo, menciona constantemente esta proximidade com a préti- ca, que, enfim, deu sentido para sua formacao em psicologia. No caso de Alice, foi o contato com a pritica que pareceu dar vigor As reflexes tedricas na disciplina. Ao langar-se na escuta clinica, que exi- ge dela um mergulho no desconhecido, um langar-s¢ no atendimento para compreender o que 0 oittro mostra, encontra-se novamente com a reflexaio tedrica, que é necesséria para sua compreenstio enquanto psicéloga, a qual ‘ganha nova importéncia. PRATICAPSICOLOGICA EM INSTITUIGAO: sivereas porepectives 1s Assim como a Alice de Lewis Carroll, que, ao escutar 0 coelho quei- xar-se da hora, segue-o para dentro de sua toca sem ter certeza do que fazem ou do porqué, mergulha com o paciente para a incerteza. Este mer gulho, porém, é feito a partir do lugar particular de escuta psicolégica, que convoca para uma tentativa de compreensto da experiéncia trazida por aquele paciente. Ela se vé saindo de um lugar de passividade, de escuridao que conhecia como aluna, e chegando a possibilidade de participacdo na construgio de conhecimento, Por fim, a saida da “zona de conforto” de que Alice tanto fala parece mais uma saida de um lugar de desconforto, onde se encontrava presa 2 falta de coneretude das palavras de um texto. 3. Ananda, 24 anos Ananda comega seu relato expressando 0 quanto se sentiu perdida no inicio da disciplina por ter expectativas referentes a ela provenientes das experiéncias feitas em disciplinas passadas. Para expressar este sentimento, utilizou uma frase de Nicholas Sparks: “Detesto essa expectativa. Esperar, confiar ¢ ndo saber 0 que vai acontecer”, com a qual introduz seu texto. A partir de um texto de Hannah Arendt, Entre 0 Passado e 0 Futuro, que aborda a crise na educagao, Ananda narra uma crise experimentada por ela na quebra de suas expectativas, “uma crise de mudanga de lugar”, que vivencia em todos 0s aspectos: professor, aluno, psicélogo e até homem € conhecimento nfo esto onde ela esperava que estivessem. O psicélogo saiu, para ela, de um lugar de detentor de conhecimento e o paciente do lugar de passivo, sem compreensées a oferecer. Desta forma, o abrir de possibilida- des proporcionado pela disciplina a Ananda nao foi somente de uma nova compreensdo de visdes de homem-mundo ou a pratica de clinica psicolbgica no segundo ano de psicologia: foi uma nova perspectiva de si mesma, do Jugar que ocupa no mundo e de seu lugar como aluna. Ela escreve sobre um “sentimento de falta” que ela nomeia como falta do papel, mas que, de fato, € uma falta do palpavel, de uma certeza, de algo que seja concreto € dite o que € o homem, € passa a perceber que nao ha uma teoria ou definigtio que posse dizer isso, pois nao Ihe parece que algum dos autores que Ihe foram apresentados esteja errado, apenas nfo contempla o todo, nao captura © homem (até mesmo porque o homem enquanto ser néo pode ser capturado). Essas reflexdes comegam a ser geradas em Ananda a partir do momento em que Ihe & proposto o plantiio poicolégico. Concomitante a isto surge © questionamento de se & possivel para ela atender, se ela tem a capacidade de 116 fazer isso, se ela sabe o bastante para isso, o que mais uma vez aponta para ‘0 conhecimento adquirido apenas pelo actimulo de teorias. EB precisamente 0 plantao psicol6gico que abre para ela a possibilidade de se tomar agente, de compreender o que Ihe era apresentado, e nao apenas assimilado. Ouvir e ser levada a pensar que talvez 0 homem nao seja s6 aquilo que 95 livros dizem “choca”. Nao que ela racionalmente no soubesse, mas o sen timento de falta apontava isso “[...] a fungao da escola é ensinar as criangas como o mundo é, e ndo instruf-las na arte do viver” (ARENDT, 2000 p. 246). A disciplina trouxe uma proposta inovadora, o plantio psicolégico, que propunha vivenciar a prética da ago psicoldgica. Nessa compreenstio ‘alu- no’ n&o existia, a professora tamibén ndiv ocupava v Tugat 0 quell esperavs, nem a discipling, nada menos esperado que também o homem niio estivesse no lugar o qual ela pensava, deparava-se com os aspectos dinémicos que constituem o ser humano. Ela percebe que nao ¢ indispensdvel acumular int ‘meros conhecimentos provindos das teorias psicolégicas para poder “tratar” ou ajudar alguém, sua compreensio de clinica psicolégica se modifica. Modificagio que acontece em ressonancia com o pensamento de Hanndh Arendt, principalmente, ao dizer que: “A histéria comporta novos comegos por causa da condigao humana da natalidade, por meio da qual © mundo se renova potencialmente a cada novo nascimento humano [...]” (ARENDT, 2000, p. 247). Ler essa frase a fez, pensar que esse nascimento no é apenas biolégico, mas, como na ideia de Herdclito “ninguém se banha duas vezes no ‘mesmo rio”. Nem o rio nem nés somos os mesmos: nés nascemos constan- temente e nos reinventamos. Essa dindmica faz parte do ser homem ¢ estar no mundo, que também deixa de ser o mesmo a cada nascimento. Assim, ela compreende que nao detém 0 conhecimento sobre 0 outro, pois, s6 ele (0 cliente) entrou no rio ¢ € impossivel entrar como ele, porque ele € 0 rio no permanecem o mesmo, \Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, nfo se enconira as mesmas aguas, ¢ 0 proprio ser jt se modificou. Assim, tudo € regido pela dinlétia, « tensio.¢ 0 reve- zamento dos opostos. Portanto, © real é sempre frato da mudanga, ou seja, do combate entre 0s contrios (HERACLITO), No texto “Ideias do Canério”, de Machado de Assis, 0 canério pensa que 0 mundo € aquilo que ele conhece, ndo sabendo que, quando falamos do mundo, falamos do nosso mundo, do que vemos ¢ experimentamos dele, falamoe de suas impress6es em nds e€ nossa impressées dele, © que nem sempre condiz com a vastidéo de coisas que hé no mundo, mas que séo PRATICA PSICOLOGICA EM INSTITUIGAO: diversas perspectvas 7 improvaveis porque nao foram ainda experienciadas. E a sua experiéncia do mundo que cria o mundo no qual ele vive, mas que, de certa forma, também, o-cria, pois, a medida que sua visdo se amplia, também ele muda, até ver que ‘o mundo pode ser tudo, mesmo uma loja de belchior € realmente 0 é No texto de Serres (1993) sobre Laicidade, o imperador faz uma lon- ga viagem e, ao voltar, diz que nada de novo foi visto, nada de diferente €, mesmo que nio haja nada de novo debaixo dos céus, sendo em seguida desmentido por um homem no pablico que aponta suas vestimentas e revela, para sua surpresa, que elas sao um recorte de cada lugar onde esteve e que se expressam numa forma de mapa de todas as cores e texturas. Coma a passarinho que percebia 0 mundo a partis da experi@ncia que tina do mesmo, 0 imperador, no texto “Laicidade”, também trazia consigo as marcas, fem suas roupas, das suas andangas, mas nem mesmo ele havia percebido - até que lhe foi apontado - que ele era um recorte de varios recortes do mundo. Penso que 0 comhecimento sobre 0 homem, por suas diversas perspectivas, representa pequenos recortes da expressdio do todo que compoe o human. Assim como o passarinho, 0 imperador & constituido pelo mundo © o constitui, Do mesmo modo, a experiéncia na disciplina fez.a aluna no somen- te pensar sobre os aspectos tedricos discutidos, mas, em um sentido mais am- plo, sobre o homem, sobre ela mesma e sobre o lugar do psicélogo. O psic6lo- go também é constituido pelas experiéncias em seus atendimentos, é marcado © marca, Essa compreensiio a levou a pensar que, no atendimento, devemos sempre estar de olhos abertos para nfo colocar nosso mundo, seja teérico ou experencial, como referencia para compreender o mundo do outro. ‘Ananda lembra que no nordeste se fala de “colcha de retalho", © pen ssa: somos todos como essas colchas, todos constituidos por tecidos, porém de tecidos diversos, um néo é igual a0 do outro, nao ha colchas de retalho iguais, porém todas so colchas. ‘Tecendo didrios de bordo Os resumos das alunas diferenciam-se conforme sua singularidade, po- rém em todas esto presentes as marcas que a experiéncia no plantdo psico- J6gico, como campo da disciplina cursada, deixou. Sao essas marcas que ire~ ‘mos abordar agora, para, enfim, refletir sobre elas e seu sentido na formagao, ‘Ao que parece, Miranda estava muito presa aos conceitos tedricos sobre ‘a pritica e, ao se deparar com a proposta da disciplina, viu que havia um de- sencontro entre a teoria e a pritica. A experiéncia trouxe questdes ainda nao postas no provesso de aprendizagem. O paciente ¢ paciente? Qual 0 poder do terapeuta? Quando se € um psicélogo? Hé um marco estanque para isso? O afeto, como afetagiio, é uma possibilidade no terreno “psi”? Ao longo do processo a mtisica escolhida “Vocé verd que é mesmo assim,/que a histéria nao tem fim/Continua sempre que vocé responde sim, a sua imaginagao...” diz de uma compreensao de um proceso sempre inacabado de se fazer psi- célogo € esta ingénua compreensio do momento em que hé um psicélogo presente no atendimento, com poderes para controlar e direcionar 0 aten- dimento, € desmontado com a pritica. Assim, um aspecto importante da fala de Miranda é a compreensio de uma relagio horizontal entre paciente © psicélogo, que vem acompanhado o desgelamento da nogdo de neutralidade do terapeuta e de passividade do paciente, abrindo a necessidade de outro ‘modo de constituir a relagao. Ao contrario de Miranda que estava, de inicio, confortavelmente, em- brenhada com uma formagio fundamentada em quadros testicos, Alice pa- receu descontente com uma formagao distante da vida vivida. Chega a dizer que a formagao passou a ter significado depois do contato com a pritica, Apesar do medo do desconhecido, da exigéncia do mergulho na narrativa do outro, da falta de controle; a prética parecia trazer um vigor para sua formagiio como psicdloga. © medo do novo esté presente, assim como 0 desconforto na pritica do plantio, mas a vida presente na formagao parece 0 mais importante para Alice. Enquanto Miranda apresenta, em sua narrativa, um choque em relagio 4s amarras tedricas ¢ as possibilidades da pritica, Alice exalta 0 vigor que advém da proximidade com a pritica, ainda que esta cause desconforto e medo do desconhecido. Parece que a experiéncia do plantio fez com que Miranda retomasse a teoria de outra maneira e com que Alice visse a pritica como algo essencial para a abertura profissional. Ananda, em seu relato, conseguiu articular essas duas dimensdes: como se, por exemplo, cada uma equivalesse a uma cor primaria. Enquanto Miranda compreendia principalmente, digamos, o amarelo, Alice partia do azul, e Ananda mescla ambas as cores, ‘Anarrativa de Ananda traz questionamentos sobre a formacao psicolé- gica, sobre 0 lugar das teorias, sobre a abertura possibilitada pela pratica. Quem 0 homem? Qual o lugar da psicologia? Qual a importéncia da for- magiio? Sto questdes trazidas por Ananda, em um resumo entrecortado pela experiéncia e autores que a marcaram ao longo da disciplina. Ao que parece, tanto a parte tedrica quanto a pratica marcaram Ananda, fazendo-a tensionar entre ambas. PRATICA PSICOLOGICA EM INSTITUICAO, diversas porspectv "0 Extensio e formagio Embrenhar-se em uma disciplina que propunha uma ida a campo via plantao psicol6gico, que, por si s6, jé desmonta crengas provenientes da clis nica tradicional ainda t80 arraigadas na formagao académica, necesita de coragem. Podemos dizer que todos os relatos dos didrios de campo demons. tram implicagio, disponibilidade para o novo, desgelamentos e movimento, ‘Ao longo deste proceso, a curiosidade, o medo, a inseguranga e 0 encanta- ‘mento estavam presentes. Outro aspecto evidente é que estava presente, em, todas as narrativas, a mudanga: uma mudanga de lugar na relagiio com a teo- ria; uma mudanga em relaglo a prética e uma mndanga em relaglo A prépria ‘compreenso do que é ser psic6logo. Neste sentido, parece que a disciplina ministrada atendeu ao objetivo esperado, qual seja, procurara dar outro sen- tido formago dos alunos ¢ alunas que dela fazem parte, privilegiando o tensionamento entre teoria e pratica Retomando as reflexdes de José Sérgio Fonseca de Carvalho, “uma aprendizagem s6 € formativa na medida em que opera transformagbes na constituiggio daquele que aprende. E como se 0 conceito de formagio indi- casse a forma pela qual nossas aprendizagens e experiéncias nos constituem como um ser singular no mundo” (2008, p. 4). Desse modo, a aprendizagem 86 é formativa quando implica em uma formag&o pautada no imprevisivel e incontrolivel, pois, na medida em que saimos de uma compreensio de for- magio como acumulo de conhecimento e passamos para a compreensio de formagao como aquela que possibilita o encontro daquele que aprende com ‘0 que esta sendo apresentado, seja em termos teéricos, eeja pelo contato com a pratica, em ambos os casos hé a abertura para transformagdes, Nessa diregio, os relatos das alunas apontam para a importancia da extenstio na formapfio. A extensio parece ser solo fértil para o acontecimen- to do encontro mencionado por Carvalho. E nitido que a experiéneia em ‘um projeto de extenstio tenha causado impactos nas alunas, tanto no que se refere ao olhar para os preceitos da psicologia, como para si mesmas como psicélogas em processo de formagaio. E importante ressaltar que a extensto que abordamos aqui niio é aquela que se constitui na aplicagao da teoria. O projeto, em discussio, propde pri- vilegiar 0 acontecimento do tencionamento entre a teoria e a pratica, buscan- do com isso se contrapor @ um movimento muito bem descrito por Arendt ¢ presente na academia: 120 Os cientistas formulam hipéteses para conciliar seus experimentos e em seguida empregam esses experimentos para verificar as hipéteses; e & 6b- vio que, durante todo o tempo, esto lidando com uma natureza hipotética, Em outras palavras, o mundo da experimentagao cientifica sempre parece capaz de tomar-se uma realidade criada pelo homem; ¢ isto, embora possa aumentar o poder humano de criar e de agit, até mesmo de criar um mundo, a um grau muito além do que qualquer época anterior ousou imaginar em sonho ou fantasia, toma, infelizmente, a aprisionar 0 homem - ¢ agora com muito mais eficdcia - na prisio de sua propria mente, nas limitagdes que ele mesmo eriou (ARENDT, 2001, p. 300-301). Quando trouxemos a fala nada académica de Maguila, tivemos a in- tengo de chamar a atengao para aquilo que pode revelar compreensoes de fendmenos ainda nao tematizadas e que pode nos trazer 0 novo: que é 0 des- tino Ultimo da produgao de conhecimento cientifico. E apenas no ringue que somos provocados a sair dos nossos aprisionamentos tedricos, “da prisdo de nossa prépria mente”, como bem coloca Arendt, e nos abrirmos para a novidade. Os relatos das alunas demonstram o quanto isso € assustador, mas também 0 quanto as fez.crescer. ‘Assim, o que 0 projeto de extensio, brevementé descrito aqui, se propos © se propée, em relagao a formagio dos que dele participam, é uma ida A vida vivida e provocacdo de reflexdes a partir desse encontro. Este encontro é cercado de cuidado: reflexdes tedricas, supervisdes, narrativas em diérios de bordo, entrevistas com pacientes e plantonistas, entre outros. Todos estes cuidados, ndo tem o intuito de controlar o processo incontrolavel que & formagao, mas dar suporte para que ele possa acontecer. Esse cuidado é também um modo de investigar, compreender 0 fend- ‘meno que nos aparece via plantao e, a partir de entao, dar novos encaminha- mentos para a pesquisa, o ensino e a extensiio. A pesquisa que est embasa- da na triade: ensino, pesquisa ¢ extensio, possibilita tanto ao pesquisador @ abertura da compreensdo do fenémeno estudado ao ser provocado pela pri- tica; quanto aos alunos e alunas participantes & saica das salas de aula, para serem marcados pela compreensio do vivido. Nesse modo de compreender aextensio implicada com a formacdo, a exigéneia é pela reflexo tebrica -constante provocada pela experiéncia, pois, como dizem que disse Maguila: tio ringue é outra coisa. PRATICA PSICOLOGICA EM INSTITUIGAO: dversas perspectives at Consideragées gerais Abordamos a questio do encontro em relagdo a questio da formagao, tra- zida por Carvalho (2008). No entanto, traremos novamente a palavra encontro agora nos referindo a pritica psicolégica. Em tal dirego, Figueiredo (1993) afirma que o psicélogo ¢ 0 profissional do encontro. E no encontro que se apresenta a matéria-prima para que psicélogo possa exercer seu oficio. Esto presentes, neste encontro, todos os saberes adquiridos ao longo da formacao académica e de sua histéria pessoal. E nessa situago que acontece algo muito aproximado com 0 que Zumthor descreveu em relagao a uma praca: E Quinta-feira Santa de 2003. Sou eu. Estou ali sentado, uma prags a0 sol, uma arcada grande, longa, alta € bonita ao sol. A praca ~ fren- te de casas, jgreja, monumentos ~ como panorama & minha frente. A parede do café nas minhas costas. A densidade certa de pessoas. Um mercado de flores. Sol. Onze horas. A parede do outro lado da praga na sombra, em tons agradavelmente azuis. Sons maravilhosos: conversas ‘proximas, passos na praga, pedra, pssaros, um leve murmiério da mul- ‘ido, sem carros, sem barulho de motores, de vez em quando nuidos de ‘obra ao longe. Os feriados a comegar ja tornaram 0s passos das pessoas ‘mais lentos, imagino, Duas freiras ~ isto é realidade e nfo imaginaglo -, duas freiras eruzam a praga, gesticulando, de passos leves e toucas a agitarem-se levemente a0 vento, cada uma traz-tum saco de pléstico. A ‘temperatura: egradavelmente fresco, com calor. Estou sentado na arca- ‘da, num sofi estofado em verde mate, a figura de bronze a minha frente no alto pedestal esti de costas para mim e olha, como eu, para a igreja de duas torres. As duas torres da igreja tém cuipulas diferentes, que em ‘baixo comegam de forma igual ¢ que ao subir se individualizam. Uma & ‘mais alta e tem uma coroa dourada a volta do topo. Em breve, B. viré ter comigo, cruzando a praca na diagonal’. Agora, o que é que me tocou? Tudo. Tudo, as coisas, as pessoas, o ar, ruidos, sons, cores, presengas ‘maieriais, texturas ¢ também formas. Formas que consigo compreender. Formas que posso tentar ler. Formas que acho belas. E 0 que € que me tocou para além disso A minha disposipto, os meus sentimentos, a mi- nha expectativa na altura em que ali estive sentado. E vem-me & cabeca esta famosa frase inglesa que remete a Plato: “Beauty isin the eye of the beholder.’ Isto é: tudo existe apenas dentro de mim, Mas depois faco 4 experiéncia ¢ climino a praga. E ja nfo tenho os mesmos sentimen- tos, Uma experigncia simples, desculpem a simplicidade do meu pen- ‘samento. Mas 2o eliminar a praca ~ os meus sentimentos desaparecem. Naquela altura, nunca 0s teria tido da mesma forma sem a atmosfera da raga (ZUMTHOR, 2006, p. 15-17). 122 © autor, um arquiteto, ao falar da importincia do que ele chama de at- mosfera na arquitetura, retira a praga e se pergunta o que fica. Ele responde: “[..] 05 meus sentimentos desaparecem. Naquela altura, nunca os teria tido ‘da mesma forma sem a atmosfera da praga”. No caso do estudo a cerca da prética psicolégica a pergunta equivalente seria: se tirarmos a experiéncia, © que resta? Restam intimeras teorias prontas para serem aplicadas e, depois de muitas distorgées, comprovadas. A questfio que se coloca é: por que zo assumir o risco inerente a aproximagdo destes estudantes com a prati- ca? Por que nio desejarmos 0 novo que pode emergir dessas experiéncias? final, nfo é este o papel da academia? Segundo Aridrade ¢ Moita (2609), no artigo 207 da Constituigio Bracileira, 6 dover da universidade a indissuvia- bilidade entre pesquisa, ensino e extenstio. Paro o objetivo do presente texto, ‘no importa nos determos em todas as dimensdes dessa afirmago, mas na importineia desse modo de trabathar para a formagio discente. Retomemos a descrigo de Zumthor, na qual é apresentado um olhar peculiar: o de um arquiteto para o espago da praga o modo como ela € ha- bitada, Estao presentes, nesse olhar, todos os anos de formago académica € experiéncias profissionais. No entanto, essa percepso sé € acessada pela presenga daquela praga. Ocorre assim, uma tensiio entre o conhecido € 0 ex- Perimentado, entre a teoria ¢ a pratica. E nessa tensdo que mods de pratica e constituigdo de conhecimentos véo sendo construfdos, transformando teoria cristalizada em saber, que, segundo sua origem etimolégica remete a um saber advindo do ato de saborear, da experiéncia. Enfim, encerramos este capitulo enfatizando a importincia da experién- cia na formasio do psicélogy ea 1efleaau que dela se origina. Tal compreen- so sobre a formagao esta em ressondincia com o modo de pensamento aren- dtiano, ao ressaltar a dimensdo de natividade, na qual tudo “tem sempre que comegar de novo; é uma atividade que acompanha a vida [...] expressando © significado de tudo que acontece na vida e nos ocorre enquanto estamos vivos (ARENDT, 2002, p. 134). Ou seja, a reflexdo académica necessita do frescor e da forga trazidos pela vida. PRATICA PSICOLOGICA EM INSTITUICAO: diversas perspectives 28 REFERENCIAS ANDRADE, Femando Cézar Bezerra & Moita, Filomena Maria Gongalves. Ensino-Pesquisa-Extensio: um exercicio de indissociabilidade na Pés- Graduagao. Revista Brasileira de Educacao, v.14, 2009. ARENDT, Hannah. A condigao humana. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2001. . Avida do espirito: o pensar, o queict, ojulgat. 5.¢d. Rio de Jancito, Relume Dumara, 2002. CARVALHO, José Sérgio Fonseca. Sobre o conceito de formagio. Revista de Edueagio, 137 ed., 2008. FIGUEIREDO, Luis Claudio (1993) Sob o signo da multiplicidade. Cadernos de Subjetividade, n.1:89-95. PUC-SP, Sio Paulo. SERRES, Michel. Filosofia Mestica. Rio de Janeiro, 1993. ZUMTHOR, Peter. Atmosferas, Entornos arquitetOnicos - As coisas que me rodeiam. GG, Barcelona, 2006.

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