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Gragoatá

n. 24 1o semestre 2008

Política Editorial
A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional
de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem
contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a
análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e
Literatura.

ISSN 1413-9073

Gragoatá Niterói n. 24 p. 1-260 1. sem. 2008


© 2008 by Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense
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G737 Gragoatá. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Editora Federal Fluminense.— n. 1 (1996) - . — Niterói : EdUFF, 2008 – 26 cm; il.
filiada Organização: Laura Cavalcante Pàdilha e Lucia Helena
à Semestral
ISSN 1413-9073.
1. Literatura. 2. Lingüística.I. Universidade Federal Fluminense. Programa de
Pós-Graduação em Letras.
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Walter Moser (Univ. de Montreal)
Gragoatá
n. 24 1º semestre 2008

Sumário
Apresentação...................................................................................... 5

ARTIGOS

O começo do fim............................................................................... 13
Silviano Santiago
Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias
nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa......31
Benjamin Abdala Junior
Duas viagens, um destino, Moçambique....................................45
Regina Zilberman
Uma língua de viagens, transgressões e rumores..................... 61
Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco
Da colonização lingüística portuguesa
à economia neoliberal: nações plurilíngües...............................71
Bethania Mariani
Outros poderes, outros conhecimentos
– Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões...................... 89
Margarida Calafate Ribeiro
Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes.............. 101
Márcio Seligmann-Silva
Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno
e a história literária........................................................................ 119
Roberto Vecchi
Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo
moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho.... 131
Sheila Kahn
O papel das línguas africanas na formação
do português brasileiro: (mais) pistas
para uma nova agenda de pesquisa............................................ 145
Charlotte Galves
Agruras da ficção contemporânea............................................... 165
Silvia Regina Pinto
Narrar é resistir?............................................................................. 179
Denise Brasil Alvarenga Aguiar
Os velhos “marionetes”: Quincas Berro D’Água,
versões e construção de identidade............................................ 191
Lúcia Bettencourt
Quando o preconceito se faz silêncio:
relações raciais na literatura brasileira contemporânea.........203
Regina Dalcastagnè
Uma conversa entre macacos: percalços
de um diálogo entre a África e o outro......................................221
Lucia Helena

ENTREVISTA
O peixe e o macaco: emblemas do subdesenvolvimento
numa entrevista com José Eduardo Agualusa
sobre o Brasil e Angola................................................................ 237
Maurício de Bragança
Apresentação

A Revista Gragoatá, em seu vigésimo quarto exemplar, foca-


liza, comparativamente, ou mesmo em separado, os paradigmas
culturais que nosso momento histórico permite visualizar como
os mais importantes na construção das identidades matizadas
que as literaturas e artes do continente africano e brasileiro
apresentam, no cenário da globalização. Os elos entre os dois
mundos são muito evidentes, ou assim se pensa, quase como
um lugar-comum. Serão mesmo transparentes os nossos pa-
rentescos e o que também nos separa? Conhecem, os brasileiros
e os outros, o que se denomina hoje “Brasil”? É auto-evidente
esta significação? E a África, ao ser relacionada ao Brasil, é
sempre a de “expressão portuguesa”? Haveria possibilidade de
nos “encontrarmos” inscritos na África de “expressão inglesa”,
“francesa” etc, na história comum da exclusão? Estas e outras
questões se tornaram candentes, em alguns dos textos que nos
foram enviados.
Brasil e África são dois cantões do planeta que se tan-
genciaram pela ocidentalização promovida no Renascimento
e motivada pelo expansionismo europeu do século XV. Suas
inter-relações e, principalmente, as contradições políticas e os
enigmas do continente africano e da vida brasileira têm sido
objeto de análise, desde os anos de 1990, no século XX, com
a projeção dos estudos culturais e a re-leitura dos cânones de
nações concebidas, pela classificação econômica dominante,
como emergentes. Em que pese o significado desse adjetivo, as
nações ditas em emergência (no duplo sentido de que emergem
e de que estão em estado de emergência) sempre surpreendem
pelas complexas redes culturais – de origem popular ou culta
– surgidas tanto no Brasil, quanto na África e que nada ficam a
dever, em importância para o pensar, se relacionadas às matrizes
de outras paisagens.
Da África se moveu, para o então chamado Novo Mundo,
um conjunto de habitantes de localidades que hoje compõem
inúmeros países: Costa do Marfim, Congo, Angola, Moçambique
e outros, para, em nossas terras, conhecerem a dor do exílio, o
conseqüente desterro e a marca da desagregação provocada
pela prática escravagista. Ainda assim, os representantes de um
povo removido, à revelia e em circunstância adversa, para outros
rincões, produziram subsídios que, surgidos do entrechoque
de tradições, foram capazes de ultrapassar séculos e a própria
condição subalterna, para constituir elementos magníficos de
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nossa música, dança, culinária e, até, de manifestações religiosas
aclimatadas no Brasil.
A discussão dos elos e dissensos, as descobertas em comum
dessas duas culturas, literaturas e artes, além da dívida brasi-
leira para com a contribuição dos africanos que para cá vieram
na condição desumana de escravos fazem parte das intenções
que nortearam os objetivos das coordenadoras desse número ao
pensar em seu título – “Brasil e África: trajetórias, rosto e destino”
– e em sua ementa. Esta consiste na discussão da literatura, po-
lítica e ideologia no cenário do neoliberalismo e no enfoque das
articulações entre essas nações e suas narrativas, na estrutura
pós-colonial contemporânea do Brasil e da África. Pensou-se
também em focalizar o Brasil e a África, enquanto autônomos,
em suas diferentes literaturas e formas de expressão e de lingua-
gens produtoras de paradoxos, identidades, dilemas e problemas.
Interessava à nossa ementa, também, a articulação da África e
do Brasil consigo mesmos, e entre si, ou com outros países, de
outros universos culturais na cena do mundo pós-colonial que,
necessariamente, envolve a Europa e outras expressões lingüís­
ticas. O discurso e a construção da subjetividade e das formas
estéticas foi mais um aspecto incluído no temário que sugerimos
ao leitor, bem como a comparação de suas literaturas com as
demais artes. Outra opção que se observa na ementa oferecida
é a da discussão de perspectivas da crítica e da teoria, no Brasil
e na África, seja no estudo da própria literatura e das demais
artes, seja no exame específico de textos voltados à produção do
conhecimento. No campo da lingüística e do estudo de línguas,
acentuou-se a preocupação com o tratamento das línguas em
contato e da política lingüística. Finalmente, a ementa também
deu abertura para uma reflexão histórica, antropológica e filosó-
fica da cultura brasileira e africana contemporâneas, no exame
das relações entre estas, sua literatura, suas crises e utopias, em
sua singularidade, ou em conjunto.
Se o estudo da questão brasileira, na Gragoatá 24, parece
não demandar explicação, pois se faria evidente (evidência da
qual sempre se deve, em bom termo, duvidar), a presença de sua
articulação com a África e desta com a América como um todo
e, também, com a Europa, como ocorre em mais de um artigo
publicado neste número, revela uma forma de contraposição
de olhares através da qual se busca retomar a teia de silêncios e
apagamentos tramada pelo olhar branco-ocidental, hegemônico
na cultura colonizadora letrada, apesar da heterogeneidade de
nossa formação. Um tal olhar já se antecipava na epopéia ca-
moniana, quando os navegantes portugueses, ao se depararem
com o outro, o desconhecido, perguntavam a si mesmos: “Que
gente será esta? (em si diziam) / Que costumes, que Lei, que
Rei teriam?” (I, 45).
6 Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008
Se a legenda da diferença faz parte do paradigma forma-
dor de nosso encontro cultural, o leitor poderá agora conferir a
natureza desse painel, no vasto exame dos elementos que deram
sustentação ao processo colonial e à sua reversão, seja do âmbito
lingüístico, do político-cultural, seja no da literatura. Um pai-
nel foi tecido a várias mãos, pelo texto de nossos convidados e
dos que se interessaram pelo tema, e nos enviaram sua valiosa
contribuição. Neste, o espaço da reflexão crítica se espraiou por
questões como o trauma, a violência, o preconceito racial e os
intertextos de variada extração e efeito, para que pudéssemos
levar a cabo, nesta edição, compreender e pensar “Brasil e África:
trajetórias, rosto e destino”.
É com imenso prazer que passamos ao leitor os textos que
resultam do percurso trilhado pelos intelectuais que se uniram
a nós na busca de elaborar mais um número da Revista Gragoatá,
periódico que se tem caracterizado como uma das formas mais
atuantes da contribuição, ao público em geral, da Pós-graduação
em Letras da Universidade Federal Fluminense.
O texto de abertura, de Silviano Santiago, intitula-se “O
começo do fim”. Importante pensador da cultura brasileira, seu
autor busca apresentar nova e suplementar interpretação para
um conceito-chave do movimento Modernista – o de antropofa-
gia, na versão de Oswald de Andrade. Considerando relevante
para o tema deste número refletir sobre um conceito que, du-
rante oito décadas foi responsável por importante bibliografia
em que se salientaram aspectos beligerantes de culturas colo-
nizadas em relação aos colonizadores, Santiago pondera, ainda,
que essa interpretação, apesar de pertinente do ponto de vista
social e político, negligencia qualidades básicas do trabalho de
arte escrito nas margens da cultura Ocidental, em particular
aquelas que deveriam despertar no leitor a premência de um
pensamento utópico, em que a paz, a esperança e a alegria se
tornariam os valores.
O artigo de Benjamin Abdala Júnior, “Notas históricas:
solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países
africanos de língua portuguesa”, discute as redes comunitárias
que tais literaturas tecem, pelo que nelas se revela uma tendência
à supranacionalidade. Esta, para o crítico, se faz tão importante
quanto o resgate, nas produções artístico-verbais, das especifi-
cidades nacionais que nelas se resgatam. O texto reforça o fato
de que há uma forte relação entre o processo literário africano
e o brasileiro. Isso se justifica, segundo o autor, por que, desde o
século XIX, se estabeleceram redes de identificações entre o nosso
país e os africanos de colonização portuguesa. Tais identificações
vão do âmbito político (cf. o caso angolano, no século XIX) até a
busca de outras formas de modelização literária, ressaltando-se,
dentre elas, as interlocuções com o modernismo brasileiro, com o
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romance nordestino de 1930 e com o projeto estético-ideológico
de Guimarães Rosa.
O texto “Duas viagens, um destino, Moçambique”, de
Regina Zilberman, procura analisar as visões divergentes que
europeus e africanos têm sobre a expansão do mar português,
para o que retoma O naufrágio do Sepúlveda, de Jerônimo Corte
Real (1594) e O outro pé da sereia, de Mia Couto (2006). O artigo
demonstra a existência de dois distintos modos de recuperação
da história marítima portuguesa, nas malhas da ficção literária.
De um lado, a visão européia do século XVI sobre os “cafres,
que roubar tem só por ofício” e sobre os heróis – mesmo que
fracassados – que “se vão da morte libertando”, como proclama
Camões. De outra parte, a autora analisa a leitura, a contrapelo,
do moçambicano Mia Couto para quem fica clara a “estratégia
dos portugueses para enfraquecer o reino” do Monomotapa.
Resgata-se, assim, o avesso de uma história que só muito re-
centemente começa a ser contada pelo olhar dos, até 1975, ven-
cidos. Um artigo que serve de excelente ponte para o encontro
de África e Brasil.
No texto “Uma língua de viagens, transgressões e rumo-
res”, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Secco faz uma espécie de
balanço sobre a questão do uso da língua portuguesa nos países
africanos colonizados por Portugal, mostrando as diferentes
faces que a língua transplantada pelo colonizador adquiriu
nos diversos países que hoje têm o português como sua língua
oficial. Percorre, ainda, o caminho que vai da imposição ao uso
consentido e, em certa medida, revolucionário do português
que acaba por se fazer, ele mesmo, um instrumento voltado
contra o processo de colonização, no momento em que subleva
o tecido lingüístico. Para comprovar esse uso “clandestino” da
língua, repetindo José Craveirinha, a ensaísta busca exemplifi-
car seu ponto de vista com vozes literárias africanas. Estas, ao
inverterem os paradigmas colonialistas, enriquecem a língua
do colonizador, por atravessá-la com outros saberes e sabores,
alargando, com isso, o sentido das viagens que tal língua ainda
será capaz de fazer.
Em “Da colonização lingüística portuguesa à economia
neoliberal: nações plurilíngües”, Bethania Mariani reflete sobre
a atualidade lingüística do Brasil e de Moçambique, tomando,
como ponto de partida do artigo, o fato de que tanto na África
quanto em nosso país, houve uma tentativa de apagamento da
memória dos sujeitos locais, no processo de colonização portu-
guesa. Discute, a seguir, partindo da memória histórica constitu-
tiva das duas formações sociais, de um lado, a legislação referente
à política de línguas e de outro, as relações, nem sempre muito
visíveis, entre as línguas e a política econômica. Assim, analisa
a legislação portuguesa referente ao uso do português nas co-
lônias e, em seguida, tendo em vista a descolonização política
8 Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008
e lingüística, enfatiza as relações entre lingüística e economia,
problematizando o valor econômico das línguas.
O artigo “Outros poderes, outros conhecimentos – Ana
Paula Tavares responde a Luís de Camões”, de Margarida Cala-
fate Ribeiro, discute o enfrentamento do poder e de suas relações
existentes nos textos de Paula Tavares, demonstrando que tal
enfrentamento tem como alvo não apenas o sistema colonial
em si, mas a língua que o sustenta e mesmo o neocolonialismo
que subsiste em tais relações, na Angola independente. O artigo
demonstra a subversão do discurso poético de Paula Tavares,
que se quer, ao mesmo tempo, um “pronunciamento” feminino
e epistemológico. Por tal “pronunciamento” a poeta põe em
xeque não apenas os conhecimentos impostos pelo colonizador,
mas a própria tradição local, que também busca perpetuar o pa-
triarcado e a sua violência contra a diferença sexual e sua lógica
opositiva. O texto afirma, em todos os sentidos, a possibilidade
teórica de se valorizarem outros conhecimentos e outros poderes,
sempre deixados à margem pela colonialidade hegemônica.
Em “Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes”,
Márcio Seligmann-Silva propõe uma reflexão sobre o gesto tes-
temunhal de sujeitos que sobreviveram a situações radicais de
violência e/ou catástrofes e para os quais a narração do trauma
se faz gesto de sobrevivência e mesmo de renascimento. Para
comprovar sua hipótese, o autor levanta uma série de aporias
que marcam o testemunho, tentando comprovar que ele “só
existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade”. Traz
à cena do artigo, ainda, a questão da política da memória e sua
importância para o gesto de narrar o trauma. Por fim, analisa
obras pontuais que resgatam, respectivamente, o genocídio dos
armênios (1915-16); o dos tutsis, em Ruanda (1994), chegando ao
Brasil e, em especial à música popular brasileira que, de distintas
e/ou camufladas formas, resgata o trauma causado pela violência
da ditadura civil-militar.
Em “Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno e a
história literária”, Roberto Vecchi, partindo de uma série de re-
flexões sobre a força do poder na representação literária, discute
a impossibilidade de fala do subalterno, ou o seu silenciamento,
na série histórica da literatura brasileira. Depois de reforçar seu
quadro teórico, convocando Spivak, Gramsci, Said e outros, o
autor analisa duas obras pontuais dessa mesma literatura bra-
sileira – Os sertões, de Euclides da Cunha e A menina morta, de
Cornélio Pena. Em tais criações, para ele, se projeta uma espécie
de contra-história problematizadora dos vazios e silenciamentos
da história oficial brasileira e dos lugares de força por ela criados.
O texto discute, portanto, a problemática dos subalternos que,
apesar de se localizarem na margem da história, acabam por
ganhar voz e um “corpo grafemático”, nas malhas da ficção.
Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008 9
Em “Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialis-
mo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho”,
Sheila Kahn começa por apresentar a questão do pós-colonialis-
mo em Moçambique. A seguir, recupera a postura adotada por
João Paulo Borges Coelho, em relação ao que se passa na nação
recém-independente, postura esta que ele evidencia não apenas
em sua obra romanesca, mas também em entrevista concedida à
ensaísta e por ela em parte transcrita no artigo. Por fim, propõe
a leitura de três romances do autor – Visitas do Dr. Valdez; Crônica
da Rua 513.2 e Campo de trânsito –, demonstrando como Borges
Coelho dá voz aos “calados”, pelo que tenta resgatar a história
igualmente barrada dos que, em silêncio, viveram as transições
por que passou o país em construção.
No texto “O papel das línguas africanas na formação do
português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de
pesquisa” de Charlotte Galves, a autora, seguindo caminho
proposto pela pesquisadora Margarida Petter, centraliza a dis-
cussão nas variedades angolanas e moçambicanas do português,
por entender que elas abrem caminho para a reflexão de como e
porquê as línguas africanas interferiram no português do Brasil.
O artigo se divide em duas grandes seções, começando por pro-
mover a releitura do debate da questão por ela proposta, para o
que resgata a série histórica desse mesmo debate. Na segunda
seção, discute os efeitos do contato entre as línguas africanas
e o português, comparando, a seguir, as vertentes africanas e
brasileiras da língua e levantando as evidências que comprovam
a consistência de sua hipótese.
O artigo “Agruras da ficção contemporânea”, de Sílvia
Regina Pinto, focaliza a literatura produzida no Brasil em sua
interface com o mundo de hoje, marcado por uma transformação
radical em que afloram crises talvez sem precedentes, revelando
que ela demonstra e questiona a mudança profunda que vem
ocorrendo em todas as áreas de atividade, em especial a cultura,
a estética, os valores éticos, as noções de tempo e espaço e as
fronteiras entre o público e o privado. O ensaio procura mostrar
como a ficção contemporânea vem tematizando e discutindo sua
própria estranheza, tentando uma articulação entre linguagem
e realidade, no esforço incansável para um confronto do eu com
o outro que, muitas vezes, é ele mesmo, e deixando claro que a
ficção se torna necessária até para que o real exista. Equipado de
instrumental teórico que lhe permite ampla reflexão, este ensaio
oferece uma possibilidade fundamental de pensar o Brasil de
hoje em sua literatura e através dela.
Em “Narrar é resistir?” Denise Brasil Alvarenga Aguiar
também focaliza a ficção contemporânea, em especial o cotejo
entre O quieto animal da esquina, de João Gilberto Noll, e A vida e
a época de Michael K., de J. M. Coetzee. Seu objetivo é compreen-
der as transformações da literatura no contexto das alterações
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sociais e culturais que marcam os tempos da chamada pós-
modernidade. Identificando importante vertente literária de
tematização do sufocamento da subjetividade no cenário hostil
da exclusão social, a autora compara a rarefação da subjetividade
nos personagens de Noll e a transformação do rarefeito em uma
passagem para uma outra forma de alteridade, no magnífico
personagem de Coetzee, Michael K., que também poderia ser
aproximado de Fabiano (o protagonista de Vidas secas, de Graci-
liano Ramos) e de Macabéa (a protagonista de A hora da estrela, de
Clarice Lispector), na cena da carência que, surpreendentemente,
faz com que o Michael K transcenda o nada a que a sociedade
o havia destinado, desencadeando, com força crítica, o exame,
pelo leitor, desse terrível impedimento.
Com Os velhos ‘marionetes’: Quincas Berro D’Água, ver-
sões e construção de identidade”, Lucia Bettencourt descortina
uma perspectiva original para focalizar um autor que já recebeu
muitas e variadas exegeses e que faz parte de nosso patrimônio
não só literário, mas também antropológico: Jorge Amado. Foca-
lizando os personagens do autor a partir de suas ligações com a
dramaturgia popular e a tradição européia da comedia dell’arte,
revela como sua ficção se mescla à arte popular regional, de forte
influência africana. Com isso, abre um diálogo entre o ato nar-
rativo e seu aspecto dramático, subvertendo a concepção usual
do protagonista Quincas, que adquire, assim, uma outra forma
de expressividade, através da manifestação popular.
O texto “Quando o preconceito se faz silêncio: relações so-
ciais na literatura brasileira”, de Regina Dalcastagnè, destaca, de
uma profunda e extensa pesquisa que a autora vem realizando
sob a chancela do CNPq, as personagens negras, francamente
minoritárias na ficção brasileira contemporânea. O artigo analisa
algumas exceções a esta regra, identificando diferentes modos
de representação literária das relações raciais em uma sociedade
marcada (embora pareça estar convencida do contrário) pela
discriminação. Com acurada atenção ao detalhe, mas sem perder
o alcance do geral, o texto de Dalcastagnè ultrapassa, e muito,
o que se produziu entre nós sobre o assunto, até o momento. O
exame dessas personagens negras talvez ajude os leitores (na
maioria brancos) a entender melhor o que é ser negro no Brasil
– e o que significa ser branco em uma sociedade racista.
Com “Uma conversa entre macacos: percalços do diálogo
africano com o outro”, Lucia Helena focaliza uma delicada e
complexa rede textual, formada pelo diálogo sutil implantado
por J. M. Coetzee entre seus dois romances A vida dos animais
e Elizabeth Costello e o conto de Kafka, “Um relatório para uma
academia”. Ao manter enlaçadas, com pistas que oscilam na
fronteira entre o falso e o verdadeiro, as marcas da autoria,
da autobiografia e da ficção, do ensaio e da vida, o intertexto
realizado por Coetzee revela-se uma irônica e produtiva forma
Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008 11
de buscar compreender, discutir e criticar as transformações
da subjetividade na sociedade contemporânea, em um mundo
globalizado. Em diálogo com a violência do mundo, a literatura
de Coetzee também homenageia a de Kafka, outro invulgar
pensador do desastre.
Fecha o volume a transcrição de uma entrevista inédita,
feita por Maurício de Bragança, em 2005, com o escritor angolano
José Eduardo Agualusa, intitulada “O peixe e o macaco: emble-
mas do subdesenvolvimento numa entrevista com José Eduardo
Agualusa sobre Brasil e Angola”. Nesta entrevista, seu autor, na
introdução que faz, estabelece os pontos em comum nos proces-
sos da formação histórica do Brasil e de Angola, tomando como
fato a colonização portuguesa e situando o contexto temporal
de sua entrevista e o local – Vila do João, no Rio de Janeiro – em
que faz um vídeodocumentário sobre os angolanos residentes no
Brasil. A entrevista do escritor Agualusa fará parte do referido
vídeo, em fase de montagem final.

Laura Padilha e
Lucia Helena

12 Niterói, n. 23, p. 5-12, 1. sem. 2008


O começo do fim
Silviano Santiago

Recebido 15 mai. 2008 / Aprovado 27 mai. 2008

Resumo
O propósito de “O começo do fim” é o de apre-
sentar uma nova e suplementar interpretação do
conceito-chave do movimento Modernista – a
antropofagia de Oswald de Andrade. Durante
oito décadas o conceito foi responsável por uma
rica e precisa bibliografia, em que se salientaram
os aspectos ressentidos e beligerantes das culturas
colonizadas em relação aos colonizadores. Essa
interpretação, apesar de correta do ponto de vista
social e político, negligencia as qualidades básicas
do trabalho de arte escrito nas margens da cultura
Ocidental, em particular as relacionadas ao fato
que ele deveria despertar no leitor a premência
dum pensamento utópico, em que a paz, a espe-
rança e a alegria se tornariam os valores.
Palavras-chave: Literatura brasileira. Van-
guarda. Modernismo. Antropofagia. Pensamento
utópico.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008


Gragoatá Silviano Santiago

“Os mais bem sucedidos movimentos políticos


são os que parecem não ser ‘políticos’”
(Felix González-Torres, 1957-1996)

Marik o Mori, Beginning of the End, Gizah, Egito, 2000

No ano em que a Antropofagia oswaldiana celebra seu


octogésimo aniversário, torna-se indispensável repensá-la na
perspectiva de uma nova interpretação. Sucessivas gerações de
artistas, críticos e pesquisadores brasileiros e estrangeiros sobre-
puseram uma formidável tradição hermenêutica ao conceito-cha-
ve da vanguarda brasileira dos anos 1920. Ano após ano, década
após década, essa tradição se transformou numa muralha. Para
escalá-la o neófito tem de contar com o concurso dos milhares
de sólidos e bons recursos oferecidos pela bibliografia de res-
ponsabilidade dos artistas e dos intérpretes. Qualquer que seja a
trilha eleita para a escalada da muralha antropofágica, revisitar
ou visitar o conceito significa fazer grandes caminhadas preli-
minares por detrás do muro das interpretações canônicas e, sem
maiores ambições, terminar por repetir o já escrito e assentado.
Como nos adverte Eugène Ionesco na Cantora careca, “Tomai um
círculo, acariciai-o bastante, e ele se tornará vicioso”.
Indispensável à escalada atual da viciosa teoria antropo-
fágica, a planta baixa da muralha regulamenta medidas críticas
contraproducentes à análise e compreensão das manifestações
artísticas contemporâneas, em particular das que reivindicam
o calor utópico e o direito à esperança e à alegria, que – afirme-se

14 Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008


O começo do fim

desde já − não estão ausentes do programa teórico oswaldiano


em sua totalidade. Se a planta baixa canônica for tomada como
perspectiva única e correta, algo nela não permitirá que se
enxerguem − com proveito analítico − as qualidades e os sinto-
mas evidentes da arte no terceiro milênio. Aprendamos com o
aforismo do Manifesto Pau-Brasil: “Ver com olhos livres [o grifo é
do próprio OA]”.
A leitura dos últimos e influentes trabalhos críticos sobre o
tema por excelência da vanguarda histórica brasileira desperta
constantemente − na sensibilidade rebelde do leitor jovem − o
gosto de bolo ressequido ou de café requentado. Em suas novas
pesquisas, os grandes especialistas se interessam menos pelos
sucessivos constrangimentos prescritos e impostos pela tradi-
ção hermenêutica ao conceito. Interessam-se mais em alardear
as respectivas erudições individuais ou do grupo de pesquisa,
ampliando ao infinito apenas o repertório das obras que podem
ser mais bem analisadas a partir da Antropofagia tal como a
conceberam. Interessam-se, ainda, pela abertura de novas e pre-
visíveis fronteiras geográficas não-ocidentais, e finalmente pelo
já decantado exercício das inversões ideológicas nos sedimentos
estratificados pelo poder das culturas hegemônicas – ex-coloni-
zadoras ou neocolonizadoras e, por isso, ditas universais − sobre
as demais culturas das nações ou dos povos das margens.
Em resumo, tanto nos novos ensaios sobre a Antropofagia
quanto nos acréscimos feitos ao corpus original levantado pela
teoria oswaldiana, a originalidade de um novo exemplo tornou-se
o principal dado imprevisto no octogenário desenho da planta
baixa exegética. A teoria se alçou e se petrificou em muralha,
enquanto o corpus analisado ganhou o estatuto de obesidade
mórbida.
Em momento preciso do final do século 20, a Antropofagia
recebeu contribuição alvissareira na pesquisa propriamente
teórica. Ela anunciava o casamento do conceito da vanguarda
histórica brasileira com figuras da teoria pós-estruturalista.
Refiro-me aos conceitos de renversement (reversão [do platonismo],
Gilles Deleuze) e de décentrement e de déconstruction (descentra-
mento e desconstrução [da metafísica ocidental], Jacques Derrida).
Hoje, os felizes e tardios casamentos teóricos − sacramentados
sob o céu de Paris − se encontram bem assimilados pelos gourmets
europeizados do circuito e do círculo antropófago. Na busca de
uma palavra exegética que consagre o octogésimo aniversário,
não há que voltar a elas.
Não duvidemos por um segundo sequer de que o conceito
oswaldiano e a tradição crítica dele derivada não tenham sido, no
século 20, uma conquista admirável para a boa leitura da litera-
tura e da arte não-européias, ditas periféricas ou emergentes. O
conceito e a correspondente tradição exegética (a muralha a que
nos referíamos no parágrafo inicial) se tornaram também indis-
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 15
Gragoatá Silviano Santiago

pensáveis para a discussão justa e equilibrada do imaginário


estético e sócio-político dos artistas e dos escritores pertencentes
às antigas colônias européias no Novo Mundo.
No terceiro milênio, quando se salientam as teorias pós-
colonialistas − multiculturalistas − nos próprios países coloniza-
dores de além Mancha, de que é exemplo a obra de Stuart Hall,
ou de além Atlântico, de que é exemplo o Museu do Quai de
Branly; em Paris, no novo milênio, quando as nações da África,
do Oriente Médio e da Ásia reclamam um lugar ao sol no mun-
do ocidental para suas audaciosas, destemperadas e resistentes
manifestações culturais, é impensável que o cidadão das mar-
gens – seja o artista, seja o pensador – possa dispensar sem mais
nem menos as idéias revolucionárias apresentadas por Oswald
de Andrade em 1928, cujo equivalente na pesquisa científica foi
La religion des tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus
Tupi-Guarani (em particular o capítulo IX), publicado naquele
mesmo ano por Alfred Métraux, etnólogo de origem suíça. Ou-
tro franco-suíço, o poeta Blaise Cendrars, foi também conviva
de primeira hora no banquete antropófago, como atestam os
ensaios de A aventura brasileira de Blaise Cendrars, de Alexandre
Eulálio (hoje em segunda edição, graças ao concurso de Carlos
Augusto Kalil).
Retirar a Antropofagia, a alta Antropofagia − precisemos − 1
de detrás da muralha levantada pela hermenêutica canônica sig-
nifica entregar-se a atividade sócio-política extremamente arris-
cada, em particular neste exato momento da história planetária.
Na cena mundial, dá-se continuidade à tragédia dos conflitos
1
A não ser confundida bélicos sangrentos, impostos pelos atores sociais de nações do
– alerta-nos Oswald de
Andrade – com “a baixa
norte aos atores sociais das nações do sul, representantes, res-
[grifo nosso] antropo- pectivamente, do Ocidente e do Oriente, do cristianismo e do
fagia aglomerada nos
pecados de catecismo – a islamismo, do status quo e do chamado terrorismo. Infelizmente,
inveja, a usura, a calúnia, o terceiro milênio se define, para retomar a chave-mestra de Sa-
o assassinato. Peste dos
chamados povos cultos muel Huntington, pelo choque das civilizações. Na primeira década
e cristianizados”. O au-
tor conclui: “É contra ela
do novo século, os movimentos diaspóricos de ex-colonos para os
que estamos agindo”. países colonizadores do Primeiro Mundo ganham as manchetes
Anotemos rapidamente
que as duas formas de
dos principais jornais europeus e norte-americanos, e freqüen-
antropofagia não se con- tam com assiduidade a agenda política dos governantes, haja
fundem com o sentido
estrito do ritual canibal vista a situação em nada particular dos hispano-americanos e
dos Tupinambás. brasileiros na Península Ibérica.2 Se a tarefa a ser enfrentada pelo
Neste mês de maio
crítico de arte contemporâneo exige o risco político, arrisco-me,
2

de 2008, maior tristeza


é constatada na África e não me deixo contaminar pela atualidade que a cada novo dia
do Sul, onde imigrantes
dos países limítrofes, em o imperioso governo federal norte-americano inventa e semeia
particular os moçambi- no Oriente Médio para melhor controlá-lo com fins em nada
canos, são perseguidos
e dezenas assassinados pacíficos.
pelos compa n hei ros
de pan-africanismo. A
Em termos ainda abstratos, derivados da ancoragem dos
intolerância e a xenofo- textos de Oswald de Andrade na utopia, na esperança e na alegria
bia não existem apenas
nos países do Primeiro presentes no múltiplo programa teórico, proponho aos ouvintes
Mundo. e futuros leitores considerar a Antropofagia de maneira su-
16 Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008
O começo do fim

plementar e de nova perspectiva. Enuncio minha proposta. A


demanda dos artistas e pensadores não-europeus e a aspiração
profunda da produção artística das margens sobrevivem graças
à deglutição por qualquer cidadão da memória universal da cultura
e das artes, sem distinções ou balizas históricas e geográficas.
Antes de prosseguir, busco o indispensável alicerce num afo-
rismo do Manifesto Antropófago: “Contra as histórias do homem
que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não
rubricado. Sem Napoleão. Sem César”.
Se lhes parecer verdadeira a leitura não-hierárquica, pa-
cifista e transcendental para a teoria antropofágica – inspirada,
repito, no aforismo oswaldiano citado −, reganho força e lucidez
com o apoio do antigo filme documentário de Alain Resnais
sobre a Biblioteca Nacional francesa, intitulado Toute la mémoire
du monde (1956). Escutemos a voz do narrador do filme: “Aqui
[na Biblioteca Nacional] se prefigura um tempo em que todos
os enigmas serão resolvidos, um tempo em que as chaves nos
serão concedidas por esse universo e alguns outros. E isso sim-
plesmente acontecerá porque os leitores, sentados diante de sua
parcela de memória universal, terão colado pedaço por pedaço
os fragmentos de um mesmo segredo, que talvez ganhe um
belíssimo nome – a felicidade [le bonheur]”. E graças ao segredo
de nome felicidade, começo a palmilhar novo caminho, agora
com a ajuda de palavras tomadas de empréstimo ao conto “A
biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges: “Quando se proclamou
que a biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão
foi de extravagante felicidade. [...] O universo estava justificado,
o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da
esperança”. E ficaria felicíssimo se, ao final desta exposição, cada
um dos presentes pudesse por contra própria repetir a frase final
do conto de Borges: “Minha solidão alegra-se com essa elegante
esperança”.
Acrescente-se que a atividade antropofágica proposta
não se quer milagrosa em si, mesmo se busca adotar – dessa
perspectiva inusitada para a hoje canônica exegese da teoria – o
rosto utópico da esperança e da felicidade. Esse rosto, aliás, já se
espelhava na letra do manifesto original, datado de 1928. Trans-
posta a muralha hermenêutica, talvez a nota hoje dissonante
de esperança e o calor utópico da felicidade passem a compor a
disposição mais justa da Antropofagia nos dias atuais. É preciso
nunca esquecer que em 1945, por ocasião do fim da Segunda
Guerra Mundial e depois da queda da ditadura Vargas, Oswald
de Andrade tinha submetido ao plenário do Primeiro Congres-
so de Filosofia um longo ensaio intitulado A marcha das utopias.
A espinha dorsal da argumentação continuava a ser a cultura
matriarcal dos índios Tupinambás, presente nos manifestos
dos anos 1920. Tampouco não se pense que a Antropofagia tal
como a estou caracterizando contribua para uma visão otimista
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 17
Gragoatá Silviano Santiago

do mundo atual, ainda que, em virtude de seu enraizamento


original na religião dos primeiros habitantes do Brasil, o lance
utópico, esperançoso e feliz, tome de empréstimo dos rituais das
populações primitivas gestos alucinatórios e redentores.
Se houver otimismo na teoria antropofágica, ele é em tudo
por tudo semelhante ao par de calças, de que nos fala Samuel
Beckett em preciosa e célebre anedota. Diante da reclamação do
Freguês − “Deus fez o mundo em seis dias, e o senhor não con-
seguiu me costurar essa merda de calças em seis meses”, reage o
Alfaiate, orgulhoso de sua obra-prima: “Mas, meu senhor, olhe
o mundo, e olhe suas calças”.
Em última instância e do ponto de vista restrito do artista
não-europeu, a Antropofagia leva o escritor – o escritor brasilei-
ro, no presente caso – a desenvolver o gosto pelo lento e paciente
trabalho de arte. Sejamos mais precisos. Ela exige do artista, cuja
tradição cultural se encontra em princípio desapossada do ideal
de universalidade criado pela tradição ocidental, o gosto pelo
trabalho artístico que não é desassociado do trabalho crítico,
também de responsabilidade do próprio criador. Dessa pers-
pectiva, soa falso todo esforço por criar oposição/contradição
entre a escrita dita artística e a escrita dita crítica. Não há fissão
e incompatibilidade entre elas. Ao se confundirem num escritor,
criação e crítica se fundem e se confundem – são cofundadoras
da literatura. Lembre-se de passagem do volume Variété I. Paul
Valéry escreve que Charles Baudelaire é o poeta “que traz um
crítico em si, intimamente associado por ele a suas próprias
composições poéticas”. Baudelaire se torna figura emblemática
dos escritores para quem – continua Valéry – “a composição,
que é artifício, sucede a algum caos primitivo de intuições e de
desenvolvimentos naturais”.
A composição − de que fala Valéry nessa passagem sobre
o poeta francês oitocentista e sobre outros escritores, como La
Fontaine e Racine − decodifica a metáfora das calças, de que fala
o Alfaiate frente ao porta-voz de Deus na terra, que é o apressado
e abusado Freguês. A composição, ou seja, o lento trabalho de
arte embutido no texto poético e, metaforicamente, nas calças
beckettianas, faculta ao ser humano a possibilidade de competir
em igualdade de condições com Deus e o acaso na criação do
universo, na criação dum universo alternativo, artístico, espe-
rançoso e feliz. Depois das dores do parto, nada como o tempo
do resguardo. Em termos oswaldianos: “o trabalho humano
conduz ao ócio”. Em termos nietzchianos, “as ‘dores do parto’
3
Complemente-se com são indispensáveis à alegria eterna da criação, à eterna afirmação
este aforismo de O cre- da vontade de vida”.3 Como diz o texto santo: “Deus abençoou
púsculo dos deuses: “O
artista trágico não é um o sétimo dia e o santificou, porque neste dia Deus descansou
pessimista, diz o seu
sim a tudo o que é pro-
de toda a obra de criação”. Também o alfaiate tem sua semana
blemático e terrível, é inglesa.
dionisíaco [...]”.

18 Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008


O começo do fim

Na cena artística brasileira dos anos 1920, a Antropofagia


oswaldiana respirava o ar clássico e puro da teoria poética de
É bom lembrar esta
Paul Valéry, ao mesmo tempo em que, em evidente movimento
4

curta passagem do Ma-


nifeste Dada 1918: “Eu re- de contradição, acolhia e aclimatava a presença estética e sócio-
dijo esse manifesto para
mostrar que é possível política dos principais movimentos de vanguarda europeus − o
fazer simultaneamente autoritário Futurismo, de Filippo Tommaso Marinetti, e o anár-
ações opostas, numa
única fresca respiração; quico Dada, de Tristan Tzara. Em comum, (repito) a deglutição.
sou contra a ação; pela
contínua contradição,
No interior da vanguarda histórica brasileira, outra e conseqüen-
pela afirmação também, te contradição terá seu clímax dois anos depois da realização da
eu não sou nem para
nem contra e não explico Semana de Arte Moderna. Em 1924, o poeta franco-suíço Blaise
por que odeio o bom- Cendrars é recebido pela família Paulo Prado e viaja, juntamente
senso”. Pensemos ainda
na máxima de André com os jovens artistas paulistas, às cidades históricas de Minas
Gide, muito ao gosto
dos autores e críticos
Gerais. Durante a primeira estada de Cendrars no Brasil, é que
brasileiros modernistas: se acelera paradoxalmente o processo de abrasileiramento do eu-
“Sou um ser em diálogo;
tudo em mim combate e ropeizado movimento de vanguarda nos trópicos.
se contradiz”. Sobre os caminhos diferenciados que se cruzam na for-
5
Na França e no domí-
nio das artes plásticas,
mação do modernismo, Brito Broca, um dos mais importantes
o peso do construtivis- historiadores da literatura brasileira, assinala: “Antes de tudo,
mo hispano-americano
pode ser bem aquila- o que merece reparo nessa viagem [a Minas] é a atitude para-
tado pela história da doxal dos viajantes. São todos modernistas, homens do futuro.
Galerie Denise Renée,
situada não por coin- E a um poeta de vanguarda que nos visita, escandalizando os
cidência no Boulevard
Saint-Germain, quase
espíritos conformistas, o que vão eles mostrar? As velhas cidades
em frente da Maison de Minas, com suas igrejas do século 18, onde tudo é evocação
de l’Amérique Latine. O
interesse praticamente
do passado e, em última análise, tudo sugere ruínas. Pareceria
nulo da galeria pelos um contra-senso apenas aparente. Havia uma lógica interior
trabalhos de Lygia Clark
e Hélio Oiticica será em no caso. O divórcio [grifo meu] em que a maior parte dos nossos
grande parte responsá- escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a
vel por uma insuportá-
vel lacuna brasileira do paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernis-
construtivismo brasilei-
ro na cartografia pari-
tas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto,
siense. Ver, por exemplo, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam”.
as cartas trocadas entre
Lygia e Hélio durante Retomo os primeiros parágrafos desta fala para reafirmar que
os anos de 1969/1970 o sucesso de certa Antropofagia e da tradição hermenêutica
e a grande exposição
“Helio Oiticica: the body canônica tem suas raízes revolucionárias e belicosas na viagem
of colour”, inaugurada
no ano passado na Tate
de Blaise Cendrars às cidades históricas, ou seja, no divórcio
Modern, em Londres. entre intelectuais e a história nacional e no paradoxo ocasionado
6
A conferência foi publi- pela irrupção da tradição brasileira na já adolescente importação
cada na Revista Brasileira
de Poesia, no mês de abril européia. Numa palavra, a Antropofagia bélica e ressentida tem
de 1956, e transcrita na
a ntolog ia Vang uard a
fundamento no imperativo categórico do abrasileiramento da
Européia e Modernismo arte de vanguarda.
Brasileiro, organizada
por Gilberto Mendonça Num único salto, solitário e contraditório,4 o complexo con-
Telles. O leitor curioso glomerado teórico, que compõe originalmente a Antropofagia,
terá o maior interesse
em consultar um anti- se comporta como o sinal preparatório a indicar a supremacia
go e hoje desaparecido
livro de Jean Hytier, La
do construtivismo nas manifestações artísticas modernistas e
poétique de Valéry (1953), pós-modernistas. Os exemplos mais bem realizados, e radicais,
em particular o capítulo
V: “Inspiration et tra-
serão encontrados a partir dos anos 1940 e 1950. Em literatura,
vail”. Ali se encontram a poesia de João Cabral de Melo Neto e os poemas visuais dos
excelentes exemplos de
“deglutição” antropofá- poetas concretos, e, em artes plásticas, as Bienais de Arte de
gica em... Paul Valéry. São Paulo.5 Para julgar sobre a importância da contribuição
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 19
Gragoatá Silviano Santiago

teórica de Paul Valéry na concepção do lirismo construtivista


desenvolvido por João Cabral, basta ler a conferência “Poesia e
composição – a inspiração e o trabalho de arte”, proferida pelo
poeta pernambucano em 1952.6
7
A resenha foi publicada
em jornal em 1952 e in-
Desta forma é que João Cabral explica a atitude dos es-
cluída em Cobra de vidro critores que decidiram a favor de uma escrita artística que se
(São Paulo: Perspectiva,
1978, p. 167-180) apóia na pesquisa – e não na inspiração: “Nos poetas daquela
8
Para maiores detalhes, família, para quem a composição é procura, existe como que o
consulte-se o sétimo
capítulo de As raízes e
pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em
o labirinto da América branco, exercitam sua força. Porque eles sabem de que é feita
Latina (Rio de Janeiro:
Rocco, 2006), de minha essa força – é feita de mil fracassos, de truques de que ninguém
autoria. deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de
Lembre-se que esta- aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de
9

mos sempre no mesmo


circuito semântico. Para renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir”.
Valéry, como vimos, a
composição é “artifício”. Sérgio Buarque de Holanda foi o primeiro crítico sensível
Pode-se dizer que faltou à aliança entre a estética e a ética, tal como proposta em língua
a Sérgio, na primeira
abordagem de Cabral, portuguesa pelo lirismo construtivista de João Cabral. Em artigo
o reconhecimento do
artifício (ou seja, da
sobre o poeta, intitulado “Branco sobre branco”,7 sem dúvida
composição artística) homenagem indireta ao célebre quadro de Kazimir Malevitch,
como tal.
Sérgio retoma a oposição entre o “desleixo”, característica prin-
cipal da colonização portuguesa nos trópicos, e o “zelo”, marca
preponderante da colonização espanhola no Novo Mundo. A
oposição fora articulada pela primeira vez em 1936 no ensaio
Raízes do Brasil, hoje um clássico.8 Ele a retoma em 1952 para
insistir sobre o mal-estar que sente diante da opção inesperada
e sistemática dum brasileiro pelo zelo na composição de seus
poemas. Julgara-o equivocadamente um equivocado.
Ao relatar o percurso de sua dúvida inicial sobre o valor
da produção poética de Cabral e o reconhecimento tardio de
sua alta qualidade, Sérgio demonstra como a opção radical do
pernambucano pelo zelo lhe parecera eleição de uma lingua-
gem poética artificial, o que comprometia a inserção natural dos
poemas na tradição lírica luso-brasileira. Passemos a palavra
ao próprio Sérgio: “confesso envergonhado que meus primeiros
contatos com sua obra e, depois, o crescente interesse que ela
pôde inspirar-me, nem sempre me deixaram totalmente livre de
hesitações ou suspeitas. Pareceu-me quase incrível, por vezes,
que essa consciência constantemente alerta e ativa, esse zelo, ao
mesmo tempo vigilante e criador [...], tão estranho aos mais inveterados
costumes da lírica luso-brasileira, chegassem a existir, entre nós,
sem fundar-se por vezes em algum malicioso artifício”.9 (grifos
nossos)
Ao ler o opúsculo de Cabral sobre o pintor catalão Joan
Miro (1952), Sérgio descobre tardiamente que o zelo cabralino
é a pedra de toque de que deve servir-se o crítico para avaliar
a originalidade de sua composição poética no interior da líri-
ca luso-brasileira. Lê-se na já citada resenha: “O que parecia
traduzir-se naquele zelo sempre atento não era apenas uma
20 Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008
O começo do fim

poética, na acepção mais corrente e usual do vocábulo: era mais,


e principalmente, uma espécie de norma de ação e de vida. A
estética, em outras palavras, assentava sobre uma ética”.
Em João Cabral, como em outros escritores que o precedem
e o sucedem, o exercício da arte se confunde com uma norma
de ação e de vida estóicas, cujo norte é determinado por uma
atividade social de produção. Ao trazer para a discussão da
Antropofagia o construtivismo, cria-se outro e novo paradoxo,
cujo poder de repercussão chega a nossos dias. Sérgio Buarque
não deixa de assinalá-lo na abertura de sua resenha: “Não há
grande paradoxo em dizer que na obra tão breve e tão volunta-
riamente impessoal de João Cabral de Melo Neto o autor parece
presente de corpo inteiro”. Graças ao esforço de composição, que
é artifício, o poeta se apresenta de corpo inteiro num poema
absolutamente impessoal. O par de calças só pode ser o confec-
cionado por aquele alfaiate e por nenhum outro, para retomar
a anedota de Beckett.
Em sua aliança com o construtivismo e na qualidade de
instrumento de busca da verdade poética, a teoria antropofágica
torna-se ferramenta poderosa. Por estar assentada em sólida pla-
taforma ética, serve para questionar radicalmente as miudezas
da história contemporânea e, mais, põe em questão as teorias
de composição poética defendidas pelas estéticas românticas e
neo-românticas, de que o surrealismo é o exemplo mais notável
na época em que Oswald lança os manifestos literários. Essas
estéticas estão centradas na expressão imperiosa da subjetivi-
dade plena, que age em sujeição a − e em concordância com −
uma espécie de transe onírico ou alucinógeno. Em oposição ao
trabalho de arte, afirma-se a toda poderosa inspiração.
Em contraponto à tomada de posição de João Cabral sobre o
artifício poético e ao assentado criticamente por Sérgio Buarque
em relação à aliança entre estética e ética, leiamos uma curta
passagem de L’amour fou, de André Breton. O poeta surrealista
lamenta os retoques que ele – primeiro leitor de si mesmo − foi
levado a fazer no poema “Tournesol” (Girassol): “Parece-me
fora de dúvida haver retocado uma duas ou três coisas, na ver-
são original [do poema], no intuito – tão lamentável afinal – de
obter um todo mais homogêneo, de limitar o grau de imediata
opacidade, de arbitrariedade aparente, que me pareceu existir
no poema da primeira vez que o li”. Primeiro, informa que a
primeira leitura da versão original do poema o levou a correções
ditadas pela autocrítica, para linhas abaixo, afirmar que as la-
10
Salto uma curta pas-
mentava: “A atividade crítica que, a posteriori, me veio a sugerir
sagem ent re as duas certas adições ou substituições de palavras [no poema], leva-me a
citações acima. Nela
está em jogo o papel da encarar agora essas correções como erros básicos: nada auxiliam
inspiração – e não do o leitor, antes pelo contrário, só conseguem de uma maneira ou
trabalho de arte – na
composição do poema de outra prejudicar gravemente a autenticidade do poema”.10
“Tournesol”. Segundo Breton, o trabalho de arte prejudica a autenticidade do
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 21
Gragoatá Silviano Santiago

poema, sua verdade imediata. Ele não quer carregar consigo o


crítico de si mesmo.
Retomemos, onde a tínhamos deixado, a questão da me-
mória cultural comum a todos os homens. Em mãos de Alain
Resnais e Jorge Luis Borges. De maneira premonitória lemos
no conto “A biblioteca de Babel” que “a certeza de que tudo está
escrito nos anula ou nos fantasmagoriza”. O que está por detrás
do dia de hoje – dito o passado, é já o presente que se impacienta
diante da demora do futuro. O que está adiante do dia de hoje
– dito o futuro, é sempre já a gestação do presente, pressurosa
em dar à luz o que está por detrás do dia de hoje. Segundo o
Manifesto Antropófago, o solo comum a toda a humanidade
futura é o “matriarcado de Pindorama”. O matriarcado é faca
de dois gumes − “devora” e “comunga”. Escreve Oswald em
ensaio datado de 1950: “[A cultura matriarcal] compreende a
vida como devoração e a simboliza no rito antropófago, que é
comunhão”.
Na alta Antropofagia, de que Oswald de Andrade quer ser
porta-voz, o ato de devorar adquire as qualidades estratégicas
do ritual católico, em que o consumo do alimento sacrificial
pelo cliente não distingue o real do imaginário, ou seja, o trigo
do corpo e o vinho do sangue. Em resumo, a devoração é co-
munhão. A gulodice da alta Antropofagia se situa entre os dois
excessos da razão, de que fala Pascal nas Pensées (IV): “excluir a
razão, só admitir a razão”.11 Por esse viés inesperado e excessivo,
retorna o tema por excelência desse relato: “Faça isso em minha
memória”.
Ou, então, retomemos os versos iniciais e os finais do poe-
ma “Burnt Norton”, em Quatro quartetos, de T. S. Eliot, na tradução
de Ivan Junqueira. Eis os versos iniciais do poema: “O tempo
presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no
11
Há sem dúvida um
catolicismo recalcado tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado. /
na teoria antropofágica
que se torna explícito no
Se todo tempo é eternamente presente / Todo tempo é irredimí-
momento em que está vel”. Saltemos agora para os versos finais do poema: “O tempo
em jogo o ato de devo-
rar como comunhão. A passado e o tempo futuro, / O que poderia ter sido e o que foi,
visão mais fascinante / Convergem para um só fim, que é sempre presente”.
da questão devoração/
comunhão é, na verda- Para bem apreender a riqueza da contribuição antropo-
de, a versão calvinista,
a ser considerada como
fágica à arte e à literatura brasileiras e à arte e à literatura em
desconstrucionista. À geral, é preciso negociar com os críticos que defendem o sentido
época da luta entre eu-
ropeus e indígenas com biográfico-evolutivo das histórias pessoais de vida, o sentido
vistas à catequese, ela único da História e o peso da economia na avaliação da produção
se encontra no sexto
capítulo de Voyage à la artística do ser humano. Como resultado da negociação, uma de-
terre du Brésil, de Jean
de Léry. A luta espiri-
dução (no sentido financeiro do termo) será concedida ao artista,
tual entre Villegagnon cujo custo benefício será a possibilidade de futuro esperançoso e
e Jean de Cointe ganha
peso no fato de que não
feliz para a humanidade. A thing of beauty is a joy forever. A dedução
há transubstanciação é o sentido e o poder da arte e da literatura das margens, da arte
ou consubstanciação
do corpo e do sangue e da literatura como tais – na condição de composição artística,
de Cristo. para retomar a expressão da poética de Valéry, ou em termos de
22 Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008
O começo do fim

par de calças, para retomar a metáfora do Alfaiate na anedota de


Beckett. O valor da dedução concedida pelos cientistas sociais e
os economistas aos mercadores de arte é a sabedoria humana. À
semelhança da antropofagia descrita por Alfred Métraux em seu
livro pioneiro, que se elabora como conhecimento dito científico
[knowledge], a Antropofagia oswaldiana se agiganta por ter como
escatologia a sabedoria dita poética [wisdom].
Ao se afirmar a favor da expressão impessoal, descaracteri-
zando a expressão subjetiva do poeta, e ao se deixar representar
teoricamente como semelhante à casquette de Charles Baudelaire,
cuja fabricação era compósita, a Antropofagia é antípoda da me-
mória involuntária de Marcel Proust. Ela se confunde, portanto,
com a memória voluntária, segundo a definição que dela nos foi
dada por Samuel Beckett em 1931, no ensaio pioneiro sobre o
autor de Em busca do tempo perdido. Em inusitada correspondên-
cia com o futuro Borges, autor do conto “Funes, o memorioso”
(1944), Beckett afirma inicialmente: “O homem de boa memória
nunca se lembra de nada, porque nunca se esquece de nada”.12
Em oposição à memória involuntária, a memória voluntária –
rebaixada por Beckett na escala dos valores proustianos como
a má memória – é necessariamente incompleta. Nesse sentido,
ela é orgânica e não o é. É interior e não o é. É exterior e não o
é. É involuntária e não o é. Em resumo, ela transita e, por isso,
é anfíbia.
A memória voluntária é memória e, ao mesmo tempo,
hábito, para retomar outra categoria analítica de Beckett. Ela
é hábito adquirido pelo ofício de viver e pelo ofício de ler. Em
suma, uma sabedoria – uma experiência de vida que se soma a
uma pesquisa livresca; é aprendizado. Segundo as palavras sem
dúvida irônicas de Beckett, ela é “a memória que não é memória,
mas simples consulta ao índice remissivo do Velho Testamento
do indivíduo [...] É a memória uniforme da inteligência”. Portanto,
a memória voluntária não se relaciona em coisa alguma com a
boa memória, ou seja, a memória involuntária proustiana.
A memória voluntária – a má memória, insisto, bem como
a Antropofagia – é conseqüência do pensamento da diferença,
12
Entre outras, leiamos
esta passagem de “Fu- mas ela só existe plenamente para negar os valores subjetivos
nes, o memorioso”: “Não e supremos, que estão na origem da sua desclassificação por
só lhe custava compre-
ender que o símbolo Marcel Proust. Se a reversão dos valores – na leitura de Beckett, o
genérico cão abranges-
se tantos indivíduos
mau da memória está sempre em posição inferior −, se a reversão
díspares de diversos dos valores não foi necessária no período histórico das vanguar-
tamanhos e diversa for-
ma; aborrecia-o que o das, ela está sendo requisitada na contemporaneidade. Andréas
cão das três e catorze Huyssen, historiador de arte, situa o pós-modernismo depois de
(visto de perfil) tivesse
o mesmo nome que o grande divisão (“after the great divide”). Huyssen assim define a
cão das três e quarto
(visto de frente). Seu
expressão: “O que chamo de a Grande Divisão é o gênero de dis-
próprio rosto no espe- curso que insiste na distinção categórica entre arte erudita [high
lho, suas próprias mãos,
surpreendiam-no todas art] e a cultura das massas”. Acrescenta: “[...] o pós-modernismo
as vezes”. repudia as teorias e as práticas da Grande Divisão”. Em oposição
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 23
Gragoatá Silviano Santiago

às leituras equivocadas da vanguarda histórica, que insistiam


no fato de que era indispensável excluir as manifestações de
todas as formas de cultura de massa, o historiador nomeia de
maneira incontestável o principal responsável pela Grande
Divisão, o alto modernismo [the high Modernism]. Ele se explica:
“as vanguardas históricas tinham por fim o desenvolvimento
duma relação alternativa entre a arte erudita e as culturas das
massas e dessa forma deveriam continuar a existir dentro do
alto modernismo, que, no entanto, insistia majoritariamente na
hostilidade inata entre o alto e o baixo”.13 Nem alta cultura nem
cultura de massa, a Antropofagia – ou a má memória – aponta
para as duas, ao mesmo tempo.
Retornemos a Beckett e a Proust para concluir com a ajuda
do primeiro: “Democrata incondicional, [a memória voluntária]
não faz qualquer distinção entre os Pensamentos de Pascal e uma
propaganda de sabão”. A Antropofagia está no nascedouro da
produção artística que se afirma como negação das estéticas do
alto modernismo, que lutavam a favor da exclusão da cultura
das massas do reino das artes. A Antropofagia se apresenta aos
olhos pós-modernos como a negação das estéticas românticas,
fundadas na sinceridade do eu.
Durante o período áureo da vanguarda brasileira, a An-
tropofagia buscava, por um lado, apreender e avaliar para o
artista e o pensador não-europeus o peso da herança cultural
universal e, por outro lado, identificar as razões pelas quais os
indígenas – que são nossos antepassados dum ponto de vista
exclusivamente geográfico – não tinham conseguido ter acesso
ao capital cultural consensual, indispensável à produção de obra
artística ou reflexiva com peso universal. Mais importante do que
a constatação da inferioridade do colono em relação à empresa
colonizadora européia e a conseqüente rejeição das injustiças
estabelecidas pelo poder tirânico das metrópoles, a Antropofa-
gia se apresenta como estratégia artística e reflexiva que visa a
apreender o valor universal para os que estão desapossados dele
originariamente. Na busca desse valor, a Antropofagia rechaça
a dívida contraída pelo não-europeu com o universal, para então
indiciá-la duplamente − como signo de reconhecimento e, para-
doxalmente, de auto-reconhecimento. A teoria antropofágica é
o primado duma negociação, cujo resultado – isto é, a redução
ou o abatimento no preço legal e oficial do universalismo – é a
iluminação do mundo e seus habitantes pela amplidão absoluta
13
A reiterar a tese de
Huyssen, leia-se no ma- do conhecimento pleno das diferenças. A iluminação se dá no
nifesta de Oswald: “O exercício de ultrapassagem histórico das condições funestas do
que atropelava a verda-
de era a roupa, o imper- cotidiano e da atualidade.
meável entre o mundo
interior e o mundo ex-
A produção de bens artísticos e reflexivos passa por uma
terior. A reação contra experiência pessoal que se renova, que é renovada por cada
o homem vest ido. O
cinema americano in- experiência humana, indiferente de sua localização precisa na
formará”. história ocidental e na geografia do planeta. Leia-se o manifesto,
24 Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008
O começo do fim

de que vimos falando: “Contra a Memória fonte do costume.


A experiência pessoal renovada”. A memória se renova pela
intervenção do sujeito na memória universal, de que falam Alain
Resnais e Jorge Luis Borges. Sua memória é involuntária e volun-
tária, é interior e exterior, é orgânica e artificial, é incompleta e
uniforme. O sujeito se renova no momento em que sua memória
involuntária se renova voluntariamente.
Em possessão duma reserva parcial de conhecimento e de-
sejoso de ter acesso ao capital artístico dito universal, os artistas
e os pensadores não-europeus inventaram não só argumentos
contraditórios e paradoxais, como também metodologias de
leitura em nada convencionais. A Antropofagia não deixa de
propor uma pedagogia para todos os cidadãos. Marca original do
colono, o conhecimento incompleto se justapõe ao conhecimento
dito universal, marca original do colonizador. É um conhecimen-
to exorbitante que deriva da combinação, da comunhão das duas
reservas de conhecimento pelo esforço antropófago. Ele rechaça,
portanto, as duas formas parciais de conhecimento − tanto a
parcial do colono quanto a dita universal do colonizador. No
domínio da Antropofagia, o único valor responsável é o exor-
bitante. Para melhor compreender a situação pedagógica a que
chegamos, aprenda-se com Emmanuel Lévinas que “a relação
intersubjetiva é uma relação não-simétrica. Nesse sentido, sou
responsável pelo outro sem esperar a recíproca, ainda que ele me
custe a vida. A recíproca é problema dele”. A recíproca ocidental
não é, nunca foi e nunca será problema do sujeito antropófago.
Os argumentos legitimados pela Antropofagia escapam
muitas vezes da lógica cartesiana e de suas metodologias de
leitura, escapa ainda ao sentido único da História. Daí a ori-
ginalidade e audácia dos aforismos levantados pelo Manifesto
Antropófago, de que é emblemático o seguinte: “Só me interessa
o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. Antes de
ser o inimigo, ainda que na realidade o possa ser, o outro é a pos-
sibilidade de união neste mundo, em que mais e mais se perde a
esperança da fraternidade universal. Essa operação responsável,
esperançosa e utópica, a felicidade na comunhão, só é possível
graças aos paradoxos da Antropofagia: “Só a Antropofagia nos
une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. / Única
lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualis-
mos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos
os tratados de paz”.
Tudo o que é de outro é meu. Tornar-se responsável do bem
que é do outro, dos bens que pertencem ao outro, é o próprio
do eu que, em lugar da sinceridade romântica, se quer fraternal
e esperançoso, vale dizer, universal. O sujeito não recua diante
dos atos e mecanismos de ataque ou de defesa manifestados
pelo outro. Voluntariamente, acumula em si o outro, o capital
e os valores do outro. Nunca será deficitário. Em negociação
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 25
Gragoatá Silviano Santiago

com o outro, jamais desfalca seu capital cultural, soma sempre.


A visão do sujeito antropófago perde o sentido das fronteiras
geográficas e sua audição, perde o sentido dos limites espaciais
e sua localização. A responsabilidade é a expressão mascarada
de todos os individualismos que, por sua vez, é a expressão
mascarada de todos os coletivismos – repitamos as palavras
do Manifesto. Daí o aforismo que abre o texto de Oswald: “Só a
Antropofagia nos une”.
Terminada a etapa das operações aritméticas − ou finan-
ceiras − de soma, impõe-se o desejo de verificar a exatidão dos
resultados obtidos. Aplique-se a prova dos nove. Esta negará
ou reafirmará o rigor da lei do homem e da Antropofagia. No
Manifesto Antropófago, lemos uma e muitas vezes o seguinte afo-
rismo: “A alegria é a prova dos nove”. E lemos ainda: “Antes dos
portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a
felicidade”. Uma vez mais precisemos nossa posição. Antes de ser
conseqüência das descobertas marítimas feitas pelos europeus
no século 16, a alegria foi sempre o valor do antropófago; em
uma só palavra, o valor exorbitante do homem no matriarcado
de Pindorama, um valor absoluto.
Dessa perspectiva, o estudo das diferenças espaciais no
planeta terra – e a constatação de sua composição não-simétrica
do ponto de vista histórico, social e econômico – só guarda sua
força operacional por detrás da muralha sobreposta ao con-
ceito oswaldiano pela tradição hermenêutica, cuja origem está
incontestavelmente na busca de identidade para cada nação do
subcontinente latino-americano ao final do colonialismo euro-
peu. Constate-se uma vez mais: a lei que constitui o sujeito por
seu “interesse pelo outro”, ou por sua “responsabilidade pelo
outro” não diferencia o antropófago do ser humano tout court. A
lei do homem e a lei do antropófago não são duas, são a mesma.
Melhor, a lei do mesmo rasura a diferença que tinha servido
na época colonial e depois dela para constituir o antropófago
na condição de ator latino-americano singular, descoberto pelo
europeu e inventado a partir das grandes descobertas marítimas
do século 16. Na prova dos nove, esse ator tem a identidade de
homem ressentido (Nietzsche) e navega nas águas belicosas do
saber parcial.
As questões políticas e econômicas decorrentes da longa
e fastidiosa narrativa sobre as transformações das colônias eu-
ropéias em nações latino-americanas cedem o lugar a questões
decorrentes duma nova e complexa forma de constituição do
sujeito (artístico). Tal reviravolta se dá no momento em que se
torna de importância primordial uma visão esperançosa e fe-
liz, universal, que contrastará radicalmente com as propostas
sócio-políticas defendidas pela globalização do planeta a partir
da unificação econômica das bolsas e dos mercados, ou que a
acusam pela mesma linguagem, só que em sentido inverso.
26 Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008
O começo do fim

O novo e complexo sujeito antropófago – semelhante ao


que está sendo encenado nas fotografias de Mariko Mori, intitu-
ladas Beginning of the end: Past, present and future (1995-2000) – 14
se caracteriza pelo dom da ubiqüidade, da simultaneidade e da
transcendência. O novo sujeito está por todos os cantos do tempo
e do espaço. É a memória do espaço fotografada pela perspecti-
va da memória do tempo. O sujeito está ali e está alhures, num
outro lugar onde os limites históricos e as fronteiras geográficas
se apresentam desprotegidas do sentido de propriedade por um
grupo ou por grupos hegemônicos. Como o Manifesto o tinha
dito em 1928, trata-se de um mundo “sem Napoleão, sem César”.
A nova certeza proposta por Mariko Mori e muitos outros ar-
tistas contemporâneos furta a diferença para melhor apreender
a sutura que as obras de arte operam pelo “totalitarismo” da
alegria, para empregar o substantivo de Clément Rosset em seu
ensaio La force majeure.
Citemos Rosset: “há na alegria [joie] um mecanismo aprova-
tivo que tende a ir além do objeto particular que a suscitou para
afetar indiferentemente todo objeto e chegar a uma afirmação
14
Os leitores que não do caráter jubilante da existência em geral. Assim, a alegria
conhecem o trabalho de
Mariko Mori poderão aparece como uma espécie de cega desoneração de dívida, con-
ler com proveito esta
curta passagem extraída
cedida a todos e a qualquer, como uma aprovação incondicional
da Encyclopédie Encarta de toda forma de existência presente, passada ou futura”. Mário
(2006): “Mariko Mori
fotografou vistas de 360º
de Andrade afirmava de maneira paradoxal: “A própria dor é
de onze cidades repre- uma felicidade”. Passemos por cima do Nietzsche, autor de O
sentantes do passado
(Ankgor, Teotihuacán, crepúsculo dos ídolos, para chegar finalmente a Gilles Deleuze,
La Paz, Gizah), do pre- seu leitor. Deste é a definição seguinte: “Trágico designa a for-
sente (Times Square,
em Nova York, Shibuya, ma estética da alegria [joie]; não se trata de fórmula medicinal,
em Tóquio, Piccadilly
Ci rcus, em Londres,
nem de solução moral da dor, do medo ou da piedade. O que é
Hong Kong) e do futuro trágico é a alegria”.
(o bairro da Défense, em
Paris, Xangai, Docklan- O retorno do que foi recalcado nesta apresentação – a
ds em Londres, Odaiba muralha construída pela tradição hermenêutica – é apenas a
em Tóquio, Berlim). Ela
própria está presente na afirmação em negativo do poder policial das fronteiras alfandegá-
foto, deitada, vestida de
um traje futurista numa
rias e da intolerância dos governantes e dos cidadãos em relação
cápsula de plexiglas à circulação plena dos homens pelas nações do planeta, pelos
transparente. Mariko
torna assim possível, seus múltiplos tempos e espaços. Mais: o retorno do recalcado
através da mensagem representa as variadas formas de transgressão artística, afirma-
sobre um mundo glo-
balizado, as noções de das por considerações de ordem histórica, política e econômica,
simultaneidade, ubiqüi-
dade e transcendência.
cujo fim é o de explicar, não a criação estética em si, mas as cir-
Seu corpo torna-se um cunstâncias negativas e diversas que a cercam, curto-circuitando
‘instrumento de comu-
nicação com o mundo’, sua liberdade de expressão. “Mas, meu senhor, olhe o mundo,
seu trabalho, ‘um ato e olhe seu par de calças”.
artístico destinado a
dist ribuir a essência Leiamos um aforismo do Manifesto da Poesia Pau-Brasil
espiritual do mundo, a
desviar os homens dos
(1924). Ele nos fala da luta a favor dum caminho único que deve
combates políticos, re- englobar a antiga e uma nova concepção de poesia: “Uma única
ligiosos ou ideológicos
que provocam a devas-
luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação.
tação do planeta Terra, E a Poesia Pau-Brasil, de exportação”. Apesar de comportar um
nossa única moradia’”.
tempo e um lugar predeterminados pelo adjetivo que a qualifica,
Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 27
Gragoatá Silviano Santiago

a nova poesia, de que fala Oswald, luta por um caminho único,


que é o da exportação. Seu aqui está alhures. Seu alhures está
aqui. Nesse sentido, a repetição exaustiva da palavra “Roteiros”
em um de seus aforismos se afirma de importância primordial
para bem compreender os deslocamentos espácio-temporais do
sujeito artístico que se quer antropófago e construtivista.
Nas reflexões propriamente utópicas de Oswald de Andra-
de, sempre está em jogo a condição do “bárbaro tecnicizado”. No
corpus da Antropofagia, tudo exige uma pedagogia escatológica,
de óbvio sentido universal, mas é o personagem do bárbaro
tecnicizado que a reclama. Por falta de tempo para se deter nos
detalhes, retomemos algumas idéias lançadas por Jean-François
Lyotard em La condition post-moderne. As teses defendidas pelo
filósofo doublé de pedagogo se articulam a partir dum grande
eixo, ao redor do qual se desenha o questionamento do conceito
de Bildung [formação], tal como nos foi transmitido pela tradição
filosófica do século 19.
À transmissão dum saber completo pelo professor ao aluno,
cujo saber é por definição incompleto, à interiorização progres-
siva do saber completo sob a batuta áspera do maestro, segue-se
hoje – graças à informatização do conhecimento e a possibilidade
de acesso por todos à Internet – que o saber humano se apresen-
ta sob a forma dum estoque uniforme, completo e exterior ao
homem. A memória de cada um e de todos é tão anfíbia quanto
a boa memória involuntária e orgânica (Marcel Proust) e a má
memória voluntária e inorgânica (Antropofagia). Como escreve
Lyotard: “A Enciclopédia de amanhã são os bancos de dados. Eles
excedem a capacidade de cada usuário. São ‘a natureza’ para o
homem pós-moderno”.
Continuemos a leitura de Lyotard: “À medida que o jogo
está na informação incompleta, a vantagem cabe àquele que
sabe e pode obter um suplemento de informação. Este é o caso,
por definição, de um estudante em situação de aprendizado”.
É o caso também − acrescentemos − do colono que se contenta
com a condição de colonizado. A este faz sentido a retomada
das idéias guerreiras desenvolvidas pela tradição hermenêuti-
ca, de que falamos no começo desta apresentação. No jogo de
invenção com informação completa para os parceiros, o melhor
desempenho não pertence obrigatoriamente ao professor (ou ao
colonizador), que detém a priori um suplemento, ou ao estudante
(o colono), que pelo trabalho mimético busca para si a aquisição
de tal suplemento. A invenção – continua Lyotard – “resulta de
um novo arranjo dos dados que constituem propriamente um
‘lance’ [un coup]. Este novo arranjo obtém-se ordinariamente
mediante a conexão de uma série de dados tidos até então como
independentes. Pode-se chamar imaginação a capacidade de ar-
ticular em conjunto o que assim não estava”.

28 Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008


O começo do fim

Nos distantes anos 1920, a Antropofagia propunha uma


nova pedagogia, onde estava presente a possibilidade para os
artistas e os pensadores brasileiros de trabalhar “no jogo da
informação completa”. Todos os parceiros – ex-colonos e ex-
colonizadores − estariam em igualdade de competência na hora
da produção do pensamento e da arte. O exorbitante não era um
suplemento de mão única, mas a duas, a três mãos. O exorbitante
é a imaginação antropófaga. Terminemos por esta passagem de
Lyotard, que a sua maneira retoma a utopia esperançosa e feliz
de Borges, de Valéry e de Beckett: “Ora, é permitido representar
o mundo do saber pós-moderno como regido por um jogo de in-
formação completa, no sentido de que os dados são em princípio
accessíveis a todos os especialistas: não existe segredo científico.
Em igualdade de competência na produção do saber, e não mais
no processo de sua aquisição, o aumento de eficiência depende
apenas e finalmente da ‘imaginação’ que permite seja dado um
novo lance, sejam mudadas as regras do jogo”.

Escrito em francês em junho de 2007


Traduzido em maio de 2008

Abstract
The purpose of the “Beginning of the end” is to
present a new and supplementary interpretation
of the key concept of the Brazilian Modernist
movement – Oswald de Andrade’s antropofagia.
For eight decades the concept has been responsible
for an extremely rich and accurate bibliography
that underscores the belligerent aspects of the
colonized cultures in regard to the colonizers.
This interpretation, in spite of being correct from a
social and political point of view, neglects the basic
qualities of the work of art written in the margins
of Western culture, in especial those related to the
fact that it should arouse in the reader the need
for a utopian thought, in which peace, hope and
joy are the values.
Keywords: Brazilian literature. Avant-garde.
Modernist movement. Antropofagia. Utopian
thought.

Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008 29


Gragoatá Silviano Santiago

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Oswald de. Obras completas: ao pau-brasil à antro-
pofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
v. VI.
BECKETT, Samuel. Le monde et le pantalon. Paris: Minuit, 1990.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas. São Paulo: Globo, 1999. v. I.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: Presses Uni-
versitaires de France, 1970.
HUYSSEN, Andreas. After the great divide. New York: Midland
Book, 1986.
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: J. Olym-
pio, 1986.
ROSSET, Clément. A alegria: a força maior. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2000.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo
brasileiro. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1982.

30 Niterói, n. 24, p. 13-30, 1. sem. 2008


Notas históricas: solidariedade
e relações comunitárias
nas literaturas dos países africanos
de língua portuguesa
Benjamin Abdala Junior

Recebido 03 mar. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo
Notas sobre as histórias literárias dos países afri-
canos de língua oficial portuguesa, construídas a
partir da situação colonial. São relevados traços
históricos comuns, que apontam para perspecti-
vas neo-românticas quando essas literaturas se
voltam para imaginar questões relativas a suas
nacionalidades; processos de atualização da língua
literária portuguesa, cuja plasticidade remonta
nacionalmente aos tempos medievais; e as redes
comunitárias que elas conformam com o conjunto
das literaturas de língua portuguesa..
Palavras-chave: História literária. Países afri-
canos. Língua portuguesa. Perspectivas. Neo-
romantismo.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008


Gragoatá Benjamin Abdala Junior

O estudo dos processos de afirmação das literaturas afri-


canas de língua portuguesa levam o crítico a relevar formas
em que os escritores, desde a facção da obra, procuram obter
sua legitimação, num campo intelectual definido por relações
comunitárias. Autor, texto e leitor situam-se nesse horizonte
lingüístico-cultural que se pauta pela tendência à supranaciona-
lidade, que se tem mostrado tão importante quanto as adesões
empáticas da nacionalidade. Nessa rede, o trabalho literário
procurará sua legitimação não apenas em termos de criação,
mas também nas esferas de circulação, por onde circulam os
principais agentes de seu reconhecimento. Estabelecem-se,
assim, a partir de cada obra, relações de solidariedade entre
esses agentes. Para tanto, a inclinação para a inovação artística
torna-se correlata ao desejo de se provocar impacto, encontrar
ressonância enquanto poder simbólico.
Impõe-se uma observação preliminar, não obstante essa
tendência a uma normatização supranacional: as literaturas
africanas de língua portuguesa apresentam especificidades na-
cionais e só um olhar distraído nivela suas diferenças. Do ponto
de vista metodológico, sua abordagem pode ser feita como em
qualquer série cultural: registros em língua portuguesa, que se
articulam supranacionalmente, como foi assinalado, seguin-
do redes e fluxos da circulação da cultura. Do ponto de vista
histórico, essas literaturas, cujos repertórios configuraram-se
plasticamente na língua literária portuguesa, trazem marcas que
vêm desde a formação de Portugal como estado nacional, mas
articulam-se em redes com outros sistemas, em cada situação
histórica. Evidentemente, esse reporte às origens das literaturas
em português pode ser alongado, pois a experiência literária
é obviamente mais ampla, acabando por se associar à própria
origem da cultura. Um patrimônio de todos os povos, que não
se reduz às apropriações e matizações politicamente associadas
a formações nacionais.
Liberalismo e projetos nacionais
Historicamente, as literaturas africanas de língua portu-
guesa são recentes e seguem – como aconteceu com o romantis-
mo em escala mundial – os influxos da tomada de consciência
nacional por parte da intelectualidade letrada. É por isso que
certos vetores encontráveis no romantismo brasileiro podem
ser associados às produções africanas, mesmo em produções de
até meados do século XX. Os países colonizados por Portugal
na África deparam-se com a necessidade de estatuir literaturas
nacionais, no quadro da modernidade, tal como ocorreu com o
Brasil no século XIX. Tivemos o romantismo propriamente dito
e, depois, a Semana de Arte Moderna, como divisora de águas,
que propiciou a literatura, dita “regional”, e a nossa poesia mo-
dernista.
32 Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008
Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa

No romantismo, a literatura brasileira veio a inventar mi-


tos da nacionalidade, buscando a “cor local” para uma sintaxe
que vinha da Europa. E tanto Portugal, como o Brasil, estavam
sob o manto liberal e artístico da França. Pensávamos nossas
formas de independência em francês, mediatizando-o por situ-
ações locais, o que, por assim dizer, neutralizava o que pudesse
ser explosivo na perspectiva hegemônica no campo intelectual
liberal. Há faces diferentes: o liberalismo torna-se dominante,
no Brasil, revestindo-se de inclinações para a afirmação nacio-
nal; liberalismo em Portugal como estratégia de modernização,
contra as formas passadiças associadas ao modo de pensar e
sentir o país dos setores conservadores.
A leitura desse processo histórico nos países africanos
de língua portuguesa revela que um primeiro momento de
fratura do imaginário do colonizador veio a ocorrer pela pre-
sença político-cultural de uma burguesia crioula africana, nos
últimos vinte anos do século XIX. Foi um período liberal, que
pode ser associado à Regeneração portuguesa, e que favoreceu
o início de uma intensa atividade jornalística nas então colônias.
A imprensa desponta, desse modo, como a força responsável
pelo surgimento dos primeiros redutos dos assim chamados
“naturais da terra”, capazes de romper o silêncio imposto pela
estrutura colonial. Seriam uma versão africana, correlata ao que
havia acontecido com a elite dos crioulos brasileiros (mestiços
descendentes de portugueses), que haviam conseguido a liber-
tação da metrópole colonial.
Muitos dos nomes mais significativos na história das
idéias em Angola, por exemplo, estão ligados a esse período de
fundação e consolidação da imprensa. No campo da literatura,
destaca-se Alfredo Troni, autor da novela Nga Muturi (1882),
que se correspondia com escritores portugueses da Geração de
70. Sua novela foi publicada em folhetins na Gazeta de Portugal,
em Lisboa. Nessa narrativa, com ironia que lembra a literatura
de Eça de Queirós, Troni já mostra a incorporação de costumes
locais e domínio do quimbundo. Se o escritor nasceu e se formou
advogado em Portugal, sua identificação maior se fez com a nova
terra, ele que era republicano e socialista. Seu ideário – mais
forte do que questões de origem – tinha suas bases na Revolução
Francesa. Foi um processo de identificação, pois, sua adesão às
reivindicações da burguesia crioulizada de Angola. Aspirou
por formas políticas liberais e, mesmo, pela independência do
país. Nos horizontes de seu grupo intelectual, estava o Brasil e
sua literatura romântica, antiga colônia que havia conseguido
se libertar da metrópole. Seu republicanismo e socialismo prou-
dhoniano o levava mais longe.
As identificações políticas das elites angolanas com o Brasil
já eram anteriores. É de se recordar que, no tratado de reco-
nhecimento da independência brasileira por parte de Portugal,
Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008 33
Gragoatá Benjamin Abdala Junior

feito sob mediação inglesa em 1825, o Brasil se comprometeu a


não aceitar “proposições” de quaisquer colônias portuguesas
de se reunirem a ele. Havia um movimento desencadeado em
Angola, nesse sentido, associado a interesses escravocratas, o
que contrariava os interesses ingleses, além evidentemente dos
portugueses. Nas décadas finais do século XIX, as aspirações
eram de outra natureza, de outros setores, os anti-escravocratas.
Alfredo Troni foi autor de um regulamento que declarou defi-
nitivamente extinta a escravidão em Angola. Acabou por ser
destituído de seus cargos públicos e compulsoriamente exilado
para Moçambique.
Consciência regional e consciência nacional
Traços neo-românticos, centrados na incorporação da
atmosfera cultural da terra, ultrapassariam o século XIX como
linhas de força que se projetam, no conjunto dos países afri-
canos de língua portuguesa, até meados do século XX. Essa
observação é geral e deve-se considerar também diferenças que
matizam esse romantismo que embalou tanto o Brasil como
Portugal. Há, entretanto, uma inclinação para o mapeamento
sociocultural e mesmo da ambiência natural que permitem
aproximações. Aos poucos, nas primeiras décadas do século
XX até às vésperas da Segunda Guerra Mundial, afirmaram-se
na África colonial portuguesa formas de consciência regional,
que já embutiam aspirações nacionais. Nessa nova matização, as
imagens românticas são comutadas, em especial, por uma apro-
priação de repertórios do modernismo brasileiro. Este é o dado
novo, tendo em vista que o gesto artístico de nossos escritores
procurava afastar paradigmas e mesmo uma sintaxe identificada
com dicções evocativas da situação colonial. A língua literária
possuía um repertório proveniente de experiências comuns,
mas que tinham sua especificidade nas apropriações, que eram
uma forma de ação comunitária interna, culturalmente também
híbrida. A literatura “traduz” em suas formas um conhecimento
que vinha de outras áreas: história, filosofia, política, sociologia,
antropologia, artes etc.
No período do pós-Segunda Guerra e em torno da afirma-
ção dos princípios de auto-determinação dos povos, proclamada
pela carta das Nações Unidas, radicalizaram-se formas de identi-
ficação nacional. Se Portugal era associado à Pátria (colonial) dos
discursos oficiais, os africanos buscavam a afirmação da Mátria
(a “Mamãe-África”), e, com essa perspectiva, os escritores afri-
canos olharam com ênfase para as produções literárias do Mo-
dernismo brasileiro (a Frátria – a antiga colônia que se libertou e
construiu um discurso próprio). A fraternidade supranacional se
traduz em formas de solidariedade, com simetrias entre gestos:
no Brasil, em meados do século, rediscutia-se a nossa formação
histórica, o que deu origem a obras clássicas de nossa cultura,
34 Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008
Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa

de autoria de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior e


Antonio Candido, por exemplo. Na literatura, os ecritores pro-
curavam revelar facetas psicossociais de nossa gente. Sob o jugo
colonial português, a ênfase sociológica e nacional dos escritores
africanos encontrava sua radicalidade em formulações discur-
sivas anticoloniais. Eram tempos de literatura engajada e esses
intelectuais mostram-se com facetas especificamente literárias
tão radicais como as políticas. O escritor e o cidadão, para eles,
não poderiam deixar de caminhar juntos. A grande imagem
(neo-romântica) que se firmou após a Revolução Cubana, foi a
de Che Guevara: numa mão o livro; noutra, o fuzil.
Um bom exemplo dessa problemática é Castro Soromenho.
Viveu em período anterior, onde já se desenhavam atitudes
que irão embalar as lutas de libertação nacional na África de
língua oficial portuguesa, que eclodiram depois, nos anos 60.
Soromenho situa-se no campo intelectual da intelectualidade de
esquerda (a grande frente popular antifascista dos anos 30-40),
para quem questões de independência nacional se imbricavam
com perspectivas sociais. Esse autor, nascido em Moçambique
(1910), filho de português e cabo-verdiana, foi com um ano de
idade para Angola, onde viveu de 1911 a 1937. Fez estudos primá-
rios e de liceu em Lisboa (1916-1925). Voltou a Portugal em 1937.
Em face de perseguições políticas, teve de exilar-se, vivendo na
França (1960-1965) e, depois, no Brasil (1965-1968), onde veio a
falecer. Foi um dos fundadores do Centro de Estudos Africanos
da Universidade de São Paulo, dirigido por Fernando Mourão.
O romance Terra morta teve sua primeira edição publicada no
Brasil, em 1949, quando o autor residia em Portugal. Nem po-
deria ser diferente, pois esse romance denuncia o colonialismo
português.
Por outro lado, laços de solidariedade eram compactuados
com a intelectualidade metropolitana. Os sonhos libertários,
advindos do término da Segunda Guerra Mundial e que então
embalavam os intelectuais portugueses, eram frustrados pela
atmosfera sufocante da guerra fria e pela persistência do regi-
me ditatorial. No mesmo campo, as relações de solidariedade
coexistem contrastivamente com as de desigualdade. Há hege-
monias e as mais significativas são as que se naturalizam: os
não-hegemônicos aceitam com naturalidade a dominação do
outro. E, em Portugal, entre africanos e metropolitanos, havia di-
ferenças, pois os primeiros não aceitavam a dominância histórica
dos segundos. São tensões que afloraram no campo político, com
ressonâncias na literatura. Questões ideológicas manifestam-se
também em nível inconsciente e hábitos coloniais acabam por
se manifestar para além da consciência ou intenções, inclusive
dos atores do campo intelectual.
Mesclagens culturais e olhares em contraste

Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008 35


Gragoatá Benjamin Abdala Junior

A literatura cabo-verdiana pode ser dividida em dois perío-


dos: antes e depois da revista Claridade (1936-1960). Os escritores
do arquipélago de Cabo Verde, ao procurarem voltar as costas
para modelos temáticos europeus, fixaram seus olhos no chão
crioulo, próprio da mesclagem étnica e cultural de seu país. A
crioulidade deve ser entendida como uma mescla cultural não
unívoca (mestiça), um conjunto híbrido onde pedaços de cultu-
ras interagem entre si, ora se aproximando, ora se distanciando.
Essa atitude dos intelectuais cabo-verdianos, de oposição aos
padrões hegemônicos provenientes da metrópole, era correlata
à obsessão de procura de origens – origens étnicas e culturais,
que sensibilizavam a intelectualidade africana do continente.
Interessante é indicar essa tomada de consciência regional.
Um bom exemplo dessa trajetória é Osvaldo Alcântara
(pseudônimo poético de Baltasar Lopes), que, a exemplo de parte
da intelectualidade de seu país, sonha à Manuel Bandeira com
uma pasárgada que existiria em outra margem do oceano. Se
o poeta brasileiro imagina um reino com um rei bonachão que
lhe permitiria todas as “libertinagens” (título da coletânea de
Bandeira), Osvaldo Alcântara tem saudade de uma pasárgada
futura que encontraria no “caminho de Viseu” ([...] indo eu, indo
eu,/a caminho de Viseu). Osvaldo Alcântara estava com os pés em
Cabo Verde, mas a cabeça inclina-se para fora, para o sonho da
imigração: o “caminho de Viseu” da cantiga de roda portuguesa.
Sua perspectiva é aquela que historicamente sempre se colocou
para povos de migrantes como os cabo-verdianos, e ele não
deixa de ter consciência de que esta saudade fina de Pasárgada/é
um veneno gostoso dentro do meu coração.
Mais tarde, já em plena luta de libertação nacional, Ovídio
Martins - identificado com os pressupostos ideológicos da Casa
dos Estudantes do Império, em Lisboa – já se coloca no pólo
oposto. Não aceita o reino de Pasárgada, para sua geração uma
forma de fuga. Em oposição ao que ocorrera no sonho de Bandei-
ra, ele não só não era amigo do rei (Vou-me embora pra Pasárgada/
Lá sou amigo do rei) como foi perseguido por sua polícia (a polícia
política de Salazar). Não conseguindo permanecer em Lisboa,
foi obrigado a imigrar para a Holanda. Ovídio Martins, como
Osvaldo Alcântara, sonha com o que não tinha: justamente sua
terra, Cabo Verde. Se Osvaldo Alcântara olha para horizontes
indefinidos do mar, Ovídio Martins adota a perspectiva inversa:
procura arremessar-se ao chão (Pedirei/Suplicarei/Chorarei/Não
vou para Pasárgada).
Discursividades supranacionais
Na prosa de ficção, a presença do romance nordestino
brasileiro se mostra bastante forte em romances como Os flage-
lados do vento leste (1960), de Manuel Lopes e Chiquinho (1947),
de Baltasar Lopes, em diálogo, respectivamente, entre outros,
36 Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008
Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa

com Graciliano Ramos (Vidas secas) e José Lins do Rego (Menino


de engenho). Importa indicar que a tomada de consciência dos
cabo-verdianos de sua terra teve como um de seus agentes o
crítico literário José Osório de Oliveira, que apontou para os
cabo-verdianos a necessidade de situarem suas produções na
ambiência física e cultural de sua terra (para ele, uma região de
Portugal). Outro desses atores foi o poeta-diplomata brasileiro
Ribeiro Couto, que fez chegar ao arquipélago os poetas mo-
dernistas brasileiros. No fundo, considerava-se idealmente, em
Cabo Verde, uma espécie de literatura em língua portuguesa,
como um todo, com matizações onde o regional e o nacional
pouco diferiam. Logo, uma aspiração comunitária para além de
diferenciações, que, não obstante, seriam necessárias por darem
veracidade às produções culturais, que deveriam estar fincadas
na terra. A perspectiva crítica de José Osório de Oliveira, que
caminhava nessa direção, tinha seus limites. Embalado pelos
estudos de Gilberto Freyre tendia a exaltar a convivência harmô-
nica, do ponto de vista étnico, social e nacional, no “mundo que
o português criou” – perspectiva que foi criticada nas décadas
seguintes pela intelectualidade africana, do arquipélago e do
continente.
Os fios supranacionais da Claridade tiveram origem no
movimento socialista francês da “Clarté”, inaugurado por Henri
Barbeuf, nos primeiros anos da década de 1920. Articula-se o
grupo da revista em Portugal, em especial, ao movimento da
Presença. Mais tarde, os fluxos da revista – que se afasta da
Presença - projetam-se, por exemplo, em Manuel Ferreira, neo-
realista português identificado com a cabo-verdianidade, cuja
obra ensaística consolidou o estudo das literaturas africanas de
língua portuguesa, apropriou-se dessa temática da evasão/anti-
evasão. O título de seu romance Hora di bai (1962) é referência a
uma conhecida morna de Eugênio Tavares. Escritas em crioulo,
a cadência dessas composições vai dar ritmo e repertório para
os poemas em português e também será referência para os fic-
cionistas originários da Claridade. Voz de prisão (1971), o principal
romance de Manuel Ferreira, situa-se em Lisboa, e problematiza
a questão da oralidade (o então denominado dialeto crioulo, hoje
língua cabo-verdiana) e o português-padrão. Orlanda Amarílis,
cabo-verdiana vivendo na diáspora lisboeta, problematizará essa
condição de migrante, revestindo-se suas produções literárias de
grande sentido de atualidade, nestes tempos de deslocamentos
da globalização (Cais-do-Sodré te Salamansa, 1974). O sentimento
de nação, para além dos espartilhos de estado.
No período do após-guerra, ao mesmo tempo em que
se desenvolviam formas de organização político-culturais em
cada um dos países africanos, como o movimento dos “Novos
Intelectuais de Angola”, constituiu-se em Portugal um impor-
tante núcleo organizativo: a Casa dos Estudantes do Império.
Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008 37
Gragoatá Benjamin Abdala Junior

O momento exigia novas estratégias: confluem para a literatura


formas discursivas da antropologia, da sociologia, da política, do
jornalismo, etc. Espaço de convergência, a literatura (re)descobre
cada país africano para (re)imaginá‑lo em suas especificidades.
Espaço político de notável importância, passaram pela casa dos
estudantes líderes como como Amílcar Cabral, Alda do Espírito
Santo, Marcelino dos Santos, além de Agostinho Neto, todos pro-
tagonistas das histórias das independências dos países africanos
colonizados por Portugal. No plano cultural, cabe destacar, entre
os feitos dessa casa, a antologia Poesia negra de expressão portuguesa
(1953), organizada por Mario Pinto de Andrade e por Francisco
Tenreiro, e a publicação da colecção “Autores Ultramarinos”, sob
a direcção de Costa Andrade e Carlos Ervedosa.
Tudo mesclado
A afirmação nacional não deixa de imbricar com a suprana-
cionalidade do campo intelectual desses escritores. Essa coletâ-
nea poética reúne autores negros, brancos e mestiços. Tratava-se
de publicar uma antologia de poemas de “expressão portuguesa”,
mas o escritor, cujo texto serve de espécie de pórtico poético é
o cubano Nicolás Guillén. Seu poema “Son número 6” não foi
traduzido, mas transcrito no original, em língua espanhola. Mais
interessante ainda é constatar que esse poeta – a “mais alta voz
da negritude hispano-americana”, segundo os organizadores
da antologia – releva não a diferença étnica, mas a mestiçagem:
“[...] Estamos juntos desde muy lejos,/Jóvenes, viejos,/Negros
y blancos, todo mezclado;/Uno mandando y otro mandado,/
Todos mezclados [...]”.
Essa inclinação para uma afirmação político-cultural mais
ampla vai persistir em autores dessa geração, com produção
posterior. É o caso de José Craveirinha, personalidade emble-
mática para a poética moçambicana, com uma trajetória que vai
de Chigubo (1964) a Maria (1988), com destaque para a coletânea
Karingana ua Karingana (1974). Craveirinha, como os poetas de
Angola, Cabo Verde e de São Tomé, busca formas híbridas,
com incorporação de elementos lingüísticos das línguas nacio-
nais. Deve-se considerar o fato de que esses estados nacionais
reúnem múltiplas culturas, que afinal confluem para um caldo
híbrido das grandes cidades. Nessas circunstâncias, o idioma
do colonizador, apropriado nacionalmente, situa-se também
como primeira língua de criação literária. O sistema da língua
portuguesa, convém recordar, é abstrato. Nesse sentido, ele só
existe concretamente sob formas variantes: há variantes africa-
nas, como brasileiras e portuguesas.
Em Angola, a literatura empenhada tem em Costa Andrade
um autor programático: Terras das acácias rubras; Poesias com armas;
Estórias de contratados (1980). Manuel Rui, poeta e prosador, é au-

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Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa

tor de canções em parceria com vários conhecidos compositores,


inclusive o brasileiro Martinho da Vila: Cinco vezes onze poemas
em novembro (1985), Quem me dera ser onda (1982), O manequim e
o piano (2005).
Novos tempos
Os caminhos da poética se diversificaram gradativamente,
sobretudo após a consolidação dos estados nacionais africanos,
com produções expressivas. Em Cabo Verde, desde as buscas
de raízes como em Eugênio Tavares (Mornas-cantigas crioulas,
de 1932) até um Corsino Fortes (Pão & fonema, 1974), com uma
poética afim do concretismo. À preocupação com a materiali-
dade dos signos lingüísticos soma-se a questão multifacética
das identidades, presente na obra do angolano Ruy Duarte de
Carvalho, que mistura gêneros e mostra visão bastante lúcida
de seu trabalho literário (Hábito da terra, de 1988; Observação di-
reta, 2000). Ampliam-se supranacionalmente os horizontes em
Arlindo Barbeitos, a partir da tradição oral de seu país, que se
associa inclusive a técnicas da poesia chinesa e japonesa (An-
gola Angolê Angolema, de 1975; Na leveza do luar crescente, 1998).
O trabalho artístico desses escritores pode ser relacionado com
as tendências experimentais da poesia brasileira e portuguesa,
sobretudo a partir da década de 1960.
Entre as vozes poéticas femininas mais recentes, figuram a
são-tomense Maria da Conceição Lima (A dolorosa raiz do micon-
dó, de 2006), a cabo-verdiana Vera Duarte (Amanhã amadrugada,
de 1993), a guineense Odete Semedo (No fundo do canto, 2003).
Particular relevo nessa ascensão do comunitarismo de gênero,
merece a obra da angolana Paula Tavares (Ritos de passagem,
1985; Dizes-me coisas amargas como os frutos, 2001). Suas obras
associam-se à série literária nacional e à afirmação supranacional
do feminismo. Elas também se colocam como “contadoras de
estórias”, no que seus trabalhos literários também se articulam
com a antropologia. No romance, singulariza-se, com densidade
artística, a primeira romancista de Moçambique, Paulina Chi-
ziane (Ventos do apocalipse, de 1995; Niketche, de 2002).
Novos registros, novas plasticidades
As literaturas africanas de língua portuguesa apresentam,
na atualidade, prosadores vigorosos. José Luandino Vieira ocupa
uma posição central. A maior parte de suas “estórias” foram
produzidas no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo
Verde, onde ficou preso juntamente com outros intelectuais dos
países africanos engajados na luta anticolonial. Procurava pensar
a língua portuguesa em quimbundo, em suas narrativas, incor-
porando a oralidade. Um gesto indicativo de estratégia literária
que teve em Alfredo Troni um seu precursor. Tal estratégia é
análoga à do grupo da Claridade em Cabo Verde, com o crioulo

Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008 39


Gragoatá Benjamin Abdala Junior

matizando os textos em português e ainda com as estratégias


poéticas de José Craveirinha, em Moçambique. Pensar a língua
portuguesa com estruturas da oralidade, dos crioulos lingüís-
ticos e das línguas nacionais de origem africana.
Não só: Luandino Vieira, ao se deparar com a obra de
Guimarães Rosa, identificou-se com ela. Encontrou no escritor
brasileiro um respaldo artístico para que avançasse nesses
processos de hibridizações, dando asas à criação literária. Sua
obra, traduzida em vários países, tem sido seguidamente ree-
ditada. É de se mencionar, entre outros títulos, Luuanda,1964; A
vida verdadeira de Domingos Xavier, 1974; Velhas estórias, 1974; No
antigamente, na vida, 1974; Nós, os do Makulusu, 1975, João Vêncio:
os seus amores, de 1987. Essa inclinação de seu trabalho artístico
foi importantíssima para os escritores angolanos, como Boa-
ventura Cardoso (Dizanga dia muenhu, 1977; Maio, mês de Maria,
1997), Jofre Rocha (Estórias do musseque, 1977) e Uanhenga Xitu
(“Mestre” Tamoda e Kahitu, de 1976).
Luandino Vieira e Guimarães Rosa, veiculados no campo
das literaturas em português, mostram efeitos comunitários, em
especial na obra já abrangente do moçambicano Mia Couto. Ao
procurar novas margens para a criação literária, ele tensiona
discursos antropológicos, sociais, históricos e políticos. Associa-
os a formas de um realismo mágico, que tem a ver com a ficção
latino-americana, e com a maneira de ver e sentir a realidade
dos povos de Moçambique. Em relação a essa literatura, suas
produções imprimem novas dimensões à prosa de ficção de seu
país, em especial à obra de Luís Bernardo Honwana (Nós matamos
o cão-tinhoso, 1964). A obra de Mia Couto, como a de Luandino
e Guimarães, vem encontrando legitimização internacional, e
premiações. Ela atende às condições atuais da circulação literária
supranacional, por onde o discurso histórico se entremeia com o
antropológico. Entre as muitas “estórias” que publicou, podem
ser indicadas, em especial: Vozes anoitecidas, 1986; Terra sonâmbula,
1992; Estórias abensonhadas, 1994; Um rio chamado tempo, uma casa
chamada terra, 2002; O outro pé da sereia, 2006.
Estórias e histórias
Nesse contexto dos contadores de “estórias”, situa-se
igualmente a obra do cabo-verdiano Germano Almeida, cujo
primeiro romance obteve grande impacto crítico (O testamento
do sr. Napomuceno da Silva Araújo, 1991). Suas “estórias” são so-
bretudo crônicas da vida cabo-verdiana, algumas inclinadas
para comentários em torno da comunidade dos países de língua
portuguesa (Estórias contadas, 1998). Circulando entre Angola,
Portugal e Brasil, situa-se o angolano José Eduardo Agualusa,
atestando a força de nosso comunitarismo cultural, onde encon-
tra seu repertório literário (A conjura, 1989; Nação crioula, 1997;
O ano em que Zumbi tomou o Rio, 2003; Manual prático de levitação,
40 Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008
Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa

2005). Mais jovem e com obra já traduzida para vários idiomas é


seu compatriota Ondjaki, com produções, onde associa técnicas
que vêm de sua profissão de roteirista e formação em sociolo-
gia, com a linguagem do cinema e das artes plásticas (Bom dia
camaradas, 2000; O assobiador, 2002).
Para fecho desta breve exposição sobre notas histórico-
literárias, que têm em vista destacar articulações entre as
literaturas africanas com Brasil e Portugal, convém remeter à
obra do angolano Pepetela. Seu romance A geração da utopia
(1992) apresenta uma auto-crítica, que pode ser de sua geração
de intelectuais que se embalaram na utopia libertária. Focaliza
a trajetória dos estudantes, que se reuniam na Casa dos Estu-
dantes do Império, em Lisboa, e liam literatura brasileira. Vê
criticamente as orientações desses atores, como já o fizera em
Mayombe (1980). Sua obra recebeu vários prêmios, com edições
sucessivas e traduções para vários idiomas. Em boa parte dela,
o escritor procura recontar ficcionalmente a história de seu país
– um projeto literário que lembra o do brasileiro José de Alencar.
Seu horizonte é crítico, desenvolvendo estratégias discursivas
que questionam situações político-sociais da atualidade, seja em
relação a fatos com referenciais históricos mais antigos ou do
cotidiano mais próximo (O cão e os caluandas, 1985; Yaka, 1985;
Lueji, o nascimento de um império, 1990; A gloriosa família, 2000;
Jaime Bunda, agente secreto, 2001).

Abstract
Notes on the literary histories of African countries
that have Portuguese as their official language.
Common historical traits are stressed, pointing to
neo-romantic perspectives when these literatures
contemplate questions related to their constitution
as nations; strategies of renewal of the literary
Portuguese language, whose plasticity goes back,
in each nation, to Medieval times; the network
they create in the universe of Portuguese written
literature.
Keywords: Literary history. African countries.
Portuguese language. Perspectives. Neo-roman-
ticism.

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44 Niterói, n. 24, p. 31-44, 1. sem. 2008


Duas viagens, um destino,
Moçambique
Regina Zilberman

Recebido 27 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo
Duas viagens, ocorridas entre 1550 e 1560, leva-
ram dois aristocratas portugueses da Índia para
a costa oriental da África, hoje Moçambique: a
do militar Manuel de Sousa Sepúlveda e a do
sacerdote D. Gonçalo de Oliveira. Jerônimo Corte
Real narra a primeira viagem em Naufrágio do
Sepúlveda, em 1594; Mia Couto, a segunda em
O outro pé da sereia, em 2006. As duas obras
expressam o modo como se manifestam as relações
entre Europa e África.
Palavras-chave: Relações Europa-África. Repre-
sentação. Hibridismo.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008


Gragoatá Regina Zilberman

“E esse sangue não era de um


homem mas de todo um continente escravo.”
(Mia Couto)

1. A primeira viagem - naufrágio


Em 24 de junho de 1552, o galeão São João, proveniente da
Índia, naufragou no litoral das costas da África, nas vizinhanças
do Cabo da Boa Esperança ou das costas do Natal, região hoje
situada na África do Sul, próxima às fronteiras com Suazilândia
e Moçambique. Entre os náufragos, encontravam-se o capitão
Manuel de Sousa Sepúlveda, sua esposa, Leonor de Sá, e os dois
filhos do casal. Além de soldados e escravos, o barco transpor-
tava muita carga, o que parece ter sido a causa do naufrágio. A
maior parte dessa tripulação alcançou a terra, mas, depois de
atravessar largo trecho do continente africano, não sobreviveu,
incluindo-se nesse grupo Sepúlveda, a esposa e as crianças.
Naufrágios sacrificaram muitos navegadores, militares e
colonizadores, desde que se expandiu a aventura marítima dos
descobrimentos. Se, antes, tinham sido matéria de epopéias na
Antigüidade, como a Odisséia, de Homero (século VIII a. C.),
maior razão havia para, após o século XV, quando se atingiam
as praias do Novo Mundo e os portos asiáticos, após ter sido
suplantado o circuito da África, naufrágios constituírem assunto
de narrativas de viagem e de reconhecimento dos territórios
recentemente ocupados por europeus. Dessa matéria nutrem-
se, assim, relatos autobiográficos, como o de Hans Staden, ou
epopéias, como a de Jerônimo Corte Real, relativa ao destino de
Manuel de Sepúlveda. No contexto da conquista do território
americano ou das poderosas e opulentas regiões asiáticas, nau-
frágios deixavam de ser produto da fantasia ou evento distante,
que ameaçava heróis de antanho, mas realidade corrente, que
podia acontecer a conhecidos ou a familiares.
Assim, o naufrágio do galeão São João logo se torna tópico
de narrativas e poemas, como ocorre à folha volante, de autoria
anônima e datada de 1555, que, segundo J. Cândido Martins,
obteve sucessivas edições (MARTINS, [200-]). Luís de Camões
(1524(?)-1580), por seu turno, confere status artístico ao relato
do evento, ao introduzi-lo no canto V de Os Lusíadas, em 1572.
As estâncias 46, 47 e 48, proferidas por Adamastor, sumariam
o episódio:
Outro também virá de honrada fama,
Liberal, cavaleiro, enamorado,
E consigo trará a formosa dama
Que Amor por grã mercê lhe terá dado.
Triste ventura e negro fado os chama
Neste terreno meu, que duro e irado
Os deixará dum cru naufrágio vivos
Para verem trabalhos excessivos

46 Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008


Duas viagens, um destino, Moçambique

Verão morrer com fome os filhos caros,


Em tanto amor gerados e nascidos;
Verão os Cafres ásperos e avaros
Tirar à linda dama seus vestidos;
Os cristalinos membros e perclaros
À calma, ao frio, ao ar verão despidos,
Depois de ter pisada longamente
Co’os delicados pés a areia ardente.

E verão mais os olhos que escaparem


De tanto mal, de tanta desventura,
Os dois amantes míseros ficarem
Na férvida e implacável espessura.
Ali, depois que as pedras abrandarem
Com lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados as almas soltarão
Da formosa e misérrima prisão.
(CAMÕES, 1956, p. 178-179)
Adamastor profetiza os males de que serão vítimas os
portugueses na altura do cabo da Boa Esperança, ainda in-
domado mesmo após a travessia de Vasco da Gama, sendo a
desventura de Sepúlveda um de seus exemplos. Talvez por essa
razão o poeta tenha alterado o local onde se passou o naufrá-
gio, deslocando-o da costa oriental da África para uma região
situada mais a sudoeste, de onde os sobreviventes se dirigem
para o Norte, rumo ao rio Lourenço Marques, hoje rio Maputo,
em Moçambique, na tentativa, frustrada, de chegarem a algum
porto que os devolvesse à Europa.
É irrelevante a circunstância de Adamastor carrear para
sua área de influência geográfica o fato que vitimou Sousa Se-
púlveda e seus comandados. Importa que Camões estabeleceu os
paradigmas que assinalam, doravante, o tratamento do tema:
• a apresentação de Sepúlveda como herói e cavaleiro,
apaixonado por sua esposa, “dama formosa”;
• a indicação do destino cruel de que são vítimas, pois
sobrevivem ao naufrágio, mas passam por “trabalhos
excessivos”;
• o testemunho, pelos pais, da morte de seus filhos;
• a denúncia da ação mal intencionada dos cafres, capazes
de atitudes indecorosas, como a de se apossarem das
vestes da “linda dama” Leonor de Sá, não nomeada no
poema;
• a qualificação negativa dos cafres, definidos como “ás-
peros e avaros”, em decorrência de seu comportamento
perverso;
Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008 47
Gragoatá Regina Zilberman

• a exposição da nudez de Leonor, facultando ao poeta


descrever seu corpo, cujos “membros” são “cristalinos”
e os “pés”, “delicados”;
• a morte do casal, cujos intensos sofrimentos comovem
até as pedras.
O episódio ocupa apenas 24 versos em Os Lusíadas; no en-
tanto, sua popularidade, somada ao prestígio que lhe confere o
poeta, fecunda o tema, de que são exemplos a Elegíada, de 1588,
de Luís Pereira Brandão (1530/1540-?), o Naufrágio do Sepúlveda,
de Jerônimo Corte Real, de 1594, a História Trágico-Marítima, de
Bernardo Gomes de Brito (1688-1759), de 1735-36, entre autores
portugueses, e Jerônimo Corte Real, Crônica portuguesa do século
XVI, de 1840, de João Manuel Pereira da Silva, entre os brasilei-
ros (MARTINS, [200-]). De seu desenvolvimento, resulta uma
representação do mundo africano, especialmente da África
Oriental, de que faz parte Moçambique, com conseqüências na
percepção do confronto entre civilizações diferentes e na criação
de imagens de uma relação nem sempre pacífica.
2. Em terra firme, mas hostil
A biografia de Jerônimo Corte Real está cercada de alguma
lenda. Diogo Barbosa Machado, no século XVIII, informa que o
poeta deixou “célebre o seu nome em África e Ásia quando foi
Capitão Mor de uma armada no ano de 1571, em cujos heróicos
teatros triunfou sempre a sua espada dos inimigos da Coroa”
(MACHADO, [200-], v. 2, p. 495). Ferdinand Denis reitera os
dados apontados por Machado, acrescentando que participou
da batalha de Alcácer Quibir, foi aprisionado pelos “bárbaros”
e recuperou a “liberdade à época do resgate geral dos pri-
sioneiros” (DENIS, 1826, p. 261). Estudiosos contemporâneos
questionam alguns desses fatos, mas reiteram o passado militar
e a procedência ilustre do poeta, descendente de família aris-
tocrática e tradicional, bem como sua associação com o poder.
Desconhece-se a data precisa de seu nascimento, ocorrido por
volta de 1530; sabe-se, porém, que morreu em 15 de novembro
de 1588. Partidário de D. Sebastião(1554-1578), aparentemente
Corte Real não teve dúvidas em aderir ao governo de Felipe II
(1527-1598), a quem manifestou fidelidade (ALMEIDA, 1979, p.
V-XXXIV; ALBUQUERQUE, 1995, v. 1, p. 1310-1312).
O Naufrágio e lastimoso sucesso da perdição de Manuel de Sousa
Sepúlveda e Dona Leonor de Sá sua mulher e filhos vindo da Índia
para este Reino na nau chamada o galeão grande S. João que se perdeu
no cabo de Boa Esperança na terra do Natal. E a peregrinação que ti-
veram rodeando terras de cafres mais de 300 léguas até sua morte foi
publicado postumamente, em 1594, contendo dezessete cantos,
protagonizados pela personagem destacada no título. A primeira
parte, transcorrida na Índia, narra o casamento de Sepúlveda
48 Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008
Duas viagens, um destino, Moçambique

com Leonor, a que os amantes chegam após ter o rapaz suplan-


tado o adversário preferido pelo pai da moça. Depois de algum
tempo, o casal decide retornar a Portugal, embarcando no porto
de Cochim; entre os cantos VI e VII, acontece o naufrágio, os so-
breviventes chegam à praia e têm o primeiro confronto armado
com os cafres, sendo vencedores. Decidem deslocar-se na direção
do rio Lourenço Marques (rio Maputo, atualmente), “Determi-
nam buscar um grande rio/ Que de Lourenço Marques tinha
o nome [...]” (CORTE REAL , 1979, p. 685), mas a longa travessia
abate aos poucos o grupo, que se dispersa ou é dizimado. Nos
últimos cantos, Sepúlveda, Leonor e os filhos estão acompanha-
dos apenas por alguns escravos. São mais uma vez vítimas dos
cafres, que protagonizam a cena antecipada por Camões: Leonor
é deixada sem roupas e, prostrada pelas sucessivas desgraças e
pela fome, morre. Antes disso, o casal perde o filho mais velho;
ao final, Sepúlveda e a outra criança também falecem.
Corte Real é tido como leitor e admirador de Camões,
cujas pegadas procura seguir em seus versos. Reconhecem-se,
com efeito, vários sinais de que Os Lusíadas constituía o princi-
pal modelo daquele autor, a começar pelo tema escolhido, cuja
identificação com Camões esclarece-se desde a alusão ao cabo
da Boa Esperança, mencionado no título e relativo ao gigante
Adamastor, que relatara as desventuras do casal Sepúlveda.
Também como Camões, Corte Real mescla eventos históricos e
mitologia grega. Assim, se Baco provocou os vários obstáculos
que Vasco da Gama supera com a ajuda da deusa Vênus, a nin-
fa Anfritite, com ciúmes de Leonor de Sá, por quem Proteu se
apaixonara, e contando com a colaboração de Éolo, leva o barco a
se chocar contra as rochas do litoral africano. Não se esgota aí o
apelo à mitologia: nos últimos cantos, é Apolo quem se enamora
de Leonor de Sá, ficando a lamentar sua morte.
A leitura e a admiração por Camões aparecem ainda em
outros momentos da obra: nos cantos XIII e XIV, Pantaleão de
Sá, um dos guerreiros que acompanha Sepúlveda e é igualmente
vítima do naufrágio, tem acesso à narração da história de Por-
1
Em O Uraguai, Basílio
tugal, que retroage ao fundador do reino, D. Afonso Henriques,
da Gama (1740-1795) e, depois, avança até o desastre de Alcácer Qubir, ocorrido em
emprega o expediente
da caverna, onde a 1578, portanto, 25 anos depois dos eventos relatados na epopéia
feiticeira Tanajura, no de Corte Real. Essa narração, por sua vez, amalgama dois mo-
canto III daquela epo-
péia, enseja a Lindóia, mentos de Os Lusíadas, já que a recuperação do passado depen-
enlutada com a morte
de seu amado Cacam-
de, nos versos de Camões, do relato que o Gama faz ao rei de
bo, a visão do futuro de Melinde, nos cantos III, IV e V, enquanto que a visão profética é
Portugal, incluindo-se
aí o terremoto de Lis- matéria do Canto X de Os Lusíadas, quando os nautas lusitanos
boa e a expulsão dos je- encontram-se na Ilha dos Amores. Por sua vez, Corte Real situa o
suítas. Pode-se cogitar
que Basílio da Gama militar português em uma caverna, “uma cova escura” (CORTE
fosse leitor de Jerônimo
Corte Real, assim como
REAL, 1979, p. 739) onde tem acesso ao passado e ao futuro em
esse poeta foi leitor de uma única oportunidade.1
Luís de Camões.

Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008 49


Gragoatá Regina Zilberman

Corte Real paga igualmente sua dívida para com o romance


pastoril, em ascensão na Europa da segunda metade do século
XVI, haja vista os precedentes de Bernardim Ribeiro (1482?-
1552?) e de Sá de Miranda (1481/1485?-1558?), e a subseqüência
de Francisco Rodrigues Lobo (1573/1574?-1622?), cujo O pastor
peregrino data de 1608. O Naufrágio do Sepúlveda inclui, nesse
sentido, um longo trecho em que Pan verseja sobre a paixão que
nele provoca Leonor de Sá.
A interpolação da história de Portugal, das lamúrias dos
apaixonados de Leonor de Sá, extraídos da mitologia, como Pro-
teu, Pan e Apolo, e das convenções da narrativa épica no século
XVI sugere uma narrativa desatada. Não é o que acontece, pois
um fio atravessa a obra inteira, conferindo-lhe unidade: são os
eventos que, primeiramente, dão conta das dificuldades vencidas
por Sepúlveda para casar com sua amada, depois, os confrontos
que lhe cabe vencer para atravessar parte do continente africano,
em busca de salvação, após o naufrágio de sua nave. Entre um
episódio e outro, porém, Corte Real não deixa de evidenciar seu
conhecimento das regras já canônicas, provenientes de modelos
clássicos, como a visão profética do futuro, que remonta à Eneida,
de Virgílio (70 a. C.- 19 a. C.) e foi explorada por Camões, ou a
presença de figuras relacionadas à vida pastoril, que encon-
tram em Teócrito (310 a. C.- 250 a. C.) e, de novo, no Virgílio das
Bucólicas, seus precedentes mais notáveis. O Renascimento pôs
novamente em voga esses processos narrativos, e Corte Real,
homem culto e educado, pertencente à antiga nobreza lusitana,
não poderia deixar de utilizá-los.
Se a mitologia e a história permeiam a epopéia, essa refere-
se principalmente às desventuras da família Sepúlveda em Áfri-
ca, que, antes do Robinson Crusoe, de Daniel Defoe (1660-1731),
experimentou as conseqüências de se deparar com um território
inóspito, mas, ao contrário do arguto comerciante inglês, não
soube encontrar alternativas de sobrevivência. O que Sepúlveda
e seus comandados, entre os quais se destaca Pantaleão de Sá, já
citado, aprenderam foi a lutar com armas modernas, mas essas
parecem não ter sido suficientes para o sucesso no empreendi-
mento da sobrevivência.
Náufragos a partir do canto VI, as personagens não deixam
mais a África. Essa é representada por seus habitantes, deno-
minados, tal como procedera Camões, indistintamente cafres,
vocábulo que, atualmente, tem sentido pejorativo, conforme
registram os dicionários de Caldas Aulete – “homem ignorante,
rude, bárbaro” (AULETE, 1958, v. 1, p. 778), Antônio Houaiss –
“Derivação: sentido figurado. Uso: pejorativo: Indivíduo rude,
ignorante” (HOUAISS, [200-]) e Aurélio Buarque de Holanda:
“Pessoa rude, bárbara, ignorante” (HOLANDA, [200-]). O Dicio-
nário eletrônico Houaiss da língua portuguesa explicita a etimologia
da palavra, de origem árabe, significando “infiel”, “incrédulo” e
50 Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008
Duas viagens, um destino, Moçambique

“não muçulmano”; e apresenta a história do vocábulo, utilizado


a partir de 1516, para indigitar o negro, uso que se propaga a
partir do século XVI, com pequenas variações semânticas no
século XVII.
Chama a atenção a circunstância de que tenha sido a
palavra de origem árabe a escolhida para designar, na língua
portuguesa, o negro africano. Os dicionários de Houaiss e de
Aurélio apresentam, como conteúdo primeiro do vocábulo, as
definições a seguir:
1. indivíduo de uma população africana banta, afim dos zulus,
não muçulmana, do Sudeste da África. 2. indivíduo de raça
negra. 4. língua banta falada pelos cafres. 6. relativo à Cafraria
(‘antiga região do Sudeste da África’). (HOUAISS, [200-])

2. Nome dado pelos islamitas aos gentios e idólatras, e por ext.,


aos negros pagãos da África oriental; aplica-se, sobretudo, às
populações bantas de Moçambique, da África do Sul e dos
demais países do sudeste da África. 2. O natural ou habitante
da Cafraria, denominação que, no passado, se dava à região
entre o rio Kei e os limites da província de Natal, na África do
Sul; xossa. (HOLANDA, [200-])
Ao se referir ao cafre, Corte Real está, pois, utilizando o ter-
mo então já consagrado para significar o habitante da região por
onde Sepúlveda passou, a sudeste da África. O poeta designa-os
segundo o olhar do colonizador, que se defronta com um povo
que desconhece, mas que aparece a ele previamente definido
como pagão, idólatra e, sobretudo, ameaçador. Quando desem-
barcam, os militares deparam-se de imediato com o inimigo,
qualificado nessa oportunidade como “malditos cafres” (CORTE
REAL, 1979, p. 643), a quem os portugueses recebem com golpes
de espadas; nas cenas subseqüentes, enfrentam os cafres que pas-
sam por seu caminho, que, assim, se torna penoso e perigoso. Em
poucas ocasiões, os moradores mostram-se cooperativos, ajuda
que, via de regra, custa caro aos sobreviventes, pois precisam,
de algum modo, comprar a colaboração dos nativos. Esses, na
maioria das vezes, oferecem resistência; ou, então, atraiçoam os
lusitanos, simulando o amparo que não se concretiza.
O conflito com os cafres atravessa a narrativa desde o canto
VIII, culminando na oportunidade em que atacam os remanes-
centes do grupo. O narrador descreve sua chegada com palavras
que antecipam o comportamento selvagem dos nativos:
Correndo a pressa vem do mato espesso
Cafres, que roubar tem só por ofício
Saltam matos daqui, e dali saltam
Com terríveis medonhas e altas gritas.
(CORTE REAL, 1979, p. 849)

Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008 51


Gragoatá Regina Zilberman

Os versos seguintes estabelecem uma analogia entre os


seres humanos e os cães de caça, adiantando o ataque à família
de Sepúlveda:
Como quando se vê lá na espessura
De viscoso esteval, onde encoberta
Anda a canina turba, rastejando
A caça, que nas covas têm guarida.
(CORTE REAL, 1979, p. 849)
Sucede a essa apreciação dos cafres a derradeira agressão
aos Sepúlvedas, completamente despojados de suas posses, in-
cluindo suas vestimentas. A cena mais candente diz respeito à
nudez de Leonor, suscitando a pudica descrição do poeta:
Chegam com denodada fúria os cafres
A desarmada gente que num ponto
Por eles despojada foi de todo
Sem roupa lhes ficar, ou cobertura.
Tal fica Leonor, qual na montanha
Troiana, a Citeréia foi julgada
Pelo frígio pastor, e das formosas
Três, o preço levou com razão justa.

Assenta-se na branca areia, e cobre


Com o dourado cabelo a lisa carne,
As criadas que a seguem se assentaram
Em torno dela, só por defendê-la
Que dos varões, que ali estavam, não fosse
O seu formoso e casto corpo visto,
Como as ninfas na fonte a Diana guardam.
Que os olhos de Acteon não na divisem.
(CORTE REAL, 1979, p. 849-850)
A narrativa não apenas desqualifica os habitantes da
região, estigmatizando-os. Igualmente o espaço é apresenta-
do de modo negativo, predominando a noção de que a terra é
seca, estéril e hostil. Desde as primeiras cenas transcorridas na
África, a terra é considerada “estéril” (CORTE REAL, 1979, p.
644) e desértica (CORTE REAL, 1979, p. 650), caracterizando um
espaço pouco hospitaleiro, impedido de nutrir a quem depende
dele: “De dura fome, [Sepúlveda] busca o fruto amargo,/ Que
a natureza dá, por terras secas,/ Estéreis, selváticas, bravias”
(CORTE REAL, 1979, p. 644).
Sepúlveda é o herói a quem é confiada a salvação do grupo.
Para fazê-lo, ruma na direção do rio Lourenço Marques, cami-
nhando, conforme declara o título da obra, trezentas léguas,
durante três meses, cortando um território inóspito e enfren-
tando a hostilidade dos nativos. Trata-se, pois, da narrativa de
uma travessia, à maneira de Os Lusíadas, se bem que transcorra
por terra, e não por mar.
Se, sob esse aspecto, Sepúlveda assemelha-se a Vasco da
Gama, por outro, é o avesso do comandante que leva as naus

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Duas viagens, um destino, Moçambique

portuguesas até a Índia, aportando em Calicut. Primeiramente,


porque nenhuma entidade sagrada o protege, já que as figuras
mitológicas que comparecem à narrativa são atraídas por Leonor
de Sá que, mesmo cansada e desnutrida, provoca a paixão de Pan
e, depois, de Apolo. Em segundo lugar, porque sua bravura e
competência militar não bastam para derrotar os inimigos, ainda
que obtenha algum sucesso assim que alcança terra firme. Po-
rém, mais adiante, não é apenas batido pelos adversários, como
enganado e iludido, até restar esfomeado, humilhado e mesmo
rebaixado por aqueles de quem se considerava melhor e superior.
Em uma das cenas finais, seu semblante é “quase defunto”, os
olhos estão “agravados e transidos”, o corpo “em sangue tinto,
que o selvático, e seco mato a carne com grande crueldade lhe
rompia” (CORTE REAL, 1979, p. 857).
Sepúlveda, pois, corporifica o anti-Vasco da Gama, por ser
o herói que fracassa, incapaz de prover alimento e segurança
para os seus comandados e sua família. Tendo escrito a epopéia
depois da derrota dos portugueses em Alcácer Quibir, Corte Real
traduz, de certo modo, o desalento de uma nação derrotada em
solo africano. Sob esse aspecto, os cafres talvez representem os
muçulmanos que venceram o exército liderado por D. Sebastião,
assim como esse soberano pode estar corporificado pelo nave-
gante incapaz de levar seus dependentes a um porto seguro. Ao
apresentar, nas cenas finais, a personagem sob o paradigma do
Cristo que atravessa uma via sacra, Corte Real colabora para a
beatificação do herói e, por extensão, do rei que, não tendo sido
identificado entre os mortos da batalha de 1578, permaneceu
como mito entre seu povo.
De todo modo, se dá voz aos vencidos, Jerônimo Corte
Real ainda o faz conforme o prisma dos vencedores, já que não
admite o malogro da expedição de Sepúlveda. Prefere reiterar
qualificações que, no século XVI, estigmatizavam de modo geral
os habitantes do continente africano, corporificados nos cafres,
antepassados dos moçambicanos de nossos dias.
3. A segunda viagem – morte
D. Gonçalo da Silveira, nascido em 23 de fevereiro de 1521,
pertenceu à Companhia de Jesus, ordenando-se padre em 1545.
Em 1556, transferiu-se para a Índia, onde foi provincial até 1559,
tendo atuado no porto de Cochim. Em 1559, decidiu desempe-
nhar sua missão catequética nas terras situadas ao longo do rio
Zambeze, desde sua foz, em Moçambique, até o Monomotapa,
região situada atualmente no Zimbábue. No Monomotapa,
procedeu à conversão do imperador, a quem deu o nome de
Sebastião. Francisco Correia narra o episódio da conversão:
Gonçalo da Silveira numa casinha [...] improvisou um altar e
dizia missa diante de uma imagem da Virgem, que levara de
Goa. O rei, que ouvira dizer que ele tinha lá uma mulher bo-

Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008 53


Gragoatá Regina Zilberman

nita, foi logo lá indagar. O Padre Gonçalo disse-lhe: - É a mãe


de Deus. À vista disto o rei fez-se cristão e sua mãe, tendo sido
batizados numa solene cerimônia e pondo-lhe o nome de D.
Sebastião em honra do rei de Portugal, e a sua mãe D. Maria.
Foram ainda batizadas mais 300 pessoas. (CORREIA, 2008)
O sucesso dessa iniciativa foi fugaz; Gonçalo da Silveira
é acusado de feiticeiro e morto, fato ocorrido em 15 de março
de 1561, sendo seu corpo lançado no rio Mussenguezi. Em Os
Lusíadas, Camões homenageia o mártir, com a estância 93, do
Canto X:
Vê do Benomotapa o grande império,
De selvática gente, negra e nua,
Onde Gonçalo morte e vitupério
Padecerá pela Fé santa sua.
Nasce por este incógnito Hemispério
O metal por que mais a gente sua.
Vê que do lago donde se derrama
O Nilo, também vindo está Cuama.
(CAMÕES, 1956, p. 358)
Monomotapa é grafado Benomotapa, região que o poeta
qualifica de “grande império”. É habitada por “selvática gente,
grande e nua” e possui riqueza, o ouro, “o metal por que mais
a gente sua”, sendo essa a razão pela qual também portugueses
haviam se dirigido àquele local, a exemplo de Antônio Caiado, o
principal intermediário entre os nativos e os lusitanos. Em certo
sentido, Camões desmente o diagnóstico posterior de Jerônimo
Corte Real, pois, ao contrário do que esse poeta indica, a terra
não é estéril, mas fértil em metais preciosos.
4. A viagem por mar e por terra
D. Gonçalo da Silveira é matéria de outra obra literária,
o romance de Mia Couto (1955), O outro pé da sereia, de 2006,
embora ele não constitua a personagem principal, papel preen-
chido por Mwadia Malunga, esposa do pastor Zero Madzero.
Mwadia e Zero residem em região pouco habitada do norte de
Moçambique, local onde, em dezembro de 2002, fazem surpre-
endente descoberta nas águas de um rio: um baú, contendo
escritos antigos, e uma estátua em madeira de Nossa Senhora,
apresentando essa uma particularidade – tinha “apenas um
pé”, já que “o outro havia sido decepado” (COUTO, 2006, p. 38).
A trama principal dá conta da iniciativa de Mwadia em levar
a estátua para uma igreja, retornando então à sua cidade natal,
Vila Longe, até descobrir que a Santa pertencia efetivamente às
águas, por corporificar a mítica Kianda, devolvendo-a, pois, ao
rio onde a descobrira.
Uma segunda trama conduz à narrativa aos anos 1560-1561,
quando a imagem de Nossa Senhora é transportada de Goa, na
Índia, para a Ilha de Moçambique, de onde é carregada para o

54 Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008


Duas viagens, um destino, Moçambique

Monomopata, região onde, séculos depois, Mwadia Malunga e


Zero Madzero a encontram.
O outro pé da sereia é formado por dezenove capítulos, nar-
rando os dois primeiros a mencionada descoberta de Mwadia
e Zero, bem como a necessidade de a moça dirigir-se até Vila
Longe, para depositar a estátua em lugar julgado adequado. É
no terceiro capítulo que o romance retroage ao século XVI, ope-
rando doravante de modo intercalado: a cada dois capítulos que
fazem avançar o relato da trajetória de Mwadia em Vila Longe,
transcorrido na atualidade, introduz-se um terceiro, sucedido
no passado, à época da colonização. Constitui-se, assim, um
núcleo de seis capítulos, apresentando os acontecimentos que
esclarecem porque a estátua sagrada acabara no fundo do rio
Mussenguezi, que corta a região onde residem Mwadia e Zero.
É essa segunda trama a que D. Gonçalo da Silveira protagoniza,
iniciada, em 1560, com o embarque do sacerdote na nau Nossa
Senhora da Ajuda, em Goa, e encerrada com sua morte por es-
trangulamento, a que se segue o arremesso de seus pertences
à corrente do rio.
Entre o episódio que abre e o que encerra essa segunda
trama, narram-se a travessia oceânica, a chegada à Ilha de
Moçambique e o trajeto na direção do Império de Monomota-
pa, onde o jesuíta D. Gonçalo da Silveira, até então provincial
na Índia, deseja exercer função catequética, providenciando a
“primeira incursão católica” (COUTO, 2006, p. 51) àquele lugar.
Acompanham Gonçalo da Silveira o padre Manuel Antunes,
encarregado do diário de bordo, e a estátua de Nossa Senhora.
O percurso é, desde o começo, marcado pelas dificuldades, já
que, logo ao ser embarcada, a imagem escorrega e cai no lodo,
sendo recuperada pelo escravo oriundo do antigo Reino do
Congo, hoje Angola, Nimi Nsundi, que, identificando a Santa
como encarnação de Kianda, se torna devoto dela.
Nimi Nsundi protagonizará os principais episódios que
marcam a travessia marítima: atrai a atenção e, depois, a paixão
da indiana Dia Kumari, aia de Filipa Caiado, esposa de Antônio
Caiado, “comerciante português estabelecido na corte do Im-
perador de Monomotapa” (COUTO, 2006, p. 60); mais adiante,
é flagrado cortando o pé da estátua de Nossa Senhora, a quem
deseja devolver ao mar, ação pela qual deverá ser punido com
enforcamento, ato, porém, não concretizado, porque o escravo se
suicida, jogando-se à água e afogando-se. Morto, Nimi Nsundi
suscita a revolta dos cativos que ocupavam os porões do navio,
acalmados tão-somente quando D. Gonçalo autoriza a celebração
de seus rituais, considerados pagãos pelo jesuíta. Além disso,
Nimi Nsundi provoca a identificação de Manuel Antunes, que
abre mão de sua fé católica e de seu nome, para se entender como
reencarnação daquele.

Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008 55


Gragoatá Regina Zilberman

Manuel Antunes também colabora para que o percurso


não seja vivido de modo pacífico por D. Gonçalo da Silveira.
Encarregado da escrita do diário, depara-se primeiramente com
o novo significado das palavras, especialmente as que designam
o lugar para onde se dirigem e as pessoas que deverão encontrar,
matéria da reflexão sumariada pelo narrador:
Foi lendo as oficiais escrituras e dando conta dos nomes da
viagem e do seu destino. Chamavam de Torna-Viagem a este
percurso da Índia para Portugal. E chamavam de Contra-
Costa ao Oriente de África. Tudo fora nomeado como se o
mundo fosse uma lua: de um só lado visível, de uma só face
reconhecível. E os habitantes do mundo oculto nem o original
nome de “gentios” mantinham. Designavam-se, agora, de
“cafres”. A palavra fora roubada aos árabes. Era assim que
esses chamavam aos africanos. Os cafres eram os infiéis. Não
porque tivessem outra fé. Mas porque se acreditava não terem
nenhuma. (COUTO, 2006, p. 62)
As denominações flagradas por Manuel Antunes parecem
confirmar os conceitos formulados pelos dicionários de língua
portuguesa, citados antes, sublinhando a data em que seus
significados transitam de um conteúdo a outro. Além disso,
antecipam o confronto entre o Ocidente e o Oriente, sendo o
segundo nomeado por oposição ao primeiro. Por sua vez, ao
comparar a costa oriental da África ao lado invisível da Lua, o
padre confessa o desconhecimento não apenas do mundo que
lhe compete evangelizar, mas também dos seres humanos, in-
terpretados como criaturas procedentes de outro planeta.
Manuel Antunes conscientiza-se aos poucos da instabili-
dade de sua situação e da fragilidade dos princípios transmiti-
dos durante sua preparação para sacerdote. Por isso, manifesta
insatisfação diante da tarefa que lhe é delegada, acabando por
tentar queimar os registros diários. Mais adiante, questiona o
projeto de catequese em que está envolvido, perguntando a D.
Gonçalo se “tem sentido irmos evangelizar um império de que
não conhecemos absolutamente nada” (COUTO, 2006, p. 160).
Também não concorda com ações inquisitoriais, como “a conde-
nação de Jerônimo Dias, um médico e cristão-novo, queimado
publicamente numa praça de Goa” (COUTO, 2006, p. 161). E
acusa os portugueses de, em suas conquistas, carregarem con-
sigo o Diabo, sendo que “só mais tarde é que enviamos Deus”
(COUTO, 2006, p. 161). Sintoma mais evidente da metamorfose
de Manuel Antunes é seu sentimento de estar “ficando negro”,
“um cafre”, isto é, “mudando de raça” (COUTO, 2006, p. 163).
Explica o narrador:
Até dia 4 de janeiro, data do embarque em Goa, ele era branco,
filho e neto de portugueses. No dia 5 de janeiro, começara a
ficar negro. Depois de apagar um pequeno incêndio no seu
camarote, contemplou as suas mãos obscurecendo. Mas agora

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Duas viagens, um destino, Moçambique

era a pele inteira que lhe escurecia, os seus cabelos se encres-


pavam. Não lhe restava dúvida: ele se convertia num negro.
– Estou transitando de raça, D. Gonçalo. E o pior é que estou
gostando mais dessa travessia do que de toda a restante via-
gem. (COUTO, 2006, p. 164)
Ao alcançar Moçambique, Antunes completa a metamorfo-
se, declarando “sentir-se cafrealizado” e concluindo: “agora estou
certo: ser negro não é uma raça. É um modo de viver. E esse será,
a partir de agora, o meu modo de viver” (COUTO, 2006, p. 259),
razão porque abandona o sacerdócio e adota o nome de Nimi
Nsundi. Ao final da narrativa, sobrevive ao padre Gonçalo da
Silveira, levando vida de “feiticeiro, rezador de Bíblia e visitador
de almas” (COUTO, 2006, p. 313).
Entre Manuel Antunes e Gonçalo da Silveira, estabelece-
se uma relação em que o primeiro apresenta-se como o avesso
do segundo: Antunes se deixa assimilar pelo universo africano,
enquanto que Gonçalo ambiciona adaptar o mundo exterior às
suas convicções religiosas. Quando Antunes deseja repor o pé
amputado por Nimi Nsundi, utilizando o material fabricado pelo
marcineiro da nau Nossa Senhora da Ajuda, a estátua sangra,
expressando sua vitalidade, processo que escapa inteiramente a
Gonçalo. Esse igualmente não entende a realidade que o cerca,
confessando a Antunes que estava muito desiludido, ao encon-
trar, na Ilha de Moçambique, a “nação gentílica [...] contaminada
por mouros e judeus pestilentos” (COUTO, 2006, p. 255).
Incapaz de decifrar a realidade circundante, o jesuíta não
compreende a linguagem de seu compatriota, Antônio Caiado,
instalado no Monomopata para alcançar as abundantes rique-
zas da região, riquezas cuja prospecção provocará mudanças
estruturais no local, conforme expõe o narrador:
Os camponeses estavam deixando as suas culturas apenas para
se dedicarem à extração do ouro. Já não semeavam, apenas
mineiravam e peneiravam. Tudo isso era uma estratégia dos
portugueses para enfraquecer o reino. E aquele era apenas um
princípio: seguir-se-iam séculos em que os africanos raspa-
riam os ossos da terra para entregarem riqueza aos europeus.
(COUTO, 2006, p. 307)
Muito menos entende o comportamento do imperador do
Monomotapa, que lhe oferece mulheres, ao vê-lo acompanhado
de uma delas, a estátua da Virgem. Gesto que igualmente in-
terpreta de modo equivocado é o pedido, também por parte do
imperador, de que tome emprestada a imagem de Nossa Senhora,
para com ela passar a noite, atitude que o jesuíta entende como
aceitação da religião em que almeja introduzi-lo.
Esse último episódio é representativo não apenas da falta
de sintonia entre D. Gonçalo da Silveira e seus interlocutores.
Como passa a fazer parte da mitologia concernente à biografia
do religioso, de que é exemplo a narrativa de Francisco Correia,

Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008 57


Gragoatá Regina Zilberman

reproduzida antes, aquele episódio reflete igualmente a incom-


preensão do universo representado pelo Monomotapa por quem
se depara com ele munido apenas de valores, princípios e repre-
sentações ocidentais. Outra e bastante diversa é a interpretação
das personagens inseridas nesse contexto, como o pai do escravo
Xilundo, que qualifica Gonçalo de feiteiro. Para o velho sábio, o
sacerdote português não morreu, mas retornou “ao rio, à casa
da eternidade. E não o fazia sozinho. Com ele viajava a mulher
de olhar parado, essa que fazia ajoelhar os cristãos” (COUTO,
2006, p. 312).
Manuel de Sepúlveda e Gonçalo da Silveira guardam, as-
sim, muitas afinidades, embora tenham sido matéria de escritos
literários distantes no tempo, a epopéia de Jerônimo Corte Real,
impressa no final do século XVI, e o romance de Mia Couto,
publicado em 2006. O primeiro terminou seus dias ao sul de Mo-
çambique poucos anos antes de o jesuíta aportar mais ao norte.
Os dois depararam-se com os “cafres”, que interpretaram como
inimigos ou infiéis e que almejavam transformar e dominar, pela
violência ou pela catequese. Permaneceram algum tempo no lo-
cal, percorreram uma grande extensão de terra, para morrerem
sem levar a cabo a missão a que se propuseram, em ambos os
casos a salvação, seja a de pessoas, como almeja Sepúlveda, seja
a de almas, conforme ambiciona Gonçalo da Silveira.
A morte das personagens, ainda que possa ter sido expla-
nada de modo apoteótico ou epifânico, como fazem Jerônimo
Corte Real e os biógrafos de Gonçalo da Silveira, a exemplo do
citado Francisco Correia, não esconde sua derrota e o fracasso
da missão a que se determinaram. O insucesso deve-se, por sua
vez, às suas respectivas dificuldades para entender e interagir
com o ambiente inusitado que os circunda. Assim, o colonizador,
seja o militar Sepúlveda, seja o religioso Silveira, acaba por se
tornar vítima do mundo – representado pela natureza para o pri-
meiro e por seus ocupantes para o segundo – a que lhe compete
submeter. Ainda que, historicamente, aquele colonizador tenha
dominado, administrado e explorado o continente africano, foi
ele o perdedor, condição revelada indiretamente na epopéia de
Corte Real e explicitamente no romance de Mia Couto, quando
as personagens que protagonizam o Naufrágio do Sepúlveda ou
os capítulos 3, 6, 9, 12, 15 e 18 de O outro pé da sereia mostram-se
objeto de um ritual que os sacrifica e os devolve à terra, no caso
do capitão português, ou à água, como acontece ao jesuíta.
Na epopéia de Corte Real, a derrota de Sepúlveda é com-
pensada pela redenção do herói, louvado em versos que não
escondem a incompetência do capitão para lidar com a situação
adversa. No romance de Mia Couto, o fracasso de Gonçalo da
Silveira é contraposto à decisão de Manuel Antunes, que, ainda
na condição de avesso do jesuíta, se deixa absorver pela realidade
circundante, não por oportunismo, como faz Caiado, mas por se
58 Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008
Duas viagens, um destino, Moçambique

identificar com ela. Transforma-se, assim, em criatura híbrida,


a meio caminho entre a Europa de onde proveio, sintetizada no
comportamento de Silveira, e a África em que deseja se transfor-
mar, ao adotar o nome de Nimi Nsundi e aceitar o papel que se
espera dele, o de feiticeiro e rezador. No entanto, mesmo a meta-
morfose de Antunes é incompleta, já que sua clientela atribui-lhe
um terceiro nome, Manu Antu, evidenciando a impossibilidade
da completa ruptura com as origens:
– Não sou Manu Antu! disse ele. Sou Nimi Nsundi.
O escravo Xilundo permitiu-se sorrir. O nome “Nimi Nsundi”
só existia na cabeça do sacerdote. Na verdade, as pessoas da
aldeia chamavam-no de Muzungu Manu Antu e estavam
lidando com ele como um nyanga branco. Manuel Antunes,
ou seja, Manu Antu, aceitara tacitamente ser considerado
feiticeiro, rezador de Bíblia e visitador de almas. (COUTO,
2006, p. 313)
As duas figuras históricas, Manuel de Sepúlveda e Gonçalo
da Silveira, somado esse a seu avesso ficcional, Manuel Antunes,
explicitam o modo como se deu a relação do europeu ocidental
e o mundo africano, representado pelo solo moçambicano. Ao
contrário do que se passou na América, que, em grande parte
do território (haja vista as histórias do Brasil, da Argentina, dos
Estados Unidos e do Canadá, por exemplo) cedeu sua identidade
ao colonizador europeu, adotando seus valores, língua, compor-
tamentos e visão de mundo, a África não se deixou domar. Ainda
que espoliados de homens e tesouros por intermédio da ação de
aventureiros como Antônio Caiado, que figura em O outro pé da
sereia, e nomeados por vocábulos impróprios e pejorativos como
“cafre”, os povos africanos não abriram mão de suas diferentes
línguas, cultos, vestuários, tipos de alimentação, enfim, de sua
cultura e costumes. O Moçambique de Sepúlveda e Silveira foi
invadido, mas não perdeu a identidade; pelo contrário, impôs ao
invasor uma nova personalidade, que ele, a duras penas, e nem
sempre com integral compreensão dos acontecimentos, adota.
O Naufrágio do Sepúlveda e O outro pé da sereia, distantes
no tempo e nos objetivos, aproximam-se, quando flagram um
processo comum, peculiar à história de Moçambique, em parti-
cular, e da África, de modo amplo. Eis porque as duas viagens
chegam a um mesmo destino, narrando uma história de origens,
não por dar conta de uma fundação, mas por revelar o fracasso
de um projeto de colonização por esse ter em vista anular uma
identidade que se mostra resistente e inquebrantável.

Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008 59


Gragoatá Regina Zilberman

Abstract
Two travels took place between the years 1550
and 1560, leading two Portuguese aristocrats
from India to the East Cost of Africa, now Mo-
zambique: Captain Manuel de Sousa Sepúlveda
and priest D. Gonçalo de Oliveira. Jerônimo
Corte Real narrated the first travel in Naufrágio
do Sepúlveda, published in 1594; Mia Couto
narrated the second, in O outro pé da sereia,
published in 2006. The two books represent the
relations between Africa and Europe.
Keywords: Europe-Africa relations. Disclosure.
Hybridism.

REFERÊNCIAS

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di.uminho.pt/vercial/zips/candid13.rtf>. Acessado em 01 de
março de 2008.

60 Niterói, n. 24, p. 45-60, 1. sem. 2008


Uma língua de viagens,
transgressões e rumores
Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

Recebido 20 mar. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo
A língua portuguesa e sua importância nas
literaturas dos países africanos, ex-colônias de
Portugal. Os laços identitários com a “pátria
colonizadora” se esgarçaram e o idioma imposto
adquiriu diferenciadas faces em Angola, Cabo
Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé
e Príncipe. Alguns elos permaneceram, ainda
que dispersos; outros se desmancharam no tem-
po. A língua portuguesa, tendo atravessado o
Atlântico, o Índico, aportou em diferentes terras,
recebeu novos saberes, musicalidades, acentos;
multiplicou-se, grávida, de outros espermas,
suores e salivas.
Palavras-chave: Língua portuguesa. Países
africanos. Laços identitários

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 61-69, 1. sem. 2008


Gragoatá Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

“A identidade não existe, é uma procura infinita.”


(Mia Couto, Folha de São Paulo, 18 nov. 1998)
Há algum tempo, em entrevista ao Jornal de Letras, Eduardo
Lourenço defendeu a força unificadora da língua portuguesa,
afirmando ser ela “uma herança sem preço, fiadora de nossos
laços identitários” (LOURENÇO, 1993, p. 4). Segundo o ensaísta
português, no mundo atual, onde os blocos ideológicos sofrem a
pressão de uma economia interplanetária que vem substituindo
a crença nas grandes teorias e idéias pela idolatria de moedas
fortes e pelos acordos econômicos multinacionais, torna-se im-
perativo o exercício da linguagem, ou melhor, o culto ao nosso
idioma, forma de resistir aos meios massivos da comunicação
e às influências negativas da mídia eletrônica. Eduardo Lou-
renço, completando seu pensamento, alertou: “Naveguemos
de olhos abertos entre a realidade que não nos basta e a ficção
a que queremos dar uma figura nova no mundo imprevisível
que nos espera” (LOURENÇO, 1993, p. 4). Sintomático é o uso do
verbo “naveguemos”, uma vez serem recorrentes na literatura
portuguesa e na história de nosso idioma as metáforas do mar
e do navegar. Fernando Pessoa, reatualizando versos de antigos
navegadores, associou o ato náutico ao de criar: “viver não é
necessário; o que é necessário é criar” (PESSOA, 1965, p. 16).
Também a escritora brasileira Nélida Piñon atribuiu à nossa
língua uma vocação marítima (PIÑON, 1978, p. 13), tendo em vista
o fato de esta ter singrado o Atlântico, o Índico e aportado no
Brasil e em África, onde adquiriu ritmos, odores, sensualidade
e sabores novos. O escritor angolano Manuel Rui Monteiro foi
outra voz a destacar essa “condição viajeira” de nosso idioma:
“A língua portuguesa é uma língua de viagem. E eu escrevo
viajando por ela a partir do porto onde ela chegou para me
possuir” (MONTEIRO, 2003).
Sabemos que a língua portuguesa foi uma imposição dos
colonizadores. Transformada e possuída pelos colonizados,
adquiriu novas afetividades: “No chegar do outro não se fala-
va esta língua aqui. A língua foi trazida. Daí a sua boa óbvia
transgressão. O invadido sentiu a língua do outro como inva-
sora. Mas transgredir é possuir a língua. Como mulher amada”
(MONTEIRO, 2003).
No período das independências dos países africanos que
foram dominados por Portugal, com o apogeu dos nacionalismos
pós-Segunda Guerra, a noção de pátria se fortificou e as identi-
dades lingüísticas foram pensadas como fatores de construção
da nacionalidade a ser conquistada. No calor dos discursos, a
utopia revolucionária forjou uma idéia de língua vinculada à
de unidade nacional. O idioma português foi, então, entendido
como agente aglutinador, responsável pela coesão cultural e
política dos jovens países africanos tardiamente libertados.

62 Niterói, n. 24, p. 61-69, 1. sem. 2008


Uma língua de viagens, transgressões e rumores

Carlos Espírito Santo, poeta de São Tomé, posicionou-se,


assim, em depoimento apresentado no “Congresso sobre a
Situação da Língua Portuguesa no Mundo”: “Usar a língua do
antigo colonizador não quer dizer que o país seja uma recolônia,
pois a língua portuguesa foi também uma conquista de nossa
revolução” (SANTO, 1983, p. 256).
Em Cabo Verde, alguns poetas com obras anteriores ao
período das lutas pela libertação foram fortemente influenciados
pelo lusotropicalismo, de Gilberto Freyre, acreditando em uma
harmonia racial e lingüística que, na verdade, era inexistente.
Baltasar Lopes, por exemplo, poeta caboverdiano da Geração
Claridade, fez um estudo sobre o crioulo de Cabo Verde e
afirmou que este “amaciou as sílabas do português”. Tal visão
camufla a “violência simbólica” que houve com a imposição do
idioma trazido pelo colonizador; encobre a política de glotofagia
exercida pelos dominadores.
Após as independências, atenuadas as fissuras da “desco-
lonização”, um novo ciclo se abriu para as Literaturas Africanas.
A língua portuguesa se impôs, mas não mais com os traços e os
ritmos lusitanos com que partiu do Tejo. Expropriado, recriado,
o discurso literário optou por um português africanizado que
busca, ainda hoje, reinventar as estruturas orais da fala, assu-
mindo as transgressões sintáticas e semânticas. Em Angola,
por exemplo, diversos escritores e poetas buscaram captar um
português quimbundizado dos musseques, dos quimbos e sanzalas.
As línguas locais passaram a coexistir com o português e foram
incorporadas, mesclando-se, muitas vezes, à língua portuguesa.
Diversos textos literários incorporaram expressões de diferentes
línguas africanas de Angola, entre elas: o quimbundo, o mbunda,
o ovibundo e outras. Recriada, a escrita literária foi kazukutada,
ou seja, foi “desordenada, agredida”, pois kazukutar é um termo
quimbundo que significa “instalar a desordem”. Fecundado com
o sêmen africano, o português literário assumiu-se, então, como
um “discurso verbalmente mestiço”.
A diferença das línguas nacionais abala o edifício hegemônico
da língua imposta pela dominação e de certo modo impede
que se consolide o etnocentrismo ou se aceite sua fatalidade.
A língua portuguesa, ao dobrar-se às necessidades de seus
novos utentes, se faz ela própria um instrumento que se volta
contra o processo de dominação, abrindo-se para o dialogismo
cultural que passa a veicular. (PADILHA, 2002, p. 51)
Temos exemplos disso na prosa angolana, com escritores
como Luandino Vieira, Manuel Rui, Boaventura Cardoso, Antô-
nio Jacinto, Uanhenga Xitu, entre outros, que mesclam o portu-
guês e o quimbundo, recriando a língua portuguesa, segundo
uma perspectiva e ritmo locais. Ao efetuar, assim, a subversão
do instituído por meio da ludicidade da linguagem literária, essa

Niterói, n. 24, p. 61-69, 1. sem. 2008 63


Gragoatá Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

literatura afirma a diferença angolana, ou seja, apresenta traços


característicos da cultura e dos falares de Angola.
Em Cabo Verde, ao lado do crioulo, houve também uma
crioulização do idioma português imposto pela colonização
portuguesa, o que acabou desenvolvendo uma situação de bilin-
güismo, hoje tão bem estudada por lingüistas cabo-verdianos,
entre os quais Manuel da Veiga, atual Ministro da Cultura de
Cabo Verde.
Foi o Movimento de Claridade que iniciou um processo
intenso de caboverdianização da escritura literária em Cabo Ver-
de. As mornas – canções típicas do Arquipélago, que traduziam
em suas letras o dilema do povo das Ilhas, obrigado a partir,
com vontade de regressar – foram, em textos mais modernos,
recriadas e passaram a defender “o ficar para resistir”. Alguns
textos da literatura cabo-verdiana foram escritos em crioulo,
como os poemas de Sérgio Frusoni, os de Kaoberdiano Dambará
e o romance Odju d´agu, de Manuel da Veiga, entre outros, que
tanto valorizaram e afirmaram as matrizes culturais crioulas
das Ilhas.
Em Moçambique, o poeta José Craveirinha defendeu ser
imperioso adotar uma posição clandestina para poder sublevar
o tecido lingüístico. Muitos de seus poemas, entre os anos 1940
e 1950, buscaram afirmar as raízes africanas. Pela consciência
da necessidade de contaminar a língua do colonizador, entre
outros fatores, Craveirinha introjetou no português termos de
línguas africanas. Com uma linguagem erótica, guerreira, vi-
brante, áspera, luxuriante, a poesia de Craveirinha, ainda hoje,
estremece quem a lê. Sente-se em seus versos um rumor, um roçar
nervoso de vocábulos, alguns escritos em xi-ronga, atritando-se,
insubmissos, com a língua portuguesa. No conhecido poema
“África”, o eu-lírico confessa o desejo de macular o português,
fecundando-o com expressões de línguas locais:
E ergo no equinócio de minha terra
o rubi do mais belo canto xi-ronga
e, na insólita brancura dos rins da
madrugada, a carícia dos meus dedos
selvagens é como a tácita harmonia
de azagaias no cio das raças,
belas como falos de ouro eretos no
ventre nervoso da noite africana.
(CRAVEIRINHA, 1980b, p. 17)
Incorporando ritmos africanos, “gritos de azagaias no cio
das raças”, o “tantã dos tambores” ressoando na pele do poema,
o sujeito lírico chama miticamente a ancestralidade e impõe sua
poesia como um canto erótico de rebeldia. Os versos citados an-
teriormente encontram-se no pórtico de Xigubo; abrem este livro,
cujo título, em xi-ronga, significa “tambor” e “dança guerreira
que prepara ou comemora as batalhas”. Portanto, os poemas,

64 Niterói, n. 24, p. 61-69, 1. sem. 2008


Uma língua de viagens, transgressões e rumores

reunidos neste volume, sob a designação Xigubo, metaforizam


a conclamação e a defesa das raízes africanas que foram silen-
ciadas pela colonização.
Na poética de Craveirinha, a língua portuguesa, que o
aparelho colonial desejaria imune a alterações, é sublevada; passa
por um processo de moçambicanização, abrindo caminho para
as gerações posteriores. Exemplo disso é o poema “Inclandes-
tinidade”, de Cela 1, onde o eu-poético assume a contramão da
língua e da História:
Cresci.
Minhas raízes também
cresceram
e tornei-me um subversivo
na genuína legalidade.
Foi assim que eu
subversivamente
clandestinizei o governo
ultramarino português.
Foi assim!
(CRAVEIRINHA, 1980a, p. 85)
A voz lírica, com metáforas iradas e versos agressivos,
transgride a norma e as regras impostas pelo domínio portu-
guês. Não há ressentimentos contra a língua portuguesa; mas,
contra o colonialismo. O idioma é renovado por neologismos que
conjugam radicais em xi-ronga com prefixos do português e vice-
versa. A subversão se faz tanto em nível ideológico-lingüístico,
como estético-literário.
Enfraquecida a crença utópica que alimentou os nacio-
nalismos e processos revolucionários motivadores das inde-
pendências das ex-colônias portuguesas em África, a língua
portuguesa não pode ser decantada, apenas, porque foi veículo
de politização e permitiu a revolução. Deve ser pensada segundo
outros parâmetros. Hoje, em plena época de crises, de desen-
cantos, após a queda do Muro de Berlim, não cabe mais uma
concepção monolítica do fenômeno lingüístico, nem do histó-
rico. As línguas, nas sociedades contemporâneas de consumo,
cruzam-se, babélicas, com discursos do simulacro produzidos
pela comunicação virtual. Persistem, entretanto, transgressoras,
aquelas que, clandestinizadas, se fazem ouvir através de vozes
paródicas, irreverentes – como é o caso, em Cabo Verde, de Dina
Salústio, Armênio Vieira, Germano Almeida, entre outros, que
usaram do humor para efetuarem fortes críticas sociais –, ou
através de cantos líricos que, a par da desesperança atual, ainda
apostam no sonho e na própria poesia.
Exemplificamos esta última vertente com o livro Preces &
súplicas ou Os cânticos da desesperança, de Vera Duarte, que adverte,
principalmente, para a crescente e assustadora perda da huma-
nidade nesta época neoliberal. Os poemas de Vera não tecem

Niterói, n. 24, p. 61-69, 1. sem. 2008 65


Gragoatá Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

loas ao sucesso, ao consumo, ícones do mercado que transforma


as pessoas em mercadorias. Sua poiesis dá as costas a esse tipo
de progresso, buscando exorcizar a barbárie por intermédio de
intenso exercício de captação de lembranças e recônditos afetos
advindos do outrora. É pela rememoração de fogos e ritmos do
San Jon, que os ventos da memória e da imaginação transportam
o sujeito poético aos tambores da Ilha de Santiago, fazendo-o
relembrar tradições que se erigem, no poema, como estratégias
de fuga e reação ao apocalipse de uma modernidade esfaceladora
de identidades e histórias. Em consonância com o poeta Corsi-
no Fortes, por exemplo, observamos que o eu-lírico de Preces &
súplicas ou Os cânticos da desesperança procura ritmos identitários
das ilhas na própria musicalidade poética. Opera, dessa forma,
com uma poesia da sensibilidade, da luta pela igualdade e pelos
direitos humanos. Recupera Eugénio de Andrade como poeta de
grande trabalho com a densidade da linguagem; faz dialogar a
metáfora da rosa de Eugénio com a da rosa mirabílica da geração
poética do pós-25 de abril em Cabo Verde, da qual fazem parte
vários poetas, entre os quais José Luís Hopffer Almada:
Em África cresce uma rosa
É a rosa mirabílica
Flor de poesia
uma rosa entre cadáveres
(DUARTE, 2005, p. 19)
Essa rosa representa, portanto, a crença na insurreição dos
homens e das palavras, a resistência da literatura cabo-verdiana,
pois “para lá da ilha, /só existe a poesia” (DUARTE, 2005, p. 62).
“Sem a palavra/ A ilha não existe/ Sem a ilha/ Não existe o
poema” (DUARTE, 2005, p. 64).
Existem ainda, na produção lírica pós-1980 dos países afri-
canos de língua portuguesa, vertentes intimistas que buscam
sentidos poéticos nas profundezas interiores de cada ser. Em
Moçambique, por exemplo, podemos citar a poesia de Eduardo
White que voa com a imaginação e procura ouvir o rumor da lín-
gua, que, para Barthes, constitui o frêmito poético, a capacidade
da linguagem de expressar-se de modo inaugural.
Em Eduardo White, cada palavra, cada metáfora e cada
imagem criam tremores de sentidos, que, amplificados, possi-
bilitam à língua um sonoro e musical rumorejar, resultante do
embate de suas encapeladas vagas de encontro às quilhas que
vão sulcando as oceânicas trilhas percorridas através dos séculos:
um navio na língua, a língua e o navio...
As línguas, tecidos por onde passam as diferenças, não
podem mais ser concebidas somente segundo o paradigma
da identidade ou, pelo menos, este conceito não pode mais ser
explicado monoliticamente. É preciso entender, com Boaven-
tura de Sousa Santos, que apenas existem identidades em curso;

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Uma língua de viagens, transgressões e rumores

o conceito identidade só pode ser compreendido na dialética da


própria diversidade; portanto, os idiomas não podem mais ser
considerados apenas como “vozes representativas da pátria e da
nação”. A língua portuguesa, por exemplo, tendo atravessado
o Atlântico, o Índico, chegou a diferentes terras, recebeu novos
saberes, nova musicalidade, novos acentos; conquistou novos
afetos, novas subjetividades; multiplicou-se, grávida, de outros
espermas, suores e salivas.
Cada vez mais se torna necessária uma reflexão crítica a
respeito da questão das transformações sofridas pela língua
portuguesa, pois muitos de seus laços, no decorrer dos séculos,
se desfizeram e se refizeram em heterogêneas combinações.
Sabemos quanto de diversidade esse idioma adquiriu, ao travar
contato com outras línguas e culturas ao longo da história. Leva-
do à África e ao Brasil como língua de colonização, o português
deixou marcas profundas; contudo, também sofreu metamor-
foses em decorrência das diferenças lingüísticas, culturais e
sociais entre povos.
Tal consciência é clara em vários escritores contemporâ-
neos, tanto do Brasil, como de África, que têm como matéria
vertente o idioma português. Ana Paula Tavares, por exemplo,
na crônica intitulada “Língua Materna”, demonstra grande lu-
cidez a esse respeito:
[...] a língua mãe cresce conosco e ao mesmo tempo inaugura
e aprende a distinguir os cheiros fortes da terra ou o sabor
do pão de batata-doce, que como ela também leveda e tem
que ser cuidado sob risco de passar do ponto e abater... Como
as pessoas, a língua alarga-se à convivência com as outras,
oferecendo-se mesmo ao acto de incorporar no seu próprio
corpo outras sonoridades, outros empréstimos. (TAVARES,
1998, p. 13)
A autora chama atenção para as alterações e metamorfoses
do português em convívio com as línguas angolanas e vice-versa,
confessando a sedução exercida sobre ela pelas enriquecedoras
trocas ocorridas no decorrer dos processos lingüísticos:
Sempre observei com gosto a alquimia generosa da língua
portuguesa engrossando ao canto umbundo, sorrindo com o
humor quimbundo ou incorporando as palavras de azedar o
leite, próprias da língua nyaneka. O contrário também é vá-
lido e funciona para todo o universo das línguas bantu e não
só faladas nos territórios, onde hoje se fala também a língua
portuguesa. (TAVARES, 1998, p. 13)
Constatamos, desse modo, que muitos poetas e escrito-
res africanos não só reinventaram a língua portuguesa, mas
também refletiram sobre suas mutações, variações. Invertendo
e subvertendo o estabelecido pelos paradigmas colonialistas,
fizeram a revolução, utilizando os idiomas locais e o português
como patrimônio coletivo. Na verdade, os laços lingüísticos do

Niterói, n. 24, p. 61-69, 1. sem. 2008 67


Gragoatá Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

português com as línguas africanas nativas não surgiram com


esse processo, tendo em vista serem bem antigos, conforme
advertiu Mia Couto:
E mesmo se nos quisermos abster à influência das línguas
bantus nascidas depois do tempo das caravelas: há quanto
tempo palavras como minhoca, cambada e candonga e tantas
outras se instalaram na língua portuguesa? Pois eu vos digo,
tomando apenas um exemplo: a palavra minhoca instalou-se
no século XVI e hoje a maior parte dos portugueses nem sequer
suspeita da sua origem longínqua. Meus amigos, a verdade é a
seguinte: a lusofonia não começou hoje. A nossa língua comum
foi construída por laços antigos, tão antigos que por vezes lhes
perdemos o rastro. De uma vez por todas, superemos receios
e fantasmas. De uma vez por todas, namoremos o futuro para
que ele se enamore de nós. (COUTO, 2007)
Seguindo os conselhos de Mia Couto, ultrapassemos
receios e fantasmas. O importante é que a língua portuguesa,
enriquecida por tantas particularidades e diferenças, se man-
tenha, tanto no presente, quanto no futuro, como elo capaz de
permitir um debate plural e um diálogo crítico entre as culturas
dos diversos povos que são usuários desse idioma.

Abstract
The Portuguese language and its importance to
the literature of African countries, i.e., former
Portuguese colonies. The identitary ties with
the “fatherland” decreased and the imposed lan-
guage acquired different facets in Angola, Cabo
Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e
Príncipe. Some links remained, albeit scattered,
others dissolved with time. The Portuguese lan-
guage, crossing the Atlantic, the Indic, arrived
in different lands, receiving new knowledges,
musicalities, accents; multiplied, pregnant, by
Other sperms, sweat and ‘sweat and blood’.
Keywords: Portuguese language. African coun-
tries. Identitary ties.

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Uma língua de viagens, transgressões e rumores

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Da colonização lingüística
portuguesa à economia neoliberal:
nações plurilíngües
Bethania Mariani

Recebido 10 mar. 2008 / Aprovado 27 abr. 2008

Resumo
O objetivo deste texto é apresentar características
do presente lingüístico do Brasil e de Moçambique,
tendo em vista a memória histórica constitutiva
das duas formações sociais em sua dimensão
lingüística.
Palavras-chave: Colonização lingüística. Polí-
tica de línguas. Brasil. Moçambique.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 71-88, 1. sem. 2008


Gragoatá Bethania Mariani

“S’il y a une histoire des langues, elle constitue donc un chapitre de


l’histoire des sociétés, ou mieux, le versant linguistique de l’histoire
des sociétés. Et si l’on considère, ce qui n’est guère original, que la
violence est la grande accoucheuse de l’histoire, alors cette violence
affecte aussi l’histoire des langues.”
(Louis-Jean Calvet)

1. História e história das línguas


De modo contundente, a historiadora Isabel Castro Henri-
ques (2004) assinala a urgência em se realizar uma releitura do
lugar ocupado pela África na historiografia ocidental bem como
na construção de sua própria história. Na tradição histórica do
período colonial, sobretudo entre os séculos XV e XVII, recusava-
se aos colonizados a atribuição de uma sociabilidade, pois aos
olhos dos europeus faltavam-lhes traços do que se compreendia,
na época, como civilização – religião cristã, poder centralizado
e aparato jurídico – e isso alimentava o imaginário europeu
sobre uma pretensa baixa capacidade intelectual associada a
uma preguiça irremediável.
Como mostra a historiadora, as transformações sociais e
políticas da Europa, com o incremento das relações econômicas
capitalistas a partir do século XIX, exigiram alterações no mo-
delo colonial africano e, ao mesmo tempo, direcionaram uma
mudança no modo como o europeu se significava nessa história,
mas não alteraram substancialmente a imagem dos africanos
no imaginário ocidental. No século XIX, de explorador cruel
a filantropo, o europeu passa a legislar o fim da escravatura
e do tráfico negreiro, mas fecha os olhos ao contrabando que
se mantinha a despeito das novas leis. Além disso, resquícios
do anatomismo desenvolvido no século XVIII asseguravam a
exclusão dos negros de seus critérios de beleza e caráter para
incluí-los no paradigma da feiúra e da selvageria.
No período pós-colonial, o reconhecimento das diferenças
e das necessidades decorrentes dessas diferenças – dentre as
quais as marcas dessa memória colonial – esbarra, ainda, na des-
qualificação das sociedades africanas e no não-reconhecimento
da alteridade. A historiadora afirma:
A insensibilidade portuguesa – como aliás européia – que não
pode deixar de surpreender, deve-se a um preconceito que não
está ainda morto na sociedade portuguesa contemporânea:
os africanos são naturalmente escravos e estão naturalmente
destinados a ser os servidores dos brancos, e dos portugueses
em particular. A violência do preconceito, reforçado pelo in-
ventário dos caracteres somáticos (cor da pele, tipo de cabelo,
odor e maneira de falar), ainda não abandonou a sociedade
portuguesa, explicando a marginalização violenta a que estão
votadas as comunidades imigrantes africanas. (HENRIQUES,
2004, p. 28)

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Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações plurilíngües

Na história colonial do Brasil, a violência contra os indí-


genas também foi assegurada em nome de uma ideologia do
déficit religioso e jurídico. De modo tão contundente quanto o
da historiadora portuguesa, os antropólogos Darcy Ribeiro e
Carlos Moreira Neto (1992) referem-se ao passado da formação
social brasileira e ao presente, ainda tributário desse passado,
descrevendo
(a)o povo multitudinário, que trabalha para produzir o que
não come nem usa e sim o que é requerido dele por seus amos.
[...] foram milhões de índios, de negros e de brancos, ontem
escravos, hoje assalariados [...] O Brasil nunca existiu para si
próprio, na busca da prosperidade e da felicidade de seu povo.
Existiu e existe é para servir, servil e explorado, ao mercado
mundial, que ajudou a montar com montanhas de açúcar,
de ouro, de café, de minério e de soja. (RIBEIRO; MOREIRA
NETO, 1992, p. 15-16)
O que mais chama a atenção, nas análises da historiadora e
dos antropólogos, é a permanência ainda nos dias de hoje desse
imaginário de deficiência e subserviência produzido no período
colonial. Ou seja, a violência simbólica e econômica permanece
no período pós-colonial produzindo seus efeitos de controle e
exclusão, sobretudo sobre os povos africanos.
Quando nos debruçamos sobre a história das línguas
em uma situação de colonização lingüística, quando tomamos
as línguas em seu percurso como objeto simbólico, elemento
constitutivo de identidade nacional, podemos perceber esses
efeitos. No período das descobertas, as línguas não européias
são consideradas dificultosas, defeituosas, sem racionalidade.
A já mencionada ideologia do déficit, portanto, é constitutiva do
modo como as línguas eram significadas: sem [f], [l] e [r], “letras”
que designam a fé, a lei e o rei, no caso das línguas indígenas
brasileiras, e sem racionalidade, no caso das línguas africanas do
Congo, que não possuíam nomes próprios nos moldes europeus
(MARIANI, 2004, 2007a, 2007b).
Não há processo colonizador que não tenha passado pelo
acontecimento lingüístico que resulta da imposição violenta da
língua do colonizador, uma imposição que confronta línguas
com funcionamentos e memórias sociais distintas, e que acaba
por produzir, ao longo do contato lingüístico e social, a emer-
gência de um lugar enunciativo diferenciado e determinado em
relação à constituição da língua nacional (ORLANDI, 1993). A
atribuição de sentidos para a língua nacional, ou para as línguas
nacionais, não se realiza senão em relação a uma memória he-
terogênea na qual “o ‘mesmo’abriga no entanto um ‘outro’, um
‘diferente’histórico que o constitui ainda que na aparência do
‘mesmo’” (ORLANDI, 2002, p. 23).
Neste texto, para refletir sobre algumas características do
presente lingüístico do Brasil e de Moçambique, tendo em vista

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Gragoatá Bethania Mariani

essa memória histórica constitutiva das duas formações sociais


em sua dimensão lingüística, serão consideradas duas vertentes:
a legislação referente à política de línguas e as relações nem
sempre muito visíveis entre as línguas e a política econômica.
Inicialmente apresento um estudo comparativo sobre a legisla-
ção portuguesa referente ao uso do português nas colônias. Em
seguida, tendo em vista o período pós-colonial, discussões sobre
a descolonização lingüística (ORLANDI, 2007) e sobre a situa-
ção histórica atual desses dois países, trabalho com as insólitas
relações entre lingüística e economia, visando problematizar o
valor econômico das línguas.
2. Língua de colonização e legislação colonial
Teorizar sobre a passagem do Português como língua de
colonização para língua nacional e teorizar sobre a (inter)nacio-
nalização das línguas indígenas brasileiras e africanas após os
processos de descolonização, considerando como pano de fundo
os efeitos da violência simbólica da colonização lingüística bem
como a heterogeneidade lingüística constitutiva das nações, é
discutir a trajetória sócio-política das línguas e das idéias lin-
güísticas, é discutir também a história do sempre conflituoso
percurso da construção de identidades lingüísticas nacionais,
por um lado, e dos conflitos político-lingüísticos internacionais,
por outro.
Com a colonização lingüística inevitavelmente há o início
de um enorme trabalho na(s) língua(s), um trabalho posto em
prática pelos sujeitos. Melhor dizendo: os sujeitos são tomados
por esse trabalho, são tomados pela(s) língua(s) em confronto,
estão inscritos em um território que se constrói discursivamente
nessa heterogeneidade lingüística. Por mais que as políticas de
línguas visem administrar os conflitos, nenhum planejamento
garante um controle total. As línguas se tocam, enlaçam fo-
nemas e prosódia, deslocam sentidos, fazem surgir palavras,
modificam suas gramáticas etc. Ao ser observado por estudio-
sos, esse processo lingüístico é descrito e tais descrições valem
como intervenções pontuais: elaboração de listas de palavras
ou elaboração de instrumentos lingüísticos1 como gramáticas,
dicionários e cartilhas. Materiais fabricados para aprisionamento
da opacidade e da fluidez linguageira.
Para as nações que resultam do fato da colonização, a ques-
1 Con forme Auroux,
em seu conceito de gra-
tão lingüística geralmente inscreve-se em uma de três ordens
matização: processo de contraditórias, cada qual com suas marcas específicas de inclu-
descrição e posterior
instrumentalização de
são e exclusão dos sentidos de língua nacional: a que acolhe a
uma língua com base na língua do colonizador, colocando-se como tributária dela; a que
gramática e no dicioná-
rio, duas tecnologias ou rejeita essa língua do colonizador em nome de um nacionalismo
instrumentos lingüís- lingüístico, e a que, de modo crítico, considera que não há como
ticos, que alteraram as
relações entre as línguas falar em língua nacional ou em línguas nacionais sem conside-
(1992, p. 52, 65).

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Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações plurilíngües

rar a memória histórico-política da língua de colonização em


confronto com outras línguas.
A colonização do Brasil e de territórios africanos não se
efetuou da mesma forma assim como os processos de indepen-
dência também não seguiram os mesmos caminhos. Além do
espaço temporal de mais de um século entre a independência
do Brasil (1822) e a de Moçambique (1975), há que se considerar
também a política lingüística portuguesa, que se efetivou dife-
rentemente em relação às colônias. Essas diferenças, porém, não
impedem uma comparação da trajetória da política de línguas
organizada por Portugal durante o período colonial e os efeitos
decorrentes dessas políticas durante a descolonização. Da mesma
maneira, guardadas as inúmeras diferenças históricas, é inte-
ressante apresentar e comparar as políticas lingüísticas internas
observadas por Brasil e Moçambique após a independência.
No que diz respeito ao período colonial, um primeiro as-
pecto a ser considerado é a imposição dos sentidos que legitimam
a língua portuguesa como língua do poder real frente às línguas
indígenas e africanas. 2
Como língua de colonização, a Língua Portuguesa se
impõe também como uma língua que já tem uma escrita, uma
literatura, gramáticas e dicionários, elementos que asseguram
a permanência de uma memória do português submisso ao rei
e ao catolicismo. No silêncio decorrente da colonização, a im-
2 Lembremos que desde posição de uma língua camufla a heterogeneidade lingüística
o século XV, aproxima-
damente, a língua por-
e contribui para a construção de um efeito homogeneizador
tuguesa e a maioria das que repercute ainda hoje no modo como se concebe a língua
línguas européias se en-
contram em um mesmo
nacional no Brasil, em Angola e em Moçambique, guardadas
patamar de auto- e inter- as diferenças históricas.
sustentação político-
ideológica, mantendo-se Ao ser levada para além mar, a Língua Portuguesa funciona
hierarquicamente em como um dos símbolos do império e o esforço em catequizar e
uma posição similar em
função de serem línguas civilizar os indígenas nada mais era senão incluí-los nos moldes
nacionais a serviço de
um poder real centrali-
da civilização européia, provendo aquilo que supostamente
zado, organizado e sus- estaria faltando para esta inclusão: uma estrutura jurídico-
tentado juridicamente.
A partir desse período administrativa, uma autoridade governamental, uma religião
h istórico, as lí ng uas e uma língua comum.
das nações européias
já estão consolidadas e Na conquista da África, as línguas locais permaneceram,
regularizadas, já pos-
suem escrita, já estão
em sua imensa maioria, sem descrições gramaticais consistentes,
g ramatizadas, já são pois Portugal só passou a investir de fato em suas possessões
ensinadas em escolas, já
são usadas na literatura africanas, inclusive promovendo expedições e a fixação na terra,
e no registro jurídico. a partir de meados do século XIX (ALEXANDRE; DIAS, 1998).
No caso português, as-
sim como em relação Praticamente não houve investimento na descrição e no estudo
às demais línguas, essa
relação língua-nação
lingüístico, e tampouco investimento econômico. Apenas no
uma vez constit uída final do século XIX é que Portugal passou a legislar questões
torna-se um emblema
da real ordem sócio-
relativas à educação e às línguas como forma de garantir a posse
política e isso produz da terra.
efeitos tanto em termos
de uma política interna Nas terras do Brasil, ao contrário, em função mesmo da
quanto externa. colonização e dos interesses comerciais e catequéticos, algumas
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Gragoatá Bethania Mariani

línguas indígenas foram estudadas e tornaram-se objeto de co-


nhecimento na forma de listas de vocábulos e de gramáticas. Foi
o caso, sobretudo, da língua Tupinambá, extensamente falada
no litoral, posteriormente chamada genericamente de Língua
Geral, que foi gramatizada pelos jesuítas e largamente utilizada
nas aldeias e nas fazendas por bandeirantes, mulheres e crianças
brancas, negros escravizados e índios de outras nações.
Através de Cartas Régias, a coroa portuguesa buscou admi-
nistrar as lutas entre as línguas, exigindo dos missionários o uso
do português, apesar de aceitar que a catequese fosse realizada
na língua geral ou em outra língua indígena. Ao longo do tem-
po, a imposição do português tornou-se necessária e precisando
funcionar em termos pragmáticos como uma unidade lingüística
fundamental para o estabelecimento de uma comunicação pre-
tendida entre o rei e seus súditos de além mar. Assim, a política
de línguas controversa e submetida aos interesses catequéticos
se encerra no século XVIII, quando é promulgado o Diretório
dos Índios (1758), uma ordem real que promove a expulsão dos
jesuítas, a interdição da Língua Geral e a obrigatoriedade do
uso da Língua Portuguesa, “a língua do Príncipe”, nas aldeias
e em todo o território.
Quando ocorre a independência do Brasil em 1822, a
presença da Língua Portuguesa é fato consolidado em todo o
território.
Sinteticamente, apresentamos no quadro abaixo essa alter-
nância da legislação portuguesa referente à questão lingüística
no Brasil.

LEGISLAÇÃO COLONIAL/POLÍTICA COLONIAL – Brasil

1625, 1667, Cartas e Leis Régias Catequese ora em Português, ora


1701, 1722, 1727 em Língua Geral
03/05/1758 Diretório dos Índios Proibição do uso da Língua
Geral. Obrigatoriedade do uso e
do ensino da Língua Portuguesa
17/08/1758 Alvará de Proibição do uso da Língua
confirmação do Geral. Obrigatoriedade do uso e
Diretório dos Índios do ensino da Língua Portuguesa
12/05/1798 Extinção do Manutenção do uso e do ensino
Diretório sistemático do Português

Na África, mais especificamente em Moçambique, a situ-


ação é bem diferente, como já observamos em outras reflexões
(MARIANI, 2007a, 2007b). Para discutir a questão lingüística,
é necessário retomar um pouco mais da história do império
português e de sua política de ultramar para compreendermos
a eleição da Língua Portuguesa como língua nacional em Mo-
çambique após as guerras de independência.

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Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações plurilíngües

A expressão ‘império português’ é importante porque


aponta para as tentativas portuguesas de garantir a permanência
utópica do projeto de um império transcontinental, multicultural
e multilingüístico. Se recuamos um pouco mais no tempo, vemos
que a futura questão da descolonização da África portuguesa
se inicia no final do século XIX, com a Conferência de Berlim
(15/11/1884 a 26/02/1885), que determinou, dentre outros as-
pectos políticos, a partilha da África pelas potências européias
a partir de regras internacionais uniformes para ocupação do
território. Com a conferência de Berlim, os direitos históricos de
posse da terra em função dos descobrimentos dos séculos XV e
XVI passam para segundo plano em detrimento do que se cha-
mou de ocupação efetiva. Essa questão política é determinante
no modo como Portugal passa a administrar seu território, que
inclui as colônias de ultramar.
E isso só poderia ser realizado com uma nacionalização e,
conseqüente homogeneização desse multiculturalismo e multi-
lingüismo colonial, algo ainda não realizado. O século XIX foi
marcado por um investimento mínimo em educação e, conse-
qüentemente, no ensino de Língua Portuguesa:
nunca se permitiu que a educação fosse além de um nível mí-
nimo muito baixo, isto para não por em perigo os privilégios
conquistados; uma elite africana muito reduzida era educada
com um único fim: apoiar a hegemonia portuguesa e servir
de intermediária entre a administração colonial e a população
africana. (FERREIRA, 1977, p. 61)
Ainda segundo Ferreira, em 1845 e em 1869 foi organiza-
do um novo sistema educacional o qual “definia os diferentes
tipos de educação a serem ministrados a africanos e europeus”
(FERREIRA, 1977, p. 63). Mais para o final do século, escolas
missionárias católicas e protestantes voltadas para a catequese
dos indígenas ensinavam valendo-se para tanto ora da língua
africana, ora do português, ora do inglês.
Do final do século XIX até a proclamação da República
Portuguesa (em 1910), a administração das colônias vai sofrendo
pressão no sentido de definir juridicamente o estatuto dos indíge-
nas e dos assimilados sem abrir mão do domínio imperial.3 Com
o advento da República, cessou o financiamento das missões
católicas. Em seu lugar, eram enviados “agentes da civilização”,
ou seja, “professores que tinham de possuir um curso completo
para professores de instrução primária e possuir alguns conhe-
3
Segundo inúmeros his- cimentos das línguas locais” (FERREIRA, 1977, p. 67). Ao longo
toriadores, como Hen-
riques, mencionada no
da segunda década do século XX, controvérsias em torno do tipo
início desse texto, uma de educação geral e lingüística, em particular, a ser ministrada
das maiores contradi-
ções vivenciadas pelos aos indígenas tomaram conta da administração portuguesa.
portugueses refere-se à Em 1921, por exemplo, houve a proibição do uso das línguas
manutenção do trabalho
escravo até o final dos africanas nas escolas, exceto no exercício da evangelização e
anos 20.

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Gragoatá Bethania Mariani

nos momentos iniciais do ensino do português. O objetivo era


a integração, a assimilação.
Por outro lado, como diz Ribeiro Thomaz (2001), a busca de
nacionalização das colônias no império português ultramarino
acabou por constituir uma crise na própria nação portuguesa,
ao longo do século XX, sobretudo no contexto do regime auto-
ritário salazarista.
Esse império português, que se sustenta politicamente
no governo autoritário de Salazar, afirma-se juridicamente no
território ultramarino com base no Ato Colonial (1930), na Carta
Orgânica do Império Colonial (1933) e no Estatuto Político, Civil
e Criminal dos Indígenas (Decreto 16.473). Vale a pena destacar
dois artigos dessa legislação: “o artigo 1º. da Carta Orgânica do
Império Colonial Português define as colônias como ‘parte inte-
grante do território da nação’; o artigo 2o. do Ato colonial afirma
ser ‘da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a
função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e
de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam,
exercendo também influência moral que lhes é adscrita pelo
Padroado do Oriente’” (THOMAZ, 2001, p. 46).
Um dos principais aspectos desse conjunto de textos jurídi-
cos foi o de propor um discurso de nacionalização das colônias
de modo a organizar uma política de inclusão econômica e cul-
tural. Ou seja, esse discurso jurídico criou uma estrutura legal
e administrativa de modo a incluir os indígenas para integrá-
los na civilização européia. Esse discurso jurídico refere-se aos
habitantes das colônias africanas, afirmando sua “mentalidade
de primitivos” e a necessidade de diminuir a distância “de es-
tado civilizatório” entre eles e os portugueses. Aos habitantes
das colônias é facultado ascender ao estatuto de “assimilado”,
com um “alvará de cidadania”, aquele indígena que assumis-
se, incorporasse as práticas culturais, sociais e lingüísticas de
Portugal. No entanto, nunca houve um número expressivo de
assimilados.
O Estatuto do Missionário,4 por sua vez, desde 1941 objeti-
vava fazer dos indígenas “verdadeiros portugueses” na cultura
4
Os princípios do Es- e na língua, conforme se pode ler em seus artigos: “Nas escolas
tatuto são reafirmados
inúmeras vezes, como é obrigatório o ensino e o uso da língua portuguesa. Fora das
se pode ler nas afirma- escolas os missionários e os auxiliares usarão também a língua
ções de um Ministro
do Ultramar nos anos portuguesa. No ensino da religião pode, porém, ser livremente
cinqüenta: “[...] por um
lado, acelerar o processo
usada a língua indígena” (Estatuto do Missionário, artigo 69o).
de assimilação ou apor- Com essa política de inclusão, visava-se a um aportuguesamento
tuguesamento integral
dos nativos, por outro, lingüístico. Esse regime de indigenato vigorou até 1961 na Guiné,
contribuir para a me- em Angola e em Moçambique, e em Moçambique não provocou
lhoria da sua situaçào
material adestrando-os o efeito pretendido.
para uma melhor atuac-
ção na vida económica”
A essa política geral civilizatória associada a uma visível
(apud FERREIRA, 1977, política de línguas, vincula-se, de um lado, para consumo nas
p. 75)
colônias, um conjunto de estímulos pedagógicos em termos do
78 Niterói, n. 24, p. 71-88, 1. sem. 2008
Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações plurilíngües

ensino de Língua Portuguesa, e por outro, para consumo interno,


a criação de institutos e sociedades com objetivo de valorizar e
difundir o português para além de Portugal. Na África, porém,
para além dos problemas administrativos e políticos, a resistên-
cia fazia-se forte. Assimilados ou não, com política de línguas
mais forte ou não, o fato é que as línguas permaneceram sendo
faladas, cantadas e transmitidas através de gerações com base
em narrativas orais.
A seguir, também organizado na forma de quadro, é apre-
sentado um conjunto dessas leis resultantes de uma política de
línguas para o estímulo da Língua Portuguesa.
LEGISLAÇÃO COLONIAL/POLÍTICA COLONIAL – África

1845 Decreto Ensino primário oficial


Ultramar
08/03/1918 Decreto 5239 Ensino em língua indígena ou
português
24/12/1919 Decreto 6322 Obrigatoriedade do ensino da Língua
Portuguesa
Proibição do uso de outra língua
européia que não a portuguesa
1930 Ato Colonial artigo 2o: “ [...] é essência orgânica da
Nação Portuguesa desempenhar a
função histórica de possuir e colonizar
domínios ultramarinos e de civilizar
as populações indígenas que neles se
compreendam, exercendo também
influência moral que lhes é adscrita
pelo Padroado do Oriente”
1933 Carta Orgânica Art. 1o: “as colônias são parte
do Império integrante da Nação portuguesa.”
Colonial
05/04/1941 Decreto-Lei “Nas escolas é obrigatório o ensino da
31207 língua portuguesa. Fora das escolas, os
(Estatuto do Mis- missionários e auxiliares usarão a lín-
sionário) gua portuguesa. No ensino da religião
pode porém ser livremente usada a
língua indígena.”
20/05/1954 Decreto-lei 39666 Estatuto do Indigenato
06/09/1961 Decreto-lei 43893 Abolição do Estatuto do Indigenato
27/06/1963 Lei LXXX, Porta- Lei Orgânica de Ultramar que prevê
ria 2119 que “nas escolas primárias é autoriza-
do o emprego do idioma local como
instrumento de ensino da LP”
1964 Reforma do Criação da classe pré-primária
ensino para o
Ultramar

Niterói, n. 24, p. 71-88, 1. sem. 2008 79


Gragoatá Bethania Mariani

Essa legislação se fez acompanhar por incentivos culturais


e pela organização de instituições cuja missão era justamente
a da difusão da Língua Portuguesa nas colônias e também em
outros países, como se pode observar no quadro abaixo:
Instituições e alguns Programas
para difusão da Língua Portuguesa

1925 Instituto de Apoio financeiro a leitorados


Cultura e Língua portugueses em universidades
Portugal
Portuguesa (ICALP) estrangeiras.
1931 Academia de Objetivos: “[…] estimular o
Ciências de Lisboa enriquecimento do pensamento, da
literatura, da língua e demais formas
de cultura nacional […] prestar
assistência ao Governo, como órgão
consultor, em questões científicas
e lingüísticas de interesse nacional;
preservar e aperfeiçoar a língua
portuguesa, em coordenação com
a Academia Brasileira de Letras e
instituições similares dos países de
expressão portuguesa […].”
14/11/1949 Sociedade da Objetivo: “[...] investigação, difusão
Língua Portuguesa e defesa da Língua Portuguesa.”
(SLP)

Em síntese, apesar das motivações históricas e políticas


diferenciadas, apesar da distância de praticamente dois séculos,
tanto o Diretório dos Índios (1757) quanto o Ato Colonial (1930)
estão inseridos em uma mesma filiação ideológica, funcionan-
do como acontecimentos discursivos decisivos no que tange à
questão lingüística e à imposição da Língua Portuguesa nas
colônias.
No silenciamento lingüístico inerente à colonização, a
imposição de uma língua única camufla a heterogeneidade e
contribui para a construção de um efeito homogeneizador que
repercute ainda hoje no modo como se concebe a língua nacional
em países colonizados, guardadas as diferenças sociais, políti-
cas e históricas. As línguas indígenas e as africanas significam,
assim, no silêncio que lhes foi imposto. Silenciadas durante a co-
lonização, condenadas a não pertencer a um aparelho de línguas
porque não foram gramatizadas e não fizeram parte do aparato
escolar, essas línguas somente após a independência começam
a ter seu estatuto alterado.
A luta pela hegemonia da Língua Portuguesa permanece
mesmo após as independências: Portugal promove um discur-
so pró unidade lingüística com suas ex-colônias, discurso esse
marcado pelo termo “lusofonia” e por atividades acadêmicas,
pedagógicas e políticas que procuram sustentar uma idéia de

80 Niterói, n. 24, p. 71-88, 1. sem. 2008


Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações plurilíngües

unidade na diversidade. À circulação desse discurso contrapõe-


se um outro, assentado em diferenças lingüísticas e históricas
que legitimam uma posição diferenciada em termos da constru-
ção de sentidos: o português como língua nacional.
3. As línguas na descolonização
3.1. Brasil
No Brasil, a questão lingüística colocada logo após a inde-
pendência referia-se a uma controvérsia, nem sempre colocada
de modo explícito, até porque ela apresentava muitos aspectos a
serem considerados: a pertinência ou não do emprego da língua
metropolitana, do modo como ela era empregada na Europa; a
necessidade ou impossibilidade de utilização da língua da an-
tiga matriz – com uma escrita, uma gramática, uma prosódia e
uma literatura de alguma forma impostas pelo ex-colonizador
– como língua nacional de uma nação independente; e, ainda, a
aceitação ou não da presença das línguas indígenas e africanas
na língua falada.
Sendo esse momento conveniente politicamente para
descartar o pensamento de uma unidade lingüística absoluta,
já que se engendra uma autonomia incipiente, formulam-se as
perguntas: – Até que ponto seria possível expressar as especi-
ficidades de uma nação recém-independente com a língua do
colonizador? É o Estado que engendra a língua e a nação ou, ao
contrário, uma língua-nação tem precedência sobre um Estado-
nação? Acontecimentos posteriores à Independência, como as
discussões na Assembléia Constituinte de 1823 sobre o nome
da língua falada no Brasil independente, as férreas disputas
entre José de Alencar e puristas sobre como falar o português, o
surgimento das primeiras gramáticas brasileiras, inaugurando
um lugar de autoria de um saber gramatical, apontam para essa
intrínseca e complexa relação entre língua e nação.
A constituição outorgada em 1824 não menciona a língua
que se fala no Brasil, deixando em aberto, no âmbito legal, o
nome da língua oficial. Nessa constituição, define-se o que é o
império do Brasil e define-se quem são os cidadãos, mas não se
define nem se menciona qual é a língua falada pelos cidadãos
desse império. Seria a língua algo tão óbvio que não precisasse
ser mencionado na Constituição, ela própria escrita nesta lín-
gua? Esse primeiro texto de nossa história constitucional, é bom
lembrar, vigorou até a proclamação da república, ou seja, teve
a duração de 65 anos.
Ora, a ambigüidade jurídica aponta para uma ambigüi-
dade semântica, pelo menos para alguns letrados: qual seria a
língua nacional? A que se refere a expressão “língua nacional”?
(MARIANI; JOBIM, 2007).
Niterói, n. 24, p. 71-88, 1. sem. 2008 81
Gragoatá Bethania Mariani

As discussões do XIX trazem à tona posições sócio-


históricas reveladoras, de certo modo, do próprio processo de
ressignificação de uma língua de colonização quando em contato
com outras línguas.
De um ponto de vista discursivo, compreende-se que a
língua portuguesa, ao atravessar o Atlântico e adentrar as terras
da colônia, sem dúvida irá sofrer modificações em sua estrutura,
mas irá, sobretudo, historicizar-se de modo diferente, passando
a ser uma língua cuja memória já não é mais apenas aquela rela-
cionada à história portuguesa. O contato com outras línguas e o
fato de ser falada por sujeitos nascidos na colônia impregnam a
língua usada no Brasil com um sentimento de identidade outro,
não mais português. Sua legitimação como língua nacional no
Brasil, portanto, passa por injunções que a historicizam de modo
diferenciado: essa língua portuguesa já não é mais a mesma que
se continua falando em Portugal. Por outro lado, não há como
silenciar totalmente a memória portuguesa, gerando esse efeito
contraditório: fala-se a mesma língua e ao mesmo tempo fala-se
outra língua.
Acontecimentos posteriores à proclamação da república,
como a fundação da Academia Brasileira de Letras, o início de
reformas ortográficas, a política lingüística de Vargas durante a
II Guerra, ou, ainda, as recentes polêmicas em torno do projeto
de lei do deputado Aldo Rebelo, enfim, esses e tantos outros
acontecimentos que, direta ou indiretamente, funcionam como
políticas de língua,5 exemplificam como a questão da defesa da
unidade língüística – que carrega consigo a construção da evi-
dência de uma língua única – não está separada da constituição
do Estado e da sociedade nacional. Não está separada também
de uma visão homogeneizadora da língua falada no Brasil,
seja ela chamada de Língua Portuguesa, Português-brasileiro
ou Língua Brasileira, conforme as distintas ideologias sobre a
língua nacional.
Em 1935 e em 1946 a questão da denominação retorna
na forma de projetos de lei e resoluções jurídicas (DIAS, 1996),
mostrando o quanto demandas político-discursivas de fixação
de uma língua nacional e de um nacionalismo lingüístico per-
maneciam atuais e atuantes. Se, por um lado, a atribuição do
determinante ‘portuguesa’ não parece constituir problema para
alguns políticos, acadêmicos e intelectuais, por outro lado, como
atribuir o determinante ‘brasileira’ a uma língua de colonização
em uma nação que se moderniza? Falar na língua nacional como
Adotamos como Orlan-
língua brasileira era defender a idéia de uma língua comum,
5

di (2002, p. 94) as expres-


sões ‘política de línguas’ produzindo como “efeito a aglutinação de indivíduos de um
e ‘política lingüística’
como equivalentes. Si- mesmo território sem que se colocasse em causa a participação
n a l i za mos, t a mb ém, desses indivíduos na nação” (DIAS, 1996, p. 75). Ou seja, estava
o uso de ‘política de
línguas’ em Pêcheux em jogo a inclusão ou não da população indígena como cidadãos
([1981], 2004). com seus direitos e deveres.
82 Niterói, n. 24, p. 71-88, 1. sem. 2008
Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações plurilíngües

Na significação dessa unidade lingüística nacional, só


muito recentemente, com a Constituição Federal de 1988, os
povos indígenas sobreviventes e as 180 línguas indígenas ainda
faladas passaram a ser reconhecidos como parte integrante do
Estado. Diz o artigo 231 que “são reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições […]”.
Tal reconhecimento, por outro lado, não encontra um respaldo
em termos de uma política permanente e incentivadora voltada
para o estudo das línguas. A ausência de tal política, porém, não
impede um crescente estudo das línguas indígenas brasileiras
e sua crescente gramatização vem possibilitando o incremento
de uma educação escolar bilíngüe que não apaga as diferenças
culturais.
Hoje em dia, já se fala e já se escreve que o Brasil é um país
plurilíngüe, pois integra em seu território línguas indígenas,
línguas africanas e línguas oriundas de ondas imigratórias.6
Por outro lado, na constituição de 1988 também não se
menciona a língua nacional. Os artigos do capítulo III “Da Nacio-
nalidade” silenciam sobre a língua falada pelos brasileiros natos,
aqueles nascidos no Brasil. Novamente, pode-se perguntar: seria
assim tão óbvio que a língua nacional e oficial é uma só? E o que
dizer da heterogeneidade lingüística constitutiva da nação?
6
Veja-se, por exemplo, 3.2. Moçambique
entrevista concedida
por Monica Saavedra e
publicada no Boletim da
Retomando a proposta de comparação com o que se pas-
FAPERJ de 24/04/2005. sou na colonização africana no século XX, é bom recordar que
Observe-se, também,
que em São Gabriel da entre 1974 e novembro de 1975, o império colonial português
Cachoeira, no Alto Rio se desfaz e dele surgem cinco novos Estados nacionais que se
Negro, Amazonas, foi
promulgada uma lei que vão constituir na contradição aberta entre o passado colonial e
oficializou três línguas
indígenas, o que sig-
um futuro incerto e fruto das guerras de libertação (ENDERS,
nifica que tais línguas 1977). Em termos comparativos dessa trajetória pós-colonial,
podem ser ensinadas
e usadas no discurso
a história lingüística de Moçambique apresenta aspectos bas-
jurídico, no jornalístico tante diferenciados do que se passou no Brasil, pois o fato de a
etc. Ou, ainda, as refle-
xões teóricas e analíticas Língua Portuguesa ter sido elevada ao posto de língua oficial
que o grupo História pelos revolucionários não garantiu seu uso em todo o território
das Idéias Lingüísti-
cas no Brasil vem reali- nem sua hegemonia de fato. Assim como o que ocorreu no Brasil
zando sobre a questão
lingüís­t ica no Brasil,
até meados do século XIX, nas colônias africanas, apenas uma
cujos resultados podem pequena elite oriunda da realeza recebeu educação escolar junto
ser consultados na En-
ciclopédia de Línguas com os colonizadores portugueses. Por outro lado, sobretudo
(<http://www.labeurb. em Moçambique, a diversidade lingüística manteve-se muito
u n i c a m p. b r/e l b/>).
Também os trabalhos forte uma vez que a Língua Portuguesa era falada por uma elite
da comissão Machado
de Assis no MEC e do
muito restrita.
Instituto de Investiga- Retomando questões que já discuti anteriormente (MA-
ção e Desenvolvimento
em Política Lingüística RIANI, 2007a), nas colônias africanas, a segregação entre colo-
(IPOL) são exemplos de nizadores e colonizados foi mais radical e manteve-se durante o
lugares institucionais
que discutem a hetero- século XX. Desta forma, mesmo sob o domínio oficial da língua
geneidade lingüística no
território brasileiro.
portuguesa, a diversidade lingüística manteve-se muito forte.

Niterói, n. 24, p. 71-88, 1. sem. 2008 83


Gragoatá Bethania Mariani

A elite colonizadora, apesar de ter sido educada para preencher


papéis da administração colonial, foi aos poucos rebelando-
se contra o colonialismo e usando o português como língua
da rebelião. E foi em português que, após a independência,
lutou-se pela preservação da diversidade lingüística existente
ao mesmo tempo em que se elegia a Língua Portuguesa como
língua nacional e oficial em função do seu papel internacional.
Não se questionava, na época, a decisão política tomada, uma
decisão que figura juridicamente ainda hoje no décimo artigo
da Constituição de modo seco e direto: “a língua portuguesa é
a língua oficial”. Observe-se que a defesa das demais línguas
nacionais vem garantida no artigo nono da Constituição, um
artigo que fala em valorização dessas línguas como patrimônio
da cultura e da educação e ainda afirma que o Estado promove
seu incremento e uso como línguas veiculares da identidade
moçambicana. Nessa gestão do plurilingüismo, com a língua
portuguesa busca-se organizar questões práticas – assegurar o
poder do Estado e a unidade nacional – e questões simbólicas
– afirmar um nacionalismo que não supõe uma subserviência
aos ditames coloniais que defendiam um monolingüismo com
base na língua de colonização.
Em Moçambique, em 1983, (08 anos após a independência),
a Secretaria de Estado da Cultura emitia sua palavra oficial, ao
mesmo tempo legitimando a escolha do português como língua
oficial e apontando para uma diferenciação relativa ao seu papel
anterior de língua de colonização:
A moçambicanização é a forma de nos apropriarmos do
Português [...] O Português falado em Moçambique há-de ne-
cessariamente transformar-se e distanciar-se do Português de
Portugal porque a realidade moçambicana, à partida diferente
da de Portugal, tem seu próprio curso de desenvolvimento [...].
(apud GONÇALVES, 2005, p. 229)
É no quadro deste processo que se pode considerar, como
afirma Perpétua Gonçalves (professora da Universidade Eduardo
Mondlane, em Maputo, Moçambique)
que a história da língua portuguesa em África data de há cerca
de cem anos. [...] este período [...] não pode ser tomado como
um continuum homogeneo [...] visto que as independências
nacionais representam uma quase ruptura na dinâmica que
esta língua tinha nos países africanos no período colonial.
(GONÇALVES, 2005, p. 224)
Atualmente, mais de 30 anos após os primeiros passos em
direção à construção do Estado e das discussões em torno da
língua oficial de Moçambique, é interessante trazer o depoimento
do escritor moçambicano Mia Couto, proferido em congresso
na UERJ em 2005. Diz Mia Couto:

84 Niterói, n. 24, p. 71-88, 1. sem. 2008


Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações plurilíngües

[...] fala-se hoje mais português em Moçambique que se falava


na altura da Independência. O governo moçambicano fez mais
pela língua portuguesa que os 500 anos de colonização. Em
1975, ano da Independência Nacional, mais de 60 por cento
dos moçambicanos não falavam português. Trinta anos depois
existem ainda 40 por cento de moçambicanos que não falam
português. Mesmo os que têm essa competência fazem-no
como segunda língua. Hoje cerca de 7 por cento dos moçam-
bicanos tem o português como língua materna. Nas cidades,
porém, este número já é de quase 20 por cento. (COUTO, 2007,
p. 19)
E prossegue o escritor:
O meu país é assim, um território de muitas nações e muitas
línguas (mais de vinte diferentes idiomas). O idioma portu-
guês é a língua de uma dessas nações – um território cultural
inventado por negros urbanos, mestiços, indianos e brancos.
Sendo minoritário e circunscrito às cidades, esse grupo ocupa
lugares chaves nos destinos políticos e na definição daquilo que
se entende por moçambicanidade. A língua portuguesa não é
ainda língua de Moçambique. Está-se exercendo, sim, como a
língua da moçambicanidade. (COUTO, 2007, p. 20)
E que Língua Portuguesa é essa que é falada? Gonçalves
(2005) aponta para a ilusão de se supor uma unidade e uma
homogeneidade no português falado nesses novos estados na-
cionais, sobretudo em Moçambique.
Tanto quanto sei, este conjunto [as Variedades Africanas do
Português – VAPS, nomenclatura utilizada por pesquisado-
res europeus] é estabelecido com base em critérios externos,
geográficos e lingüísticos, de acordo com os quais as VAPs
são agrupadas num conjunto único por se terem formado no
mesmo continente (africano), a partir da mesma (variedade de)
língua, o Português europeu. Na verdade, ao estabelecermos
este conjunto estamos a dar continuidade à tradição filológica
portuguesa e brasileira [...]. (GONÇALVES, 2005, p. 225)
Resistindo e contrapondo-se a essa perspectiva, a pesqui-
sadora propõe uma série de encaminhamentos, dentre os quais,
a proposta de fazer uma periodicização da Língua Portuguesa
em Moçambique que leve em consideração as etapas da coloni-
zação e da política de independência. A recusa da designação
‘Variedades do Português Africano’, ou simplesmente, ‘Português
Africano’, representa uma forma de resistência aos discursos
de exclusão que ainda circulam sobre a África. É um gesto de
resistência com a proposta de outras formas de teorizar sobre as
línguas, nos dias de hoje, pois a teorização lingüística existente,
com suas “formas simplificadas de designar”, estão inseridas em
um imaginário de superioridade do português europeu frente
a uma variedade que se significa como dialetal.
À guisa de conclusão provisória, posso aqui indicar que,
apesar das diferenças históricas, é possível traçar uma analogia

Niterói, n. 24, p. 71-88, 1. sem. 2008 85


Gragoatá Bethania Mariani

das questões levantadas por escritores e lingüistas moçam-


bicanos na atualidade com discussões travadas por políticos,
intelectuais, escritores e pesquisadores no Brasil desde 1822
e, mais recentemente, por lingüistas e analistas de discurso
que se colocam em uma posição teórica diferenciada frente às
línguas de colonização. Nesse sentido, ainda há muito o que se
conversar.
4. “Quanto custa ser índio no Brasil?”
Retomo essa provocativa pergunta de Daniel Munduruku,
título de um depoimento dado na UERJ, em 2005, para finalizar
esse texto pensando nas relações nem sempre óbvias ou visíveis
das línguas com os sistemas econômicos.
Falando do lugar de umas das mais expressivas lideranças
indígenas brasileiras, Daniel afirma que com sua pergunta queria
problematizar hábitos de pensamento vigentes em uma socie-
dade materialista, pois nesta nossa sociedade, “alguém só tem
finalidade se tiver um valor, uma utilidade” (MUNDURUKU,
2007, p. 52). Refraseando sua própria pergunta, ele diz: “Talvez
a pergunta não seja quanto custa ser índio, mas quanto custa
ser um brasileiro, filho dessa terra ‘idolatrada, salve, salve’!!!”
(MUNDURUKU, 2007, p. 52).
Fazendo uma analogia, e considerando as relações eco-
nômicas globalizadas que, além de promover a manutenção
do imaginário da inferioridade das ex-colônias, hoje países de
terceiro mundo, promovem novos tipos de desigualdades sociais
e simbólicas, podemos perguntar quanto custa ser falante de
português? E, quanto custa ser falante de munduruku? Ou de
alguma dessas vinte línguas nacionais moçambicanas? Frente
ao inglês, considerado cada vez mais língua global, qual o custo
da defesa e manutenção de um nacionalismo plurilíngüe?
Essas perguntas, embora estranhas para um lingüista,
apontam para problemas que precisam ser enfrentados, princi-
palmente nas nações que passaram pela colonização. Nos dias
de hoje, qualquer formulação de uma política de línguas e de
defesa dos direitos lingüísticos dos sujeitos deveria levar em
consideração a questão sócio-econômica.

Abstract
We aim to present some specific traces of Brazil´s
and Moçambique´s linguistic reality, while, at the
same time, taking into consideration the historical
memory that grounds the linguistic dimension of
both societies.
Keywords: Linguistic colonization. Linguistic
policies. Brazil. Mozambique.

86 Niterói, n. 24, p. 71-88, 1. sem. 2008


Da colonização lingüística portuguesa à economia neoliberal: nações plurilíngües

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88 Niterói, n. 24, p. 71-88, 1. sem. 2008


Outros poderes, outros
conhecimentos – Ana Paula Tavares
responde a Luís de Camões*
Margarida Calafate Ribeiro

Recebido 05 mar. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo
A partir da poesia de Ana Paula Tavares, pro-
curarei mostrar neste artigo como a dupla pre-
missa do poder e do conhecimento, sobre a qual
se ergueu o colonialismo dos séculos XIX e XX,
foi femininamente reapropriada, subvertida, des-
multiplicada e antropofagizada, revelando outras
identidades. Este processo inaugura assim um
tempo pós-colonial de possibilidade de acesso e
valorização de outros conhecimentos, de outros
poderes, expressos noutras línguas, noutros sons,
noutras escritas, e hoje transmitidos em língua
portuguesa.
Palavras-chave: Poder. Conhecimento. Poesia.

*
Uma versão inicial des-
te texto ainda inédito
foi apresentada no “III
Encontro de Professores
de Literaturas Africanas
– Pensando África: Crí-
tica, Ensino e Pesquisa”,
que decorreu na Univer-
sidade Federal do Rio
de Janeiro de 21 a 23 de
novembro de 2007

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 89-100, 1. sem. 2008


Gragoatá Margarida Calafate Ribeiro

“Também o leão deverá ter quem conte a sua história.


As histórias não podem glorificar apenas o caçador.”
(Provérbio africano)

A abrir
Gostaria de deixar claro desde o início que não é como
especialista da cultura e da literatura angolana que escrevo, mas
como estudiosa da cultura portuguesa sempre impressionada
com a pujança das culturas africanas face ao modelo colonial
imposto, ao sufoco do neo-colonialismo e ao tempo incerto do
pós-colonialismo, tantas vezes assombrado pelo seu inquilino
fantasmático, que é ainda o tempo colonial.
É portanto como visitante cerimoniosa destas culturas anti-
quíssimas e riquíssimas que me apresento com o atrevimento de
escrever algo sobre a bela poesia de Ana Paula Tavares, depois
do ruído crítico introduzido em mim pelas leituras penetrantes
de Laura Padilha, Rita Chaves ou Carmen Tindó Secco e pelo
desafio que para mim constituiu desde o início a poesia de Ana
Paula Tavares, uma das vozes poéticas com que aprendi que é
sempre possível um dia de manhã levantar-me e dizer “Não
vou”. É portanto a partir deste entre-lugar que vou falar desta
poesia que transforma, canibaliza e incorpora várias vozes
emitidas a partir de vários patrimónios culturais e geográficos,
obrigando a língua portuguesa a dobragens e redobragens nem
sempre imediatas, e que assim a engrandecem.
Ana Paula Tavares é poeta, mas também historiadora e,
como disse numa entrevista “por vezes está tudo misturado,
transforma-se o amador em coisa amada, e gera-se a grande
confusão […]”. Publicou vários livros de poesia – Ritos de passagem
(1985), O Lago da lua (1999), Dizes-me coisas amargas como os frutos
(2001), Ex-votos (2003), Manual para amantes desesperados (2007) e,
em prosa, O sangue da buganvília (1998) e A cabeça de Salomé (2004).
Recentemente escreveu um romance com Manuel Jorge Marme-
lo, Os olhos do homem que chorava no rio (2005) e re-publicou, em
2007, Ritos de passagem, com o traço de Luandino Vieira a ilustrar
cada poema. A poesia de Ana Paula Tavares tem sido objecto
de reconhecimento crítico em vários países e obteve já o Prémio
Mário António da Fundação Gulbenkian, 2004 e o Prémio Na-
cional de Cultura e Artes (Literatura) de Angola, em 2007.
Mas qual é de facto a novidade desta voz poética?
O olhar feminino, que desde 1985, Ana Paula Tavares lança
sobre o seu país através da sua poesia é de facto outro. Não se
trata mais de um o sujeito poético feminino que se posicionava
na pele de alguém que está ao lado de quem masculinamente faz
a guerra, a revolução, a nação; não se trata mais de um poema a
rimar, como então, com revolução, alfabetização, povo ou nação.
O tema é outro, a posição epistemológica do sujeito poético é

90 Niterói, n. 24, p. 89-100, 1. sem. 2008


Outros poderes, outros conhecimentos – Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões

outra, a fala é outra. E, por isso, Laura Padilha coloca a voz de


Ana Paula Tavares como uma daquelas, que na Angola de hoje,
pela diferença interrogam o cânone, não apenas o cânone de
matriz ocidental, branco e europeu, mas o possível cânone afri-
cano – também ele masculino – provavelmente africanamente
reprodutor do cânone ocidental (PADILHA, 2002, p. 163-169).
Pela sua poesia Ana Paula Tavares exige uma outra no-
meação das coisas, dos corpos, das pessoas e da terra; fala da
memória dos lugares, do amor, dos nascimentos, das outras
falas e saberes de Angola. Mas fala sobretudo das mulheres e
do silêncio gritante que as habita, num país feito pelas mulheres
como é Angola. Evoca as vozes de muitas vozes femininas quase
anónimas – algumas das que Laura Padilha recolheu em Borde-
jando a margem (2007), retirando do silêncio as vozes das mulheres
que publicaram literatura nos jornais de Angola –, de Alda Lara
e de outras poetas, mas sobretudo das mulheres comuns que
na sua vida quotidiana recriam a outra terra prometida, não a
da nação, da revolução ou da guerra que em nome dela se diz
fazer, mas da terra prometida de todos os dias, a terra que traz
paz, sobrevivência, amor, vida. Mas de onde lhe vem essa fala
outra, esse olhar outro? Como revela numa entrevista:
Eu tinha nascido numa sociedade colonial fundada quando
o colonialismo começou a sério, portanto depois da Confe-
rência de Berlim, quando Portugal foi obrigado a ocupar o
território, e começou com uma política de povoamento branco
para Angola. Para o Lubango, foram grupos de madeirenses
brancos, muito pobres, que andavam descalços, coisa que
muitas pessoas daquela sociedade já não andavam. Havia
também uma meia dúzia de brancos, proprietários mais ri-
cos, e comerciantes. E ainda uma sociedade de pastores que
parecia não fazer parte daquela sociedade. Eram donos de
gado, alguns tinham cabeças de gado para serem decretados:
“Ele é um homem rico”. Mas ninguém via, e nem eles próprios
queriam que os brancos os considerassem ricos. Mas eles sa-
biam que eram ricos, que o seu gado lhes dava estatuto. Era
portanto uma sociedade em muitas sociedades e eu cresci
no meio dessa confusão, sem perceber bem o que é que se
passava ali. […] Tive portanto o privilégio de ter nascido ali,
de ter uma avó negra do Kuanhama, e uma avó branca de
Castelo Branco, que me deu esta fala, a outra fala. Do que é
que aquelas duas mulheres à noite falavam? Havia um ruído
de fundo de que eu fui à procura. E por grande sorte minha
descobri que já no século XIX, alguns missionários tinham
perseguido esse ruído. Bem ou mal, tinham fixado formas
desse ruído em narrativas, em poemas, mitos de fundação,
epopeias… E assim eu pude ler – sabendo que havia ali uma
traição – mas pude ler a memória daqueles povos. E pensei:
Este é o meu caminho. Se eu conseguir fazer alguma coisa, é
por aqui que eu vou. Não faço poemas etnográficos, eu faço
ficção. Eu não vejo a minha terra como Sembène Ousmane,
o grande realizador senegalês, dizia a Jean Rouch, o homem

Niterói, n. 24, p. 89-101, 1. sem. 2008 91


Gragoatá Margarida Calafate Ribeiro

grande do outro cinema: “Tu filmas os africanos como gafa-


nhotos, e só ficamos em pé de igualdade quando um dia eu
conseguir filmar os europeus como gafanhotos”. Eu não vejo
a minha terra, estas mulheres, estes homens, estes pastores,
como gafanhotos. Eu e a minha terra não nos separamos. Não
uso todo este material a que felizmente tive acesso como uma
fonte, onde eu vou debicar aqui ou ali. Eu tento incorporar
muito deste material e saber como foi […] Eu que não fui uma
mulher que passei pela iniciação, eu que sou uma mulher que
só falo línguas imperiais... mas tenho ouvido o som de outras
línguas, e portanto, eu não faço cópias: trabalho, canibalizo e
devoro como muitos outros africanos fizeram. Esse é o trabalho
que tento fazer: a incorporação de vários patrimónios, e se o
meu olhar para ver o mundo é aquela terra, aquele espaço,
eu também não estou cega ao resto do mundo. Leio a poesia
do mundo e estou aberta a todas as experiências do mundo.
O que eu procuro é não confundir as coisas, nem confundir
os níveis, e trabalhar com um legado que a sorte pôs à minha
disposição. (TAVARES apud RIBEIRO, 2007)1

Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões


Poder e conhecimento é, como é sabido, o binómio sobre o
qual repousou grande parte do ideário imperial e do acto colonial
imposto pelas potências coloniais europeias no final do século
XIX e ao longo de boa parte do século XX. Esse poder e esse co-
nhecimento, veiculado numa certa língua imperial, representou
um poderoso elemento estruturador e unificador dos territórios
coloniais em si, entre si e com as suas metrópoles. Basta remontar
a João de Barros e à sua Gramática para entender que – como ele
tão premonitoriamente insinua na introdução – os padrões e as
obras seriam levados pelo tempo, mas que a língua ficaria como
testemunho do encontro; ou basta recordar politicamente Herder
para perceber que a língua seria, não apenas a expressão mais
distintiva do espírito da nação imperial – composta de múltiplas
nações e de múltiplos povos ignorados – mas também uma das
formas através da qual a nação, saída das várias lutas pelas várias
emancipações, se poderia expressar. Esse foi o grande trabalho
do cultor da nação e da língua portuguesa que foi Camões, que
pelo seu trabalho poético afirmou a nação portuguesa face à po-
tencial hegemonia castelhana e a sua preocupação na sequência
da viagem narrada em Os Lusíadas, viagem essa que traria aos
portugueses as terras do império habitadas por outras gentes.
O espanto e a angústia então vividos pelo poeta exprimem-se
na questão fundadora que enforma Os Lusíadas, aquando do
encontro (ou talvez melhor do encontrão, para evocar as pala-
vras de Eduardo Lourenço) entre os navegantes e essa “gente
fera e estranha” (III, 103, 2003, p. 84) “da cor da escura treva”
1
Ver também o texto
publicado no Jornal de (V, 30, 2003, p. 130). E o poeta, pela voz dos navegantes, lança a
Letras, na secção “Auto-
biografia” (TAVARES,
questão:
2007b).

92 Niterói, n. 24, p. 89-100, 1. sem. 2008


Outros poderes, outros conhecimentos – Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões

Que gente será esta? (em si diziam)


Que costumes, que Lei, que Rei teriam? (I, 45, 2003, p. 12)
Por outras palavras, em que língua se expressam estas
gentes, que conhecimentos possuem, que poder é que os conduz
e que os move? O que representa esta humanidade em relação
a nós, ou dito de outra maneira, quem somos nós afinal?, até
chegar à definição estruturante da identidade portuguesa: “Os
portugueses somos do Ocidente/Imos em busca das terras do
Oriente.” (I, 50, 2003, p. 13). De facto, a resposta europeia a esta
questão iria definir a Europa como centro de poder e de conhe-
cimento na ordem do mundo que a partir desta viagem se gera,
e os portugueses como um povo em demanda dessa nova ordem
(RIBEIRO, 2004, p. 34-39).
O “processo de colonização, ou a colonialidade, pensada
como relação política, que se instaura a partir desta viagem
marítima” (PADILHA, 2006b), vai sendo, ao longo da história,
ilustrado por múltiplas narrativas escritas em língua imperial e
emitidas a partir da nação imperial, narrativas essas que edifica-
ram, rectificaram codificaram e finalmente reproduziram o pen-
samento colonial. Esta história colonial escrita pelos caçadores,
para recorrer às categorias definidas no provérbio africano que
serve de epígrafe a este texto – “Também o leão deverá ter quem
conte a sua história. As histórias não podem glorificar apenas o
caçador” – converteu esses outros em seres sem história e sem
lei dessa história aparentemente comum. Passarão muitos anos,
haverá muitas lutas, correrá muito sangue para que se entenda
o mundo colonial em tensão e fractura entre brancos, negros e
mulatos como nos mostrou Castro Soromenho na sua obra ficcio-
nal, ou Noémia de Sousa na sua poesia. Mas como aponta Laura
Padilha, na senda de Cornejo Polar, nas margens dos discursos
eurocêntricos, existiram sempre outras vozes, outras nomeações
da terra e das coisas, senhoras de outras versões nunca escutadas
e, portanto, por vezes, nem sequer silenciadas, mas antes nunca
ouvidas (PADILHA, 2006a).
Não se tratava portanto de defender a ideia, cara a alguns
teóricos do pós-colonialismo, de que os subalternos não falavam
ou não podiam falar, mas de, como defende Spivak, mostrar que
o seu lugar de enunciação, no seio da diferença colonial, conde-
nava o seu discurso à irrelevância por o oferecer a interpretações
que o silenciavam (SPIVAK, 1988). Como refere Laura Padilha,
em sintonia com Spivak,2 os subalternos, sejam eles mulheres
ou homens, sempre falaram, nunca foram foi ouvidos, o que é
substancialmente diferente.
2
Intervenção no curso Mas lendo e sobretudo escutando um texto como o de Ana
de literatura angolana,
organizado no Centro Paula Tavares em que todas essas vozes-outras são convocadas,
de Estudos Sociais, Uni-
versidade de Coimbra,
assistimos a um confronto do olhar, que pode não ser necessa-
em Junho de 2007 (PA- riamente conflituoso, mas que nos revela não só os enganos dos
DILHA, 2008).

Niterói, n. 24, p. 89-101, 1. sem. 2008 93


Gragoatá Margarida Calafate Ribeiro

olhares europeus, mas também a má fortuna dos seus olhares


e o pouco amor ardente. Nestas vozes, outros sujeitos históricos
e etno-culturais se revelam, mostrando assim outras formas de
estar, de sentir e de enunciar o mundo, de ser, de viver a vida
e de organizar a cultura, a memória e a história, como as mu-
lheres que amassam o pão, como os homens dos bois, senhores
da transumância do planalto de Huíla, onde nasceu Ana Paula
Tavares.
Vieram muitos
à procura de pasto
traziam olhos rasos da poeira e da sede
e o gado perdido.
Vieram muitos
à promessa de pasto
de capim gordo
das tranquilas águas do lago.
Vieram de mãos vazias
mas olhos de sede
e sandálias gastas
da procura de pasto.
[...]
Partiram com olhos rasos de pasto
limpos de poeira
levaram o gado gordo e as raparigas.
(TAVARES, 1999, p. 27-28)
Quando estas narrativas do então definido como o outro,
para o europeu, se enunciaram como um “enfrentamento” pro-
nunciado em línguas imperiais, tomadas, para usar a expressão
de José Luandino Vieira, como “um troféu de guerra”, nelas se
inscreveu a diferença cultural que, a prazo, reivindicou e justi-
ficou a luta que reclamava o acto político da independência.
Vestindo outras peles, outros conhecimentos e imbuída de
outros poderes, foi portanto nessa língua imperial – que muitas
outras rasurou no processo de colonização – que se começaram
a preencher os espaços em branco da história colonial (PADI-
LHA, 2006a, p. 29-49), ou, por outras palavras, se começaram
a colocar sob suspeita os monopólios do conhecimento e do
poder que tinham sido fundamentais no erigir de uma ordem
social, política e cultural baseada na diferença e na economia
do conhecimento que valoriza o “conhecimento autorizado” e
socialmente reconhecido, em detrimento (por rasura) de outros
conhecimentos expressos muitas vezes noutras línguas. Em
Moçambique, com José Craveirinha ou Noémia de Sousa, em
Angola, com Luandino Vieira, António Jacinto, Viriato da Cruz
e tantos outros, ou Amílcar Cabral, em Cabo Verde e Guiné-
Bissau, revelavam-se as vozes que vinham falar no que o poder
colonial queria continuar a ver como “dialectos” de um folclórico
poder africano local. Nas suas escritas, não mais assumidas como
marginais, regista-se a semente da diferença, em tensão com o
94 Niterói, n. 24, p. 89-100, 1. sem. 2008
Outros poderes, outros conhecimentos – Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões

modelo linguístico colonial. Essa linguagem fundadora de um


conhecimento outro, de um poder outro e, finalmente, de uma
língua outra, veicula e narra, como bem observou Laura Padilha,
uma “outra viagem”, não mais mar abaixo rumo ao sul, como a
viagem camoniana em demanda das novas terras que o império
traria, mas para “dentro” e por “dentro” (PADILHA, 2006b). A
viagem que o desejo de descolonização determinava – lembrando
aquela viagem narrada na literatura portuguesa por Almeida
Garrett em Viagens na minha terra, Tejo arriba e portanto para
dentro da terra e reclamando descolonizaçoes de outra ordem
– parecia procurar e tentar recuperar os laços dilacerados pelo
poder colonial e desta forma outros enunciados se começaram
a pronunciar, a enunciar e a fixar para dar respostas às questões
dos navegantes, usando a mesma língua, mas que era já outra.
A poesia de Ana Paula Tavares é exemplar deste movimento
de forma particularmente subtil e politicamente comprometida.
Nela se trazem os sujeitos etno-culturais não valorizados pelo
regime colonial – as mulheres e os homens dos bois do planalto
de Huíla – mas importantíssimos na outra ordem do mundo
que o mundo colonial não atingia; nela se trazem as línguas e a
vozes de outros sujeitos, nomeadamente das mulheres, os gestos
e os actos e os sinais produzidos por esse mundo outro, senhor
de outras leis, de outros conhecimentos e de outros poderes que
aparentemente o regime colonial parecia não ter tocado. E assim
vozes, nomes, territórios, corpos são convocados em títulos de
alguns dos poemas que vão desfilando à frente dos nossos olhos
de leitores, como fotografias que vão dando rosto ao que antes
só tinha um nome. Poemas que projectam o percurso da poeta
ao longo de uma paisagem natural, social e humana que coloca
sob suspeita os conceitos ocidentais de poder e conhecimento a
partir de uma vivência múltipla de uma terra/ território sentido
como terra-mãe que acolhe e integra os seus filhos, como uma
casa-corpo que se torna o espaço íntimo do pronunciamento
feminino capaz de revelar e de exercer um poder-outro, por um
conhecimento-outro imanente da relação com a própria terra e
com as pessoas que a habitam.
De onde eu venho
sou visitada pelas águas ao meio-dia
quando o silêncio se transforma
para as doces palavras do sal em flor
e das raparigas
Os muros são de pedra seca
e deixam escapar a luz por entre corredores
de raízes e vidro
lentas mulheres preparam a farinha
e cada gesto funda
o mundo todos os dias
há velhas mulheres pousadas sobre a tarde

Niterói, n. 24, p. 89-101, 1. sem. 2008 95


Gragoatá Margarida Calafate Ribeiro

enquanto a palavra
salta o muro e volta com um sorriso tímido
[de dentes e sol.
(TAVARES, 2007b, p. 19)
Ou no quase auto-retrato:
Modesta filha do planalto
combina, farinhenta
os vários sabores
do frio.
Cheia de sono
mima as flores
e esconde muito tímida
o cerne encantado.
(TAVARES, 2007a, p. 26)
Por isso, o pronunciamento feminino contido na poesia de
Ana Paula Tavares é espaço de celebração da tradição e dos tra-
balhos e dos dias de paz em que as mulheres se realizam, mas
também espaço de denúncia da violência da tradição que perpe-
tua o patriarcado, presente ora no acto da troca de mulheres por
gado (“Cresce comigo o boi com que me vão trocar”, TAVARES,
2007a, p. 48), ora nos rostos das mulheres e das crianças sobre
as quais recai toda a violência da guerra (“November Whitout
Water”, TAVARES, 1999, p. 36), ora nas relações de poder que
conduzem ao silêncio (“Um grito espeta-se faca/ na garganta
da noite”, TAVARES, 1999, p. 33), mostrando assim que o sangue
da mulher não é só, como deveria ser, mensal, como o ritmo do
ciclo das estações, que orienta os ciclos das mulheres dos homens
do gado. Ele escorre diariamente de corpos com feridas e cicac-
trizes que têm a espessura de séculos, sangue que ciclicamente
vai manchando a terra e a casa-corpo, e, por isso, o lago da lua
(título de livro) onde as mulheres lavam o seu primeiro sangue,
não é um lago simples que corra como um rio escorreitamente
para o mar. O lago branco da lua, primeiro poema do livro ho-
mónimo, é um lago bloqueado, mas por isso também um arquivo
de evasão e de sobrevivência onde o sujeito poético feminino
deposita os sonhos.
No lago branco da lua
lavei meu primeiro sangue
Ao lago branco da lua
voltaria cada mês
para lavar
meu sangue eterno
a cada lua
No lago branco da lua
misturei meu sangue e barro branco
e fiz a caneca
onde bebo
a água amarga da minha sede sem fim

96 Niterói, n. 24, p. 89-100, 1. sem. 2008


Outros poderes, outros conhecimentos – Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões

o mel dos dias claros.


Neste lago deposito
minha reserva de sonhos
para tomar.
(TAVARES, 1999, p. 11)
O pronunciamento epistemológico lançado pelo sujeito poé-
tico é sobretudo espaço de discussão do poder e das relações de
poder que o conhecimento e a diferença sexual hierarquizam.
Negar e subverter esta hierarquização, mostrando-a não apenas
como impossivelmente única, mas como parte de um todo que
oprime, é o caminho escolhido para percorrer o longo e sinuoso
percurso que conduz à transformação de uma lógica feminina
esperada como de submissão e opressão, numa lógica femini-
na de libertação e emancipação. Esse é o caminho trágico, mas
simultaneamente glorioso, a traçar. Daí o desafio lançado a um
só tempo ao poder da tradição e ao poder social patriarcal:
[…]
Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo aceso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
Vou
para o Sul saltar o cercado.
(TAVARES, 2007a, p. 54)
Ou ainda mais veementemente: “Devorei a carne do boi do
fogo/ tudo até ao fim e o coração” (TAVARES, 2001, p. 34).
A partir deste lugar de enunciação telúrico, sexual e lin-
guístico, que emerge das vozes da terra e das mulheres da terra,
da letra dos missionários e historiadores que registaram a vida
dos povos do Sul de Angola e que Ana Paula estuda e traduz
como historiadora, ergue-se a voz da poeta Ana Paula Tavares
revelando-nos outras línguas, guardiãs de outros arquivos cultu-
rais, onde se regista o poder de outros reis e a validade de outros
conhecimentos. Tudo tecido a partir das margens do mundo: da
voz da mulher amante que ferida de amor espera o seu amado
perante a solidão do mundo; das vozes das mulheres que têm
filhos, amassam o pão, tecem, amam, rasgam a noite com os
seus gritos surdos e inventam a vida; das vozes das mulheres
que são trocadas por bois, na sociedade dos homens do gado
que circulavam à margem da sociedade colonial.
Esta é assim uma forma-outra de responder à questão
levantada pelos navegantes da epopeia camoniana sobre que
gente será esta, que rei, que lei teriam, erigida e tecida a partir de
Refiro-me ao poema de um olhar-outro que o grande poeta por certo não contemplava,
3

Luís de Camões, “Ende-


chas a Bárbara Escrava”. nem poderia imaginar. Esta é uma forma-outra de mostrar a
Sobre este assunto ver
Macedo (1998, p. 388- mulher de outras paragens que Camões viu, admirou e prova-
389). velmente amou na sua “pretidão de amor” e que cantou como
Niterói, n. 24, p. 89-101, 1. sem. 2008 97
Gragoatá Margarida Calafate Ribeiro

alguém estranho, mas “bárbara não”.3 Mas esta é, sem dúvida,


a forma de tão camonianamente tudo questionar, renomeando,
e de assim transformar o amador na coisa amada. Ou seja, de
assim transformar a letra da historiadora na voz da poeta, a ter-
ra em casa-corpo, a terra em território, a nação adiada em terra
prometida, cujo mapa não mais se inscreve nem no imaginário
dos navegantes europeus, salpicado de ilhas imaginárias plenas
de amores, nem no imaginário masculino dos guerrilheiros da
libertação, mas no corpo tatuado feminino, onde se escreve e
reescreve a terra:
Meu corpo é um grande mapa muito antigo
percorrido de desertos, tatuado de acidentes
habitado por uma floresta inteira
um coração plantado
dentro de um jardim japonês
regado por veias finas
com um lugar vazio para a alma.
(TAVARES, 1999, p. 45)

A fechar
Captar o retrato deste corpo-mapa-nação inscrito cicatri-
cialmente no feminino na poesia de Ana Paula Tavares exige
uma leitura geográfica e sexualmente deslocada, para assim
entender como se vivem outros “costumes” – nunca assumidos
como relevantes – se adoptam outras “leis” – apenas consuetudi-
nariamente aplicadas – e se regista o poder de outras “rainhas”,
senhoras de outros “conhecimentos”. Costumes, leis, reis, conhe-
cimentos que sempre estiveram na margem, mas que sempre estiveram
presentes – evocando assim o subtítulo da obra organizada por
Laura Padilha e por Inocência Mata, sobre A mulher em África
(2007) –, pois são eles que inventam e constroem a vida que novas
vidas gera, ao ritmo dos ciclos das estações.
Respondendo camonianamente a Camões, a partir do
Sul, mas também àquela mais contemporânea questão, politi-
camente provocadora, colocada em tempo de guerra em Novas
cartas portuguesas – “será a mulher a última colónia do homem?”
(BARRENO; COSTA; HORTA, 1974, p. 285) – Ana Paula Tavares
sem concluir responde contra esta outra forma de colonização
vivida no feminino que é o patriarcado, mostrando ser sobretudo
delas a mão que comanda a vida não só na Angola moderna,
urbana, cosmopolita de Luanda, mas na Angola mais tradicio-
nal do interior, representada localmente no planalto da Huíla.
Trata-se portanto da denúncia de uma dupla colonialidade: uma
colonialidade política, ainda que não mais exercida nos moldes
europeus; e uma colonialidade social e familiar, que coloca as
mulheres na margem, convertendo as histórias das mulheres em
histórias duplamente silenciadas: silenciadas pela condição de
subalternidade no seio da diferença imposta pela colonialidade

98 Niterói, n. 24, p. 89-100, 1. sem. 2008


Outros poderes, outros conhecimentos – Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões

e silenciadas pela condição de subalternidade vivida no seio da


diferença sexual.
Por isso, a poesia de Ana Paula Tavares constituiu um
pronunciamento entoado a vários níveis e um estímulo para re-
olhar os cânones literário e histórico, no sentido lato do termo,
ou seja, os cânones dos conhecimentos e dos poderes, sobre os
quais os outros se erguem, para assim ver de facto tudo que
eles deixaram e continuam a deixar de fora, na perspectiva de
elaborar algo – e para encerrar com o provérbio que serviu de
epígrafe a este texto e que também ele reflecte um cânone – que
contemple não só a história do leão, mas também a história da
leoa. Pós-colonialmente falando a proposta poética de Ana Paula
Tavares implica não apenas a mudança do olhar que estas teorias
reclamam, mas uma mudança da escala do olhar.4

Abstract
Through a reading of the poetry of Ana Paula
Tavares, I will argue that the power/knowledge
binary, based on 19th and 20th century colonialism,
has been reappropriated, subverted, multiplied
and cannibalized, revealing other identities.
This process thus initiates a postcolonial time of
possible access and appreciation of other knowled-
ges, other powers, expressed originally in other
languages, sounds and writings, and nowadays
transmitted through the Portuguese language.
Keywords: Power. Knowledge. Poetry.

Referências
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Gragoatá Margarida Calafate Ribeiro

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100 Niterói, n. 24, p. 89-100, 1. sem. 2008


Narrar o trauma: escrituras
híbridas das catástrofes
Márcio Seligmann-Silva

Recebido 03 mar. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo
O trabalho propõe uma reflexão sobre algumas das
características do gesto testemunhal enfatizando
as aporias que o marcam. Partindo da idéia de que
o testemunho de certo modo só existe sob o signo
de seu colapso e de sua impossibilidade, o texto
enfatiza os dilemas nascidos da confluência entre
a tarefa individual da narrativa do trauma e de
sua componente coletiva. Nas “catástrofes histó-
ricas”, como nos genocídios ou nas perseguições
violentas em massa de determinadas parcelas da
população, a memória do trauma é sempre uma
busca de compromisso entre o trabalho de memória
individual e outro construído pela sociedade. O
testemunho é analisado como parte de uma com-
plexa “política da memória”.
Palavras-chave: Testemunho. Memória do
trauma. Trauma. Política da memória. Ditadura
no Brasil.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008


Gragoatá Márcio Seligmann-Silva

“Parler, écrire, est, pour le déporté qui revient, un besoin aussi im-
médiat et aussi fort que son besoin de calcium, de sucre, de soleil, de
viande, de sommeil, de silence. Il n’est pas vrai qu’il peut se taire et
oublier. Il faut d’abord qu’il se souvienne. Il faut qu’il explique, qu’il
raconte, qu’il domine ce monde dont il fut la victime.”
(Georges Perec)1
Estas palavras de Perec nos lançam sem mais no coração
da cena do testemunho. Antes de mais nada vemos aqui a neces-
sidade absoluta do testemunho. Ele se apresenta como condição
de sobrevivência. O próprio Primo Levi expressou este fato no
prefácio de É isto um homem. Vale à pena voltarmos a estas pa-
lavras de Levi porque ele acrescenta a esta idéia de necessidade
de testemunhar outro dado fundamental, a saber, a sua implícita
dialogicidade. Citemos as palavras de Levi: “A necessidade de
contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou
entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso ime-
diato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades
elementares” (LEVI, 1988, p. 7 et seq.). Seguindo estas palavras,
podemos caracterizar, portanto, o testemunho como uma ati-
vidade elementar, no sentido de que dela depende a sobrevida
daquele que volta do Lager (campo de concentração) ou de outra
situação radical de violência que implica esta necessidade, ou
seja, que desencadeia esta carência absoluta de narrar. Levi nesta
passagem coloca as expressões “aos outros” e “os outros” entre
aspas. Este destaque indica tanto o sentimento de que entre o
sobrevivente e “os outros” existia uma barreira, uma carapaça,
que isolava aquele da vivência com seus demais companhei-
ros de humanidade, como também a conseqüente dificuldade
prevista desta cena narrativa. Sabemos que dentre os sonhos
obsessivos dos sobreviventes consta em primeiro lugar aquele
em que eles se viam narrando suas histórias, após retornar ao
lar. Mas o próprio Levi também narrou uma versão reveladora
deste sonho, que ficou conhecida, na qual as pessoas ao ouvirem
sua narrativa se retiravam do recinto deixando-o a sós com as
suas palavras. A outridade do sobrevivente é vista aí como in-
superável. A narrativa teria, portanto, dentre os motivos que a
tornavam elementar e absolutamente necessária, este desafio de
estabelecer uma ponte com “os outros”, de conseguir resgatar o
sobrevivente do sítio da outridade, de romper com os muros do
Lager. A narrativa seria a picareta que poderia ajudar a derrubar
este muro. A circulação das imagens do campo de concentração,
que se inscreveram como uma queimadura na memória do so-
brevivente, na medida em que são aos poucos traduzidas, Über-
Setzte, transpostas, para “os outros”, permite que o sobrevivente
inicie seu trabalho de religamento ao mundo, de reconstrução
1
Georges Perec escre-
vendo acerca da obra de
da sua casa. Narrar o trauma, portanto, tem em primeiro lugar
Robert Antelme; citado este sentido primário de desejo de renascer.
em Levi (2005, p. 15).

102 Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008


Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes

Gostaria aqui neste espaço de pensar algumas caracterís-


ticas deste gesto testemunhal, enfatizando algumas das aporias
que o marcam. A cena testemunhal deve ser pensada em diálogo
com o saber derivado da psicanálise. Em certo sentido podemos
ver a cena psicanalítica elementar, ou seja, o paciente diante
de seu analista, como uma cena testemunhal. Trata-se, mutatis
2
Este paralelo entre a
mutandis, de um sobrevivente buscando a atenção e escuta de
cena do testemu n ho um outro tendo em vista a construção de um mundo menos
e a da clínica parece-
me importante porque Unheimlich.2 Isto sem contar a centralidade da noção de trauma
responde em parte à em Freud e na história da psicanálise, noção cuja história não
questão acerca da possi-
bilidade do testemunho trato aqui, mas é pressuposta, tendo em vista sua importância
em meio, e não após, as
situações traumáticas.
vital para se entender a questão da narrativa do trauma. Visando
O testemunho na ver- um local de compromisso entre esta cena psicanalítica e abor-
dade, como veremos, é
marcado pelo tempo do dagens mais históricas ou filosóficas enfatizo aqui algumas das
presente. Trata-se tam- problemáticas nascidas da confluência entre a tarefa individual
bém sempre de uma
performance testemu- da narrativa do trauma e de sua componente coletiva. Daí a ênfase
nhal. O ato de testemu-
nhar tem o seu valor em
desta reflexão na noção de “catástrofes históricas”. Nestas situ-
si, para além do valor ações, como nos genocídios ou nas perseguições violentas em
documental ou comu-
nicativo deste evento. massa de determinadas parcelas da população, a memória do
A cena do testemunho, trauma é sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de
se o testemunho de fato
acontece, é sempre e pa- memória individual e outro construído pela sociedade. Aqui
radoxalmente externa e
interna ao evento narra-
a já em si extremamente complexa tarefa de narrar o trauma
do. Interna porque em adquire mais uma série de determinantes que não podem ser
certo sentido não existe
um “depois” absoluto
desprezados mesmo quando nos interessamos em primeiro
da cena traumática, já plano pelas vítimas individuais. No que segue apresentarei em
que esta justamente é
caracterizada por uma primeiro lugar alguns aspectos da mencionada dificuldade de
perenidade insuperável. se testemunhar. Veremos que o testemunho de certo modo só
Por outro lado, o teste-
munho é externo àquela existe sob o signo de seu colapso e de sua impossibilidade. No
cena traumática na me-
dida em que ele cria um
segundo passo tratarei especificamente da questão da política
local meta-reflexivo. Ele da memória: primeiro introduzindo algumas definições impor-
exige um certo distan-
ciamento. Assim, poder tantes para se entender o conceito de memória, depois tratando
testemunhar durante do tema da memória como uma política. Passaremos por alguns
uma situação traumáti-
ca, como a vida no Lager, exemplos vindos da Armênia, da África e do Brasil.
o soldado no campo de
batalhas, ou o morador 1. Narrar o inenarrável
de zonas de conflito bé-
lico e social (com todas
as características par-
Dori Laub, em um ensaio importante sobre o tema do
ticulares de cada uma testemunho da Shoah, dedicou especial atenção para a questão
destas situações), poder
testemunharjá implica da “impossibilidade de narração” e formulou a idéia que o Ho-
uma saída (mesmo que locausto foi “an event without a witness” (LAUB, 1995, p. 65).
apenas simbólica) desta
situação. O testemunho Neste trabalho ele destacou a impossibilidade daquele que esteve
em si é terapêutico. Os
diários de guerra e de
no Lager (o que se passou com o próprio Laub quando criança)
prisioneiros e muitos de ter condições de se afastar de um evento tão contaminante
documentos testemu-
nhais encontrados en- para poder gerar um testemunho lúcido e íntegro. O próprio
terrados no Lager são grau de violência impediu que o testemunho pudesse ocorrer.
prova desta atividade
te stemu n h a l me smo Sem testemunho, evidentemente, não se constitui a figura da
em situações aparente-
mente impossíveis de
testemunha. Para ele a principal tarefa que coube aos sobrevi-
abrigarem um espaço ventes foi a de construir a posteriori este testemunho. Esta tese
testemunhal.
de Laub me parece correta, mas deve ser vista cum grano salis.
Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008 103
Gragoatá Márcio Seligmann-Silva

Ela gerou alguns mal entendidos, do tipo daqueles que a partir


daí negam a importância dos testemunhos. O objetivo de Laub
era evidentemente o oposto.
Primo Levi também destacou em diversas oportunidades
esta impossibilidade do testemunho. Ele afirmava que aqueles
que testemunharam foram apenas os que justamente consegui-
ram se manter a uma certa distância do evento, não foram total-
mente levados por ele como o que ocorreu antes de mais nada
com a maioria dos que passaram pelos campos e morreram, mas
também com aqueles que eram denominados de Musulmänner
dentro do jargão do campo, ou seja, aqueles que haviam sido
totalmente destruídos em sua capacidade de resistir. Os que
ocuparam algum local na hierarquia do campo, quer por conta
de suas relações políticas ou por causa de seu conhecimento
técnico (o caso do próprio químico Levi), estes puderam testemu-
nhar, mesmo que não de forma integral, já que a distância deles
também implicou uma visão atenuada dos fatos. Para Levi não
se pode falar, com Laub, que não existiu o testemunho no Lager,
mas antes que este testemunho foi parcial, limitado. Giorgio
Agamben deriva das palavras de Levi algo semelhante ao que
Laub afirmara. Isto, a meu ver, não corresponde aos textos de
Levi. Para Agamben apenas os Musulmänner poderiam ser as
testemunhas do campo, mas Levi nunca afirmou isto. Na intro-
dução do volume Os afogados e os sobreviventes ele apenas aponta
para as limitações do testemunho, como lemos na famosa frase:
“a história do Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles
que, como eu próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não
voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada
pelo sofrimento e pela incompreensão” (LEVI, 1990, p. 5). Mas
mesmo para ele, membro deste grupo de paradoxais “privile-
giados” dentro do inferno, a realidade do campo permaneceu
como uma cripta (lembrando da expressão de Nicolas Abraham e
Maria Torok), cripta esta que suas palavras atingiram com força,
mas nunca conseguiram quebrar, o que talvez esteja na origem
do próprio suicídio de Primo Levi em 1987.
No seu É isso um homem, de 1947, ele escrevera o seguinte
com relação a este elemento encriptado da realidade do Lager:
“Parecia impossível que existisse realmente um mundo e um
tempo, a não ser nosso mundo de lama e nosso tempo estéril e
estagnado, para o qual já não conseguíamos imaginar um fim”
(LEVI, 1988, p. 119). Lembremos também de outra passagem cha-
ve do mesmo livro: “Hoje – neste hoje verdadeiro, enquanto estou
sentado frente a uma mesa, escrevendo – hoje eu mesmo não es-
tou certo de que esses fatos tenham realmente acontecido” (LEVI,
1988, p. 105). Nesta passagem vemos dois momentos exemplares
do testemunho: em primeiro lugar ele se dá sempre no presente.
Na situação testemunhal o tempo passado é tempo presente.
(Mais um paralelo, aliás, com a cena psicanalítica e sabemos que
104 Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008
Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes

Freud buscou várias metáforas ao longo de sua vida, como a da


câmara fotográfica, um campo geológico e o bloco mágico, para
exprimir este elemento paradoxal da temporalidade psíquica
3
No final de A trégua concentrada em um mesmo topos.) Mais especificamente, o trau-
Primo Levi narra um ma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não
sonho que o perseguiu
após seu retor no de passa. O trauma mostra-se, portanto, como o fato psicanalítico
Auschwitz que também
expressa esta força da
prototípico no que concerne à sua estrutura temporal. Levi diz
realidade do Lager de que neste hoje da sua escritura ele não está certo se os fatos (do
dissolver tudo aquilo
que poderíamos deno-
Lager) de fato aconteceram. Este teor de irrealidade é sabidamen-
minar de seu “exterior”. te característico quando se trata da percepção da memória do
Trata-se de um sonho
em cascata: primo Levi trauma. Mas para o sobrevivente esta “irrealidade” da cena en-
vê-se entre familiares e criptada desconstrói o próprio teor de realidade do restante do mundo.3
amigos, à mesa ou em
outro local aprazível. Hélène Piralian, psicanalista de origem armênia, refletiu sobre
Aos poucos ele é tomado
de uma angústia difusa,
esta questão ao tratar do genocídio armênio e sobre a questão
“tudo desmorona e se da sua representação. Para ela a simbolização do evento implica
desfaz ao meu redor, o
cenário, as paredes, as a “(re)construção de um espaço simbólico de vida” (PIRALIAN,
pessoas, e a angústia 2000, p. 21). Esta simbolização deve gerar um retemporalização
se tornam mais intensa
e mais precisa. Tudo do fato antes embalsamado. Ele adenda, assim, ao fluxo dos de-
agora tornou-se caos:
estou só no centro de
mais fatos da vida. Piralian fala também e de modo muito feliz,
um nada turvo e cin- de uma tridimensionalidade (PIRALIAN, 2000, p. 22) advinda
zento. E, de repente,
sei o que isso significa, da simbolização. Ao invés da imagem calcada e decalcada, cha-
e sei também que nada ta, advinda do choque traumático, a cena simbolizada adquire
era verdadeiro fora do
Lager. De resto eram tridimensionalidade. A linearidade da narrativa, suas repetições,
férias breves, o engano
dos sentidos, um sonho:
a construção de metáforas, tudo trabalha no sentido de dar esta
a família, a natureza em nova dimensão aos fatos antes enterrados. Conquistar esta nova
flor, a casa. Agora esse
sonho interno, o sonho dimensão equivale a conseguir sair da posição do sobrevivente
de paz, terminou, e no para voltar à vida. Significa ir da sobre-vida à vida. É claro que
sonho externo, que pros-
segue gélido, ouço res- nunca a simbolização é integral e nunca esta introjeção é com-
soar uma voz, bastante
conhecida; uma única
pleta. Falando na língua da melancolia, podemos pensar que
palavra, não imperiosa, algo da cena traumática sempre permanece incorporado, como
aliás breve e obediente.
É o comando do ama-
um corpo estranho, dentro do sobrevivente. Na cena do trabalho
nhecer em Auschwitz, do trauma nunca podemos contar com uma introjeção absoluta.
uma palavra estrangei-
ra, temida e esperada: Esta cena nos ensina a sermos menos ambiciosos ou idealistas
levantem, ‘Wstavach’” em nossos objetivos terapêuticos. Para o sobrevivente sempre
(LEVI, 1997, p. 359). A
realidade “externa” tor- restará este estranhamento do mundo advindo do fato de ele ter
na-se a exceção, tempo
de “férias”, imagem de
morado como que “do outro lado” do campo simbólico.
“sonho”. Ela fica sitiada Este estranhamento está intimamente vinculado ao tema
pelo real do Lager, que
é descrito como sonho- da irrealidade dos fatos vividos e da conseqüente inverossi-
pesadelo que engloba milhança dos mesmos. Este constitui um topos importante das
e devora o mundo exte-
rior. O despertar final de narrativas do trauma. O sobrevivente, como o tradutor, está
A Trégua – comandado
por uma voz conhecida
submetido a um doble bind. Enquanto aquele que traduz deve
e estrangeira (Heimlich se submeter ao mesmo tempo, sem esperanças de uma trégua,
totalmente Unheimlich)
– é o despertar para à ditadura da língua que traduz e à da língua para qual está
esta terrível verdade do traduzindo, do mesmo modo o sobrevivente no caso da Shoah
trauma. Jorge Semprun
narra este mesmo sonho tenta (sem sucesso) conciliar as regras de verossimilhança do
em cascata em seu livro-
testemunho L’écriture ou
universo concentracionário com as do “nosso mundo”. O Levi
la vie (SEMPRUN, 1994, que sonha com seu público ouvinte que o abandona já previa a
p. 163).
sensação de inverossimilhança gerada pelos fatos que narraria
Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008 105
Gragoatá Márcio Seligmann-Silva

e a conseqüente acusação de mentiroso que o esperava. Robert


Antelme em seu testemunho sobre sua experiência nos campos
alemães também expressou esta angústia que está na base da
pulsão testemunhal:
Há dois anos, durante os primeiros dias que sucederam ao
nosso retorno, estávamos todos, eu creio, tomados por um
delírio. Nós queríamos falar, finalmente ser ouvidos. Diziam-
nos que a nossa aparência física era suficientemente eloqüente
por ela mesma. Mas nós justamente voltávamos, nós trazíamos
conosco nossa memória, nossa experiência totalmente viva e
nós sentíamos um desejo frenético de a contar tal qual. E desde
os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossível preen-
cher a distância que nós descobrimos entre a linguagem que
nós dispúnhamos e essa experiência que, em sua maior parte,
nós nos ocupávamos ainda em perceber nos nossos corpos.
Como nos resignar a não tentar explicar como nós havíamos
chegado lá? Nós ainda estávamos lá. E, no entanto, era impos-
sível. Mal começávamos a contar e nós sufocávamos. A nós
4
Cf. também uma passa- mesmos, aquilo que nós tínhamos a dizer começava então a
gem de uma entrevista parecer inimaginável. Essa desproporção entre a experiência
de Primo Levi, na qual que nós havíamos vivido e a narração que era possível fazer
ele responde ao famoso
dictum adorniano se- dela não fez mais que se confirmar em seguida. Nós nos de-
gundo o qual escrever frontávamos, portanto, com uma dessas realidades que nos
poesia após Auschwitz
seria um ato de barbá- levam a dizer que elas ultrapassam a imaginação. Ficou claro
rie: “A minha experi- então que seria apenas por meio da escolha, ou seja, ainda
ência prova o contrário. pela imaginação, que nós poderíamos tentar dizer algo delas.
Pareceu-me, então, que a
poesia era melhor mes- (ANTELME, 1957, p. 9)4
mo do que a prosa para
exprimir o que me opri- É essencial nos determos um pouco nesta conclusão que
mia. Quando eu digo
‘poesia’ eu não penso Antelme extrai do dilema da testemunha. A imaginação apresen-
em nada lírico. Nesta ta-se a ele como o meio para enfrentar a crise do testemunho.
época eu teria reformu-
lado a frase de Adorno: Crise que, como vimos, tem inúmeras origens: a incapacidade de
depois de Auschwitz
não pode-se escrever
se testemunhar, a própria incapacidade de se imaginar o Lager, o
poesia senão sobre Aus- elemento inverossímil daquela realidade ao lado da imperativa e
chwitz.” (apud LEVI,
2005, p. 34) De fato, o
vital necessidade de se testemunhar, como meio de sobrevivên-
próprio Adorno refor- cia. A imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio
mulou aquele dictum
alguns anos depois em do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma.
um sent ido próximo O trauma encontra na imaginação um meio para sua narração.
ao de Levi. Como ele
escreveu em 1962 em seu A literatura é chamada diante do trauma para prestar-lhe ser-
trabalho “Engagement”,
também referindo-se ao
viço. Et pour cause, se dermos uma pequena olhada na história
seu dictum de 1949: “O da literatura e das artes veremos que os serviços que elas têm
excesso de sofrimento
real não perm ite es- prestado à humanidade e seus complexos traumáticos não são
quecimento; a palavra desprezíveis. Da Ilíada a Os sertões, de Édipo rei à Guernica (1937)
teológica de Pascal ‘on
ne doit plus dormir’ de Hamlet ao teatro pós-Shoah de um Beckett, podemos ver que
deve-se se c u la r i za r.
[...] aquele sofrimento
o trabalho de (tentativa) introjeção da cena traumática pratica-
[...] requer também a mente se confunde com a história da arte e da literatura. A teoria
permanência da arte
que proíbe” (ADORNO, freudiana da tragédia como ritual de exorcismo do assassinato
1973, p. 64). No mesmo do pai pela horda primeva é apenas uma das inúmeras versões
passo lemos ainda: “não
há quase outro lugar da teoria estética que vê as artes como uma espécie de escudo de
[senão na arte] em que
o sofrimento encontre a
Perseu. Neste escudo miramos os olhos da Górgona que, segundo
sua própria voz”. Primo Levi, matou ou emudeceu aqueles que chegaram ao fundo

106 Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008


Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes

do sistema concentracionário e se deparam com eles. Para muitos


sobreviventes, como é o caso de Jorge Semprun, a pessoa que
melhor pode escrever sobre os campos de concentração é quem
não esteve lá e lá entrou pelas portas da imaginação.5
Mas esta solução está longe de implicar uma pacificação
na cena do trauma e do seu testemunho. Antes é por conta da
imaginação que muitas acusações são feitas contra o testemunho.
Ou seja, antes de se criticar a literatura (com seu evidente com-
promisso com a imaginação), a própria narrativa testemunhal,
que se quer “primeira”, atestação, fonte original da realidade,
mesmo esta narrativa é descartada por muitos historiadores –
como o próprio Raul Hilberg – como sendo fonte não fidedigna
para o historiador. Neste ponto vislumbramos uma querela que
acompanha a historiografia desde seus primórdios, em sua luta
contra a escrita dita imaginativa. Mas ao invés de negarmos ao
testemunho a possibilidade de ver na imaginação e em seu tra-
balho de síntese de imagens um potente aliado, devemos, com
Derrida, ver nesta aproximação entre o campo testemunhal e
o da imaginação a possibilidade mesma de se repensar tanto
a literatura, como o testemunho e o registro da escrita autode-
nominado de sério e representacionista. Ocorre uma revisão
da noção de literatura justamente porque do ponto de vista do
testemunho ela passa a ser vista como indissociável da vida,
a saber, como tendo um compromisso com o real. Aprendemos ao
longo do século XX que todo produto da cultura pode ser lido
no seu teor testemunhal. Não se trata da velha concepção realista
e naturalista que via na cultura um reflexo da realidade, mas
antes de um aprendizado – psicanalítico – da leitura de traços
do real no universo cultural. Já o discurso dito sério é tragado
e abalado na sua arrogância quando posto diante da impos-
sibilidade de se estabelecer uma fronteira segura entre ele, a
imaginação e o discurso dito literário. Não existe uma essência
do literário que dê conta de contê-lo diante do discurso dito
sério. Por fim, como escreve Derrida, “le témoignage a toujours
partie liée avec la possibilité au moins de la fiction, du parjure
et du mensonge. Cette possibilité éliminée, aucun témoignage
ne serait plus possible et n’aurait plus en tout cas son sens de
témoignage” (DERRIDA, 1998, p. 28). O testemunho só tem
sentido com a sua contraparte estrutural, o falso-testemunho.
Ou seja, assim como Coleridge definiu a literatura como uma
suspensão voluntária da desconfiança, o mesmo, em outro grau
(mas justamente tudo torna-se uma questão de grau), se dá no
testemunho. Sem a nossa vontade de escutar, sem o desejo de
também portar aquele testemunho que se escuta, não existe o
Neste sentido ele fez
testemunho. O dialogismo do testemunho o transporta para o
5

um largo elogio da ima-


ginação como meio de campo da pragmática do testemunho. E aqui já estamos anun-
“suscitar a imaginação
do inimaginável” (SEM- ciando nosso próximo passo: a política do testemunho.
PRUN, 1994, p. 135). Antes de passar para este item, mas já nos dirigindo a ele,
Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008 107
Gragoatá Márcio Seligmann-Silva

tratemos por fim, dentro do tema das aporias do testemunho,


da questão da sua paradoxal singularidade. Todo testemunho é
único e insubstituível. Esta singularidade absoluta condiz com
a singularidade da sua mensagem. Ele anuncia algo excepcio-
nal. Por outro lado, é esta mesma singularidade que vai corroer
sua relação com o simbólico. A linguagem é um constructo de
generalidades, ela é feita de universais. O testemunho como
evento singular desafia a linguagem e o ouvinte. Sabemos que a
fragmentação do real, o colapso do testemunho do mundo, como
vimos, emperra sua passagem e tradução para o simbólico. A
conhecida literalidade da cena traumática – ou o achatamento de
suas imagens, que vimos acima – trava a simbolização. Mas ao
se reafirmar esta singularidade absoluta do testemunho barra-
se a possibilidade de sua repetição e sinapse com o simbólico,
sempre assombrado pela possibilidade da sua ficcionalização.
Como vimos, esta passagem para o imaginário é desejável e
pode ter um efeito terapêutico, mas para um certo discurso
sobre o testemunho – sobretudo o jurídico, mas não só – a fic-
ção contamina e dissolve o teor de verdade do testemunho. No
discurso jurídico é onde este elemento paradoxalmente singular
do testemunho (e das provas) é levado mais adiante, colocando
o testemunho em um verdadeiro território de ninguém. Dos-
toievski percebeu isto e, freqüentador contumaz de tribunais,
ele dizia que as provas têm sempre “dois gumes” (DOSTOIÉ-
VSKI, 2001, p. 348), um verdadeiro insight psicanalítico sobre o
double bind. Ou seja, a “literalidade” da situação traumática traz
consigo a sensação de singularidade absoluta. Esta não é nada
mais do que o sintoma da ruptura com o simbólico. Na tentativa de
cobrir este gap com a simbolização a testemunha se volta para
o trabalho da imaginação. É neste ponto que o campo jurídico
passa a lançar uma suspeita sobre o testemunho. Ele gostaria
de manter a singularidade total do testemunho, que significaria
a chancela de seu teor de “prova”, de fragmento do real. Mas a
engrenagem jurídica emperra uma segunda vez, justamente ao
defender esta singularidade literal do evento. Pois também as
leis – como a linguagem – são generalizantes, são universais que
muito precariamente cobrem os “delitos” individuais. O teste-
munho como híbrido de singularidade e de imaginação, como
evento que oscila entre a literalidade traumática e a literatura
imaginativa, assombra duplamente o direito.
Por outro lado, o testemunho também se quer compreen-
sível, e mesmo, o testemunho se quer exemplar. Neste sentido
reencontramos um veio tradicional do conceito de testemunho,
que o articula à figura cristã do mártir (também muito cara a
Dostoiévski). Mártir é aquele que sofre e morre para testemunhar
sua fé. O mártir (do grego mártus,uros, aquele que testemunha, ou
seja, que percebe o mundo) ao testemunhar de modo único esta
fé universal, torna-se ele mesmo um exemplo, um modelo, uma
108 Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008
Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes

vida exemplar, que as hagiografias até o século XX reproduziam


com certo sucesso. Aquele que testemunha um fato excepcional
muitas vezes torna-se ele também uma figura exemplar. Sabe-
mos do valor atribuído em nossa sociedade aos sobreviventes.
Eles representam exemplos únicos daqueles que viram de per-
to atrocidades inomináveis. Eles portam estas verdades e são
tratados como porta-vozes delas. Esta unicidade paradoxal do
testemunho, que desafia a linguagem, levou também ao dis-
curso da unicidade das catástrofes. Em particular fala-se muito
da unicidade da Shoah. Como escreveu Primo Levi: “o sistema
concentracionário nazista permanece ainda um unicum, em
termos quantitativos e qualitativos” (LEVI, 1990, p. 7). Mas esta
questão deve ser vista com cautela. Seria moral comparar qual
grupo tentativamente dizimado sofreu mais? Aqui encontramos
uma típica armadilha de nossa era politically correct e devemos,
de preferência, não pisar nela e sim tentar desmontá-la. Do ponto
de vista das vítimas – e este ponto de vista é fundamental ao
se estudar o testemunho, voltaremos a este ponto – do ponto
de vista das vítimas toda catástrofe é única. Radicalizar esta
singularidade assim como condenar toda comparação entre os
genocídios, por outro lado, pode gerar uma espécie de teologia
negativa concentracionária, muito improdutiva e que apenas
tende a reproduzir dois males: em primeiro lugar a própria si-
tuação do traumatizado na sua resistência à simbolização e, em
segundo lugar, o discurso dos algozes que também visa estender
um tabu sobre o discurso que recorde as atrocidades cometidas.
Como escreveu Ruth Klüger, ela mesma uma sobrevivente de
três campos de concentração e autora de um relato autobiográ-
fico publicado em português com o título Passagens da Memória,
“mesmo cada cachorro é único” (KLÜGER, 1994, p. 70).
2. Política da memória
O testemunho é uma modalidade da memória. Se os es-
tudos sobre o testemunho – no seu sentido não mais religioso
ou meramente jurídico, mas antes como uma busca de se ler
na cultura as marcas das catástrofes do século XX – se desen-
volveram nas últimas décadas é porque ocorreu neste período
uma virada culturalista dentro das ditas ciências humanas. Nesta
virada a memória passou a ocupar um lugar de destaque, sub-
metendo a quase onipresença da historiografia no que tange à
escritura de nosso passado.6 Neste período também a própria
historiografia se abriu aqui e ali à influência dos discursos da
memória, como vemos em trabalhos de história que introduzem
procedimentos da história oral ou nos que se abrem também ao
trabalho com as imagens. A historiografia positivista tradicional
é avessa às imagens, desconfia delas assim como despreza a
6 Com relação a este
ponto remeto ao meu imaginação. Já a memória sempre foi pensada como um misto
ensaio de 2003. de verbalidade e imagens. Em seu pequeno tratado De memoria
Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008 109
Gragoatá Márcio Seligmann-Silva

7
Refiro-me aqui a um et reminiscentia Aristóteles notou que a memória, devido ao seu
importante filão na arte
contemporânea no qual
caráter de arquivo de imagens, pertence à mesma parte da alma
encontramos artistas que que a imaginação (De memoria et reminiscentia 450a24): ela é um
praticam uma nova “arte
da memória”. Entre os conjunto de imagens mentais das impressões sensuais, com um
artistas que trabalham
de modo programático o
adicional temporal; trata-se de um conjunto de imagens de coisas
tema da memória pode- do passado. Aristóteles também escreveu com relação ao nosso
mos destacar Rosangela
Rennó, Anselm Kiefer, pensamento de um modo geral: “a alma nunca pensa sem uma
Joseph Beuys, o cartu-
nista Art Spiegelman imagem mental” (ARISTÓTELES, De anima 432a17; cf. YATES,
(autor de Maus e de In the 1974, p. 32) “... mesmo quando pensamos de modo especulativo,
Shadow of no Towers), os
cineastas Alain Resnais devemos ter uma imagem mental com a qual pensamos” (ARIS-
(autor de Nouit et Brou-
illard e de Hiroshima mon TÓTELES, De anima 432a9). Esta idéia é importante de ser desta-
Amour), Claude Lanz-
mann (autor de Shoah),
cada ao tratarmos do testemunho, porque assim como falamos
Chris Marker (autor de de narrativa testemunhal, também deve-se pensar em uma arte
La Jetée) e Win Wenders,
o artista Jochen Gerz (au- testemunhal, ou seja, em práticas imagéticas do testemunho.7
tor de anti-monumentos,
como seu “Monumento
Por agora nos contentemos em acentuar o elemento
contra o fascismo”, em eminentemente político no qual se desdobram os discursos
Hamburgo ou o “Memo-
rial contra o racismo”, de testemunhais. O próprio conceito de testemunho pode ser tra-
Saarbrücken), Christian
Boltanski (autor, entre
çado ao longo do século XX na sua relação com o pensamento
outras obras centrais, político. Jean Norton Cru, o primeiro a introduzir o conceito no
de “The Missing Hou-
se”, em Berlim), Horst campo da historiografia, tinha como objetivo fazer uma crítica
Hoheisel (também autor
de anti-monumentos,
da primeira guerra mundial e dos discursos oficiais, belicistas,
como de uma proposta que enalteciam as figuras dos heróis guerreiros. Sua resposta
de se explodir o portal
de Brandenburgo como foi propor que a historiografia se abrisse para os testemunhos
memorial para lembrar
a Shoah, autor de “Os dos soldados. Seu livro Témoins, de 1929, deve ser visto como a
portões dos alemães”, e primeira tentativa sistemática de se pensar o testemunho mo-
co-autor, ao lado de An-
freas Knitz, da exposição derno.8 Já Walter Benjamin com a sua concepção do historiador
“Vogel Frei – Passaro
Livre”, realizada na Pi- como um chiffonier, também abriu a historiografia para o discurso
nacoteca de São Paulo em
2003). Podemos lembrar
testemunhal, apesar de ter utilizado pouco este conceito. Mas
também de outros ar- uma frase famosa das suas teses “Sobre o conceito da história”,
tistas que se dedicaram
especificamente em al- não deixa dúvidas quanto à sua fortíssima proposta de leitura
gumas de suas obras ao
tema da representação da
da história na sua face testemunhal. Refiro-me à frase: “nunca
Shoah, como Naomi Tere- existiu um documento da cultura que não fosse ao mesmo tempo
sa Salomon (lembremos
de sua exposição Asser- um [documento] da barbárie”. É interessante ler a tradução do
vate – Exibits, Auschwitz,
Buchenwald, Yad Vashem
próprio Benjamin dessa famosa passagem: “Tout cela [l’héritage
no Schirn Kunsthalle de culturel] ne témoigne [pas] de la culture sans témoigner, en
Frankfurt em 1995) e de
Zbigniew Libera (autor même temps, de la barbarie”. Já na América Latina, sobretudo
da polêmica obra “Lego
Concentration Camp
desde os anos 1960, o conceito de testemunho adquiriu uma
Set”, de 1996). Na Argen- centralidade enorme no contexto da resistência às ditaduras que
tina vemos também um
boom da memória deslan- assolaram o continente.
chado pelo trabalho de
luto da última ditadura, Hélène Piralien escreve seu referido livro de ensaios sobre o
que deixou como legado genocídio dos armênios de 1915-16 sob o signo de uma escritura
mórbido mais de 30.000
desaparecidos. Entre es- contra o negacionismo. Como se sabe, aquele genocídio que atingiu
tes artistas eu destacaria
dois fotógrafos: Marcelo cerca de 1.200.000 armênios do então Império Otomano, de uma
Brodsky e Helen Zout. população total de cerca de 1.800.0000, até hoje é negado pelo
Com relação ao papel
governo da Turquia. Ainda em 2005 um congresso sobre este
8

de Jean Norton Cru na


história do conceito de
testemunho cf. o livro de
genocídio, que deveria ocorrer na Universidade de Bogazici, foi
Frédéric Rousseau (2003) impedido de ocorrer pelo governo turco (Folha de São Paulo, 24
e o meu artigo de 2005.
set. 2005, p. A27). Para Piralien o desafio do testemunho deste
110 Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008
Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes

genocídio negado – que assim matou duas vezes suas vítimas e


continua a assassiná-las simbolicamente – é o de se construir em
termos coletivos espaços para além do desejo da vingança, da
parte os descendentes das vítimas, e com a renúncia da negação,
do lado dos turcos. Apenas deste modo ela crê que se poderia
finalmente proceder ao trabalho de luto, que até o momento foi
travado e impedido por conta da negação. O negacionismo aqui
é apenas um caso particularmente radical de um movimento que
acompanha o gesto genocida. O genocida sempre visa a total
eliminação do grupo inimigo para impedir as narrativas do
terror e qualquer possibilidade de vingança. Os algozes sempre
procuram também apagar as marcas do seu crime. Esta é uma
questão central, que assombra o testemunho do sobrevivente
em mais de um sentido. Em primeiro lugar porque o sobrevi-
vente vive o sentimento paradoxal da culpa da sobrevivência.
A situação radicalmente outra, na qual todos deveriam morrer,
constitui sua origem negativa. A indizibilidade do testemunho
ganha com este aspecto um peso inaudito. Mas o negacionismo é
também perverso, porque toca no sentimento acima referido de
irrealidade da situação vivida. O negacionista parece coincidir
Se existe de um lado
com o sentimento comum que afirma a impossibilidade de algo
9

o negacionismo, como
uma prática tradicional tão excepcional. O apagamento dos locais e marcas das atroci-
dos autores de crimes e
sobretudo dos autores dades corresponde àquilo que no imaginário posterior também
coletivos de crimes con-
tra a humanidade, e, do
tende a se afirmar: não foi verdade. A resistência quando se trata
outro lado, a tendência de se enfrentar o real parece estar do lado do negacionismo. Este
do sobrevivente e da
vítima a querer se “es-
sentimento comum mora no próprio sobrevivente e o tortura,
quecer” do seu passado gerando uma visão cindida da realidade. Piralian nota que o
traumático, podemos
distinguir ainda uma testemunho visa a integração do passado traumático. Esta inte-
tercei ra moda l idade gração só pode ser conquistada contra o negacionismo. Não por
de resistência ao real
que seria a marca de acaso se conta que Hitler em um discurso a seus chefes militares
nossa atual sociedade
caracterizada pela pre-
em 22 de agosto de 1939, às vésperas da invasão da Polônia, teria
sença traumatizante da dito “Quem se lembra hoje do extermínio dos armênios [durante
violência. Em Freud a
teoria da defesa diante a Primeira Guerra Mundial]?” Sua intenção era clara: apenas o
da “vivência da dor” lado heróico da guerra seria lembrado, a impunidade estaria
contém, neste sentido,
ensinamentos precio- garantida. A negação antecedeu o próprio ato, ou seja, a tentativa
sos. O mesmo vale para
seu conceito de Verleug-
de extermínio dos judeus europeus. A memória da barbárie tem,
nung, recusa da realida- portanto, também este momento iluminista: preservar contra o
de. Vale lembrar de uma
passagem do dicionário negacionismo, como que em uma admoestação, as imagens de
de Laplanche/ Pontalis sangue do passado.9
ao tratar deste último
termo: “Na medida em Catherine Coquio em um interessante livro sobre o geno-
que a recusa incide na
realidade exterior, Freud
cídio dos Tutsis (2004) no Ruanda de 1994, aborda justamente
vê nela, em oposição ao os conflitos entre os rituais oficiais de memória e as tentativas
recalcamento, o primei-
ro momento da psicose:
individuais da população sobrevivente de enfrentar este luto
enquanto o neurótico quase impossível de 1.300.000 mortos assassinados com facões ao
começa por recalcar as
exigências do id, o psicó- longo de apenas três meses. Ela descreve uma situação na qual
tico começa por recusar enquanto o Estado tendeu para um rápido “trabalho de memó-
a realidade” (LAPLAN-
CHE; PONTALIS, 1988, ria”, mais parecido a um trabalho de esquecimento, boa parte
p. 562 et seq.). da população sofria diante da ausência de interlocutores para
Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008 111
Gragoatá Márcio Seligmann-Silva

suas demandas de testemunho. Os rituais oficiais pareceriam


mais Deckerinnerung (memória encobridora) do que real dispo-
sição a tratar do passado. Faz parte destes rituais a publicação
de um dicionário com o nome dos desaparecidos, a exumação
dos cadáveres enterrados em fossas coletivas e a construção de
memoriais, como foi o caso do Memorial de Kigali. Este último
foi inaugurado em 2004, aos dez anos do massacre, e contém um
museu do genocídio, cuja cenografia foi inspirada em Yad-Va-
shem, o memorial central dedicado à Shoah em Jerusalém. Mas
faltam espaços para o testemunho. As igrejas, que poderiam em
parte abrigar esta demanda, foram transformadas em 1994 em
cenário para os massacres. Um relato de Monique Ilbudo, escrito
em 1998, quatro anos após o genocídio, apresenta um pouco o
retrato desta população destruída por aquela experiência:
Em 1998 as pessoas ainda estavam embrutecidas, perdidas.
Alguns haviam escolhido a loucura para sobreviver e nos
contavam coisas incoerentes. Outros estavam fechados no
mutismo. Outros ainda andavam como fantasmas, completa-
mente destruídos. (apud COQUIO 2004, p. 83)
Já o testemunho de Esther Mujawayo, citado por Coquio,
mostra um descompasso entre as boas intenções daqueles que
querem dar apoio a esta população e suas necessidades:
[...] estes psicólogos [...] não queriam ouvir nosso traumatismo
senão sob a forma que eles o compreendiam. [...] percebíamos
que o país se transformava em um campo de experiências de
um bando de aventureiros e antes de mais nada, de aprendizes
de psicólogo, de engenheiros, médicos... Quantos energúmenos
nós não vimos?

[...] a maior parte dos que emprestam fundos e agentes humani-


tários são pessoas apresadas e, como todas pessoas apresadas,
freqüentemente julgam antes de escutar: eles querem soluções
rápidas, eficazes como mecanismos de automóvel, mas que não
podem funcionar com humanos, ainda menos com humanos
que saem de um genocídio. Eles querem se livrar da sua culpa
com programas rápidos. (apud COQUIO, 2004, p. 84)
Esther Mujawayo reclama também da retórica oficial de
2004 que afirmava que já se havia falado “o suficiente” do geno-
cídio. Ela vê uma coincidência entre este tipo de idéia e o desejo
dos Hutus de esquecer tudo e de apagar o passado. O Estado
assumiu um discurso de unidade nacional, tentando conciliar
os desejos dificilmente conjugáveis dos Hutus e dos Tutsis. Deste
modo o testemunho não pôde acontecer e estabelecer sua tenta-
tiva de criar pontes entre o sobrevivente e a realidade, entre ele e
a sociedade. O discurso ficou estancado. Mesmo as tentativas de
introduzir algo semelhante às Comissões de Verdade e Concilia-
ção da África do Sul parecem não ter obtido o resultado esperado.
A introdução da Gacaca, uma instituição jurídica tradicional de

112 Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008


Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes

Ruanda, uma espécie de conselho popular, deveria ter permitido


a confissão em massa dos culpados e o testemunho das vítimas.
Como este ritual não previa sanções penais, ele acabou se trans-
formando em um ritual de anistia disfarçado de boas intenções.
Neste sentido a Gacaca foi instrumentalizada pelo projeto de
reconciliação e unificação que previa o perdão como meio de
cura dos traumas sociais. Já a própria ONU tampouco teve sua
iniciativa bem-vinda de criar um Tribunal Penal Internacional
para Ruanda, uma vez que ela é vista como cúmplice por sua
inação durante o genocídio. Jean Hatzfeld destaca a fala de uma
sobrevivente deste genocídio que afirma, dentro de um topos que
vimos acima, que não adiantaria testemunhar, porque ninguém
acreditaria nos fatos relatados (HATZFELD, 2005, p. 51). Sem
contar que os sobreviventes têm medo de retaliações contra os
que testemunham em público, sendo que em 2003 ocorreu uma
série de assassinatos de sobreviventes que foram considerados
potenciais denunciantes das atrocidades (COQUIO, 2004, p. 92).
Lendo o testemunho de Sylvie, uma assistente social de Ruanda
citada por Hatzfeld, entendemos um pouco melhor do que se
trata nesta luta com este legado do mal. Percebemos que a jus-
tiça e sua capacidade de negociação entre os partidos e entre o
passado e o presente, ainda pode ter um papel a desempenhar
nesta cena, como de resto já está ocorrendo na América Latina
em países como a Argentina e o Chile, que também se vêem às
voltas com a herança dos gigantescos desmandos ocorridos du-
rante seus regimes ditatoriais. Citemos as palavras de Sylvie:
No fundo de mim mesma não se trata de perdão ou de es-
quecimento, mas de reconciliação. O branco que deixou os
assassinos agirem, não há nada a lhe perdoar. Quem olhou o
vizinho abrir o ventre das moças para matar o bebê diante dos
olhos delas, não há nada a perdoar. Não há porque desperdiçar
palavras para falar desse assunto com esta gente. Só a justiça
pode perdoar... Uma justiça que ofereça um lugar à verdade,
para que o medo se esvaia... Um dia, talvez, uma coabitação
ou uma ajuda mútua voltem a existir entre as famílias dos que
mataram e dos que foram mortos. (HATZFELD, 2005, p. 218)
O tema da narração do trauma de catástrofes históricas nos
levou, portanto, a passar da cena do testemunho para a cena ju-
rídica. Mas será esta capaz de permitir a construção da desejada
passagem entre os indivíduos traumatizados pela catástrofe e a
sociedade? Ela permitirá uma reintegração do passado?10 Sem
dúvidas a esfera do direito e a instituição do tribunal podem
criar fóruns para esta construção de passagens e para a refun-
dação de moradias para estes Eus danificados, mas é verdade
10
Sho sh a n a Fe l m a n
apostou nesta possibi- também que enquanto um membro da esfera do poder, o direito
lidade do testemunho
jurídico criar um espaço
não está isento de parcialidades. E mais, enquanto um modo
para o testemunho em de pensar falocêntrico calcado no discurso da comprovação e da
seu belo livro de ensaios
de 2002. atestação, ou seja, do testemunho como testis, o terceiro em uma

Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008 113


Gragoatá Márcio Seligmann-Silva

cena de litígio, e não como superstes, discurso de um sobrevi-


vente, o direito tende a não garantir espaço para a fala muitas
vezes fragmentada e plena de reticências do testemunho do
trauma (SELIGMANN-SILVA, 2005). Talvez a busca deste local
do testemunho seja antes uma errância, um abrir-se para sua
assistematicidade, para suas fraturas e silêncios. É na literatura
e nas artes onde esta voz poderia ter melhor acolhida, mas seria
utópico pensar que a arte e a literatura poderiam, por exemplo,
servir de dispositivo testemunhal em massa para populações
como as sobreviventes de genocídios ou de ditaduras violentas.
Mas isto não implica, tampouco, que nós não devamos nos abrir
para os hieróglifos de memória que os artistas nos têm apresen-
tado. Podemos aprender muito com eles.
Na música popular brasileira encontramos inúmeros exem-
plos de inscrições do trauma, como escritura de uma contra-voz.
Fecho este texto lembrando alguns versos de Chico Buarque
como exemplo deste fantástico acervo mnemônico existente no
Brasil. Este acervo de forte caráter político ainda é muito vivo,
apesar do conservadorismo gigantesco da sociedade brasileira
que tende mais para enterrar aquele passado ainda recente. No
Brasil até hoje a anistia de 1979 valeu mais como amnésia im-
posta com relação às arbitrariedades e à violência da ditadura
civil-militar. Citemos os versos:
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez meu filho suspirar
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
Quem é esta mulher
Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino
Que ele não pode mais cantar.
(“Angélica”, de Chico Buarque e Miltinho, 1977)
“Angélica” foi inspirado pelo assassinato de Zuzu Angel
(Zuleika Angel Jones) em 1976 por membros do aparato de go-
verno que queriam impedir a continuidade de suas investiga-
ções sobre o paradeiro de seu filho (Stuart Edgart Angel Jones,
raptado e assassinado por agentes da ditadura). Não por acaso
este episódio da história da ditadura se tornou tão importante
hoje, tendo sido inclusive “popularizado” a partir do filme de
Sérgio Rezende. Zuzu representa ao mesmo tempo a vontade de

114 Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008


Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes

11
É interessante con-
frontar esta let ra de restabelecimento da verdade, o desejo de reencontrar um parente
Chico Buarque com o
poema de Paul Celan
arbitrariamente raptado, torturado e assassinado e o peso ter-
“Nächtlich Geschürzt” rível da realidade do esquecimento imposto pelas autoridades
(“De noite arrepanha-
dos”, na tradução de
que, ao final, desaguou em um novo assassinato, ou seja, o da
João Barrento). Celan própria Zuzu. É-lhe negado o direito de enterrar seu filho. Sua
tem uma poética deri-
vada em grande parte luta pela verdade se confunde com a luta pelo corpo do filho.
de sua experiência de Os desaparecimentos do corpo e da justiça se misturam em sua
sobrevivente das atro-
cidades do nazismo, história. Este caso revela ao mesmo tempo as práticas homicidas
sendo que ele perdera
seus pais em campos
do Estado terrorista de 1964 e a tentativa de se representar esta
de concentração. A di- arbitrariedade. Zuzu para fazer seu luto precisava, antes de mais
ferença entre as poéti-
cas destes dois poetas é nada, saber a história de seu filho, ver seu cadáver, enterrá-lo,
clara: Buarque cria um fazer com que a justiça se cumprisse. Angélica enfatiza o aspecto
poema com uma tem-
poralidade estendida e repetitivo da memória do mal, que vive de observar uma au-
não concentrada e espa-
cializada, como Celan.
sência que não pode ser sanada a não ser com a restituição do
Em Buarque os espaços corpo. Na música, a repetição do verso “Quem é esta mulher”, a
privado e público se en-
contram em um drama volta repetitiva do advérbio temporal “sempre” e a imagem de
político, já em Celan a um sino que sempre dobra da mesma forma, representam esta
poesia tende para uma
mise en abyme que nos característica da memória do mal como constante e reiterativa.
faz oscilar entre a refe-
rência histórica e a força
A cena desenhada é a da mãe que quer enterrar seu filho, dar
de suas imagens poéti- uma moradia e paz para seu corpo – requisito essencial para
cas. Mas o confronto é
interessante, na medida que ela mesma recupere a sua paz. Esta mulher, visada pela
em que colocamos lado pergunta repetida quatro vezes, é tanto Zuzu, como as outras
a lado duas potentes ar-
tes da memória poéticas mães de desaparecidos e, no limite, a sociedade brasileira órfã
de duas barbáries do
século XX (sem querer,
de seus filhos desaparecidos (abandonados em valas comuns
evidentemente, medi- ou jogados nas profundezas dos mares). A mãe na música quer
las ou compa rá-las).
Ambos os poetas bus-
“lembrar o tormento” que fez seu filho suspirar: a narração dos
cam criar pelas palavras fatos, a restituição da verdade é uma etapa essencial no trabalho
um espaço para os seus
“desaparecidos”, ambos de luto assim como nos processos de transição de regimes au-
podem ser incluídos na toritários para democráticos. No fim, na última “estrofe”, a mãe
literatura do trauma que
se desenvolveu no sécu- quer cantar por seu menino, que não pode cantar. Ela mesma
lo XX em função de suas
inúmeras catástrofes (cf.
se torna testemunha desta história que encerra em si o silêncio,
SELIGMANN-SILVA, o apagamento da verdade. Assim como a própria música de
2005a): “De noite, ar-
repanhados/ os lábios Chico Buarque traz em si esta história perfurada, que não cessa
das flores,/ cruzados e de voltar porque a justiça e o trabalho de memória ainda não
entrelaçados/ os fustes
dos abetos,/ encanecido foram feitos.11
o musgo, estremecida a
pedra,/ desperta para o
vôo infinito/ as gralhas
sobre o glaciar:// estas
são as paragens onde/
descansam aqueles que
surpreendemos:// eles
não irão nomear a hora,/
nem contar os flocos,/
nem seguir as águas
até ao açude.// Estão
separados no mundo,/
cada um com a sua noi-
te,/ cada um com a sua
morte,/ rudes, de cabe-
ça descoberta, cobertos
de geada/ de pertos
e longes.// Pagam a
culpa que animou a sua
origem,/ pagam-na com

Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008 115


Gragoatá Márcio Seligmann-Silva

uma palavra/ que existe Abstract


injustamente, como o
verão.// Uma palavra The text proposes a reflection about some of the
– bem sabes:/ um cadá-
ver.// Vamos lavá-lo,/ main issues concerning the gesture of testimony,
vamos penteá-lo,/ va-
mos voltar-lhe os olhos/
highlighting the aporias that mark the act of wit-
para o céu.” “Nächtlich nessing. Departing from the idea that testimony
geschürzt/ die Lippen
der Blumen,/ gekreuzt only exists under the sign of its collapse and im-
und verschränkt/ die possibility, the essay stresses the dilemmas raised
Schäfte der Fichten,/
ergraut das Moos, ers- from the convergence between the individual task
c hüt te r t de r Stei n,/ of the trauma storytelling and its collective com-
erwacht zum unendli-
chen Fluge/ die Dohlen ponent. In the historical catastrophes, as in the
über dem Gletscher:// cases of genocide or mass violent persecution of
dies ist die Gegend, wo/
rasten, die wir ereilt:// particular segments of the population, traumatic
sie werden die Stunde memory is always a search for a compromise be-
nicht nennen,/ die Flo-
cken nicht zählen,/ den tween the work of individual memory and another,
Wassern nicht folgen more collective work. Testimony is analyzed as a
ans Wehr.// Sie stehen
getrennt in der Welt,/ part of a complex “politics of memory”.
ein jeglicher bei seiner
Nacht,/ ein jeglicher bei Keywords: Testimony. Trauma memory. Trauma.
seinem Tode,/ unwirs-
ch, barhaupt, bereift/ Politics of memory. Brazilian dictatorship.
von Nahem und Fer-
nem.// Sie tragen die
Schuld ab, die ihren Urs-
prung beseelte,/ sie tra-
gen sie ab an ein Wort,/
das zu Unrecht besteht, Referências
wie der Sommer.// Ein
Wort – du weisst:/ eine ADORNO, Theodor. Notas de literatura. Trad. C. Galeão. Rio de
Leiche.// Lass uns sie
waschen,/ lass uns sie Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.
kämmen,/ lass uns ihr
Aug/ h i m m e l w ä r t s ANTELME, Robert. L’espèce humaine. Paris: Gallimard, 1957.
wenden.” (CELAN, 1996,
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Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008 117


Corpos grafemáticos: o silêncio do
subalterno e a história literária*
Roberto Vecchi

Recebido 08 mar. 2008 / Aprovado 27 abr. 2008

Resumo
Será possível repensar no espaço da história literá-
ria, que já em si, pela estrutura própria do cânone,
se articula a partir de jogos de forças e instâncias
de poder, introduzindo conceitualmente o oco de
representação do subalterno, para questionar,
assim, a determinante do poder – e do biopoder
– sobre as representações literárias? O gesto
problematizador, limitando-se a alguns estudos
de caso (os romances Os sertões de Euclides da
Cunha e A menina morta de Cornélio Penna),
mas com o intuito mais amplo de pensar em novos
moldes para uma historiografia literária antago-
nista, tenta responder à questão, detendo-se sobre
as tentativas engajadas que já foram feitas para
incorporar na crítica o homo sacer, o excluído.
É evidente que, em inúmeros casos, as intenções
de resgate se embateram em impasses trágicos
de inviabilidade da representação, a não ser por
uma “escuta” de uma voz sincopada de rastos
resistentes amalgamados nos textos. Assume-se,
nessa perspectiva, ainda, o critério da relação entre
história e história natural que talvez possa deixar
emergir, em suas tensões, alguns restos das rela-
*
O presente texto ções de poder implicadas pela representação.
retoma uma comu-
nicação apresentada Palavras-chave: Subalternidade. História literá-
no simpósio temáti- ria. Corpos grafemáticos. Os sertões. A menina
co (Re)configurações
literárias dos espaços morta.
nacionais/regionais,
no âmbito do X Con-
gresso da ABRALIC
no Rio de Janeiro em
2006, depois nunca
publicado.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 119-130, 1. sem. 2008


Gragoatá Roberto Vecchi

“– A questão é de saber
se uma palavra pode significar tantas coisas
– Não, a questão é de saber
quem manda.”
(Francisco Alvim, “Conversa de Alice
com Humpty Dumpty”)
Qual o sentido de introduzir o conceito de poder, que
pertence mais a uma esfera própria dos estudos culturais, na
reconfiguração de uma historiografia literária? Ou é mais uma
distorção que em tempos de esgotamento de grandes narrativas
procura reativar nostalgicamente tensões discursivas que se
desfibraram ao longo dos anos? Ou ainda se trata de mais uma
dobra crítica dentro da qual se esconde uma disjunção opositiva:
ou seja, a de como a literatura é poder, no sentido em que o pró-
prio cânone literário se institui com uma função sacralizadora,
insitucionalizante das representações e discrimina, antes de
tudo, o que é e não é literatura, hierarquizando-a em gêneros e
subgêneros? Portanto, introduzindo o conceito de poder, se cria
uma espécie de jogo de forças em que a pertinência das rela-
ções críticas acabaria por ser suprida por uma limitada disputa
sobre a primazia da crítica cultural sobre a crítica literária ou
vice-versa?
A impressão que se tem é que, mais uma vez, na realida-
de e no contexto literário em questão – sem querer introduzir
qualquer reducionismo sociológico – pelo menos nessa circuns-
tância, uma reflexão pautada a partir de uma conceitualização
de poder tem raízes profundas, configurando uma espécie de
“diferença” Brasil – como aprendemos de grandes aulas como
as de Antonio Candido ou de Roberto Schwarz, contaminando
as projeções literárias, ou melhor, tornando-as oportunamente
históricas e impuras, o que permitiu estudá-las a partir de um
determinado ângulo agudo sócio-histórico.
E, na verdade, não foram poucas as abordagens com pen-
dor historicista que se debruçaram sobre o corpus – em todos os
sentidos – da história literária brasileira. Isso se dá, também por
questões de referenciais históricos específicos, como no caso do
autoritarismo, que tenta colocar a preocupação com as forças
explícitas ou ocultas do poder sobre a representação. No projeto
que, desse ponto de vista, marca uma diferença para todo o con-
texto sócio-cultural do autoritarismo que lhe serve de referência,
pode-se destacar Os pobres na literatura brasileira, por exemplo, em
que há um intuito de inscrever a classe em um projeto de uma
contra-historiografia literária. É como se, de acordo com Gramsci
(na leitura recanonizadora de Edward Said, 2002), não só onde
há história há classe, mas, em situação de engajamento, pode-se
pensar em uma “estética radical” (SCHWARZ, 1983, p. 8) que con-
vertesse o conceito em outro: onde há história literária também
há classe. O que parece de imediato compreensível, pelo fato de

120 Niterói, n. 24, p. 119-130, 1. sem. 2008


Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno e a história literária

que a literatura, como instituição, com a função sacralizadora


que a demarca, é sempre aparentemente representação de um
apartheid, de um domínio que exerce uma soberania exclusiva
e excludente.
Seria assim se não houvesse muitas outras variáveis em
jogo que a teoria nos ensina como reconhecer, apesar da sua
visibilidade não manifesta, variáveis que tornam o objeto li-
terário – reconfigurado dentro de uma metaforologia político-
social – um território de muitos conflitos. Um exemplo decorre
do “estado de exceção” que instaura a prática lingüística e,
portanto, a literatura também, pois, de acordo com Paolo Virno,
a aplicação de uma norma contém sempre um fragmento de
“estado de exceção” (VIRNO, 2006, p. 11). Virno aponta a pre-
sença de outras dimensões da história na práxis social como,
por exemplo, a meta-história, ou o invariante biológico, que
fazem com que, instalando-se em um determinado pseudomeio
derivado da práxis social e política e em fase de transformação,
a história natural acaba coincidindo com a história de um estado
de exceção (VIRNO, 2003, p. 169).
Nesse horizonte de dimensões múltiplas, então, é sem-
pre possível pensar em outra história literária e como a obra
oferece sempre rupturas que transcendem a pura intenciona-
lidade do autor. Poderíamos admitir, aliás, para proporcionar
uma metáfora comparativa, que a obra literária funcionaria
como a fotografia, assim como se define na clássica leitura de
Roland Barthes (A câmara clara). Lembramos os dois elementos
co-presentes, descontínuos e heterogêneos, que poderiam ser
repensados de acordo com os conceitos estruturais – sempre de
Barthes –, ou seja, o studium e o punctum. O primeiro é codificado
e decorre do gosto, da expectativa, da participação do espectador
(do leitor) em relação ao objeto e, no caso da literatura, o fato de
se construir justamente como tal, a partir de um código, duma
tradição, dum gosto. O segundo, o punctum, não codificado e in-
codificável, é o que quebra a superfície do studium, e é justamente
trauma, ferida, a fatalidade que pelo objeto fere o espectador (o
leitor), ultrapassando a própria intencionalidade do autor. Por
sua presença se modifica a leitura. Pode-se alegar que o efeito
do punctum já está, por exemplo, precocemente presente, no
romance maduro de Machado de Assis, na falsa ausência da
representação do escravo. Tal abstencionismo machadiano, na
verdade, é representação dos vácuos de representação. Portanto,
as omissões acabam funcionando como punctum para o leitor
(embora sua intencionalidade encoberta pela forma literária
esteja fora de discussão).
Se quisermos, então em síntese, iconizar a questão, o pro-
blema, então, é o silêncio, o fora, a dimensão irrepresentada ou
subrepresentada do oco e do vazio que a fissura do poder impede
de enxergar. A voz (o corpo), clamando no deserto da exclusão
Niterói, n. 24, p. 119-130, 1. sem. 2008 121
Gragoatá Roberto Vecchi

como produção biopolítica de um domínio que se canoniza, é


a que o pós-estruturalismo tem procurado resgatar, pela hipo-
teca duma linguagem que é sempre excesso ou defeito, onde o
silêncio é fundador das possibilidades e impossibilidades da
linguagem.
Mas eu quero ficar fora dos discursos consagrados e, em de-
bate, recuar a uma obra muito menos explicitamente valorizada e
que, pelo contrário, representa ainda um instrumento potencial-
mente extraordinário e ainda pouco utilizado. Refiro-me a um
caderno “especial” dos Quaderni del carcere de Antonio Gramsci,
o nº 25 de 1934, com o título suprendentemente euclidiano de
“Ai margini della storia (Storia dei gruppi sociali subalterni)”. O
caderno fragmentário de Gramsci é interessante na perspectiva
de repensar também uma história descentralizada dos grupos
dominantes. Gramsci observa que a história dos grupos subal-
ternos é necessariamente “desagregada e episódica” (GRAMSCI,
1995, p. 2283) e, para a elite, os elementos desses grupos sempre
possuem algo de “barbárico e patológico” (p. 2279). Uma história
à margem da história passa pela valorização de cada rasto de
iniciativa autônoma dos subalternos por parte do historiador
integral (p. 2284) e por um uso original de fontes indiretas que
inconscientemente registam as aspirações elementares ou pro-
fundas dos grupos subalternos (p. 2290).
De uma leitura seletiva (BUTTIGIEG, 1999, p. 30-31) da
subalternidade gramsciana se articula o âmbito crítico do gru-
po indo-inglês dos Subaltern Studies, que reelabora um aparato
conceitual a partir de esquemas próprios do grupo de estudos
formado em Delhi por Ranajit Guha. Tais esquemas decorrem
de uma crítica dos modelos historiográficos, tanto de cunho
colonialista como de matriz nacionalista que tinham omitido,
por interesses diferentes, as tentativas insurrecionais das massas
rurais. Como observa Edward Said – na introdução da primeira
antologia de estudos subalternos, organizada por Guha e Spivak
–, a principal lição que se pode extrair da leitura gramsciana,
é que, como já vimos, onde há história há classe. Desse modo,
o subalterno não surge como um absoluto, mas, sim, de uma
articulação histórica – ou seja, de uma relação de dominação
coercitiva ou ideológica em relação à classe dominante ou he-
gemônica (SAID, 2002, p. 20).
Tal abordagem inaugura, de qualquer modo, uma pers-
pectiva, por assim dizer, “trágica” sobre a história, ou seja, a
necessidade de proporcionar um resgate –talvez impossível – de
narrações não hegemônicas desprovidas substancialmente de
rasto historiográfico, mas, ao mesmo tempo, mutiladas de apegos
documentários ou testemunhais sobre os quais se constroem
contra-narrativas. Desse ponto de vista, é forte, nos estudos su-
balternos, a preocupação meta-histórica de redefinir, através de
um alto índice de contaminação interdisciplinar, um paradigma
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Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno e a história literária

indiciário capaz de dar conta, desconstrutivamente, das histó-


rias submersas não narradas e problematicamente narráveis.
Trata-se, afinal, como sempre Said observa, de um conhecimento
suplementar que preenche vácuos, omissões e a ignorância de
toda experiência da resistência indiana ao colonialismo (SAID,
2002, p. 24), integrando, portanto, parte dos silêncios lacunosos
das narrativas coloniais ou nacionais.
O subalterno seria, pois, o silenciado pela história oficial,
quem não tem condições de produzir discursos e cujo rasto
longínquo de voz pode ser escutado só pelo discurso da elite e,
portanto, permanece irrepresentado.
É fundamental, nessa perspectiva, pela sua dinâmica corre-
tiva, a contribuição de Gayatri Spivak, que pode ser epitomizada
na pergunta, provocatória e trágica, do título da versão de 1988
do ensaio famoso e polêmico “Can the subaltern speak?”, (“Pode
falar o subalterno?”). Na sua mais radical versão originária, a
ensaísta chega a definir um conceito operacional extremamente
interessante que diz respeito ao subalterno, partindo do silêncio
que o institui como “ausente da história”. Para Spivak, de fato,
a categoria de qualquer modo heterogênea e diferencial do
subalterno não poder falar, é como desvocalizada de qualquer
discurso, no quadro dominante da violência epistêmica. Nessa
chave, é interessante notar como o subalterno se define ontologi-
camente por um vazio de representação, pelo seu silêncio entre
as vozes da história. Aliás, se o subalterno falasse, de certo modo
perderia sua condição, saindo daquele estado de objeto de uma
representação vicária constituída pelos aparatos de dominação.
Aqui são as categorias próprias de representação que são postas
em discussão e recolocadas em jogo, com um exercício próximo,
se quisermos, da crítica trágica da testemunha da pós Shoah,
que radicaliza a reflexão sobre a própria representabilidade da
experiência historicamente destruidora do trauma extremo.
O silêncio não se quebra, mas, pelo contrário, se duplica
quando a representação se torna vicária por parte da outra voz,
a do autor.
De todos os ângulos, em suma, estamos plenamente no
silêncio fundador do subalterno de que fala Spivak, em que o
“ventriloquismo” – postiço, aliás, ou para dizer melhor, feti-
chístico –, como o define com uma bela imagem (SPIVAK, 1988,
p. 267), se torna um armamento de outras classes e discursos,
descendente essencialmente das ambigüidades da representação
que remetem sempre, como ela precisa, para um duplo, ancípite
significado. Por isso, toda representação, para produzir seus efei-
tos – a representação é, lembremos, também um ato performativo
(ISER, 1987, p. 218-219) – deve sempre refletir sobre si própria,
sobre seus modos, devendo ser, portanto, meta-representativa.
As partidas dobradas, escorregadias, de fato, situam-se entre
a representação em sentido político (falar por – vertrenten) e a
Niterói, n. 24, p. 119-130, 1. sem. 2008 123
Gragoatá Roberto Vecchi

representação no sentido estético como re-apresentação (falar


de – darstellen). E a confusão entre os dois campos aprofunda a
desvocalização do excluído e a representação se torna, assim e
também, pelos artífices providos das melhores intenções, repre-
sentações de “si própria em transparência” (SPIVAK, 1988, p. 270),
isto é, amplificação e não redução do silêncio do subalterno.
Pensando na literatura brasileira, a obra que mais contribui
para fundar o subalterno a partir do silêncio do excluído, do
”outro” massacrado, que é pelo contrário a rocha viva denegada
da nação, são Os sertões de Euclides da Cunha.
Na Bahia antes, e na escrita depois, Euclides tem um vis-
lumbre excepcional – biopolítico, diríamos. No essencial, apre-
ende que a violência do extermínio exibe uma outra dimensão
em jogo em prol da dominação: a introdução de uma cesura fun-
damental na reconfiguração (não coextensiva) da relação entre
espaço e poder, que separa povo e população, capaz de transformar
em corpo biológico, portanto expulsando-os do corpo político,
grupos de excluídos no âmbito da soberania, fragmentando-se
a nação justamente no plano da vida. Isso faz emergir o aspecto
pavorosamente moderno da operação militar na Bahia, o arse-
nal sofisticado utilizado para apagar o resíduo insubordinado
e arcaico, a substância biopolítica, poderíamos dizer, absoluta,
o perfil do excluído como última fase da produção biopolítica
que pode ser isolada no continuum biológico da nação.
Seu gesto produz um efeito duplamente histórico: por um
lado, transforma o trauma em modo de ler a história nacional
que não resulta assim, como até poderia parecer, esvaziada de
historicidade, mas que, pelo contrário, se pode historicizar em
uma contra-história, problematizando os silêncios, os vazios, as
desvocalizações da história nacional. Por outro lado, tal reescrita
histórica do massacre, nessa moldura, contribui para fundar
literária e politicamente o subalterno.
N’Os sertões, no hiato do lustro que separa a cena traumática
de que Euclides é testemunha da publicação da obra, algo muda
na configuração do sertanejo sacrificial: se, de fato, nas reporta-
gens enviadas de Belo Monte constam entrevistas e diálogos com
os rebeldes, em Os sertões, pelo contrário, Euclides atua através
de uma espécie de desvocalização. Os sertanejos falam pouco. São
como que silenciados, fora algumas exceções (como a do acólito
do Conselheiro, Antônio Beato, o Beatinho) que, como tal, mes-
mo por função e características, funcionam. A desvocalização
é significativa e parece se inscrever naquele silêncio fundador
do subalterno. Isso traz à tona um primeiro efeito relevante do
gesto historicizador de Euclides, fundando, de fato, a categoria
do subalterno na cultura brasileira e instituindo-a através do
deserto e do silêncio. Em suma, Euclides desloca o problema
da história não tanto no conteúdo, mas no modo como ela deve
ser construída.
124 Niterói, n. 24, p. 119-130, 1. sem. 2008
Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno e a história literária

Nesse sentido, Os sertões, em sua aparentemente híbrida


construção, proporcionam não só a fundação de uma história de
classe do ponto de vista não hegemônico, mas a do vencido, de
quem é derrotado e cujo corpo brutalmente é destruído. A obra
também revela uma preocupação profunda com os problemas
da representação, sobretudo com uma representação que vingue
o deserto da barbárie moderna.
Aqui a história do ponto de vista do dominado pode en-
contrar uma sua paradoxal e extraordinária faculdade, fazendo
com que o subalterno possa produzir uma representação. Isso
ocorre, de modo complexo, pelos corpos degolados e humilha-
dos que se tornam figuralmente vozes (murmúrios, rumores
de fundo, de rastos vocais que resistem ao apagamento): o seu
silêncio ostensivo emerge como verdadeira presença dos vazios
da história e das representações consagradas.
Sempre Spivak, na revisão que realiza dez anos depois do
ensaio de 88, em finais da década de 90, A critique of postcolonial
reason, vira drasticamente sua posição com um caso concreto
e mostra como, ainda que subsistam todos os vazios de repre-
sentação dos subalternos, o subalterno pode falar. Fala através de
textos outros e complexos, escrevendo com seu próprio corpo,
falando além da morte, tornando seu corpo – como observa Spi-
vak, tirando e adaptando o adjetivo da reflexão de Derrida sobre
atos lingüísticos de Margens da filosofia (DERRIDA, 1997, p. 413) –
“grafemático” (SPIVAK, 2004, p. 259). Spivak, começa por estudar,
no ensaio, o rito sati, ou seja, a auto-imolação da viúva que, por
sua condição de mulher, se faz o subalterno por excelência, se-
gundo a mesma Spivak, na pira em que arde o corpo do marido.
A seguir, evoca o suicídio, em 1926, em Calcutá Norte, de uma
moça de 16-17 anos, Bhubaneswari Bhaduri, que foi encontrada
morta enforcada. Imediatamente, a idade e as circunstâncias
induzem a pensar em um suicídio por uma gravidez indesejada
e ilícita, mas Bhubaneswari suicida-se justamente no momento
do ciclo menstrual. Anos depois, sua irmã encontra uma carta,
em que a suicida revela sua militância política na luta armada
pela independência indiana: tinha recebido ordens de matar um
político, mas, tendo falhado o atentado, para não expor ao risco
seus companheiros, resolve se matar. Pelo seu gesto, observa a
crítica, Bhubaneswari reescreve o texto social do suicídio sati em
chave interventista. Através do gesto da deslocação (o período
menstrual que constitui a inversão do interdito, porquanto a
mulher não se pode imolar nesse momento impuro) subverte,
pelo seu gesto, os textos hegemônicos de exaltação do sati da
tradição e é essa circunstância que induz Spivak a rever sua
posição, com uma inversão drástica e radical: o subalterno pode
falar (SPIVAK, 2004, p. 317-318), pois, ainda que só de um certo
modo, sua voz pode ser “interceptada” e escutada.
Niterói, n. 24, p. 119-130, 1. sem. 2008 125
Gragoatá Roberto Vecchi

A importância de ler o silêncio, de escutá-lo e repensar a


linguagem não como fala, mas como escuta de línguas impos-
síveis, como os dos corpos grafemáticos, coloca no centro da
cena uma obra, canonicamente marginalizada, mas para mim
fundamental para definir uma relação outra entre história lite-
rária e poder, que também traz à luz as vozes interditadas dos
subalternos escravos, no contexto oitocentista da Casa Grande,
antes da abolição. Trata-se de um livro não muito acessível nem
sequer no Brasil (está esgotado já há alguns anos e com pou-
quíssimas reedições): A menina morta, obra publicada por um
romancista anômalo, Cornélio Penna, em 1954. O romance foi
traduzido para o francês há algum tempo e a edição portuguesa
saiu recentemente em Portugal.
Em A menina morta, como no ensaio de Spivak, ainda que
não no centro da “cena muda” está o presumível suicídio de
Florêncio, escravo mulato, filho do senhor e de uma escrava.
Quando lhe morre o pai biológico, a mulher do senhor em vez de
alforriá-lo, vende-o por vingança ao proprietário da fazenda. O
pano de fundo principal do romance é o Grotão, nas plantações
fluminenses. Aqui o escravo é encontrado misteriosamente en-
forcado, mas na realidade aquilo que a narrativa deixa entender
–sem dizer – é que se tratou, pelo contrário e provavelmente, de
um assassínio, cuja razão é e ficará totalmente desconhecida.
Nesta narrativa melancólica e lutuosa sobre o patriarcado
rural escravocrático, o leitor do romance lento e aparentemente
estagnado, se encontra imerso numa experiência comum aos
outros habitantes da Casa Grande: a interdição sistemática a todo
tipo de informação. É ela que estabelece a condição de domínio
em que se encontram mergulhados os familiares ou os agregados
da Casa Grande, os escravos e justamente também o leitor que
não conseguirá obter mais do que fragmentos muito parciais
de uma verdade sempre mais fugidia e talvez definitivamente
irrecuperável.
Mas este efeito de real que une o leitor à matéria narrada é
apenas uma das multíplices características do romance. A histó-
ria que parece encravada, repetitiva em torno de um movimento
cíclico, justamente estagnante, roda em torno da elaboração
de um luto, a morte da sinhazinha do Grotão, precisamente
a menina morta. É um luto que parece reunir todos, senhores
e escravos, e que parece possuir um “significado legalizado”
(COSTA LIMA, 1989, p. 264), ou seja, funcionar quase como um
mito comunitário, holístico. Trata-se apenas de uma aparência,
porque o clima opressivo da Casa Grande mostra a ameaça
iminente de uma insurreição de escravos.
O enredo é extremamente exíguo. Depois do funeral da
sinhazinha, a outra filha Carlota é obrigada a retornar do reino
para a fazenda, porque se deverá casar, por ordem paterna, com o
filho da latifundiária vizinha e, deste modo, salvar a propriedade
126 Niterói, n. 24, p. 119-130, 1. sem. 2008
Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno e a história literária

da crise. Mas a “substituição” não funciona. Carlota pronuncia-


rá um duplo não: um não ao casamento, mesmo tendo tentado
aceitar as leis não escritas do patriarcado que a queriam esposa
dócil às ordens do pai e do marido, e também à “propriedade” e
ao patrimônio familiar, decidindo, com um gesto surpreendente
e autônomo, muito antes da Abolição de 1888, libertar todas as
centenas de escravos do Grotão.
Para além do enredo mínimo e disseminado por centenas
de páginas, trata-se de um romance sobre o silêncio, aliás, sobre
os silêncios da Casa Grande (MIRANDA, 1983, p. 69): o silêncio
autoritário do Comendador; o silêncio na relação entre ele e a
mulher; entre ele e os filhos aos quais pede obediência cega;
entre ele e os membros da família patriarcal. O romance enfoca,
sobretudo, o silêncio dos subalternos, ou seja, dos escravos, a
emergir com força. E não é tanto ou apenas a representação do
silêncio, mas é a representação das interdições, ligadas ao poder
e ao exercício de uma exceção soberana plenamente funcional
no espaço asfixiante e opressivo da Casa Grande, a definir-se,
também, nos mecanismos recônditos de funcionamento do es-
tado permanente de excepção que tudo domina. Em suma, uma
narrativa sobre como o subalterno não fala. Como é evidente em
algumas ocasiões extraordinárias (num romance que se abre com
a voz de uma velha negra), há brechas, tal como se projetam na
imagem fortíssima da velha escrava Joviana que fala à Sinha-
zinha, mostrando uma dupla boca, uma boca escondida atrás
da boca silenciosa, aliás, emudecida (PENNA, 1958, p. 1136) ou,
também, nas frases desconexas entre sentimentos e quase razões
da outra escrava Libânia, cujas palavras afundam no abismo de
sentidos da comunicação impossível:
Compreendia confusamente não poder ela própria explicar
nada, pois não poderia tirar a verdade das coisas ouvidas,
do visto e sentido guardados em sua memória, mas que se a
Sinhàzinha a escutasse tudo se tornaria claro e teria enorme
significação, muito acima e além de suas forças. Estava, pois
diante do desconhecido, do abismo que ameaçava devorá-lo
e não poderia evitá-lo [...]. E pôs-se a falar, deixando correr
livremente o afluxo de lembranças vindas à sua boca, em
amálgama de coisas diferentes, ditas de forma incompleta e
as mais das vezes sem coesão. (PENNA, 1958, p. 1185)
Portanto, a representação supera os limites impostos pela
duplicidade escorregadia da representação do excluído, tornan-
do-se representação dos vazios da representação. Com a imagem
fortíssima e surpreendente que nos pode parecer paradoxal,
mas é o resultado, pelo contrário, de um exercício testemunhal
sutil e profundo, do terror – literalmente – que atinge os escra-
vos – emudecidos, assustados, com os olhos esbugalhados e
desconfiados – no momento em que Carlota lhes dá uma liber-
dade absolutamente inesperada, o que transforma o contexto, já
Niterói, n. 24, p. 119-130, 1. sem. 2008 127
Gragoatá Roberto Vecchi

em si tenebroso, das senzalas arquitetonicamente contíguas às


câmaras de tortura, numa paisagem fosca de ruínas.
O romance se torna o instrumento que traz à luz contra-
histórias subalternas que se podem assim re-vocalizar nos
corpos ou nos silêncios dos escravos. Sobretudo, como viu
Luiz Costa Lima, configura-se uma contra-mitologia da Casa
Grande & senzala de Gilberto Freyre e, ainda que distinguindo
entre a especificidade de um ensaio e aquela de um romance,
desarticula com um gesto forte a remitificação freyriana da
mestiçagem como lugar de conciliação seminal da Nação, onde
o negro era uma parte constitutiva fundamental, como produto
do espírito de plasticidade e confraternização do colonizador
(COSTA LIMA, 2004, p. 16-18). Tudo absolutamente falso, a ser
desmistificado ainda que por uma outra criação mitíco-histórica.
Sabemos, pela reflexão atual sobre a aporia do testemunho, que
a possibilidade de testemunhar decorre de um paradoxal ato
de autor de uma impossibilidade de testemunhar e é isto que
ocorre ao subalterno negro a partir de um romance marginal
“pós-modernista” – além do mais, de um autor discriminado
pelo próprio Modernismo (lembre-se o famoso rótulo de Mário
de Andrade que considerava, em resenha de 1939, os de Penna
“romances de antiquário”).
De qualquer modo, o subalterno fala. Apesar das historio-
grafias literárias, ou pelos rastos problematicamente detectáveis
dentro delas. A sua é uma história que, tal como diz Gramsci
nos Quaderni, se coloca à margem da história, história esta, a dos
grupos subalternos, necessariamente dilacerada e fragmentária.
O problema, como bem se depreende da deslocação dos estudos
subalternos para a América Latina, se inscreve em uma mudan-
ça radical da escrita para a escuta dos rastos de corpos e vidas
discriminadas e excluídas, desprovidas de peso historiográfico
que deixam só flébeis escritas, duvidosos marcos, anônimos
despojos. Haverá um dia uma história literária capaz de escutar
os inúmeros e ruidosos silêncios que se disseminam nela?

128 Niterói, n. 24, p. 119-130, 1. sem. 2008


Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno e a história literária

Abstract
Can we rethink the space of literary history, which
structures itself, as a canon, in terms of force and
power, introducing the concept of the subaltern’s
empty representation in order to question power
and bio-power influence on literature? Such a
problematic act, limited to some case studies (no-
vels as Euclides’ Os sertões and Cornélio Penna’s
Menina morta) – although with the wider aim
to re-think new edges for an antagonist literary
historiography –, approaches the complex critical
question, deepening the engaged attempts carried
out in order to critically incorporate the “homo
sacer”, the excluded. It is clear that, in many
cases, the intent of redemption have clashed with
the tragic impasses of the unviablility of repre-
sentation, except for the effort to “listen” to the
syncopate voice of resistance that remains in a
text. At the same time, it is important to assume,
from such a perspective, the relationship between
history and natural history, a link that, in spite of
its internal tensions, may facilitate the emergence
of residuals of power relations involved in any
representation.
Keywords: Subalternity. Literary history.
‘Graphematic’ bodies. Os sertões. A menina
morta.

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Gragoatá Roberto Vecchi

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130 Niterói, n. 24, p. 119-130, 1. sem. 2008


Narrativas, rostos e manifestações do
pós-colonialismo moçambicano nos
romances de João Paulo Borges Coelho
Sheila Kahn

Recebido 18 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo
O pós-colonialismo de expressão em língua por-
tuguesa tem sido assumido como elemento hege-
mónico, no pensamento e diálogo entre as várias
ex-colónias portuguesas em África. Contudo, no
meu entender, é urgente retomar epistemologi-
camente a questão pós-colonial, equacionando-a,
de um modo contextualizado, aos loci culturais,
idiossincráticos, históricos e sociais do objecto de
trabalho. No presente artigo, pretendo desafiar a
anterior hegemonia, ao propor que existe, indubi-
tavelmente, um pós-colonialismo moçambicano,
ainda que de língua portuguesa. Este esforço de
romper muros, de compilar e analisar narrativas,
memórias e manifestações de um caminhar pós-
colonial moçambicano pode ser comprovado com
os romances de João Paulo Borges Coelho, nomea-
damente, As visitas do Dr Valdez, Crónica da
Rua 513.2 e, mais recentemente, com Campo de
trânsito. Resta-nos, então, partindo de uma leitu-
ra e análise contextualizadas, reflectir sobre que
trilhos, margens, memórias e rostos emergiram
de um Moçambique que caminhou ao encontro
da sua nação, tão como sonhada e almejada pelo
poeta José Craveirinha.
Palavras-chave: Memória. Narrativa. Pós-
colonialismos. História e ficção.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008


Gragoatá Sheila Kahn

“Tu lias e não me deixavas aprender a ler também.


Eu, pelo meu lado só os podia saber da tua boca, traduzidos, simplificados.
Não tinha acesso a eles tal como eram fabricados,
o mais a que podia aspirar era à tua versão.
Ah, mas agora não! Agora é tarde.
[…] Não quero a tua condição.
Quero antes preservar a minha quero-a também para ti, nesta nova igualdade.”
(João Paulo B. Coelho, 2006, p. 51)
“A literatura liberta mas prende, também,
as palavras pesam muito.”
(João Paulo Borges Coelho)
“Mergulho no sangue e no perfume dos navios
Há uma frase que ondula como a cabeleira do vento
e um frémito de fibras sob uma porta enterrada
E as palavras têm dentes que atravessam os ossos.”
(António Ramos Rosa)

1. João Paulo Borges Coelho,


seus romances e pontos de vista
Escrever e pensar os romances de João Paulo Borges Co-
elho – doravante JPBC – é, confesso, uma ambição desta leitora
embevecida pela sua invenção literária.1 Para a realização deste
artigo optei por palmilhar o caminho da subjectividade do
homem-escritor, procurando discernir as suas reflexões de teor
filosófico, humano, epistemológico e ontológico, sem nunca
esquecer o seu lugar de enunciação – Moçambique – e a sua
voz própria. Por conseguinte, inicio esta digressão analítica
dos romances de JPBC, partindo de uma entrevista-texto,2 e de
algumas contribuições teóricas que me ajudaram a ler, de modo
mais lúcido e transparente, As visitas do Dr.Valdez (2004), Crónica
da Rua 513.2 (2006) e, finalmente, Campo de trânsito (2007).
Partindo da espontaneidade – ainda que parcialmente
estruturada – de uma conversa entre mim e JPBC, emergiram,
durante nosso diálogo, questões que permeiam sua prática literá-
ria e refletem as preocupações deste escritor e historiador. Dessas
questões ressaltam, sem discrição, reflexões sobre o individua-
lismo em confronto com o colectivo moçambicano; a hegemonia
da História como paradigma soberano com legitimidade para
1
Como observa JPBC:
“eu acredito muito na criar, compilar, estruturar e interpretar as identidades quer no
distinção que o Steiner
faz da invenção e da
plano nacional, no social, e mesmo no das subjectividades; o
criação; e, nessa his- papel da memória como acção performativa capaz de reclamar
tória do escritor como
um deus falhado, como
e reinventar – no espaço da narrativa ficcional – as margens, os
um criador que faz fi- silêncios, o modus vivendi daqueles moçambicanos e moçambica-
guras, que gostaria de
criar figuras, e tem de nas que viveram os ciclos da História colonial e pós-colonial do
se limitar a inventá-las” país e, finalmente, o problema de uma modernidade africana,
(KHAN, 2007, p. 2).
2
Entrevista realizada e
que reflicta, na opinião de João Paulo Borges Coelho, que trans-
conduzida pela autora crevo, em palavras literais:
deste trabalho, no dia 19
de Julho, 2007, em Sines, [A] questão da individualidade, que é uma questão muito
Portugal importante, porque eu acho que há uma certa modernidade

132 Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008


Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho

em África que está por fazer. E ela passa por uma discussão
profunda do papel do indivíduo africano, porque já falámos
demasiado do colectivo, do passado, de origens. É altura de
falarmos de presentes, de condições, e de indivíduos, no sen-
tido de desdramatizar aquilo que se fala em todo o mundo:
da África-museu, da África-passado, em que cada africano
anda com uma estrutura de ligações genealógicas atrás. Isso
é completamente absurdo. (KHAN, 2007, p. 1)
Na tessitura da composição das realidades fenomenológica
e ontológica dos seus personagens, projeta-se a preocupação
do escritor em plasmar uma subjectividade própria, que não se
deixa dominar ou comandar pela arquitectura histórica do seu
próprio lugar de enunciação e de um certo modo de pensar o
exercício literário. De facto, é neste sentido que a subjectivida-
de na escrita dos romances de JPBC reflecte as palavras da sua
“voz própria” como homem-escritor e cidadão, já que como ele
afirma
eu vou escrever, eu vou falar com a minha própria voz, […]
motivações que têm a ver, também, com o facto pessoal de eu
ter chegado à conclusão que não me exprimia só pela História.
[…], pessoalmente, eu convenço-me que uma parte emocional
e estética tem de funcionar sem ser domada, há uma parte
irracional, até, que tem de funcionar sem ser domada. (KHAN,
2007, p. 1)
Compartilhando dessa percepção sobre o papel da subjec-
tividade como húmus necessário para a disciplina literária, José
Júnior salienta que
a verdade não é única e o sujeito está sempre submetido pela
linguagem, qualquer que seja o discurso que essa mesma
linguagem venha a articular. Além disso, a ficcionalidade
concede ao discurso uma liberdade selvagem e ameaçadora a
todo o sistema de sentido que zela por sua própria “verdade”.
(SOUSA JÚNIOR, 2000, p. 29)
É neste caminho de coincidências teóricas sobre como a
literatura abre, através de uma liberdade íntima, espaço para
novos sentidos, que Marta Pragana Dantas sublinha que a vo-
cação literária é um meio de se “deslocar os regimes de sentido”
(DANTAS, 2000, p. 3), ao desafiar os silêncios e murmúrios das
normas sociais, mas, acima de tudo, da hegemonia da narrativa
histórica proposta por uma meta-narrativa da História nacional
de um país.
Por conseguinte, nesta caminhada perpassada pelo desejo
literário de libertação da subjectividade, surge o gesto urgente
de desafiar a narrativa do colectivo histórico colocando-a em
tensão com um individualismo histórico. O locus de invenção
dos romances de JPBC se reflete no acto de esculpir a realidade
histórica de um país com as suas águas subterrâneas, com as
vidas e trajectórias daqueles indivíduos, que deixaram sombras,
Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008 133
Gragoatá Sheila Kahn

ecos, transições, humanamente, escritas na paisagem dos ciclos


colonial e pós-colonial de Moçambique. No entanto, tal locus
vai além, pois, no entender de João Paulo Borges Coelho, “são
motivações universais” já que – transcrevendo sua fala – ele
reitera:
não estou aqui a fazer um esforço, para fazer uma literatura
que – como alguns colegas – represente Moçambique, a nossa
literatura, a literatura do nosso povo, não é nada disso, é muito
mais desdramatizada, é a minha literatura privada. (KHAN,
2007, p. 2)
No fundo, o escritor quer fazer uma literatura que venha
recuperar a presença, os cheiros, os hábitos das pessoas que sa-
íram, que foram arrancadas, que fugiram, e/ou foram expulsas.
Tenta engravidar estes “presentes” com uma forma narrativa que
José Júnior nomeia de “narrativa visual e auditiva das sombras
e ecos que se sucedem” (SOUSA JÚNIOR, 2000, p. 31), porque,
indubitavelmente, os universos humanos presentes e ausentes
“deixaram cheiros e sombras lá dentro” (KHAN, 2007, p. 3),
entenda-se, dentro do paradigma oficial histórico moçambicano.
Neste patamar meta-narrativo, as diegeses de JPBC discutem e
desafiam o monopólio do Poder, impondo-lhe a vontade legiti-
madora de um sujeito protagonista de uma outra história. Deste
modo, os universos narrativos em As visitas do Dr.Valdez (2004),
Crónica da Rua 513.2 (2006) e Campo de trânsito (2007) organizam-
se em torno de uma atitude de igualdade e de justiça humana
face à premência de lançar âncoras em uma História dos “calados”,
nomeando-se as margens, os silêncios, as fragilidades de todos
aqueles que testemunharam os ciclos, as transições, as mudanças
desta nação em construção que é Moçambique.
No decorrer da nossa entrevista, JPBC observou que a
memória social e colectiva entrelaça-se a um processo de
estruturação de uma identidade nacional, mas tem, também,
outra vertente que é a da legitimação do seu poder, sendo
detentora da narrativa, de uma espécie de meta-narrativa da
História, que é a luta pela libertação, ela legitima o seu poder,
e isso passa por um arrancar de todo o passado […] de demo-
nizar todo um passado colonial. (KHAN, 2007, p. 3-4)
Esta acção de demonizar o passado colonial, é toda ela
protagonizada por personagens que fertilizam a memória so-
cial com a sua experiência individual, com as suas percepções e
interpretações mais subjectivas do mundo social circundante e
em transição. De facto, a transição, quer política, social, econó-
mica, cultural, quer humana, nas diegeses de JPBC, assume-se
como um elo de contrastes, de sinais que projectam, claramente,
a posição epistemológica deste escritor, precisamente no que
diz respeito à denúncia de uma tentativa política de estabelecer
uma ruptura cronológica, social, mental e política entre os tem-
134 Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008
Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho

pos colonial e pós-colonial. Tais cortes resultam de estratégias


políticas que, no entender do ficcionista, faz do entendimento
do presente algo vulnerável, propondo como que uma visão
míope do mosaico histórico moçambicano, nas suas perspectivas
diacrónica e sincrónica. Isto se dá porque, segundo João Paulo
Borges Coelho, o prefixo pós – ou, por outras palavras, a ruptura
com o tempo colonial – relega para segundo plano momentos
imprescindíveis para se documentar, de um modo justo e perti-
nente, a narrativa histórica da nação moçambicana, já que, nesse
rasurar, se perde o conteúdo verdadeiro e essencial da memória
social, especialmente na geração moçambicana mais jovem.
Esta, como se sabe, não viveu a experiência directa e imediata
da guerra colonial e, portanto, para ela não faz sentido falar-se
de um pós-, mas de um constructo histórico em evolução. Nas
palavras do escritor, surge clara a intersecção entre a memória
social e o apagamento ou esquecimento, estratégico e político,
desse outro tempo colonial, que é premente não esquecer, apagar
ou sonegar, mas, bem pelo contrário, respirar. Diz ele:
Para mim, é chocante a ruptura que a independência operou,
é um bocado chocante esta postura da tábua rasa. Há aqui um
processo que é perverso, e eu não culpo, não se trata de culpar
a FRELIMO nisso, trata-se de tentar entender, porque a questão
da memória interessa-me do ponto de vista literário, enquanto
produtor, do ponto de vista histórico, enquanto historiador.
(KHAN, 2007, p. 3)
Nos romances de João Paulo Borges Coelho, existe uma
preocupação visível e precisa em desconstruir a memória co-
lectiva e social, proposta pelo Poder como uma meta-narrativa
da História, partindo de um princípio ético de que outras me-
mórias existem, e que fazem parte de um cotidiano presente
do país. Contudo, ao discutir sobre esta questão polémica da
não-memória social relativa a determinados ciclos, ou contextos
históricos, JPBC é acutilante ao demonstrar os riscos, os perigos, e
os “pontos cegos” (MEDEIROS, 2007) da paisagística mnemónica
social da nova geração, e de todos aqueles indivíduos que não
tiveram a experiência imediata ou directa da luta de libertação,
realçando que:
Portanto, aqui não há cinzentos, isto é tudo um elo de contras-
tes, o passado colonial não existe, existe nas zonas libertadas,
que a FRELIMO traz para dentro. Agora, se nós olharmos de
uma outra perspectiva, oitenta por cento ou mais da população
moçambicana, em 75, não tinha experiência direta da guerra,
a guerra estava confinada às zonas do norte. Há aqui oitenta
por cento de moçambicanos que ficaram sem passado, porque
o passado não existe. […] grande parte dos meus alunos já não
tem experiência colonial, e pior do que isso, não tem experi-
ência e não tem memória social, no sentido não da memória
directa, mas da memória colectiva. (KHAN, 2007, p. 4)

Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008 135


Gragoatá Sheila Kahn

Ao alertarem o leitor para este mar morto de memórias que


se apagam, ou que política e estrategicamente são silenciadas,
os universos narrativos de JPBC reencaminham a leitura para
um espaço aberto, no qual emoções, sentimentos, introspecções
dos personagens servem como ponte para realizar aquilo que
o escritor tão esmeradamente descreve em Crónica da Rua 513.2:
“essa louca ponte entre mundos diferentes, entre passado e
presente, entre intenção e acção, entre sonho e padecimento até
– uma forma sagaz de nos levar a desnudar o verdadeiro sentido
das coisas […]” (COELHO, 2006, p. 15). Passemos, então, a esse
“desnudar”, esse “respirar” do sentido não somente das “coisas”,
mas do dicionário das narrativas, dos rostos e das manifestações
do pós-colonialismo moçambicano nos romances de João Paulo
Borges Coelho.
2. Uma narrativa de memórias e reminiscências – Diálogo
3
Esta expressão foi ins-
pirada num poema de com As visitas do Dr. Valdez
António Ramos Rosa
que, no meu entender, Diz Nélida Pinõn que sem as narrativas, ainda que estas
merece ser, aqui, par-
cialmente, citado, isto sejam romanceadas ou ficcionalizadas, “talvez, não soubésse-
pela empática relação mos contar a nossa própria história” (apud VASCONCELOS,
que este poema estabe-
lece com os romances 2005, p. 16-18). Ao mergulharmos no romance As visitas do Dr
de JPBC, que são tam-
bém eles narrativas dos Valdez vem à pele da nossa leitura e dos nossos sentidos toda
rostos e manifestações uma arquitectura cujos pilares se reforçam por uma procura
dos homens e mulheres
‘calados’ na Histórica de de subjectividades, de vozes próprias e mesmo de um indivi-
Moçambique, mas, que
nem por isso deixaram
dualismo que não abdica do histórico, pois os contextos sociais,
de ter a sua marca, a sua culturais e políticos não têm como ser arrancados da diegese.
presença, ainda que dis-
creta, na vida da nação Neste trajecto literário proposto por João Paulo Borges Coelho,
moçambicana: visualiza-se aquilo que ele bem sublinhou, e já aqui citado, ou
“A pátria é a fantasia
de pura verdade/ seja, a necessidade urgente de se criar um espaço aberto para a
Ela não existe é a cons-
ciência viva/
realização de uma modernidade do Homem africano que ainda
e se tem um corpo está por se fazer. Uma modernidade que esteja disposta a “falar
é um corpo que se
levanta/ de presentes, de condições, e de indivíduos” (KHAN, 2007, p. 1),
como um volume sobre e que não afogue estas narrativas subjectivas num todo colectivo
a sua vontade de cons-
truir o mundo/ histórico e meta-narrativo. Esta reflexão de JPBC aproxima-se
Quem a constrói são
os que estão calados
de uma outra semelhante proposta pelo historiador José Sobral,
[sublinhado meu]/ quando este último alerta para a gritante existência de uma
ou que só dizem as
palavras essenciais/ hegemonia da memória oficial sobre a memória não oficial, já
São eles os constru-
tores da consciência
que esta não se alicerça em qualquer tipo de testemunho escrito,
livre/ estruturando-se tão somente na oralidade partilhada e transmi-
e do claro espaço
da pátria soberana” tida entre gerações. Segundo o historiador, o silêncio da História
(ROSA, 2001, p. 15). “tradicional”, isto é, da História “calada”3 expressa-se
4
Veja-se sobre este apa-
gamento da memória, exclusivamente ou quase pela via oral e, na ausência de registo
ou, a insuficiência dela,
o brilhante ensaio de
imperecível, as suas recordações [isto é, as dos indivíduos] aca-
Irene Pimentel, sob o bam por se desvanecer.4 […] o passado de muitos transforma-
título “A memória pú- se em números, importantes, sem dúvida, mas sem as ideias
blica da ditadura e da
repressão’ (PIMENTEL, ou sentimentos que o povoaram quando ainda era presente.
2007, p. 3). (SOBRAL, 2007, p. 2)

136 Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008


Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho

Em As visitas do Dr. Valdez, João Paulo Borges Coelho par-


tilha com o leitor a vida de três personagens, Sá Caetana – A
Senhora Grande –; Sá Amélia – Maméia – e Vicente, o criado
destas duas irmãs, deslocando-se dos seus centros vivenciais – a
Ilha do Ibo e o Mucojo – para retomarem as suas trajectórias na
cidade da Beira, porque os tempos são, agora, outros. Tempos
de transição, de uma futura pátria moçambicana que pugna
para se libertar do colonialismo português. É curioso que, ao
longo da entrevista realizada, JPBC tenha salientado que este
seu romance foi um modo de “respirar” e “tentar lidar com essa
transição”, de modo a demonstrar que “que se carregava muito
do que vem detrás” (KHAN, 2007, p.4). Este romance fala, isso
sim, das memórias, introspecções, trajectórias de vida, de nar-
rativas de personagens que têm como base vidas verdadeiras e
que desestabilizam o repertório de um colectivo mostrado como
passivo e estacionário.
O percurso diegético do romance apresenta-nos duas
personagens ancoradas a um passado colonial – Sá Caetana e
Sá Amélia – que vêem perfilar-se à sua frente uma nova língua
sobre o mundo da vida. Sá Caetana, de personalidade forte e
autoritária, ergue, no desconhecido universo da cidade da Beira,
uma luta silenciosa contra este presente onde já não existe “o
mundo velho” (COELHO, 2004, p. 204), no qual as “hierarquias
velhas de muitos anos, que pareciam de pedra e cal” (COELHO,
2004, p. 70), não “passavam afinal de pequenos acasos transitó-
rios dentro dos quais não cabia o menor vislumbre de lealdade
ou reconhecimento” (COELHO, 2004, p. 70). Sá Caetana dedica
os seus dias a cuidar da saúde frágil de sua irmã, Sá Amélia,
cuja existência inexistente é vivida num sobressalto constante e
quotidiano de reminiscências do que, em outrora distante, foi um
passado guarnecido de memórias lúcidas e palpáveis. Sá Amélia
é já uma habitante de um mundo interior em que os tempos se
confundem e se esbatem simultaneamente. Facto curioso é que a
diegese mostra ao leitor a natureza ambivalente da jovialidade e
ternura do jovem criado Vicente. Se, por um lado, a jovialidade de
Vicente desafia o “mundo velho” destas duas senhoras, por outro,
é através da sua rebeldia que o jovem criado apóia Sá Caetana,
na intenção que ambos têm de trazer do passado o falecido Dr.
Valdez, pois ambos acreditam que Sá Amélia recuperará alguma
da sua tranquilidade, porque o passado, explica-nos o narrador
omnisciente, “apresenta sempre essa vantagem sobre o presente.
Por mais exíguo e infeliz, podemos sempre aclará-lo com a aura
que quisermos. E esse desejo é tanto mais intenso quanto pior
for o presente em que vivemos” (COELHO, 2004, p. 33).
Numa procura de vestir a pele desta presença humana,
Vicente vai reavivando um tempo humano, emocional e sub-
jectivo já pretérito, através da reconstrução física e psicológica
deste mesmo Valdez, ser que volta do antigamente.
Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008 137
Gragoatá Sheila Kahn

Outrora médico de Sá Amélia, Valdez permite aos três


personagens uma viagem, cujo itinerário será realizado como
o folhear de um álbum de família. Emerge, deste retorno ao
mundo das memórias, um baú repleto de emoções, sentimentos,
dúvidas, perguntas em busca de explicações que o tempo ido dos
antigos vivos não pôde responder. Apesar do esforço de Vicente,
Sá Amélia apercebe-se que já não possui um chão dentro e fora
de si, ao intuir que, afinal, Vicente e o Dr. Valdez são a mesma
pessoa. Placidamente, reconhece que a narração de si se esgotou,
pois calam-se nela as vozes que a guiaram ao longo da sua vida:
por um lado, a do corpo físico na sua relação com o mundo dos
objectos e, por outro, a dos sentimentos – testemunhos mnemó-
nicos das suas lembranças. No final da narrativa, dois destinos se
dão a conhecer. Porquê dois destinos? Sá Amélia morre. Vicente
acolhe na sua trajectória feita de experiências passadas e presen-
tes esse novo mundo, que Sá Caetana rejeita, ao optar por tomar
“conta do passado” (COELHO, 2004, p. 98), desse passado que a
impele a resistir até ao fim. O seu mundo, “esse grande mundo
protector” (COELHO, 2004, p. 43), desabou e, no lugar daquele,
instalou-se um outro “mais pequeno, feito de fragmentos mal
ligados, de pequenos sentidos separados entre si por um grande
vazio” (COELHO, 2004, p. 43-44). Para Sá Caetana, o confronto
com o seu processo de desterritorialização cultural, identitária
e física torna-se inevitável, porque diz ela: “pertencemos ao
mundo velho, não temos o vigor do novo” (COELHO, 2004, p.
204). Desta opção de resguardar este “mundo velho” nasce o
projecto da partida, porque, assim, pode proteger-se do esque-
cimento de si. Sá Caetana parte para Portugal, um lugar que
a voz do futuro lhe adverte ser vivencialmente estranho, pois,
no fim, questiona-se: “será que há cardamomo em Portugal?”
(COELHO, 2004, p. 213).
3. Toponímia de uma memória
silenciosa – Crónica da Rua 513.2
Crónica da Rua 513.2 de João Paulo Borges Coelho, oferece
ao leitor uma escrita analítica, íntima e profundamente conhe-
cedora dos meandros subjectivos de um novo mapeamento
social, cultural, económico e político que emerge no Moçam-
bique pós-independência. Dessa realidade transportada para a
escrita, resulta uma representação literária debruçada sobre a
experiência daqueles homens e mulheres que testemunharam
a cartografia quer objectiva, quer subjectiva deste novo projecto
de construção da nova sociedade moçambicana pós-colonial. Na
entrevista, o escritor revela seu pertencimento a esta realidade
por ele ficcionada:
Aquela história [refere-se à rua que serve de toponímia da
sua narrativa] nasceu na minha rua. É o meu lugar, eles eram
os meus vizinhos, muitos deles são vizinhos inventados, mas

138 Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008


Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho

não deixam de ser meus vizinhos, também, não é? Há vizi-


nhos reais, pronto, que deram […] foram o ponto de partida
para vizinhos recriados, inventados. E, portanto, aqueles...
era tudo a minha gente, gente do outro lado da rua, ou que eu
via, ou que eu imaginava. Portanto, aquilo corresponde a um
ciclo que é um pouco o ciclo do socialismo […], e as pessoas
viveram aquele ciclo, depois saíram, saíram quando as coisas
começaram a mudar […], elas deixaram cheiros e sombras […].
(KHAN, 2007, p. 2-3)
Os ciclos de que fala a Crónica de JPBC confirma, de uma
certa maneira, a reflexão que o escritor tanto quis propor e
reivindicar, através, da sua invenção literária, que passa, como
asseverou, “por uma discussão profunda do papel do indivíduo
africano” (KHAN, 2007, p. 1). Desta discussão, ou do mergulho
nas subjectividades dos que “deixaram cheiros e sombras” surge
um compósito narrativo, no qual exercita-se, com um ímpar co-
nhecimento, a narrativa histórica e cotidiana de uma rua, de uma
toponímia dialogante entre um passado colonial e um presente
moçambicanizando-se na sua independência. Esta Rua 513.2 é a
morada conturbada, confusa, enfim, o universo dos personagens
que se cruzam no tempo, no espaço: uns oriundos dos mundos
da diferença racial, social e cultural, que o regime colonial
português semeou nos tempos de uma vicejante imaginação
imperial, ancorada à “cultura dos lugares certos” (COELHO,
2006, p. 327) – o Inspector Monteiro, o Doutor Pestana, a Dona
Aurora –, e outros, que, abraçando-se à euforia desta nova e jo-
vem liberdade, renunciam à antiga linguagem da discriminação
e da anulação do Outro, ao exigir desta nova ordem vivencial a
igualdade entre todos – Filimone Tembe, secretário do Partido
Frelimo e sua mulher Elisa, os Ferrazes, os Mbeves, os Nhan-
tumbos, os Nhanrreluga. A Rua 513.2 é, também, a narrativa da
memória do quotidiano, das angústias, das frustrações, o lugar
do não-dito, a voz do
contraponto à memória oficial […] que traz à superfície ou-
tras recordações, diferentes ou mesmo contraditórias com a
memória pública […] [ que] complementa e completa as fontes
escritas, quando traz o vivido dos actores sociais à represen-
tação do passado. (SOBRAL, 2007, p. 1-2)
No fundo, este romance serve como registo sociológico,
antropológico e psicológico, para se entender como foi sentida,
por muitos, quer portugueses, quer moçambicanos, a determi-
nação de um povo em ser livre, pois “uns perdiam-se de raiva
nesses tempos conturbados, como o Inspector Monteiro e os
seus sequazes; a outros – de facto a quase todos – foi a alegria da
liberdade que os motivou […]” (SOBRAL, 2007, p. 123). Relembre-
se, ao longo desta Crónica, as quezílias entre passado-colonial
e o presente-independente, nas figuras do antigo Inspector da
Pide, o Monteiro, e Filimone Tembe, secretário do Partido da
Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008 139
Gragoatá Sheila Kahn

FRELIMO. João Paulo Borges Coelho, esculpe, minuciosamente,


uma escrita omnipresente, ao desnudar esta ponte diacrónica -
que muitos pretendem esquecer – com o intuito de “desnudar o
verdadeiro sentido” (COELHO, 2006, p. 160) da história subjec-
tiva de cada moçambicano e moçambicana, pois “os tempos que
correm também não ajudam, cada vez mais a revolução tirando
espaço às alegrias de cada um para poder espraiar uma alegria
só, imensa e colectiva” (COELHO, 2006, p. 145). De facto, ao ca-
minhar em paralelo com a trajectória de vida e de identidade
de cada personagem, o escritor-historiador prolonga a textura
da narrativa, dirigindo-nos para conteúdos constituídos não só
de relevantes observações etnográficas, mas, simultaneamente,
de atentos momentos de reflexão sobre o que foi a utopia da
Revolução Moçambicana. Enfim, ao compor a sua escrita, com
tecidos de universos humanos tão próximos de uma visualiza-
ção histórica – “a narrativa visual e auditiva das sombras” de
que nos fala José Júnior (2000, p. 31) –, e palpável dos tempos do
pós-independência, o autor consegue recriar, exumar, e “respirar”
o silêncio vegetal a que foi votada esta nação em busca de uma
“enganadora luminosidade” (SOUSA JÚNIOR, p. 230). Lumino-
sidade que, novamente, é desconstruída, desafiada e cicatrizada
no novo e mais recente romance de João Paulo Borges Coelho,
Campo de trânsito (2007).
4. Cicatrizes, ruínas e exílios
em tempos de transição – Campo de trânsito
Campo de trânsito representa, no meu entender, o romance
mais árido de JPBC, pois nele se retece uma personalidade li-
terariamente kafkiana. Assim, permanece, neste novo projecto
narrativo, um sabor amargo a cicatrizes, ruínas, desterros e
exílios, quer territorial, quer identitariamente. No final da nossa
conversa-entrevista questiono João Paulo Borges Coelho:
Vamos dar um salto para o ‘Campo de Trânsito’. Sinto que
estou na presença de um sonho não cumprido, […], porque
o ‘Campo de Trânsito’ parece-me o Niassa, um campo de
re-educação, o pós-independência?Quer dizer, havia, por um
lado, a necessidade de uma submissão colectiva, mas também,
havia uma ignorância em se estar a perceber o que é que se
passa, que aparece logo nas primeiras falas do teu personagem
Mungau.5
A resposta de JPBC é visivelmente lúcida quanto à sua
vontade de imparcialidade política e ideológica, ao referir que
não me interessa estabelecer um diálogo de base política, ou
acusando o poder […]. Eu quero, talvez, numa posição filosó-
5
Transcrição das pala-
vras da autora do pre- fica, ver ‘o que é que nós criámos aqui dentro?’; ‘o que é que
sente artigo (KAHN, nós pensávamos fazer?’, ‘o que é que nós fizemos?’ (KHAN,
2007, p. 6). 2007, p. 6)

140 Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008


Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho

Estas são, na realidade, respostas que Mungau, personagem


principal do romance, procura subjectivamente responder, ao
longo da diegese, questionando-se da sua captura em sua casa,
do porquê desse rapto e dessa forçada desterritorialização do
seu espaço citadino, ao formular para si próprio, no decurso
das primeiras páginas, a seguinte interrogação: “De que será
que me acusam?” (2007, p. 14). Repetidamente, a mesma questão
emerge nas páginas 15, 18,19 e 20 do romance. O lugar para o
qual o personagem é transportado, no entender de JPBC, “é o
Niassa e não é o Niassa, são os campos de reeducação. Porque,
no fundo, é uma questão que eu volto a dizer que não planiei,
mas é esta questão do indivíduo – como é que uma pessoa se
afirma individualmente?” (KAHN, 2007, p. 6).
Campo de trânsito, desse modo, ficcionaliza o mundo e a
experiência de um campo de reeducação, metonímia de uma
nação a construir-se numa bifurcação perigosa e nebulosa para
os seus cidadãos. Por um lado, encontramos, atravessando todo
o texto, um desejo visceral de defesa da modernidade colectiva,
representada por um proselitismo de prisioneiros, guardas e do
Director do campo, para os quais a colectividade é uma fron-
teira humana, ideológica e política, face a todo e qualquer acto
de singularidade ou, por outras palavras, de subjectividade que
almeje “hostilizar” o espaço sufocante e inóspito do “campo de
trânsito”. Este ensejo de modernidade colectiva é, simultaneamen-
te, escutada na pele e voz do Professor e do seu prosélito – vulgo
prisioneiro 13.2 - deste campo de reeducação. Na realidade, ao
menosprezar a posição filosófica do prisioneiro Mungau, segun-
do o qual “a colectividade é um corpo só, um corpo que resulta
da união de várias singularidades” (KAHN, 2007, p. 75, grifos nos-
sos), quer o Professor, quer o prisioneiro vulgo 13.2 estruturam
a leitura deste mundo fechado em si, do seguinte modo:
Segue-se uma expulsão de gargalhadas. “A singularidade é
uma categoria forçosamente limitada”, diz 13.2. “Portanto, uma
união simples de singularidades só poderia resultar numa
singularidade que, embora maior, continuaria a ser também
ela limitada. Na definição do colega falta um aspecto fundamental,
que é o da transformação. Uma colectividade é, isso sim, uma união
de singularidades transformadas!”.

“Muito bem, 13.2. Transformadas! Boa definição de colectivida-


de”, diz o Professor. “O grave erro em que muitos incorrem é o de
manter invariável a singularidade, o de adicionar palavras que não
têm um denominador comum”.

Dizendo isto, o Professor estica um pauzinho de giz de cada


mão, para concluir: “Está errado, nada há em comum entre
o dedo de uma mão e o dedo da outra!”. Depois, estica dois
pauzinhos de giz da mesma mão e grita: “Só assim está certo,
só assim temos uma colectividade! Dedos da mesma mão, sin-

Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008 141


Gragoatá Sheila Kahn

gularidades tornadas iguais e erguidas a uma só voz!”. (COELHO,


2007, p. 76, grifos nossos)6
Por outro lado, ganha corpo a luta entre dois paradigmas
ontológicos, no qual se espraiam, como inimigos, duas partes.
Uma, definida por uma modernidade em que o passado da
tradição, da África dos antepassados é relegada para segundo
plano e para a qual a construção do presente deve ser encarada
de acordo com as necessidades de um projecto meta-político,
que é premente criar, como assevera o Professor deste campo de
reeducação, “singularidades tornadas iguais e erguidas a uma
só voz!” (COELHO, 2007, p. 76). Uma outra parte, sua adversária,
para a qual o cumprimento da identidade cultural e nacional
deve voltar-se para a revitalização da tradição, a valorização e
respeito incontestáveis do passado, do antigamente, venerados
pela personagem do Chefe da Aldeia – coordenador de um ou-
tro campo de reeducação, o “campo antigo” –, segundo o qual a
essência de África, ou, por outras palavras, da sua África sub-
jectiva e existencial passa por um “descascar” do “grande fruto
que habitamos, avançando camada a camada, pele a pele, com
o fito de chegar ao grande caroço interior, a explicação de todas
as coisas” (COELHO, 2007, p. 96). Na sua obstinada vontade de
exumar o passado ancião dos grandes chefes, este personagem,
o mais madala – que significa o mais velho –, ergue-se contra a
modernidade colectiva proposta pelo Director do “campo de trânsi-
to” e, desse modo, aponta toda a sua vigorosa fé para uma busca
desenfreada da arqueologia do saber africano, em contraponto
à qual as lembranças dos prisioneiros torna-se malévola, inútil.
Atentemos à sua peroração sobre a tradição e memória:
“Tens de aprender a distinguir lembrança de tradição, Pri-
sioneiro”, diz. “Ambas dependem da memória mas são in-
teiramente diferentes. Enquanto a lembrança é um exercício
individual e rebelde, fútil e pouco produtivo, a tradição é
fruto da ordem. Estes prisioneiros chegaram aqui com as suas
privadas e desprezíveis lembranças. Acusavam as autoridades
de acontecimentos antigos, acontecimentos dispersos que
6
Veja-se página 140, hoje não fazem qualquer sentido. Aos poucos, contudo, vão
onde se descreve a ne- chegando à tradição, a este sentido supremo que é sabermos
cessidade de sacrificar
a singularidade pela co-
todos de onde vimos, esta certeza de virmos todos do mesmo
lectividade: “O Director lugar. E sobretudo, esta vontade de fazermos hoje como foi
[o director do campo de
reeducação] sorri amar-
feito antigamente”. (COELHO, 2007, p. 102)7
gamente. ‘Infelizmente
não podíamos fazê-lo sem Contudo, é este sentido supremo de que nos fala, veemen-
fragilizar a nossa própria
posição, 15.6. Como o
temente, o Chefe da Aldeia do antigo campo de reeducação, que
saberíamos? Como deve conduz a uma posição crítica de JPBC, relativamente à urgência
compreender, por vezes é
inevitável sacrificar a sin-
de uma denúncia à constante necessidade de se procurarem as
gularidade para proteger origens, de pesquisar-se e transformar-se o continente africano
a colectividade’” (COE-
LHO, 2007, p. 140). numa África-museu, soterrada em ligações genealógicas. Este
7
Confronte-se, ainda gesto de denunciar, quer a modernidade colectiva, quer a sub-
neste sentido, a página
103.
missão cega à tradição, vem à superfície da diegese, quando

142 Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008


Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho

Mungau, protagonista deste romance, observa que, em nenhum


dos dois campos, o colectivo é estruturado ou pensado em fun-
ção de uma humanidade mais justa e equitativa, pois assevera,
no seu solilóquio, que: o tão almejado colectivo não passa afinal
de um somatório, já não de singularidades mas de fragmentos
dessas mesmas singularidades […]. murmura com ironia. ‘Diria
mesmo, decepadas [...]’ (COELHO, 2007, p. 203).
No fundo, retornamos às questões postas por João Paulo
Borges Coelho, e que volto a reiterar: “o que é que nós criámos
aqui dentro?; o que é que nós pensávamos fazer?; o que é que
nós fizemos?” (COELHO, 2007, p. 6), às quais Mungau responde
ficcionalmente, ao murmurar “singularidades … decepadas”
(COELHO, 2007, p. 203).
5. Conclusão: Os romances de
João Paulo Borges Coelho – “Ética, e cidadania”8
A respiração da paisagem, dos cheiros, das sombras, dos ci-
clos e dos personagens nos romances de JPBC deixam resquícios
de um ensejo de caminhar, incansavelmente, para dentro deste
projecto proposto pelo escritor, através do qual ergue-se soberana
uma voz própria que procura escutar o outro-semelhante, não
somente encurralado por uma arquitectura meta-histórica, e on-
tológica, mas, pelo contrário, por uma vontade sã em devolver ao
individualismo de cada um a oportunidade de fazer com este a
história dos “calados”, em que o verbo contemporizar seja sempre
conjugado, porque, como confessa João Paulo Borges Coelho, “há
que acreditar nos outros, como te dizia, é uma questão ética, é
uma questão de cidadania” (COELHO, 2007, p. 7).

Abstract
Postcolonialism of Portuguese expression and
language has been approached as an hegemonic
element in the thoughts and ideas between the
various former Portuguese colonies in Africa.
However, we must be careful, when thinking
about the post-colonial condition in an epistemo-
logical way, to equate, in a contextualized way,
the cultural loci, the idiosyncratic aspects, and
the historical and social conditions of the object
of study. I intend to defy previous hegemony with
this present work, proposing instead that there is,
undoubtedly, a Mozambican post-colonialism,
even if it is expressed in the Portuguese language.
My attempt to break boundaries, to compile and
analyse narratives, memories and manifestations
of negotiating a Mozambican post-coloniality can
8
Kahn (2007, p. 7). be captured through the Mozambican author João

Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008 143


Gragoatá Sheila Kahn

Paulo Borges Coelho, namely through the novels


As visitas do Dr Valdez, Crónica da Rua
513.2, and, more recently, Campo de trânsito.
Departing from a contextualised reading and
analysis, it thus remains for us to reflect on how
and what fissures, margins, memories and faces
have emerged from a Mozambique that searches
for its nation, dreamt up and longed-for by the
poet José Craveirinha.
Keywords: Memory. Narrative. Postcolonialis-
ms. History and fiction.

Referências
COELHO, João Paulo Borges. As visitas do Dr Valdez. Lisboa:
Caminho, 2004.
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História: questões críticas. In: BOËCHAT, Maria Cecília Bru-
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FALE/UFMG, 2000. p. 27-44.
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romance. Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, ano 25, n. 915, p.
16-18, out./ nov. 2005.

144 Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008


O papel das línguas africanas
na formação do português brasileiro:
(mais) pistas para uma nova
agenda de pesquisa
Charlotte Galves
Recebido 10 mar. 2008 / Aprovado 27 abr. 2008

Resumo
Este artigo levanta a questão do papel das línguas
africanas na formação do português brasileiro.
Mostra como trabalhos recentes sobre o portu-
guês falado, na África, como segunda língua, e
a comparação de várias das suas características
morfossintáticas, com a sintaxe das línguas ban-
tu, sustentam empiricamente a tese da influência
destas sobre o desenvolvimento do português do
Brasil, uma vez que ele apresenta estas mesmas
características. Argumenta que estas análises
fornecem pistas para estudar o desenvolvimento
histórico do português na África e no Brasil,
usando textos escritos nessa língua por africanos.
Enfim, traz alguns argumentos contra a hipótese
da deriva.
Palavras-chave: Formação do português bra-
sileiro. Português africano. Contato lingüístico.
Deriva lingüística. Línguas crioulas

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008


Gragoatá Charlotte Galves

Este artigo não pretende trazer uma contribuição original


à questão do papel das línguas africanas na formação do portu-
guês brasileiro. O que pretende fazer é sugerir pistas para uma
nova agenda de pesquisa, a partir de trabalhos recentes e da
releitura de textos mais antigos sobre o assunto, trazendo ainda
a notícia de novos corpora.
A proposta central deste trabalho é, seguindo um caminho
já apontado por Petter (no prelo), dar à descrição e análise da
constituição do português africano, em Moçambique e Angola,
um papel central na discussão. Com efeito, dada a semelhança
entre si por um lado, e com o português brasileiro por outro lado,
as variedades angolanas e moçambicanas podem nos ensinar
muito sobre como e porquê as línguas africanas interferiram na
evolução do português no Brasil.
A Seção I, intitulada “O ponto de partida”, propõe elemen-
tos de releitura do debate de mais de um século sobre a questão.
Na Seção II, “Novos caminhos e novas buscas”, a discussão dos
efeitos do contato entre as línguas africanas e o português se
organiza em torno das sub-seções II.1 “O português na África”,
II.2 “A fala dos africanos na história do Brasil” e II.3 “Uma escrita
em português na história da África”. A seção II.4 argumenta
contra a hipótese da deriva. Uma sessão final sintetiza as con-
clusões do trabalho.
I. O ponto de partida
Desde o séc. 19, a reflexão sobre o papel das línguas africa-
nas na formação do português brasileiro vem girando em torno
de dois pólos de atração que, conforme os autores, são conside-
rados como mutuamente exclusivos ou não. Um desses pólos
é a noção de crioulização, que atribui um papel determinante
ao contato com as línguas com as quais o português esteve em
contato no Brasil, predominantemente as africanas. O outro é a
noção de deriva lingüística, que minimiza o efeito do contato,
e insiste sobre tendências evolutivas já presentes na língua. Em
última instância, o debate gira em torno da dicotomia ruptura/
continuação em relação ao estágio anterior da língua.
Adolpho Coelho pode ser considerado como o marco
inicial dessa reflexão (cf. BAXTER; LUCCHESI, 1997). O nome
dele é freqüentemente associado à aproximação do português
brasileiro (doravante PB) às línguas crioulas, porque o inclui no
estudo de crioulos do português e de outras línguas românicas.
Como enfatizado por Tarallo (1993) isso não redunda, no seu
raciocínio, numa chave única de explicação para a evolução do
português no Brasil. Vejamos.
A partir da distinção entre evolução de base fisiológica, e
evolução de base psicológica, Adolpho Coelho nega a existência
de uma influência direta da língua anteriormente falada sobre
a língua adquirida:
146 Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008
O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa

A transformação da linguagem em virtude da alteração fonéti-


ca é um fenômeno de base fisiológica, a formação dos dialectos
crioulos é no que tem de essencial um fenômeno psicológico.
Formam-se eles rapidamente, para acudir à necessidade das
relações [...]. (COELHO, 1967, p. 104)
Também afirma que: “os dialetos românicos e crioulos,
indo-português e todas as formações semelhantes representam
o primeiro ou primeiros estádios na aquisição de uma língua
estrangeira por um povo que fala ou falou outra” (COELHO,
1967, p. 102). E continua:
Os factos acumulados por nós mostram à evidência que os
caracteres essenciais desses dialectos são por toda a parte os
mesmos, apesar das diferenças de raça, de clima, das distân-
cias geográficas e ainda dos tempos. É em vão que se buscará,
por exemplo, no indo-português uma influência qualquer do
tamul ou do cingalês. (COELHO, 1967, p. 105-106)
Isso vai levá-lo à idéia de que os crioulos seguem leis gerais
no seu desenvolvimento, explicando assim que os fenômenos
observados nessas línguas não são isolados, mas se encontram
também em dados de aquisição e em desenvolvimentos diale-
tais na própria Europa – “A preferência dada nesses dialetos
aos pronomes regimes, que vêm ocupar o lugar dos pronomes
sujeitos, encontra-se entre nós no falar das crianças e tem grande
extensão nas frases populares das nossas línguas européias”
(COELHO, 1967, p. 107).
Coelho tem também um olhar aberto sobre a situação do
português no Brasil, que não privilegia interpretações sobre
outras, mas abarca a complexidade das situações e das histórias
que produzem uma variação, diga-se de passagem, possivel-
mente mais fortemente perceptível no final do séc. 19 do que
no início do 21.
A linguagem brasileira, pelas condições de sua existência e de-
senvolvimento, apresenta naturalmente uma tão grande série
de gradações desde a boca do culto até a do último matuto,
que qualquer afirmação com respeito às interrogações que faço
acima corre o risco de ser pelo menos em grande parte falsa.
(COELHO, 1967, p. 162)
Achamos, nos excertos acima, uma concepção que prefi-
gura vários aspectos do pensamento moderno sobre o assunto,
a saber:
– A idéia de que o que caracteriza as línguas crioulas é “a
ação de leis psicológicas gerais” anuncia a teoria desenvolvida
por Bickerton,1 que vê nos crioulos o efeito da gramática uni-
versal.
– Já que essas leis ‘psicológicas’ são gerais, elas transpare-
cem em outras línguas e dialetos também. Desse ponto de vista,
1
Cf. por exemplo Bicker-
a diferença fundamental está no processo, não no produto. Essa
ton (1981) concepção permite articular, na reflexão, dois tipos de afirmações
Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008 147
Gragoatá Charlotte Galves

que têm sido consideradas como antagônicas por outros autores:


há, sim, ‘tendências crioulizantes’ no português do Brasil, mas o
que elas produzem pode-se encontrar também em dialetos que
não passaram pelo mesmo processo.
– A particularidade dos crioulos é que eles cristalizam o
estágio inicial da aprendizagem da língua de um povo por outro
povo. O motor essencial na formação dos crioulos é a transmis-
são imperfeita. Essa afirmação traz em germe uma das idéias
essenciais das recentes teorias sobre a crioulização: resultado de
uma aquisição imperfeita, ela não representa uma diferença de
natureza, mas de grau, com outras situações de mudança, menos
‘catastróficas’, provocadas pelo contato lingüístico.
Como sói acontecer com os precursores, haverá uma longa
demora para que esses aspectos mais complexos e sutis do pen-
samento de Coelho encontrem eco nos seus seguidores. De fato,
o que chama a atenção, nas gerações seguintes de pensadores,
é um engessamento das posições. O que será retomado do pen-
samento de Coelho, de maneira dicotômica, e muito permeada
de ideologia, será a questão da influência direta das línguas
africanas ou ameríndias (mas não tocaremos neste assunto aqui)
na constituição do português brasileiro.
Assim, é com bastante veemência que Silva Neto (1950) se
insurge contra os estudos que afirmam, sem base advinda “da
cultura lingüística e românica”, a influência das línguas africanas
sobre o português do Brasil. E conclui:
No português não há, positivamente, influência de línguas
africanas ou ameríndias. O que há é cicatrizes da tosca apren-
dizagem que da língua portuguesa, por causa de sua mísera
condição social, fizeram os negros e os índios. (SILVA NETO,
1950, p. 97)
Nas últimas décadas, os quadros teóricos evoluíram e se
tornaram mais explícitos, mas o debate continua polarizado.
Alguns pesquisadores argumentam que há, na formação do
português popular brasileiro, um processo de crioulização, ou
de crioulização leve ou de semi-crioulização (cf. BAXTER; LUC-
CHESI, 1997, e as referências aí citadas). Todos esses termos fazem
referência a um efeito, senão das línguas africanas, ao menos do
contato lingüístico, sobre a estrutura da língua.
Opõem-se a essa corrente os trabalhos de Anthony Naro e
Marta Scherre, recentemente reunidos em Naro & Scherre (2007).
Para eles o motor da mudança não é o contato, mas a própria
deriva da língua. A introdução do livro de 2007 apresenta assim
a sua hipótese central:
O conteúdo deste livro tem uma linha mestra clara: apresentar
evidências de que características morfossintáticas e fonológi-
cas do português brasileiro, atualmente envoltas em estigma
e preconceito social, são heranças românicas e portuguesas
arcaicas e clássicas, e não modificações mais recentes advin-

148 Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008


O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa

das das línguas africanas, que vieram para o Brasil com seus
povos escravizados e subjugados, ou das línguas dos povos
ameríndios, que aqui já se encontravam quando vieram os
colonizadores europeus. Tampouco são o resultado de pro-
cessos de simplificação ou outras modificações espontâneas
causadas pelo contato, durante o processo de transmissão não
tradicional da língua. (NARO; SCHERRE, 2007, p. 17)
Em vários outros trechos do livro, encontramos fortemente
reiterada a rejeição das teses crioulistas e a afirmação da herança
lusitana:
O uso do termo ‘crioulização’ no Brasil é um equívoco, uma vez
que não é possível haver associação do processo com qualquer
grupo de substrato particular que pudesse ter influenciado de
forma consistente a língua que estava em processo de evolu-
ção... Ainda não conseguimos identificar nenhuma caracterís-
tica do português do Brasil que não tenha um ancestral claro
em Portugal. (NARO; SCHERRE, 2007, p. 67-68)
Discutiremos mais em detalhe a proposta de Naro e
Scherre na Seção II.4. Note-se desde já que, contrariamente à de
Coelho, a análise que eles apresentam é baseada no pressupos-
to de incompatibilidade definitiva entre a existência de efeitos
lingüísticos do contato e a presença de traços atribuíveis à de-
riva própria à língua. Como ressaltamos acima, a reconciliação
entre esses dois efeitos só é possível num quadro que integra de
alguma maneira a ação de processos universais de linguagem,
seja qual for sua formulação exata. Esse ponto será crucial no
desenvolvimento de novas propostas, como veremos agora.
II. Novos caminhos e novas buscas
Na literatura das últimas décadas, as abordagens polari-
zadas das análises apresentadas acima vêm deixando lugar a
teorias que procuram integrar as diversas forças envolvidas no
processo de mudança devido ao contato, e reconhece um conti-
nuum entre os efeitos mais catastróficos – os pidgins e crioulos –
e as conseqüências menos gritantes – a constituição de vertentes
diferenciadas das línguas. Nas palavras de Inverno,
The broadening of pidgin and creole linguistics to contact
linguistics results form the general agreement today that the
origin and synchronic structure of pidgins and creoles can
only be fully understood from the perspective of a wider
theory of language contact. (2005, p. 51)
No Brasil encontramos a mesma tendência em considerar
que o fenômeno crucial é a transmissão lingüística irregular (cf.
LUCCHESI, 1999, 2003), que produz diferenças de grau mais do
que natureza em função dos contextos sócio-culturais em que
a aquisição se dá. Pagotto, retomando Tarallo, resume assim o
ponto em que nós estamos:
Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008 149
Gragoatá Charlotte Galves

No quadro atual dos estudos sobre a história do português do


Brasil, em que a história social tem sido recolocada como uma
preocupação central […] o papel do contato interlinguístico é de
fundamental importância, ainda que sobre ele só conheçamos
evidências indiretas. (2007, p. 468)
Dentro desse quadro conceitual mais amplo, convém agora
reunir fatos, que permitam elaborar uma teoria empiricamente
fundada da constituição do português brasileiro. Seguindo tri-
lhas evocadas – com um certo mau humor – por Silva Neto (1950),
e baseando-me em alguns trabalhos recentes que julgo terem
grande potencial explicativo, sugerirei agora algumas pistas
de pesquisa que acredito capazes de produzir uma sustentação
para uma teoria dessas.

1. O português na África
As descrições do português falado em Angola e Moçambi-
que (cf. CHAVAGNE 2005; INVERNO, 2005; GONÇALVES, 2004;
LABAN, 1999) apontam todas para uma grande semelhança nas
particularidades morfossintáticas do português africano (dora-
vante PA) e do PB. Isso inclui as propriedades listadas abaixo,
todas presentes nos diversos dialetos do português brasileiro,
embora com freqüências distintas para algumas delas:2
2
Seria muito longo men-
cionar todas as refe-
rências dos trabalhos • concordância nominal e verbal em número variável;
correspondentes sobre
o PB, e injusto citar só • confusão nas formas de 2a e 3a pessoa (seu/teu, te/
alguns. Só me referirei
aos trabalhos relativos você);
aos fenômenos ma is
especificamente discu- • uso do pronome tônico em posição objeto;
tidos.
3
Esses fenômenos se • colocação pré-verbal dos pronomes clíticos, inclusive em
encont ram todos em primeira posição absoluta;
Helvécia (cf. BAXTER;
LUCCHESI, 1997, p. 78).
Seg u ndo os autores,
• uso do pronome dativo ‘lhe’ em lugar do pronome acu-
trata-se de uma comu- sativo ‘o’;
nidade descendente de
iorubás e geges, portan- • uso da preposição ‘em’ em lugar de ‘a’ para o lugar para
to não bantus. Do ponto
de vista da hipótese da onde se vai;
interferência da língua
materna sobre a língua • mudança de regência de certos verbos (em particular
2, a semelhança com a
fala dos locutores mo- perda das preposições);
çambicanos tem várias
explicações possíveis: • uso de ‘dele’ em lugar de ‘seu’
existência de “falares
afro-brasileiros de base • posição pós-nominal do possessivo (sem efeito de foca-
bantu” (cf. PESSOA DE
CASTRO, 2008), ou in-
lização)
fluência de processos
similares em outros ra-
mos da macro-família Algumas outras características do PA foram documentadas
niger-congo. Neste caso
de novo, se torna impe- no PB, mas aparecem muito mais restritas a certas regiões, e em
rativo um estudo com-
parativo das línguas certos casos a comunidades isoladas de origem africana.3 Nessa
envolvidas. categoria, encontramos por exemplo:
150 Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008
O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa

• ausência de concordância de gênero


• forma invariável do verbo, inclusive na primeira pessoa
• ausência de artigo definido
• construções de duplo objeto4 (como em “ela deu o irmão
o retrato” em lugar de “ela deu o retrato ao irmão”; “per-
guntei o Pedro”, em lugar de “perguntei ao Pedro”)
• ausência da conjunção ‘que’ nas orações subordinadas.

A presença das línguas africanas em Angola e Moçambi-


que, predominantemente da família bantu, é uma obviedade.
Em Moçambique, segundo Gonçalves (2004, p. 230), somente
3% da população fala português como língua materna, e 40%
como segunda língua. Em Angola, Inverno (2005, p. 1) afirma
que o português é falado como língua materna por menos de
20 % da população. Configura-se, portanto, nesses dois países
uma situação de bilingüismo em que o português é língua se-
gunda para a maioria dos falantes. A questão que se coloca é
se os fenômenos do PA e do PB listados acima são resultados
da interferência das línguas africanas maternas dos falantes no
processo de aquisição. Se a resposta for positiva para os falantes
moçambicanos e angolanos, teremos razões fortes para propor
que o seja também para os falantes brasileiros.
Trabalhando no quadro do modelo de Princípios e Parâ-
metros da Teoria da Gramática Gerativa,5 Gonçalves (2004) e
Gonçalves e Chimbutane (2004) propõem uma análise precisa
de como se dá tal interferência. Uma noção essencial que esses
dois trabalhos desenvolvem é a de ambigüidade dos dados da
língua segunda em função da língua materna:
certas estruturas geradas pela gramática de uma dada língua
podem ser ambíguas apenas para os aprendentes dessa língua
como L2, devido à influência do conhecimento que já têm da
4
Exemplos retirados gramática da sua L1, i.e, a ambigüidade da L2 resulta da possi-
r e s p e c t iva m e nt e de
Scher (1996) e Baxter; bilidade de as evidências geradas pela sua gramática poderem
Lucchesi (1997). ser analisadas na base de propriedades gramaticais das L1s dos
5
A teoria de Princípios aprendentes. (GONÇALVES; CHIMBUTANE, 2004, p. 23)
e Parâmetros da Gramá-
tica Gerativa vê a aqui-
sição da língua materna
É o que acontece, segundo os autores, na aprendizagem da
como um processo de expressão do locativo em português. As línguas bantu diferem
fixação de parâmetros
binários. Desse ponto deste em dois aspectos: primeiro, elas têm um sufixo locativo,
de vista, a gramática de que apesar de poder ser traduzido pela preposição ‘em’, não é
uma língua dada cor-
responde a um conjunto uma preposição, o que faz com que a presença dessa partícula
de valores paramétricos.
Gonçalves (2004) e Gon-
não impeça que o nome a que está afixado continue desempe-
çalves & Chimbutane nhando funções típicas de sintagmas nominais, como sujeito. A
(2004) defendem uma
teoria da aquisição de segunda diferença é que as línguas bantu são distintas do por-
seg u nda l í ng ua que tuguês “no que se refere à codificação de percurso-direção: nas
consiste também na fi-
xação de valores para- LBs os verbos incorporam este elemento semântico, ao contrário
métricos. do que acontece no PE, onde este é expresso através de preposi-
Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008 151
Gragoatá Charlotte Galves

ções direcionais” (GONÇALVES; CHIMBUTANE, 2004, p. 23).


Ao aprender o português, a preposição ‘em’ é reanalisada pelos
falantes de línguas bantu como marca de locativo, e os verbos são
interpretados como tendo direcionalidade inerente. Segundo os
autores, isso explica enunciados como os seguintes, encontrados
em textos de jovens moçambicanos falantes de português como
língua segunda (op. cit. p.9):6

1. em casa dele é aqui em frente (= a casa dele é ..)


2. conheci em casa dele (= ... a casa dele)
3. voltou em casa (= para a casa)
4. vinham carros lá na escola (= lá à escola)
5. está a sair no estúdio (= ... do estúdio)
6. eu saiu lá no Xiquelene (= ...(de) lá do Xiquelene)

Essa análise recoloca numa luz totalmente nova os desvios


à norma ilustrados pelos dados acima. Em lugar de ver neles uma
aprendizagem errática das preposições que se traduz essencial-
mente pela substituição de ‘de’, ‘a’ e ‘para’ por ‘em’, ou seja, um
processo de redução e simplificação, e não explica fenômenos
como ilustrados em 1. e 2., ela aponta para uma interferência
da língua materna no processo de aprendizagem, que deriva
um conjunto de fenômenos aparentemente desconectados da
mesma causa, sem apelar para a desconstrução pura e simples
da gramática.
O estudo de Gonçalves (2004) explica outros desvios do PA
pela interferência da gramática das línguas bantu. Vejam-se os
seguintes enunciados:

7. Uma criança deu o indivíduo as chaves (ex 1ª, p. 239)


PE: Uma criança deu as chaves ao indivíduo
8. A natureza não pode dominar ao homem (ex. 2ª, p. 239)
PE: A natureza não pode dominar o homem

Esse conjunto de dados poderia ser de novo tomado como


reflexo da aquisição errática do uso das preposições no por-
tuguês. Os enunciados 7 e 8 parecem ilustrar duas tendências
contraditórias. Na primeira, a preposição ‘a’ deixa de marcar o
objeto indireto, na segunda ela marca o objeto direto. Gonçalves
6
As glosas são dos auto-
res. Não coloquei todos argumenta que isso é resultado da interferência da gramática
os exemplos. materna dos locutores de línguas bantu, onde, contrariamente
152 Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008
O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa

ao português, o verbo pode atribuir caso a dois sintagmas no-


minais. Porquê e como essa propriedade da língua materna é
retida na aquisição da língua segunda, em contradição com os
enunciados que esta produz? A resposta de Gonçalves é que os
dados do português são ambíguos para um falante de língua
bantu, uma vez que a preposição ‘a’ ora parece desempenhar
um papel puramente sintático – de atribuidor de caso quando
o verbo tem dois argumentos (como ‘dar’) –, ora se comporta
como uma preposição que seleciona semanticamente seu com-
plemento, em articulação com verbos de um argumento só (como
‘telefonar’). Frente a essa ambigüidade, os dados do português
são analisados com base na gramática das línguas bantu: o
verbo atribui dois casos, prescindindo da preposição em frases
como a 7, e a preposição ‘a’ se comporta como um item lexical
pleno que seleciona semanticamente um objeto humano como
alvo ou beneficiário, independentemente do verbo ser transitivo
ou intransitivo.
Vários ensinamentos podem ser retirados dessa aborda-
gem, tanto no que diz respeito aos mecanismos de aquisição
de segunda língua envolvidos na mudança devida ao contato,
quanto à questão central deste artigo, a saber, o papel das línguas
africanas na constituição do PB. 7
Primeiro, a análise proposta por Gonçalves permite
reconciliar duas idéias que podem parecer à primeira vista
contraditórias: a de que a transmissão imperfeita põe em jogo
um processo de simplificação, e a de que existe interferência da
primeira língua. Segundo ela, é quando a primeira língua fixa
o valor não marcado de um parâmetro, e a segunda língua fixa
o valor marcado, que a insuficiência de dados de ‘input’ leva o
aprendiz a fixar o valor (não marcado) da sua própria língua
em lugar do valor marcado da língua 2, levando ao que pode
aparecer como uma simplificação.
Segundo, verifica-se a importância crucial da comparação
do português europeu com as línguas africanas para a sustenta-
ção empírica da afirmação ou recusa da influência das segundas
sobre a aquisição do primeiro.
Enfim, e voltando ao português brasileiro, é importante
ressaltar novamente que ele apresenta boa parte dos fenômenos
presentes no português africano. Ora, se é possível mostrar
que estes são devidos à interferência das línguas africanas na
aprendizagem do português como língua segunda lá, temos
7 Negrão e Viotti (2008)
estudam fenômenos li- agora fortes índices que teria sido o caso também de cá. Porém,
gados à projeção dos
argumentos dos verbos
como já mencionado, alguns dos fenômenos ou não foram docu-
inacusativos em PB e mentados no PB, ou se encontram de maneira muito marginal.
argumentam também,
com base numa análise É o caso das frases de tipo 7, encontradas na Zona da Mata em
comparativa, que esses Minas Gerais (SCHER, 2000), e no dialeto de Helvécia (BAXTER;
fenômenos são devidos
à influência das línguas LUCCHESI, 1997), bem como da variação de concordância em
bantu. gênero, encontrada nas comunidades afro-descendentes isoladas,
Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008 153
Gragoatá Charlotte Galves

por exemplo no dialeto de Helvécia (cf. BAXTER; LUCCHESI


1997, LUCCHESI, 1999). Em outros casos, quando comparados o
PA e o PB, observa-se que só parte de um grupo de fenômenos
correlacionados aparece no segundo. É o caso, por exemplo,
do conjunto de enunciados em 1-6, das quais somente 3 e 4 são
instanciados. Esse fato não invalida a hipótese de uma derivação
dessas frases de maneira análoga ao português africano, mas
aponta para subseqüentes evoluções, que, no uso brasileiro,
fizeram desaparecer, ou limitar drasticamente certas formas.
Pode ser o efeito do que Holm (2004 apud INVERNO 2005, p.
57), chama de ‘nivelamento secundário’, ou seja, aproximação da
língua-alvo, devido a uma maior proximidade com esta. Depois
do fim do tráfego e da chegada de escravos africanos ao Brasil,
as línguas africanas vão desaparecendo paulatinamente do ce-
nário lingüístico brasileiro, até seu desaparecimento completo
no séc. 20.8 Não há dúvida de que, nessas condições, a língua
portuguesa pesa cada vez mais na balança, em todo o território
brasileiro, menos em comunidades isoladas.9
Com base nas análises do PA apresentadas acima, podemos
levantar a hipótese de que se perderam, ou estão marginalmente
representados no português brasileiro em comunidades isoladas,
além da concordância de gênero, vários fenômenos, como aqueles
ligados à expressão do locativo ou do duplo objeto.
O mesmo raciocínio nos leva a prever que esses fenômenos,
hoje em via de extinção, deviam ser muito freqüentes em épocas
passadas no Brasil. Aí a dificuldade é que a escrita estava nor-
malmente na mão de quem usava o português mais próximo do
português padrão, ou seja, europeu. Porém, trabalhos recentes
têm procurado achar documentos escritos por semiletrados,
inclusive africanos.
Note-se que já nos interessa menos o fato de a “tosca apren-
8 Isso, obviamente, deve
dizagem” do português, para retomar a expressão de Serafim
ter variado de região da Silva Neto, ser caracterizado como um crioulo ou não. O que
para região. Sabemos,
pelo est udo de Nina é relevante é se podemos encontrar em documentação escrita
Rodrigues, que ainda
se falavam línguas afri-
vestígios da língua falada pelos africanos e seus descendentes
canas na Bahia no início escravos ou forros. Será o assunto da próxima sessão.
do séc. 20.
9 A respeito da dife- 2. A fala dos africanos na história do Brasil
rença entre o PA e o PB
com respeito a esses fe-
nômenos, Petter (no pre-
Os trabalhos sobre o português na África hoje podem, além
lo) fala em ‘Continuum de fornecer evidências da interferência das línguas africanas –
afro-brasileiro’, em que
“o português brasileiro em particular bantu – no processo de constituição do português
já apresentaria maior no Brasil, ajudar a esclarecer a natureza da situação lingüística
estabilidade, fruto de
um período de variação no Brasil colonial. É interessante citar de novo Gonçalves a esse
mais antigo, que se teria
resolvido em mudança,
respeito:
pela adoção de uma das
variantes, no caso espe- […] Thus, nowadays, MAP [Português Africano de Moçam-
cífico, a do gênero do bique, CG] presents a set of different subvarieties which can
português europeu”. be displayed along a dialectal continuum, ranging from the

154 Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008


O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa

standard spoken by relatively uneducated people to the urban


standard of the upper class. (GONÇALVES, 2004, p. 236)
Se traduzirmos “dialectal continuum” por “tão grande série
de gradações”, “relatively uneducated people” por “ultimo matuto” e
“urban standard” por “boca do culto”, reconhecemos nas palavras
de Gonçalves a respeito de Moçambique de hoje, a situação do
Brasil à qual se referia Coelho no final do séc. 19. A comparação
entre essas duas realidades semelhantes separadas por mais de
um século pode trazer muita luz sobre a história do português
no Brasil. Convém, portanto, estudar simultaneamente, ao longo
dos séculos, a fala dos ‘cultos’ e a fala dos ‘matutos’, com especial
atenção voltada para a fala dos negros, brasileiros e africanos.
Não é fácil, pelas razões mencionadas acima, encontrar
em documentos escritos testemunhos das diversas variedades
de português faladas no Brasil no período colonial. Mas essa é
uma linha de pesquisa que está ganhando fôlego. No que diz
respeito mais especificamente à fala dos negros, encontramos
duas vertentes, uma indireta e uma direta.
A vertente indireta tem sido trabalhada por Alkmim
(2001, 2002) à procura de testemunhos da fala dos negros em
textos de diversos gêneros. No texto de 2002, Alkmim estuda
charges satirizando negros e escravos em jornais do séc. 19.10 E
compara os traços lingüísticos usados para caracterizá-los com
os encontrados em textos de outra natureza. No que diz respeito
aos aspectos sintáticos, encontra-se um sub-conjunto das pro-
priedades do português africano listadas na seção anterior (cf.
ALKMIM, 2002, p. 390, com a numeração original):
2.1 concordância de gêneros incorreta
2.2 flexão verbal de número e pessoa incorreta
2.3 ausência de artigo
2.4 quantificador ‘tudo’ em lugar de ‘todo’ e ‘todas’
2.5 ausência da marca redundante de número
2.6 ausência de concordância sujeito-verbo
2.7 forma do pronome após preposição
2.8 presente do indicativo em lugar do presente do subjun-
tivo
A coincidência desta lista com a de ‘desvios’ encontrados
na fala de africanos falando português hoje como segunda
língua chama a atenção. Encontramos nela fenômenos que se
mantiveram no PB coloquial (2.8, um sub-conjunto de 2.6, um
sub-conjunto de 2.3), outras características de uma fala mais po-
pular (2.4, 2.5, 2.6, 2.7), e ainda aqueles que, como já comentamos,
10 Os jornais são de
1831, 1864, 1868 , 1870 só se encontram em comunidades isoladas (2.1, 2.2). Esses dados
e 1876. são muito importantes porque, em se tratando de charge, eles
Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008 155
Gragoatá Charlotte Galves

têm o papel de caracterizar linguisticamente os personagens


representados.
Ao comparar esses dados com a representação da fala
de negros na literatura, Alkmim (2002, p. 396) encontra uma
grande semelhança, e ressalta que as marcas de concordância
de gênero incorreta e de flexão verbal número-pessoa incorreta
aparecem “estreitamente relacionadas a personagens africanas”.
Isso talvez signifique que esses traços não eram normalmente
transmitidos às gerações seguintes já nascidas no Brasil. O fato
da sua permanência em comunidades isoladas se explicaria por
um menor contato com o português.
Foram descobertos e editados recentemente documentos
do maior interesse para o estudo da fala dos africanos e seus
descendentes no Brasil oitocentista (cf. OLIVEIRA, 2003; LOBO;
OLIVEIRA, 2007).11 Trata-se das Atas da Sociedade dos Desvali-
dos de Salvador, fundada em 1832. Dessas atas, algumas foram
escritas por africanos, e outras, mais numerosas, por brasileiros.
O grau de análise desses documentos ainda não permite fazer
uma comparação sistemática com outros materiais, ou confrontá-
los com os dados de aquisição de português segunda língua na
África. Além disso, é preciso ressaltar que a natureza textual das
Atas, de caráter altamente formulaico, não espontâneo, oculta
em certos casos os efeitos da língua do escrevente, que se limita
a copiar frases já feitas. Mas nem por isso as Atas deixam de
registrar as marcas da competência lingüística dos seus autores.
Desde a grafia insegura aos desvios de concordância verbal e
nominal,12 encontramos vestígios claros de uma competência
imperfeita na escrita e na fala em português. No que diz respeito
à sintaxe dos clíticos nas Atas escritas por africanos, estudada
por Galves & Lobo (2006), não se encontra nenhum desvio em
relação às regras de colocação vigente na época. Isso contrasta
fortemente com a sintaxe de concordância nominal e verbal,
permeada de desvios em relação à norma. Uma explicação para
esse contraste se acha no fato de que as frases, nas quais a grande
maioria das ocorrências de clíticos se encontram, são fórmulas,
sem dúvida copiadas de modelos anteriores. Contudo a escrita
deixa entrever uma dificuldade dos escreventes africanos em
distinguir os clíticos das vogais iniciais dos verbos:

9. epor estar Comforme mandou o Pro- / vedor que este


fizessé etodos as Signassé Erá Supra / eeu Secretario atual oá
Signei (JFO, 12, 02.10.1842)
11 Está em preparação
um volume de descrição 10. Aos dezacete dia do mes de Abril demil eoito Cen / tos
e análises lingüísticas
dessas atas, organizado etrinta e Ceis estando o Provedor emais Me- / zarios a recebe-
por Tânia Lobo e Kleb-
son Oliveira.
mos os Mencais eficou adiado para / a1a. Reuniaõ o Secretario
12 Cf. Oliveira; Soleda- aprezentar hum / Termo, Sobré os Irmãos que não tem pago
de; Gonçalves (2006) os / Seus Mencais epor estar Com forme a Si- / gnamos. etc.
156 Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008
O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa

Como Secretario que este o fes / ea Signei – Jozé Fernandes do


Ó (JFO, 03, 17.04.1836)
Nos dois exemplos acima, vê-se que a vogal inicial do verbo
‘assinar’ é sistematicamente segmentada independentemente do
verbo, e algumas vezes colada a um monossílabo precedente,
clítico ou conjunção. Também aparece um ‘a’ protético para o
verbo ‘receber’, mas separado deste como se fosse um pronome
clítico. Veja-se enfim que aparece uma vogal ‘o’ antes do verbo
‘fes’ na última linha de 14, cuja interpretação é duvidosa. Nesse
caso não pode tratar-se do início do verbo, e só poderia ser um
pronome clítico, porém de maneira altamente redundante com
o objeto direto ‘este’ que ele segue imediatamente. Esses dados
gráficos vêm contradizer a aparente conformidade à norma na
colocação de clíticos e apontam para dificuldades por parte dos
falantes de línguas africanas em segmentar adequadamente a
cadeia sonora, e em última instância, em discriminar a natureza
lexical ou funcional das vogais iniciais de palavras fonológi-
cas. Essa dificuldade de interpretação é típica de situações de
aprendizagem de segunda língua, e certamente reforçada pelo
funcionamento morfossintático diferente do português e as
línguas africanas dos aprendizes. Esses documentos, em suma,
integrados numa análise comparativa de muitos outros, orais e
escritos, de origem brasileira e africana, trarão certamente va-
liosas informações sobre o papel do contato do português com
as línguas africanas na constituição do PB.

3. Uma escrita em português na história da África


Não é só no Brasil que os africanos escrevem em portu-
guês. Num contexto bastante diferente, ao longo dos séculos 17,
18 e 19, a língua portuguesa passa a ser usada em Angola por
chefes africanos, para redigirem sua correspondência oficial,
com os representantes do poder colonial ou com outros chefes
africanos. Um conjunto desses documentos, o arquivo Caculo
Cacahenda, do nome de uma das mais importantes linhagens
de chefes, foi editado em 2002 por Ana Paula Tavares e Catarina
Madeira Santos. São textos de imenso valor histórico e lingü-
ístico. Vêm trazer ao edifício comparativo planeado aqui mais
que tijolos, um pedaço inteiro de muro. Com efeito, estes textos
foram escritos por escrivães formados para esse fim, e, portanto,
dotados de uma competência indiscutível em português. Po-
rém, não escapam às interferências das suas línguas maternas
bantu – kimbundo e kikongo.13 Uma primeira observação dos
textos mostra que muitos dos fenômenos presentes na fala do
português africano de hoje e dos diversos dialetos do português
brasileiro – falta de concordância sujeito-verbo (15), falta de
13
Cf. Tavares; Madeira
Santos (2002), Introdu- concordância nominal em gênero (16), dativo sem preposição
ção. (17), complemento de objeto direto expresso pelo clítico dativo
Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008 157
Gragoatá Charlotte Galves

(18) –, estão presentes nos textos escritos do Arquivo Caculo


Cacahenda, como testemunham as seguintes frases, retiradas
de um documento de 1840:

11. vindo robar os diarios que hia para o Prezidio de En-


cogi (p.128)

12. naquela tempo (p.128); diabolica pessamento (p.127)

13. e perguntando o mesmo chefe o Autor se tinha mais


qui dizer (p.130)

14. que diga qual seja o macota que lhe foi buscar no dito
Congo (p.130)

Concluindo esta breve apresentação, chama à atenção a


convergência dos fenômenos encontrados nesse conjunto de
textos com os que caracterizam o PA moderno, com as mesmas
semelhanças e diferenças do PB moderno. Reforça a hipótese de
que essas são devidas a uma transmissão irregular em contextos
de aquisição de segunda língua, bem distinta de um processo
de crioulização, uma vez que, no caso dos textos do Arquivo,
estamos lidando com um uso da língua já bastante sofisticado,
fruto de uma formação específica,14 cuja representação gráfica
aponta para uma habilidade muito superior à dos escreventes
das Atas da Sociedade dos Desvalidos de Salvador.
4. E a deriva?
Como vimos, uma linha de pensamento se opõe à afirma-
ção de que houve interferência das línguas africanas na constitui-
ção do PB, aquela que privilegia a noção de deriva lingüística. A
idéia é que as inovações já são contidas na língua anteriormente,
sendo que o afastamento da língua mãe, inclusive o contato com
outras línguas e culturas, propiciam um quadro favorável ao
desenvolvimento de certas tendências imanentes à língua, que,
no berço da mesma, permanecem refreadas.
Antes de discutir mais em detalhe a proposta de Naro &
Scherre (2007), já citada acima, me debruçarei sobre um outro tex-
to recente, que coloca a questão ‘deriva vs. crioulização’ a respeito
da realização do sujeito, e da sua relação com as modificações
da morfologia verbal. Quint (2008), a partir da comparação da
evolução do paradigma verbal no PB e no crioulo cabo-verdiano,
conclui que
a tendência atestada em PB ao preenchimento sistemático
da posição de sujeito por meio de uma forma pronominal
insere-se plenamente nas tendências evolutivas das varieda-
14
Cf. Tavares; Madeira des lingüísticas periféricas oriundas do galego-português, em
Santos (2002, Introdu-
ção). particular, e das línguas românicas em geral. (2008, p. 81)

158 Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008


O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa

Segundo o autor, a evolução do PB seria assim mais pró-


xima da do francês do que a do caboverdiano. Sem pretender
ignorar as diferenças da morfologia verbal do PB e do cabover-
diano, claramente estabelecidas por Quint,15 queria apontar para
fortes diferenças entre o francês e o PB. No primeiro, a redução
do paradigma verbal é incontestavelmente devida à erosão fo-
nética das desinências, ou seja àquilo que Coelho denomina, no
trecho citado atrás, de “fenômeno fisiológico”. No PB, além de
uma possível erosão desse tipo, se verifica um fenômeno que vai
bem além, e provoca uma reestruturação do paradigma: a perda
da distinção entre a segunda e a terceira pessoa. Tal perda não
se verifica só na perda da desinência /s/ da segunda pessoa do
singular, mas também no uso dos pronomes de 2a pessoa ‘te’ e
‘ti’ e ‘teu’ em alternância com os pronomes de 3a pessoa ‘você’, e
‘seu’. Não se tem notícia, até onde eu saiba, de fenômeno idêntico
em nenhuma outra língua românica, a não ser, justamente, no
português africano, como mostra a seguinte frase de um escritor
moçambicano citada por Laban (1999, p. 145):

15. Você tem a cara de uma maneira que eu não consigo


olhar bem nos teus olhos.

Se a noção de deriva se aplica a esse tipo de fato, parece-me


que ela fica tão abrangente, que acaba perdendo qualquer valor
explicativo. Note-se que o conceito em si mereceria uma discus-
são que os limites deste artigo não me permitem empreender.
Mas uma grande questão fica: quais são os limites da detecção
da deriva? O fato de os mesmos fenômenos existirem isolada-
mente em dois estágios de uma ‘mesma lingua’ caracteriza por
si só um processo de deriva de uma para outra? É o que Naro
& Scherre (2007) afirmam. Para eles, a ocorrência de fenômenos
de não concordância no português europeu comprova que a sua
existência no português brasileiro não é uma inovação devida
ao contato, mas somente um desenvolvimento, na ocasião de cir-
cunstâncias favoráveis. O grande problema dessa abordagem, a
meu ver, é que fenômenos superficialmente idênticos podem ter
causas diferentes. Ou seja, seria preciso comprovar que além de
existirem fenômenos idênticos, eles são produzidos pela mesma
gramática, ou – em outros termos – tem a mesma estrutura sub-
jacente. Naro & Scherre não apresentam nenhuma análise para
os enunciados que retiram isoladamente de estudos descritivos.
Mas, por exemplo, no caso da questão da concordância sujeito-
verbo, há o implícito que em todos os dados apresentados, o sin-
tagma nominal é o sujeito do verbo. Ora, em muitos casos, uma
Para uma visão di-
outra interpretação é possível: o sintagma nominal é tópico, e
15

ferente do sujeito nulo


em caboverdiano, ver existe um pronome expletivo nulo com o qual concorda o sujeito,
Pratas (2004).
como nas frases seguintes (NARO; SCHERRE, 2007, p. 98):
Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008 159
Gragoatá Charlotte Galves

16. Duas canas dá oito mestras

17. As querenguelas só presta para pescar

18. A fazenda é as cabras e as ovelhas

É preciso notar, além disso, que vários dados, por serem in-
terpretados à luz do PB, são analisados inadequadamente, como
nas seguintes frases (NARO; SCHERRE, 2007, p. 92), em que se
atribui um sujeito aos verbos ‘esquecer’ e ‘lembrar’ quando são
correntemente usados no PE de maneira impessoal (‘lembra-me
que’, ‘esqueceu-me que’), construção claramente evidenciada pelo
exemplo 20, uma vez que o sintagma que precede o verbo não
é nominal mas preposicional.

19. Ê [eu] também já nã me lembra

20. Do bendito louvado não m’ha de esquecer

A mesma crítica pode ser feita à afirmação de que o PB


instancia traços do português arcaico, presente em Naro &
Scherre (2007), bem como em outros autores (cf. MORAIS DE
CASTILHO, 2001).
III. Conclusões
Recapitulando, partimos do par deriva/crioulização, defi-
nidos por Coelho como dois processos de natureza distinta, um
fisiológico, o outro psicológico. No decorrer do tempo, a noção de
crioulização passou a integrar uma categoria mais ampla, a da
‘transmissão irregular’ devida ao contato lingüístico, com efeitos
variáveis em função das condições sócio-culturais desse contato.
Quanto à questão da influência das línguas não européias no
processo, vimos que Coelho não acreditava que existisse, e defen-
dia uma tese próxima do bioprograma de Bickerton. Vários dos
estudiosos do PB, depois dele também, negaram enfaticamente
a influência direta das línguas africanas sobre o português
brasileiro, apesar de reconhecerem “cicatrizes da aprendizagem
tosca”. A discussão mais moderna da crioulização ou semi-
crioulização, apesar de dar ao contato um papel preponderante,
enfatizou menos essa questão, enquanto os adeptos da deriva
continuavam a negar o efeito direto ou indireto do contato.
A comparação das vertentes africanas e brasileiras do
português, bem como a comparação de ambas com as línguas
africanas com que estiveram em contato na sua história, vem mu-
dar substancialmente a discussão ao trazer uma base empírica
para o velho debate. Procurei mostrar que na balança empírica,
esses dados são mais pesados e consistentes do que os dos de-
fensores da deriva. Apesar de haver muito por fazer, um corpo
160 Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008
O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa

sólido de evidências emerge de novos corpora, que podem ser


interrogados de maneira cada vez mais eficiente.
Finalmente, no âmbito da comparação com o português
africano, parece que nem os dados da comunidade afro-brasileira
de Helvécia precisam da hipótese da crioulização –16 situação
extrema no continuum da aquisição imperfeita de segunda
língua, redundando na nativização de um pidgin – para serem
explicados. A transmissão irregular no quadro de uma aqui-
sição de segunda língua com exposição insuficiente aos dados
da língua-alvo, da qual temos uma imagem moderna em Mo-
çambique e Angola hoje, parece dar conta do desenvolvimento
histórico da variação encontrada no Brasil de hoje.

Abstract
This paper addresses the question of the role of
African languages in the evolution of Portuguese
in Brazil. It shows how recent work on Portugue-
se spoken as second language in Africa, and its
comparison with the syntax of Bantu languages,
gives empirical evidence that supports the thesis
of the influence of these languages on Brazilian
Portuguese, since this language displays the same
characteristics. It argues that these analyses pro-
vide leads to study the historical development of
Portuguese in Brazil and in Africa, using texts
written in this language by Africans. Finally, it
raises arguments against the hypothesis of lin-
guistic drift to explain the evolution of Brazilian
Portuguese.
Keywords: Brazilian Portuguese formation.
African Portuguese. Linguistic contact. Linguis-
tic drift. Creole languages.

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16
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164 Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008


Agruras da ficção
contemporânea
Silvia Regina Pinto

Recebido 28 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo
No mundo atual, marcado por uma transformação
radical das coisas, afloram crises, talvez sem prece-
dentes, para todas as áreas de atividade, mexendo
com a cultura, com a estética, com os valores
éticos, com as noções de espaço e tempo, com as re-
lações entre o público e o privado, trazendo sérias
questões políticas e complexos problemas para o
próprio pensamento. Este ensaio pretende mostrar
como o discurso ficcional contemporâneo vem
tematizando e discutindo sua própria estranheza,
tentando uma reconciliação entre linguagem e re-
alidade, no esforço incansável para um confronto
do ser humano com um “outro” que é ele mesmo,
deixando claro que, muitas vezes, a ficção torna-se
necessária para que o real exista.
Palavras-chave: Filosofia. Ficção. Crise. Iden-
tidade. Utopia.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008


Gragoatá Silvia Regina Pinto

“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito,


do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não
foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior.
[...] Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim,
penso também – mas Diadorim é a minha neblina...”
(Guimarães Rosa)1
Com este título quero dizer, primeiramente, que a ficção
contemporânea suscita muita controvérsia porque há uma gran-
de dificuldade em representar o mundo atual. Neste momento
de transformação radical das coisas, afloram as crises, talvez
sem precedentes, para todas as áreas de atividade, mexendo com
a cultura, com a estética, com os valores éticos, com as noções
de espaço e tempo, com as relações entre o público e o privado,
trazendo sérias questões políticas e complexos problemas para
o próprio pensamento. A situação evidentemente se complica
quando valores universais, tais como verdade, razão, liberdade,
justiça, perdem legitimidade e valor. Já não se acredita e nem
saberíamos mais responder a velhas questões postas pelo Ilu-
minismo.
Fala-se que uma grande novidade em relação a outras crises
anteriores é que desta vez se torna quase impossível imaginar
um futuro. Como se fosse muito difícil deduzir algo do passa-
do, uma vez que o presente se dá como “inteiramente novo”,
reconstruído como um “efeito especial”, aparentemente sem
referências. São abolidos, então, o passado e o futuro em nome
dessa dimensão presente que se metaforiza como eternidade,
perdida em si mesma, abrindo espaço para uma complicada
coisa atual que não se sabe ainda como seria melhor nomear.
Aboliram-se, portanto, as velhas utopias modernas, nesse jogo
inseguro de tempos e instaurou-se uma certa descrença quanto
a novos ideais utópicos.
Segundo o filósofo alemão Peter Sloterdijk, o intelectual
contemporâneo errou de alvo: a revolução não estava sendo
conduzida pelo proletariado, mas pela técnica. No fim, o jogo
foi feito, a revolução aconteceu, e os intelectuais revolucionários
não perceberam o que se passava. Muitos elementos nos levam
a crer, escreve Sloterdijk, que deixamos o espaço das revoluções
políticas para entrar no das revoluções tecnológicas e mentais, o
que equivale a dizer que o papel clássico do intelectual parece
ter chegado ao fim. Depois da crise que atingiu as metarrativas
e a filosofia tradicional, o intelectual se vê engajado num jogo de
linguagem específico cujos interlocutores são outros intelectuais,
seus pares, isto é, a academia, a fim de verificar se, do fundo
1
ROSA, Gu i m a rães. deste silêncio, é possível extrair uma alternativa aos dilemas
Grande sertão: vere-
das. In: ______. Ficção
razão versus desrazão, filosofia versus retórica, modernidade
completa. Rio de Janeiro: versus pós-modernidade (NOVAES, 2006).
Nova Aguilar, 1994. v. II,
p. 20-21.

166 Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008


Agruras da ficção contemporânea

A presença de um sujeito, de um sentido unívoco, enfim,


da razão em busca da verdade, é justamente o que diversos
pensadores, invertendo a posição socrática, vêm desconstruindo.
É, pois, um pensar filosófico que aponta para o silêncio da fala
e de um discurso filosófico racional, em nome da legitimidade
de uma pluralidade de discursos polissêmicos que haviam sido
banidos pela tradição filosófica racionalista.
Evidentemente, a arte e a literatura contemporâneas reve-
lam um projeto metaficcional estético e literário que caminha
em direção à configuração de uma realidade mais afinada com
este momento histórico-cultural contemporâneo. Parafrasean-
do resenha, publicada no Jornal O Globo,2 o espírito da época
(Zeitgeist) atual nos trouxe o tempo da globalização com o pri-
mado da tecnociência, da espetacularização da vida, do colapso
de antigas categorias de sentido e representação, do poder da
midiatização, da política que se torna refém do marketing e da
imagem, do mundo percebido como objeto de consumo, da ação
de mecanismos de controle cada vez mais invasivos. Deste pa-
norama começa a destacar-se um movimento de releitura das
diferenças, através de estratégias que fazem do sensível, na zona
contingente, mas obscura dos afetos, um lugar privilegiado para
questionamento da razão instrumental e seus mecanismos de
poder, transformando o efeito estético em “emoção lúcida”, que
procura revelar a capacidade emancipatória que se esconde no
afeto, na alegria, na ironia, na imaginação, e na descontinuidade,
legitimadores de propostas de sentido que não são esperança,
nem muito menos felicidade, mas buscam uma afinação mais
perfeita com o mundo presente.
As novas experiências narrativas contemporâneas, princi-
palmente a partir dos anos 90, vêm insistindo na perplexidade
gerada por este momento de crise e na discussão a respeito do
assumir que o mundo atual é feito de mentiras que, apesar da
contradição, muitas vezes são também verdades. Assim, em
grande parte da ficção da atualidade, a ordem das coisas, a or-
dem das aparências, a ordem do discurso não podem mais ser
confiadas, propriamente, a qualquer matéria do saber. O fio do
pensamento narrativo deixa de seguir uma linha de causalidade
e racionalidade, isto é, não trabalha no rumo da representação
como identificação das coisas, mas no sentido de uma desiden-
tificação que até pode ser sedutora. E a ficção se transforma na
ruptura da ilusão referencial da narrativa:
Estamos hoje em um mundo aleatório, um mundo em que não
há mais um sujeito e um objeto harmoniosamente separados
no registro do saber. Quanto aos fenômenos aleatórios, eles não
se dão apenas nas coisas, nos corpos materiais: fazemos parte,
nós também, do microcosmo molecular por nosso próprio
2
Rossano Pecoraro, Ca- pensamento – e é isto que gera a incerteza radical do mundo.
derno Prosa & Verso, 19
ago. 2006. (BAUDRILLARD, 2001, p. 47)

Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008 167


Gragoatá Silvia Regina Pinto

Em grande parte das narrativas atuais, inclusive no cine-


ma, evidencia-se a questão pós-humanista no mundo hoje, que
descarta a metafísica, desconfia da imanência, passa ao largo dos
sentidos únicos, envolve-se todo o tempo com os mais variados
problemas de identidade, e, de quebra, questiona as indecidi-
bilidades da autoria, como faz, explicitamente Chico Buarque,
no romance Budapeste. Ao contrário do que imaginou Platão,
chegamos a um tempo em que a proliferação de imagens com
todos os seus efeitos - às vezes defeitos - especiais nos levam à
percepção de que os simulacros não mais se opõem à verdade,
agora eles são a própria realidade, tanto para o mal quanto para
o bem, contextualizando uma história geral que não mais ca-
minha em linha reta rumo a possibilidades melhores, mas sim
evolui como as nuvens (SANTOS, 2003), em imagens virtual-
mente novas a cada momento, sem que se possa dizer que haja
definição de cópias melhores, nem piores, nem mais verdadeiras,
porque as imagens duplas (às vezes múltiplas) habitam realida-
des paralelas, justapostas no deslizar das coisas, não em busca
de transcendências, mas das complexidades fenomenológicas
encontradas na própria superfície.
Nietzsche, aparentemente, foi o primeiro a chamar a
atenção para a importância do conceito de superficialidade.
Segundo o filósofo, a arte nos instrui das verdades do viver
superficialmente, isto é, de como parar o movimento na super-
fície sensível, em vez de caçar uma essência ou uma verdade
ilusória nas profundezas dessa superfície. Dizer que não adianta
escavar superfícies equivale a defender que devemos abandonar
as nossas tradicionais justificações metafísicas para tudo que
fazemos, embora sempre se torne complicado defender o valor
do superficial, porque exige a desconstrução de um arraigado
pensamento a favor da profundidade metafísica, que sempre foi
determinante da essencialidade de alguns aspectos, principal-
mente os religiosos, da vida. Mas isto não vem impedindo que
a atitude de um novo engajamento da literatura, da teoria da
literatura e da filosofia revele-se claramente menos metafísico e
mais fenomenológico: complexidade e superficialidade neste mo-
mento são conceitos que não se excluem. Ao contrário, procura-se
continuar removendo algo do entulho ideológico da metafísica
para que a superfície mostre toda a complexidade de seus fenô-
menos, ainda que, muitas vezes, estes sejam efêmeros.
A rejeição à profundidade acaba trazendo consigo a ne-
gação da origem, operando uma ruptura com a idéia de que a
interpretação, por exemplo, exige uma escavação até as profun-
dezas da linguagem:
Quanto mais a interpretação avança para um suposto encontro
com a verdade, mais percebe que caminha para sua morte.
Isso porque, por detrás dessa crença a impulsionar o gesto em
direção à profundidade, permaneceria o falso pressuposto de

168 Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008


Agruras da ficção contemporânea

que a investigação do símbolo conduziria à coisa em si, como se


este símbolo vivesse uma origem que lhe pertencesse ou fosse
a própria coisa que apenas simboliza. [...] O pensar metafísico
sempre concebeu a linguagem como referindo-se a algo que lhe
antecede. Afirma, então, que o caminho em direção à origem
levaria ao encontro de alguma coisa, material ou ideal, aquém
ou além. [...] A concepção nietzscheana de signo vem revelar,
contudo, que, se a linguagem é significação, o signo se limita
à remissão a outros signos. [...] Para a interpretação do pensa-
mento desconstrutor, portanto, a história de uma coisa não é a
coisa, mas as sucessivas camadas de interpretação desta coisa.
Se o signo já é interpretação, duas conseqüências advêm: (a) a
interpretação é uma tarefa infinita porque não se pode com-
pletar; (b) não se completa porque não há nada a interpretar,
pois tudo já é interpretação. (BORBA, 2004, p. 181)
O pensar metafísico sempre concebeu a linguagem como
se referindo a algo anteriormente existente. Seguindo o mesmo
raciocínio, mais perto da verdade estaria aquele que mais se
aprofundasse na especulação sobre o signo. Por outro lado,
considerando-se a concepção nietzscheana, que é muito mais o
pensamento atual, o signo se limita à remissão a outros signos.
Neste caso, a história de uma coisa não é a coisa, mas limita-se
às sucessivas interpretações dessa coisa, portanto, qualquer signo
já é uma interpretação.
Na arte em geral e na literatura em particular, desde o fim
do século XIX, a crise da representação, da desrealização e da
desreferencialização veio então se acentuando cada vez mais, e,
provavelmente, por essa razão hoje é fácil perceber-se na ficção
esse esforço de superação dessa crise representativa e da perda de
referencialidade que mais se acentuou a partir de uma chamada
“virada lingüística”, nos anos 70 do século passado, a partir da
qual a idéia de autonomia dos sistemas de signos vai em direção
a uma situação extrema em que a realidade é absorvida pela
linguagem e se confunde com sua própria representação.
Se pensarmos, por exemplo, no mundo ficcional de Jorge
Luis Borges, observaremos que a idéia de arte como ilusão estará
sempre presente. O ficcionista argentino discute o fato de que é
impossível ser um escritor original no século XX e, fundamental-
mente, de que o real é inalcançável até mesmo pela linguagem.
Dito de outro modo, a realidade é dúbia e instável e o universo
é uma unidade total em que as individualidades não passam
de ilusão. Assim, ao confundir os limites entre a realidade e
as abstrações absolutas, entre o individual e o genérico, Borges
ampliará o campo de suas histórias para “incluir” todos os ho-
mens (BARTUCCI, 2006).
Aprofundando essas questões borgianas, estamos agora
passando por um momento epistemológico cuja característica
é um grande questionamento da realidade e, sobretudo, das
particularidades de sua natureza ilusória, através de imagens e

Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008 169


Gragoatá Silvia Regina Pinto

simulações produzidas pelos meios de comunicação e pela tec-


nologia em geral. Conforme Baudrillard, a desaparição do real
sem deixar pistas, cria um momento em que tudo se torna real,
em que não há mais nada que exista apenas como utopia, sonho
ou alteridade. Nesse momento, tudo se torna um simulacro de si
mesmo, portanto, as identidades tendem, por um lado, a desa-
parecer, e, por outro, tendem a aparecer como reação, buscando
uma “realidade real” na arte e na cultura contemporâneas. Po-
demos falar, então, de uma verdadeira “volta do real”, embora,
hoje, em termos não previstos pelo realismo histórico do século
XIX, nem pelo realismo social das décadas de 30 e 40 do século
passado, e nem mesmo pelo hiper-realismo de movimentos da
década de 70, também do século passado:
De uma outra perspectiva, a mudança paradigmática na
literatura e nas artes, nos anos 90, foi qualificada de “virada
pictórica” (Pictorial Turn, Mitchell, 1995), acentuando a forma
em que as imagens intervêm e funcionam na cultura, na cons-
ciência, e na representação contemporâneas. É, exatamente, a
capacidade de intervenção das imagens nas emoções coletivas,
nos debates públicos e na propaganda política que motiva a
substituição da “virada lingüística” pela “virada pictórica”.
A idéia de uma “virada pictórica” se define, atualmente, pelo
interesse interdisciplinar por estratégias retóricas e estéticas
provindas, principalmente, dos meios visuais e, assim, para
alguns artistas e teóricos, estamos testemunhando uma rup-
tura radical com a tradição de teorias fundadas na lingüística.
Para os estudos da literatura, a tese é que a questão da imagem
ocupa um lugar estratégico para a discussão estética atual, uma
vez que a tendência híbrida na literatura, atualmente, procura
apropriar-se de procedimentos e de técnicas representativos
dos meios visuais e da cultura de massa dominados pela
visualidade e com a finalidade de provocar efeitos sensuais
afetivos. (SCHOLLHAMMER, 2002, p. 80)
A ficção narrativa brasileira, principalmente a partir dos
anos 90, vem trabalhando a realidade como encenação perfor-
mática, neste sentido afetivo-crítico aqui referido, que o escritor
Luiz Ruffato prefere chamar de hype-realismo, para se contrapor
ao batido neonaturalismo, termo anacrônico para descrever o
atual estado de coisas.
Destaco, por exemplo, o ficcionista Bernardo Carvalho,
cuja obra se constrói em torno da problemática das identidades,
questão essa que se desdobra, nos diversos contos e romances do
mencionado autor, em várias direções: a identidade do sujeito,
do autor, da ficção, do gênero, da literatura, do mundo contem-
porâneo, etc. Nesta literatura, as certezas apenas encaminham
uma ilusão de verossimilhança e encenam a própria ilusão de
identidade. Mesmo no caso de personagens importados da vida
real, o que se observa é um total esgarçamento das referências
que construiriam uma palpável dimensão identitária, apesar

170 Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008


Agruras da ficção contemporânea

dos aspectos muito realistas e até mesmo histórico-documentais,


presentes nas narrativas. Num dos romances (Nove noites), por
sinal baseado em fatos reais, o narrador chega a avisar ao leitor,
já nas primeiras linhas, que este “vai entrar numa terra em que
a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxe-
ram até aqui”. Em outro (Teatro), ao passar da primeira parte da
narrativa para a segunda, o leitor constata que uma personagem
que até então era uma mulher passa a ser homem, não porque
tenha passado por alguma cirurgia de transexualidade, mas,
porque, de forma totalmente natural, a verdade agora é outra,
ou seja: a mesma personagem é também uma outra. Algo a ver
com Orlando, de Virgínia Woolf, ainda que diferente, até porque
trata-se de uma personagem secundária.
Muitos relatos contemporâneos colocam em prática alguma
coisa que pode ser perfeitamente definida pela metáfora de uma
“vida líquida” (BAUMAN, 2007, p. 7):
A “vida líquida” e a “modernidade líquida” estão intimamente
ligadas. A “vida líquida” é uma forma de vida que tende a ser
levada à frente numa sociedade líquido-moderna. “Líquido-
moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais
agem seus membros mudam num tempo mais curto do que
aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas,
das formas de agir. A liquidez da vida e da sociedade se ali-
mentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim
como a sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma
ou permanecer em seu curso por muito tempo.

[...] Numa sociedade líquido-moderna, as realizações individu-


ais não podem solidificar-se em posses permanentes porque,
em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos,
e as capacidades, em incapacidades. As condições de ação e
as estratégias de reação envelhecem rapidamente e se tornam
obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprendê-las
efetivamente.

[..] Em suma: a vida líquida é uma vida precária, vivida em


condições de incerteza constante. As preocupações mais in-
tensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os
temores de ser apanhado tirando uma soneca, não conseguir
acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar
passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens
agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e
mudar de rumo antes de tomar um caminho sem volta. A vida
líquida é uma sucessão de reinícios, e precisamente por isso é
que os finais rápidos e indolores, sem os quais reiniciar seria
inimaginável, tendem a ser os momentos mais desafiadores e
as dores de cabeça mais inquietantes. [...].
A obra de um outro conhecido ficcionista contemporâneo,
Rubens Figueiredo, flutua “liquidamente” na perda total de uma
certa “estabilidade cósmica da verdade”, anulada pelo imaginá-
rio complexo que se transforma em ficção pelas próprias ações

Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008 171


Gragoatá Silvia Regina Pinto

humanas. Chamando a atenção para uma simulação decidida


a nos envolver cada vez mais, a literatura, no mundo atual, as-
sume uma preocupação de quase-denúncia, além de uma vaga
esperança de salvamento.
Afinal, o que é a verdade quando a simulação se torna regra
geral e os efeitos especiais podem criar qualquer possibilidade
de realismo melhor do que a própria realidade? Afogando-se
nesse mar de indecidibilidades, a individualidade do sujeito
contemporâneo o obriga, por um lado, a adaptar-se a um papel
(a vários papéis cotidianos), e, por outro lado, como opção livre,
restará, praticamente, só a anulação, ou o vazio. A matéria-prima
das narrativas de Rubens Figueiredo é composta de imprecisão,
de instabilidade, de um difuso movimento da falsificação ge-
neralizada que envolve personagens, enredo, tempo e espaço,
permitindo que se intensifique o jogo tenso entre o falso e o
verdadeiro, como se lê no romance Barco a seco: “tudo é mentira,
qualquer coisa é verdade: só resta deixar-se levar, deixar-se cair
no vazio”.
A fenomenologia estuda a constituição do mundo na cons-
ciência. Quase sempre esta constituição configura um tipo de
moldura para a subjetividade, através da qual se pode apreender
e interpretar o mundo exterior, daí o conceito de epoché – uma
suspensão do mundo natural – a partir de uma “redução feno-
menológica”. Assim, para muitos filósofos do século XX, ligados
à fenomenologia, o conhecimento se dá, tanto na ciência, quanto
na ficção, ou na vida real, como hipóteses ficcionalizantes, isto
é, metáforas. Para que a compreensão do “outro” seja possível,
é necessário que “eu” me reconheça também como um “outro”.
Por isso, nas palavras de Luiz Costa Lima, a arte vive um enfren-
tamento apaixonado com a realidade, irrealizando uma suposta
unidade e expondo as fraturas do sujeito.
A narrativa ficcional contemporânea pensa o papel do
narrador enquanto vítima de si mesmo, isto é, como um sujeito
agenciador de estruturas referenciais complexas, que sinalizam
para as tentativas de demarcação de territórios ficcionais feitos
de areias movediças, identidades deslizantes e sujeitos perfor-
máticos, que, muitas vezes, não passam de simulacros, tanto de
narradores, quanto de personagens. Os narradores distanciam-
se cada vez mais do narrador “clássico”, apontado por Walter
Benjamin como aquele narrador que narra com total segurança
e sabedoria. Na performance da ficção atual, os narradores além
de não saberem narrar, também não sabem o que narram, isto
é, nas narrativas que encenam, eles demonstram que, muitas
vezes, não se pode ter certeza alguma da diferença entre ver-
dadeiro e falso.
Podemos, então, perceber que lidamos com uma ficção que
se vinga da imensa concorrência dissimulada, ou seja, que se
vinga de estarmos todos meio que roteirizados hiper-realmente.
172 Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008
Agruras da ficção contemporânea

A ficção precisa entrar, então, para valer, no jogo que desesta-


biliza as referências, na cena da não-representação, chamando
a atenção sempre para a clareza de seus propósitos ficcionais.
Assim, os narradores que vêm ganhando o papel principal,
mostram-se sempre paradoxalmente perdidos, e, a grande temá-
tica metaficcional mais presente está, exatamente, na discussão
que gira em torno de como se torna impossível organizar um
discurso de ficção sem que os significantes revelem claramente
a arbitrariedade da nomeação, o abismo entre as palavras e
as coisas, o fato de que a verdade está perdida entre todas as
contradições e disparates ou entre imagens que significam a si
mesmas. Histórias que dependem mais da confiança de quem
as lêem e da capacidade de interpretá-las, como nos diz, ainda,
um dos textos de Bernardo Carvalho.
Por sua vez, um romance como Um crime delicado, de Sérgio
Sant’Anna põe em evidência que a complexidade da situação
contemporânea também propicia uma certa perda de coerência
da noção de literatura, da própria noção de arte, com um notável
declínio da sua aura cultural. Nesse contexto, há a percepção da
inviabilidade de um denominador comum conceitual, de um
conceito capaz de englobar todas as variedades históricas e cul-
turais dos fenômenos rotulados como literatura, ou como arte.
Numa perspectiva séria, entretanto, pode-se alegar que, em ter-
mos éticos, simplesmente não há alternativa para a obrigação de
adaptar nossos projetos e conceitos às tarefas emergentes de uma
sociedade a cada passo mais multicultural e ‘multiestética’.
Existe, no referido romance Um crime delicado, uma espé-
cie de fenômeno ‘multiestético’ que comanda o espaço social
de transformações e superposições, num intercâmbio entre o
plástico e o lingüístico, ou, também, a representação do plástico
pelo lingüístico, ou, ainda, do espaço cênico pelo lingüístico, e
vice-versa. Sobre o atormentado “crítico” Antônio Martins, nar-
rador e protagonista do romance, observa-se que suas críticas
via de regra decorrem do momento subjetivo que está vivendo,
e, assim, entrelaçam-se ou confundem-se o teatro e a vida, ou,
também, a crítica e a representação, ou, ainda, sujeito e objeto.
No relato observa-se um extenso questionamento que pretende
determinar o sentido da atividade do crítico:
Expliquei que o crítico é um tipo muito especial de artista, que
não produz obras, mas vai apertando o cerco em torno daque-
les que o fazem, espremendo-os, para que eles exijam de si
sempre mais e mais, na perseguição daquela obra imaginária,
mítica, impossível, da qual o crítico seria co-autor. Algo assim.
Eu falava ao sabor do momento e, em outras ocasiões, poderia
explicar a coisa de modo inteiramente diverso. (SANT’ANNA,
1997, p. 28)

A discussão no romance de Sérgio Sant’Anna equivale ao que em


artes plásticas se tornou, atualmente, o grande gênero do momento:
Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008 173
Gragoatá Silvia Regina Pinto

a instalação. Uma instalação artística é uma construção de cenário


ou intervenção que rompe com o espaço tradicional da galeria ou
do museu, fazendo com que o espectador participe da obra e não
somente aprecie. Trata-se de arte conceitual que se define como um
movimento artístico – moderno ou contemporâneo – que defende a
idéia, ou conceito, como o aspecto mais importante da obra de arte.
Esta perspectiva artística iniciou-se ainda na década de
1960, parcialmente em reação ao formalismo, sendo depois siste-
matizada pelo crítico americano Clement Greenberg. Contudo, já
a obra do artista francês Marcel Duchamp, nas décadas de 1910 e
1920, tinha prenunciado o movimento conceptualista, ao propor
vários exemplos de trabalhos que se tornariam o protótipo das
obras conceituais, como os famosos readymades, que desafiaram
qualquer tipo de categorização ao privilegiar a idéia em lugar
do artefato, instituindo a questão de não se ter certeza se são ou
não objetos artísticos. O movimento de arte conceitual estendeu-
se, aproximadamente, de 1967 a 1978. Mas é muito influente
até agora, na obra de artistas subseqüentes que são por vezes
referidos como conceptualistas de segunda ou terceira geração,
ou pós-conceptualistas.
A instalação, enquanto poética que permite uma grande
possibilidade de suportes, se situa de forma totalmente confortá-
vel na produção artística contemporânea, que é volátil, presença
efêmera e passageira, absorvendo e construindo o espaço à sua
volta, e, ao mesmo tempo, o desconstruindo. Tal desconstrução
de espaços, de conceitos, e de idéias está dentro da práxis artística
da qual a instalação se apropria para se afirmar como obra. A
questão do tempo é crucial, fazendo com que a mesma seja um
espelho de seu próprio tempo, questionando assim o homem
desse tempo em sua interação com as discussões geradas pela
própria obra.
A permanência da instalação é um fenômeno que se des-
taca na arte contemporânea, sendo uma das mais importantes
tendências atuais nas artes plásticas, mas influenciando a própria
literatura. A necessidade de mexer com os sentidos do público,
de instigá-lo, quase obrigá-lo a experimentar sensações, sejam
agradáveis ou incômodas, faz da instalação um espelho de nosso
tempo. Sérgio Sant’Anna, que gosta de envolver, deliberadamen-
te, sua ficção com artes plásticas, com fotografia, e, com o teatro,
escreve o romance Um crime delicado como se fosse uma ‘instala-
ção narrativa’, aproveitando-se das características supracitadas
do gênero para criar instalações plásticas e teatrais dentro da
história, que acaba por se tornar ela própria algo como um tipo
de instalação romanesca conceitual.
Lembrando os versos de Caetano Veloso na letra de “Lín-
gua”: “E deixa os Portugais morrerem à míngua” / “Minha
Pátria é minha língua”, que incentivam um distanciamento
174 Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008
Agruras da ficção contemporânea

crítico de uma situação colonizada em relação a Portugal, talvez


possamos agora pensar que a ficção atual vem substituindo-os
ou completando-os por uma questão mais complicada que po-
deria ser formulada com a seguinte pergunta: Em que língua
está perdida a minha Pátria? Ou, vice-versa.
Insinuam os narradores multiplicados e complicados de
Bernardo Carvalho que a possibilidade de “cura” desta lingua-
gem, consistiria, principalmente, na denúncia de que vivemos
neste mundo de imagens totalmente manipuladas, e nisto há,
em graus variáveis, a cumplicidade de todos: os que nem perce-
bem nada, os que se tornam conscientes e podem apenas fazer
denúncias, e daqueles temerosos de que a situação hegemônica
de que participam perca sua hora e vez.
No caminho percorrido na Modernidade, até chegarmos
ao aqui/agora que estamos vivenciando, cada vez mais o mundo
ficcional precisou lutar por suas prerrogativas de ficção, porque,
tecnologia de um lado, massacre de informação de outro, as
imagens passaram a comandar o espetáculo, transformando
o mundo atual no grande-irmão espelho que se alimenta da
captação de todas as nossas imagens. É o grande simulacro.
Assim, quanto mais um espectador contempla, menos vive,
quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens ofertadas, menos
compreende a sua própria existência, a sua própria identidade,
e o seu próprio desejo, instituindo-se, desta forma, a alienação
do sujeito em favor do objeto contemplado. E a relação social
entre os sujeitos também se faz mediada por imagens, que, ma-
terializadas através dos efeitos performáticos, vêm a constituir
uma visão de mundo.
Trata-se de um jeito de pensar que começa supostamente
na verdade, mas para privilegiar o que ela guarda de falso, isto
é, de “mentira”, para com isso, em seus melhores exemplos,
aproximar-se, paradoxalmente, do que poderia ser a própria
verdade, como nos últimos textos ficcionais de Silviano Santiago.
Um certo “fracasso” preside, então, este tipo de relato contempo-
râneo, que se configura para “falhar”, produzindo uma narrativa
em estado de instabilidade que acaba por realizar uma condição
primeira da literatura, evidenciando que “um bom conto é um
campo minado” (SANTIAGO, 2005, p. 38).
Como sou criticamente cética, mas não totalmente pes-
simista, não vejo estas questões de forma apenas apocalíptica,
ou escatológica. Penso mesmo que a história do pensamento já
estava a nos dever essa liberdade para o simulacro. A acreditar-se
mais nos fenômenos complexos de superfície, do que nas me-
tafísicas, perde-se a transcendência, mas ganha-se um imenso
conjunto de fenômenos virtualmente possíveis da realidade e
da ficção a nos mostrar seus significantes, a partir dos quais,
nós mesmos teremos de decidir o que é ou não relevante. Uma
espécie de “território livre” como categoria estética, no sentido
Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008 175
Gragoatá Silvia Regina Pinto

de que a arte em geral, assim como a ficção em particular, são


espaços sem dono, exercícios de liberdade.
Em A ordem do discurso, Michel Foucault preocupava-se
em demonstrar como os princípios reguladores dos discursos
interferem nas Ciências Humanas e Sociais. Os movimentos
críticos a partir do século XX não escaparam, portanto, das
regulamentações discursivas de que trata Foucault. Assim, os
procedimentos teóricos, ao refletirem sobre o objeto “literatura”,
estariam reproduzindo os mesmos processos de controle do
discurso que definem o como se na episteme da modernidade,
como, aliás, é a tendência de todas as epistemes.
Considerando-se a desordem do discurso atual, ocorre-me
então refletir que, assim como grande parte da ficção hoje, que
paradoxalmente busca o realismo, mas cada vez se sente menos
responsável pela construção de uma verdade, isto é, pela pró-
pria inteligibilidade, também os simulacros teórico-críticos, na
atualidade, precisam aprender a jogar com peças de linguagem
que não respeitam o limite de seus tabuleiros, espalhando-se por
toda parte. O que resta então à crítica que se quer teoricamente
adequada à estética contemporânea é a simulação de uma galáxia
de significantes interpretativos possíveis, na dimensão lúdica de
pluralizar repetições, diferenças, figuras, imagens, entrando no
próprio jogo da desordem do discurso ficcional.
Neste momento, falar de Literatura, utopia e crise implica
perceber que os melhores discursos ficcionais da atualidade vêm
tematizando a própria crise ao construir simulacros inteligentes
do próprio gênero narrativo. A narrativa de ficção e a narrativa
cinematográfica são fábricas de sonhos e busca de realidade
que colocam o desejo em obra e, simultaneamente, reafirmam a
potência do desejo de pôr o sujeito em obra (BARTUCCI, 2006),
metáfora que elimina a morte desse sujeito. Então, que Diadorim
seja a nossa neblina, tomando emprestada a Riobaldo essa licença
poética. Se utopia existe para não existir, e, se o discurso da lite-
ratura é sempre uma grande ilusão, a literatura, apesar de suas
agruras, continua sendo uma utopia que ainda é possível.

176 Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008


Agruras da ficção contemporânea

Abstract
In today’s world, in which we can see a radical
transformation of things, nearly unprecedented
crises emerge and affect all areas of activity, chal-
lenging culture, aesthetics, ethical values, notions
of space and time, and the relations between public
and private, as well as bringing serious political
issues and complex problems to the very realm of
thought. This essay aims at showing how contem-
porary fictional speech thematizes and discusses
its own perplexity, attempting a reconciliation
between language and reality in a relentless effort
towards the confrontation of the human being
with an “other” who is himself and, in this way,
often making clear that fiction becomes necessary
for the existence of the real.
Keywords: Philosophy. Fiction. Crisis. Identity.
Utopia.

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178 Niterói, n. 24, p. 165-178, 1. sem. 2008


Narrar é resistir?
Denise Brasil Alvarenga Aguiar

Recebido 26 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo
Análise da ficção contemporânea, buscando
compreender as transformações da literatura no
contexto das alterações sociais e culturais que
marcam os tempos da chamada pós-modernidade.
Identificação de vertente literária de tematização
do sufocamento da subjetividade no cenário
hostil da exclusão social. Busca de diálogo entre
escrita literária do Brasil e da África do Sul em
fins do século, a partir de duas obras específicas:
O quieto animal da esquina, de João Gilberto
Noll, e A vida e a época de Michael K., de J.M.
Coetzee.
Palavras-chave: Ficção contemporânea. Pós-
modernidade. Noll. Coetzee.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008


Gragoatá Denise Brasil Alvarenga Aguiar

A pergunta que intitula o texto foi retirada de uma epígrafe


do conhecido livro em que Fernando Gabeira narra sua versão
da história do seqüestro do embaixador americano, em plena
ditadura militar. No livro, em forma de afirmação, ela reflete
um pouco do sentido de missão que a narrativa assumira àquela
altura, nos idos de 1979, quando, ainda na ditadura, mas já em
uma sociedade que buscava se reorganizar para a reconquista do
estado de direito, era imperioso denunciar a violência do regime.
Muito já se disse acerca dessa missão e dos vários equívocos que
a cercaram, em especial quanto à crença de que a literatura deve
abdicar de seu estatuto artístico para retratar uma realidade
interditada ao cidadão comum, pelos mecanismos de repressão
e censura dos veículos de informação.
Neste início de século XXI, e, na realidade, desde o fim
do XX, entretanto, há uma evidente mudança de contexto: em
tempos de aparente normalidade democrática no Brasil (se é
que se pode chamar assim um estado que mantém e aprofunda
as desigualdades sociais), o inimigo possui feições difusas, tão
voláteis como o capital globalizado, a denúncia parece não ter
mais efeito nem mesmo propósito, e a literatura, como fenômeno
cultural, ocupa-se, em grande medida, de sua própria crise.
É preciso, portanto, investigar as feições dessa narrativa
contemporânea, tomando como referência, ainda que de ma-
neira breve, as muitas transformações da vida social e cultural
que assinalam a historicidade específica da narrativa de fins do
século XX, já em um contexto de claras transformações que se
impuseram mais acentuadamente a partir de suas duas últimas
décadas. Nessa discussão, pode-se retomar o mote inicial, em-
bora seja preciso recolocar a afirmativa em forma de pergunta:
afinal, narrar é resistir?
Em primeiro lugar, voltando um pouco no tempo e pen-
sando na natureza específica da narrativa e nas relações que
ela estabelece com experiência humana ou social, há de se re-
conhecer que, já na modernidade, na ordem fragmentária que a
existência inegavelmente assume, as formas literárias – dentre
elas, talvez principalmente, o romance – vão incorporar à sua
essência e estrutura muito dessa natureza. Num mundo em
que “ser homem é ser só” (LUKÁCS, 2000, p. 82), a literatura
encontra seus meios de sobreviver ao declínio de uma relação
entre experiência e arte que sustentara, por exemplo, a palavra
épica. Como afirma Benjamin, no célebre ensaio “O narrador”,
o advento do romance na era moderna é representativo desse
processo em que o acelerado e ofensivo ritmo da modernidade
imprime ao homem a fragilidade e o isolamento:
[...] o romancista segregou-se. O local de nascimento do roman-
ce é o indivíduo na sua solidão, que já não consegue exprimir-
se exemplarmente sobre seus interesses fundamentais, pois
ele mesmo está desorientado e não sabe mais aconselhar.
(BENJAMIN, 1975, p. 60)

180 Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008


Narrar é resistir?

Configurado plenamente no curso da ordem moderna, o


romance seria dela também um testemunho, conforme identi-
fica Lukács: “O romance é a epopéia de uma era para a qual a
totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente,
para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática
[...]” (LUKÁCS, 2000, p. 55). Nos tempos contemporâneos, esse
sentimento de inadequação de uma totalidade extensiva ou de
imanência parece ainda mais evidenciado.
Em segundo lugar, tomando como foco o segundo elemento
da pergunta (“resistir”) é preciso discutir o que se entende por
resistência ou mesmo a necessidade de que ela exista no con-
texto de precarização da experiência, particularmente em nosso
tempo, quando proliferam os anúncios de morte das utopias.
Já há bastante tempo está claro que, quando se fala em arte e
cultura, essa resistência possui seus limites específicos. Falando
propriamente da narrativa literária, podemos lembrar Silviano
Santiago, que, na prosa-limite de Em Liberdade, ainda na década
de 80, aponta, nas palavras de um Graciliano Ramos personagem
e autor de um diário fictício, que a função do escritor deve ser
a de instilar gotas de insatisfação quando a sociedade parece
acomodada a uma norma – no caso, especificamente, à norma
autoritária. Essa função, contudo, não se cumpriria por meio
de uma ficção tal e qual a realidade; pelo contrário, só atingiria
o objetivo se sua elaboração artística incorporasse o conflito de
subjetividades, exercitado por intermédio de uma linguagem
feita de ambigüidades e lacunas.
Mesmo sabendo que a fala, no livro, se contextualiza na
discussão do papel do artista em meio à experiência autoritária,
pode-se dizer que esse impulso de produzir o estranhamento,
o incômodo gerador da reflexão, atravessa as eras da literatura,
particularmente nas obras que sobrevivem ao seu próprio tempo.
De fato, é disso que vem tratando, há muito, a crítica e a história
da literatura. Entretanto, um dos problemas que se colocam hoje,
para a arte e para o pensamento, afeta exatamente a necessidade
de haver esse impulso ainda visto como forma de resistência.
Grande parte da retórica que embalou o pós-moderno busca
encontrar, para a literatura e para aquilo que concebe como
exercício crítico, outras searas, quilômetros distantes das formas
de interpretação do mundo que dominaram a modernidade.
Afinal, a preponderância da imagem, a diluição das rela-
ções de pertencimento nacional ou regional sob o domínio do
capital globalizado, e o abandono de dadas categorias históricas
em privilégio de um presente em que a liberdade é tutelada pelo
consumo, são todos fatores da contemporaneidade que se impu-
seram na reflexão sobre a capacidade – ou, antes, até mesmo sobre
a necessidade – de uma resistência operada pelos incômodos
que a arte, com suas armas próprias, é capaz de produzir. Esse
contexto, como sabemos, encontra-se intimamente vinculado à
Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008 181
Gragoatá Denise Brasil Alvarenga Aguiar

idéia de superação da modernidade, na configuração de uma


pós-modernidade que ataca todo tipo de totalidade (da qual os
projetos de resistência também teriam participado), na defesa
de um modelo atomizado das experiências humanas, dentre
elas a artística.
De fato, um dos primeiros elementos atacados pelo precur-
sor das teorias do pós-moderno, Jean François Lyotard, são os
projetos de saber (por extensão, de arte e de cultura) fundados
no que ele chama de metarrelatos, ou seja, os grandes modelos
interpretativos da sociedade e do homem, que se afirmaram no
curso da consolidação da modernidade (LYOTARD, 1986).
Para Lyotard, sinteticamente, o período histórico inau-
gurado com as Luzes baseava-se em uma pressuposição de
verdade – consenso entre interlocutores norteados por mentali-
dades racionais – na qual se baseavam os metarrelatos, ou seja,
as interpretações teóricas que buscavam aplicação ampla ou
mesmo universal, como, por exemplo, as propostas por Marx
ou Freud. O pós-moderno, por outro lado e em termos também
sintéticos, seria baseado na incredulidade contemporânea diante
da legitimação gerada por esses metarrelatos. Tal crise de legiti-
midade, correlata à própria crise da modernidade na sociedade
pós-industrial informatizada – caracterização baseada no con-
servador Daniel Bell –, revela, ainda para Lyotard, que a ciência
se inscreveria agora em um domínio de jogos de linguagem, no
qual não detém a supremacia que a Razão moderna outrora lhe
conferira.
Na rede desses jogos de linguagem, a legitimação depen-
de de um pacto temporário ou conjuntural a cargo dos sujeitos
envolvidos. Exposta ao casual e descontínuo, tal legitimação
seria cada vez menos passível de controle por formas centraliza-
doras, inclusive aquelas pertinentes ao Estado-nação moderno,
que, no processo de consolidação da modernidade, deteve um
histórico privilégio no que concerne à produção e à difusão do
conhecimento. Nesse quadro de inequívoca fragmentação das
proposições vistas como “verdades” modernas – particularmente
aquelas derivadas das promessas emancipatórias da Revolução
Francesa – o performático e o paralogístico emergem como
marcas dos novos tempos.
Independentemente, entretanto, do juízo que se possa
tecer sobre esse tipo de reflexão, é fato que aquilo que se gerou
progressivamente a partir do fim da década de 70 do século
XX foi, no campo teórico, um sentimento de insuficiência em
relação a conhecidas linhas de pensamento da modernidade, na
tentativa de apreensão e análise da sociedade contemporânea.
É na repetida manifestação disso que se configura o que Rou-
anet chama de “consciência da ruptura” com a modernidade
(ROUANET, 1987).
182 Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008
Narrar é resistir?

Não se vai aqui estender a discussão acerca da existência ou


não dessa ruptura, mas buscar-se-á entender como a literatura
contemporânea tem percebido tal consciência e de que modo ela
tem, ou não, apresentado sua forma específica de resistência.
Tomemos como exemplo, na literatura brasileira, o romance
de João Gilberto Noll, O quieto animal da esquina, publicado em
1991, e, entre os escritores africanos, o exemplo de Coetzee, com
A vida e a época de Mikael K., de 1993.
Partícipes de um mundo instável, excludente e desesperan-
çado, os protagonistas desses romances encarnam uma forma
particular de epopéia em nosso tempo. Solitários, com rumos
e propósitos incertos, suas viagens são embaladas por um sen-
so de sobrevivência muito distante da altivez ou astúcia dos
heróis épicos. O talento que lhes permite continuar a existir é
justamente o de saber viver às margens, de desaparecer em uma
sociedade para a qual eles, em última instância, seriam mesmo
invisíveis e até desnecessários.
No romance de Noll, um personagem-narrador anônimo
se apresenta, logo de início, em um contexto de instabilidade,
próprio não só da exclusão social, como também, metaforica-
mente, da vida contemporânea. Desempregado, sem pai, vive
com a mãe em uma ocupação urbana de um prédio abandonado
e inacabado, evocando uma espécie de desenraizamento que
marca o cenário social dos despossuídos e que, internamente à
narrativa, vai acompanhar o personagem, assinalando sua condi-
ção sempre estrangeira e, no fundo, incapaz de verdadeiramente
compreender um mundo que parece dispensá-lo, descartá-lo.
Depois de conhecer os porões de uma prisão e de uma
clínica correcional (presentes na narrativa, vale dizer, como fla-
shes, sem ceder ao apelo fácil de um realismo empobrecedor), o
personagem-narrador é levado para conviver com uma família
de alemães, proprietários rurais, revivendo uma condição de
agregado que ficou célebre na literatura brasileira pelo viés irô-
nico de Machado de Assis. Homem de seu tempo, entretanto, o
agregado da casa de Kurtz e Gerda experimenta o sem-lugar de
sua própria condição, sem capacidade de se movimentar como o
vivíssimo José Dias, e temendo, a cada momento, perder aquela
vida confortável pela qual nada efetivamente fez e sobre a qual
também pouco entende. Esfumaçados seus registros de origem e
de classe, percebe a violência que pulsa subliminarmente na casa
dos fazendeiros, ao mesmo tempo em que observa, algo distante,
o movimento dos sem-terra em uma iminência de ocupação:
Fui para o quarto, e a noite já tinha caído, lá em cima na estrada
os sem-terra acendiam fósforos, uma ínfima chama se apagava
e logo outra se acendia por perto, me debrucei na janela, me
veio a lembrança de uma canção que a rapaziada costumava
cantar nos tempos da Glória, mas eu não conseguia avançar
do primeiro verso, e mesmo aquele único verso foi como que

Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008 183


Gragoatá Denise Brasil Alvarenga Aguiar

se diluindo na minha cabeça, em alguns minutos se desfez,


na verdade parecia que de repente o meu destino tinha me
ultrapassado, a mim e a todas as canções que costumavam sair
de cor da minha boca, de tal modo que chegaria um tempo em
que eu viraria para trás e não teria mais nada que reconhecer.
Daqui a pouco não precisarei mais mover uma palha para evi-
tar o meu passado, pensei com desafogo. (NOLL, 2003, p. 42)
Os fatos da arena política nacional também não lhe desper-
tam interesse e só lhe aparecem como pano de fundo residual,
como se expressa na referência a um comício da campanha Lula,
que, na narrativa, serve de ocasião para um dos encontros sexu-
ais do personagem central, no jogo de acasos que caracterizam
sua vida amorosa, esvaziada de afeto, como todas as relações
interpessoais que ele precariamente estabelece.
Mas em meio à sua jornada feita de acasos e silêncios, como
dado de desequilíbrio, como apelo ao inesperado, o anônimo
narrador é poeta. Escrevia versos enquanto procurava, em vão,
emprego pelas ruas de Porto Alegre, nos tempos ironicamente
identificados com um bairro denominado Glória. E depois, nas
agruras de sua vida errante, a poesia persiste ainda, como um
elemento inesperado que, de algum modo, sobrevive à progres-
siva acomodação, à própria assimilação de sua subjetividade por
uma história feita por outros sujeitos.
Com essa condição de criador convive, em constante ten-
são, a imagem do “quieto animal da esquina”, título de um dos
poemas do personagem central, que remete a uma situação con-
traditória: a quietude, o comportamento domesticado, guarda
um esvaziamento da condição humana, uma paradoxal anima-
lização, localizada em um espaço que sugere, simultaneamente,
proximidade e iminência, intimidade e perigo.
Assim, a percepção do casual e do temporário – detectada
por Lyotard, no plano teórico, como forma de libertação diante
de uma totalidade derivada do Iluminismo – revela-se, no ro-
mance de Noll, como a face dramática de uma efetiva redução
das possibilidades do indivíduo, e não como sua redenção ou
mesmo como qualquer tipo de avanço. Longe dos pertencimentos
celebrados pelo projeto hegemônico da modernidade, a figura
anônima do narrador apega-se precariamente ao que lhe aparece,
renunciando ao papel de protagonista de sua própria história.
Nessa renúncia, entretanto, afastam-se tanto as possibilidades
de encontro mais coletivo com seus pares, quanto qualquer so-
lução individual que não implique submissão e quase anulação
do indivíduo, em proveito de um presente inseguro, feito de
formas diversas de violência e solidão.
Desse modo, aquela cena das opressões operadas por um
inimigo visível, pelos diferentes mecanismos de tutela do imagi-
nário (em que se move a narrativa de Gabeira ou a condição do
Graciliano-personagem de Santiago, por exemplo), é substituída
184 Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008
Narrar é resistir?

por outra, em que a anulação do indivíduo assume alguma forma


de escolha. Afinal, na equação entre condições de vida miserá-
veis e alternativas de salvação, não se pode dizer que o jovem
anônimo da narrativa de Noll não tenha, em parte, escolhido o
seu caminho, mesmo que tal opção leve, paradoxalmente, a uma
progressiva perda de capacidade de escolher, à aceitação de uma
proteção que se revela, no fundo, desenraizadora e impeditiva:
“Recomecei a andar, frouxo, sem vontade, como se Porto Alegre
já não me interessasse. Se tivesse um jeito de eu permanecer no
Rio, ou mesmo na Alemanha, na Europa, sem perder a situação
que Kurt me proporcionava” (NOLL, 2003, p. 42).
Na cena final, a aceitação em vestir as roupas do fazendeiro
alemão é acompanhada de um berro, que aponta uma percepção
definitiva da perda da identidade que se vinha fazendo progres-
siva e agora se mostrava irremediável. Vão-se os últimos fios de
uma identidade que se viera adaptando, demonstrando-se tão
líquida como a fase atual da modernidade, na caracterização de
Bauman (2001).
Tal interpretação, nada celebrativa, dos deslizamentos do
sujeito integra um esforço de leitura da realidade em que, se por
um lado enxerga como problemas os projetos emancipatórios
que se fizeram presentes no imaginário durante grande parte do
século XX, por outro reproduz, no aleatório do jogo das identida-
des, o gesto que imortalizou o desespero n’O grito de Munch.
Não parece haver projeto de redenção na ficção de Noll,
que leva o leitor a acompanhar a condição errante do perso-
nagem principal, em uma viagem pelas margens, pontuada
pelo iminente desamparo e pela diluição do ser em seu trágico
cenário social. Também nessa narrativa, a figuração do desen-
raizamento, o sentimento estrangeiro em um mundo instável e
hostil, acompanha a perene condição fugidia de um narrador
significativamente anônimo, que se esgueira pela casa na volta
de suas saídas noturnas, que observa à distância o complicado
jogo de papéis na casa dos alemães, e que, enfim, só guarda de
si mesmo um berro, resistência lacunar e desesperada de quem
vê sua sobrevivência como renúncia.
Nesse sentido, a resistência que se pode ler no romance
não encarna mais aquela face exposta de que fala a epígrafe
de Gabeira, mas se ocupa em manifestar, agudamente, uma
consciência que talvez entenda o próprio exercício crítico como
o “quieto animal da esquina”, como potencialidade latente de
desconstrução de uma ordem que se anuncia como mundial.
De animalização e silêncio também se compõe o perso-
nagem Michael K., de Coetzee. Assinalado desde o nascimento
por um lábio leporino e pela condição social subalterna de sua
mãe, Michael segue seu caminho sempre às margens, sempre
insignificante em sua solidão:
Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008 185
Gragoatá Denise Brasil Alvarenga Aguiar

Ano após ano, Michael K ficou sentado em cima de um co-


bertor vendo a mãe limpar o chão dos outros, aprendendo a
ficar em silêncio.[...]

Aos quinze anos, saiu do Huis Norenius e passou a fazer


parte da Divisão de Parques e Jardins do serviço municipal
da Cidade do Cabo, como Jardineiro, grau 3(b).Três anos de-
pois, deixou a Parques e Jardins e, após um breve período de
desemprego que passou deitado olhando as próprias mãos,
arrumou um trabalho de atendente noturno nos lavatórios
públicos de Greenmarket Square.[...]

Por causa da sua cara, K não tinha amigas mulheres. Ficava


melhor sozinho. Ambos os empregos haviam lhe dado uma
certa medida da solidão [...]. (COETZEE, 2003, p. 10)
Vivendo no país do apartheid, em um contexto de extrema
instabilidade social, experimentando a opressão de um regime
autoritário, que o lança à condição de uma cidadania de segunda
classe – deformação social a que sua deformação física e seu si-
lêncio metaforicamente parecem remeter –, Michael decide levar
a mãe em uma viagem de volta à terra natal dela, no interior
da África do Sul. Doente, com dificuldade de locomoção, a mãe
é carregada por Michael em um carrinho de mão, imagem de
uma precariedade em tudo semelhante à sua própria vida e às
suas condições de se afirmar como sujeito em uma sociedade
na qual o direito de ir e vir pode depender da condição social
ou racial daquele/a que o reivindica.
A viagem de volta à origem, à fazenda onde passara a in-
fância, torna-se inconclusa para a mãe, que morre bem antes de
chegar ao destino, transformando-se em cinzas que, segundo a
própria conclusão de Michael, dão continuidade à insignificância
que sempre lhe impuseram em vida. Mas, para ele, o percurso
do silêncio e da invisibilidade continua, seja no hospital, no
campo de refugiados, ou numa toca da fazenda que ele usa para
se esconder, camuflando-se na mesma terra que dá vida às suas
poucas sementes de abóbora.
Em sua caverna algo platônica, isola-se de um mundo ame-
açador e hostil, refugiando-se tanto do neto do proprietário da
fazenda, que quer escravizá-lo, quanto das ameaças da guerra
civil. A cada dia que passava, “parecia não existir nada, a não ser
viver”, e era o que ele fazia, às vezes esvaziando a mente, “sem
querer nada, sem esperar nada” (p. 82). Mas, em tudo distante
daquele universo grego, sentia-se como um bicho. A luz que o
cegava acaba por alcançá-lo, revelando a fragilidade de sua vida
e de sua saúde, expulsando-o de seu refúgio e interrompendo
sua relação com a terra, único fio de existência que – ao contrário
da guerra civil sul-africana e do mundo, que o sufocavam – ele
parecia compreender.
186 Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008
Narrar é resistir?

De uma memória que “parecia ser feita de partes, não de


todos” (p.61), Michael tira o sentido de sua caminhada, de uma
inacreditável resistência que, massacrada pela debilidade do
corpo e pelo peso da História, se recusa à adaptação, mesmo
aquela camuflada pelo discurso da compaixão. Diferente do
personagem do Noll, Michael move-se norteado pelo sentido de
sua distância em relação a este mundo, pelo estranhamento de
suas feições e de suas atitudes, em uma realidade em que sobre-
viver implica conceder. Perplexo, o oficial médico de um campo
militar de “reabilitação e trabalho” para prisioneiros assume a
fala narrativa e procura definir essa condição fugidia:
Nesse momento, desconfio, por ser essa a sua natureza, você se
poria a correr.E eu teria de correr atrás de você, chapinhando
na grossa areia cinzenta como se fosse água, desviando dos
galhos, gritando: “Sua estada no campo foi apenas uma ale-
goria, falando no nível mais elevado, de como um significado
pode, escandalosamente, exorbitantemente, se instalar dentro
de um sistema sem passar a fazer parte dele. Você notou como,
sempre que eu tentava encurralar você, você escapava? Eu
notei. Sabe que idéia passou pela minha cabeça quando vi
que você tinha ido embora sem cortar o arame farpado? ‘Ele
deve saber saltar com vara’. Foi isso que pensei. Bom, você
não pode saltar com vara, Michael, mas é um grande artista
da fuga, um dos maiores fugitivos: tiro o meu chapéu para
você!”. (COETZEE, 2003, p. 192-193)
Instalar-se no sistema, sem tornar-se parte dele, fugir sem
rumo, entregar-se à terra é dotar-se de um poder de superação
tão improvável como saltar com vara sobre a cerca de um campo
de prisioneiros, para alguém no limite das forças do corpo. Mas
é justamente quando esse improvável acontece que Michael con-
segue comunicar o significado de sua vida, predominantemente
feita de solidão e incomunicabilidade. Logo ele, para quem as
palavras sempre foram problema, visto que freqüentemente in-
compreensíveis, fazendo “a burrice subir dentro dele” e em muito
lembrando nosso Fabiano de Vidas Secas, na sua precariedade
de vida e de linguagem.
Nessa alegoria do precário, mostram-se as ruínas de um
pertencimento que Michael também não reconhece como possi-
bilidade para continuar existindo. Afinal, família, nacionalidade
e coletivo são moldes sempre distantes para ele. A identidade
deformada de sua face, a mãe que sentia medo e vergonha,
afastando-o das outras crianças, uma nação que não lhe confe-
re cidadania e o constante desencontro com seus semelhantes,
brutalizados, como ele próprio, pela miséria ou pela guerra, são
todos fatores que tornam impossível seu encontro com o outro
e, em alguma medida, consigo mesmo.
Como o protagonista do romance de Noll, Michael não se
define, apenas foge. E aqui não é a identidade que desliza, que
se torna móvel. Afinal, a identidade lhe foi impressa, a ferro e
Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008 187
Gragoatá Denise Brasil Alvarenga Aguiar

fogo, por um mundo intolerante e excludente. O desconcerto


de sua existência conduz à incompreensão, tanto por parte dos
outros, quanto por ele mesmo:
Ninguém sabia de onde ele era. Não tinha nenhum documento,
nem um cartão verde. No boletim escreveram “Michael Visagie
[na verdade, esse era o nome da família proprietária da fazen-
da em que ele se escondera] – Sexo masculino – Cútis escura
– 40 – Sem residência fixa – Desempregado”, acusado de sair
de seu distrito legal sem autorização, de não ter em sua posse
documento de identificação, de infringir o toque de recolher,
de bebedeira e desordem. (COETZEE, 2003, p. 84)

Sempre que [Michael] tentava se explicar para si mesmo, so-


brava um espaço, um buraco, um escuro diante do qual seu
entendimento empacava, no qual era inútil jogar palavras. As
palavras eram devoradas, o buraco permanecia. Sua história
tinha sempre um buraco: uma história errada, sempre errada.
(COETZEE, 2003, p. 128)
Com a fuga de Michael, significativamente contada por pa-
lavras pertencentes a um outro (o médico) sujeito da enunciação,
a narrativa sugere que a condição de excluído, de errado, assim
como sua marca de nascença, vai acompanhar o personagem em
todos os espaços e por todo o tempo. Com essa identidade bem
marcada no jogo da exclusão e do silêncio a que é condenado
por sua época, a Michael K resta alhear-se, fugir. Mas é nesse
alheamento que se demonstra sua resistência.
É interessante observar que a idéia do deslocamento parece
mesmo companheira constante da narrativa contemporânea,
seja na figuração do sentimento de abolição de fronteiras, seja
na representação problemática do chamado descentramento do
indivíduo ou das muitas crises que abalam os pertencimentos
coletivos. Essa configuração esvazia a idéia de uma resistência
identificada com a utopia, conduzindo parte da boa ficção con-
temporânea para o exercício de instilar suas gotas de insatisfação
na caracterização de um tempo movediço e instável.
E, se é verdade que essa instabilidade é marca da nossa
época – correlata de um mundo capitaneado pelo capital volátil
e globalizado –, é fato também que ela se faz muito mais mar-
cante no lado do planeta que está historicamente condenado a
pagar a conta dos desacertos do chamado primeiro mundo. É
significativo que essas narrativas ambientadas no Brasil e na
África do Sul mostrem, de maneira tão aguda, o que representa
viver à margem; no caso de ambos os protagonistas, à margem
da margem.
Nas rotas de fuga do anônimo poeta e de Michael K, a
realidade não se produz por uma cultura tornada uma segunda
natureza, para usar as palavras de Jameson (2004) – embora na
ambientação contemporânea dos romances sempre se possam
reconhecer alguns efeitos desse fenômeno. Não há lugar para o

188 Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008


Narrar é resistir?

pastiche ou para a glorificação do simulacro; o peso da existência


individual e social de ambos se impõe, soterrando as possibili-
dades de deslizamento do sujeito, de exercício interpretativo de
citações ou de múltiplas realidades. Diante dessas figuras dolo-
rosamente inseridas na nova ordem mundial, principalmente
Michael K, a figuração de uma humanidade sem fronteiras,
irmanada pelas possibilidades da comunicação e do consumo em
escala global, assume tom de impiedosa pilhéria. Analisando as
conseqüências humanas da globalização, Zygmunt Bauman ela-
bora uma caracterização que parece precisa para o problema:
Se a nova extraterritorialidade da elite parece liberdade in-
toxicante, a territorialidade do resto parece cada vez menos
com uma base doméstica e cada vez mais com uma prisão –
tanto mais humilhante pela intrometida visão da liberdade
de movimento dos outros. Não se trata apenas do fato de
que a condição de “estar imobilizado”, incapaz de se mover à
vontade e com acesso barrado a pastagens mais verdejantes,
exsude o odor acre da derrota, indicando uma condição hu-
mana incompleta e implicando ser defraudado na divisão dos
esplendores que a vida tem a oferecer. A privação atinge mais
fundo. (BAUMAN, 1999, p. 31)
Assim, para ambos os personagens, o que seu espaço-
tempo legou foram as pequenas brechas em que aprenderam a
sobreviver. De algum modo, as narrativas de que fazem parte
caracterizam ainda uma via de resistência, destoando do tom
algo festivo e kitsch da estética pós-moderna, daquilo que Jame-
son caracterizou como lógica dominante do capitalismo tardio.
Aliás, o crítico examina exatamente O grito, de Munch, para
levantar a hipótese histórica de que os conceitos de ansiedade
e alienação (que estariam sugeridos na tela) não são mais pos-
síveis no mundo pós-moderno, tendo em vista que a alienação
foi deslocada pela fragmentação do sujeito.
Se este é comumente visto como o sujeito centrado bur-
guês, cunhado na primazia do individualismo, vale notar que os
protagonistas dos dois romances não podem propriamente ser
identificados com tal categoria. Seu desespero advém de outro
tipo de experimentação do mundo e, no geral, seu empareda-
mento não se aproxima das angústias do homem isolado em
virtude das mesmas questões que se manifestavam nas obras do
modernismo. Iguais a eles, milhões de outros homens a quem
são e serão negadas as portas do futuro, a quem restará apenas
existir e em nome de quem, por vias diversas, próprias de sua
época, a literatura continua a lançar seu grito, talvez, para lem-
brar o poeta, esperando outros galos que o apanhem.

Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008 189


Gragoatá Denise Brasil Alvarenga Aguiar

Abstract
Analysis of contemporary fiction, in an attempt
to explicit the transformations of literature in
the context of social and cultural changes which
characterize post-modernity. Identification of
literary trends of thematization of the erasure
of subjectivity in the hostile scenery of social
exclusion. Search for a dialogue between literary
writing in Brazil and in South Africa in the late
20th century, based on two specific works: João
Gilberto Noll’s O quieto animal da esquina and
J.M.Coetzee’s Life & times of Michael K.
Keywords: Contemporary fiction. Post-moder-
nity. Noll. Coetzee.

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190 Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008
Os velhos “marionetes”:
Quincas Berro D’Água, versões e
construção de identidade
Lúcia Bettencourt

Recebido 28 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo
Neste artigo, o exame do conto “A morte e a
morte de Quincas Berro D’Água”, extraído de Os
velhos marinheiros (1961) revela que, em sua
elaboração, Jorge Amado aproveitou-se de perso-
nagens correntes na dramaturgia popular, e recor-
rentes em sua obra. Estas personagens, oriundas
da tradição européia da “comedia dell’arte”, na
ficção de Amado se mesclam à arte popular re-
gional, de forte influência africana. Com isso, o
conto pode receber uma nova leitura que deixa de
privilegiar o caráter fantástico da narrativa para
ressaltar o seu aspecto dramático, subvertendo a
compreensão do cidadão brasileiro, Quincas, que
adquire expressividade através da manifestação
artística popular, já que o próprio protagonista
ganha traços de marionete. Na cena final, os cabos
das velas do saveiro balançam vazios após o desa-
parecimento do boneco que animavam, deixando
em seu lugar a possibilidade de diferentes versões
que o construam.
Palavras-chave: Marionetes. Dramaturgia po-
pular. Jorge Amado. Quincas Berro D’Água.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 191-201, 1. sem. 2008


Gragoatá Lúcia Bettencourt

Quem começa a leitura de “A morte e a morte de Quincas


Berro D’água”, de Jorge Amado e presta atenção na descrição das
personagens, se surpreende com caracteres de traços e roupas
exageradamente fora do comum, que bem poderiam ter sido
tirados do palco de um circo que reinterpretasse as tradições da
commedia dell’arte. Quincas, Curió, Pé-de-Vento e os outros apa-
recem descritos como verdadeiros marionetes, com “fantasias”
bizarras e rigidez caricatural. Quincas vem apresentado com os
trajes de vagabundo – um vagabundo idealizado, que se opõe
a um mundo pequeno burguês dominado pela conveniência, a
economia e o senso prático. Sua roupa grande demais, seu cole-
te sebento, a meia furada e a barba por fazer funcionam como
elementos que lhe fornecem identidade e, até mesmo, vida.
Preparada por inúmeras divagações que se expandem
por todo o primeiro capítulo da narrativa, a figura de Quincas
finalmente aparece sem retoques: “Quincas sorria deitado no
catre – o lençol negro de sujo, uma rasgada colcha sobre as pernas
–, era seu habitual sorriso acolhedor […] O dedão do pé direito
saía por um buraco da meia, os sapatos rotos estavam no chão”
(AMADO, 1961, p. 22).
Esta é a caracterização habitual da personagem. Nada disso
causa espanto à negra que vem à procura do vagabundo para
apanhar as ervas que este lhe prometera conseguir. Seu sorriso
costumeiro, sua figura familiar não lhe causam estranheza.
A negra somente se apercebe de que algo está errado quando
Quincas deixa de agir como era esperado, e não estende a “mão
libertina, viciada nos beliscões e apalpadelas” (AMADO, 1961, p.
23). Até mesmo Vanda, a filha, não se surpreende ao encontrá-lo,
um capítulo mais tarde, na mesma situação em que fora dado
como morto. “No catre, Quincas Berro Dágua, as calças velhas e
remendadas, a camisa aos pedaços, um seboso e enorme colete,
sorria como se estivesse a divertir-se. […] o rosto de barba por
fazer, as mãos sujas, e dedo grande do pé saindo da meia furada”
(AMADO, 1961, p. 25).
A oposição entre a respeitabilidade da filha e a falta de
apresentabilidade do morto se revelam no rosto ruborizado de
vergonha com que Vanda contempla o pai. A distância entre a
filha e o pai transviado é tanta que a impede de qualquer emoção
filial. Mais do que isso, não a deixa entrar no “picadeiro”, para
servir de espetáculo aos poucos presentes que “[a]fastavam-se
para ela passar, curiosos de vê-la lançar-se sobre o cadáver,
abraçá-lo, envolver-se em lágrimas, soluçar talvez” (AMADO,
1961, p. 25).
O fato é que, tal como nos é apresentado, Quincas é um
boneco abandonado pela vida, ao qual é preciso ajeitar, consertar.
Desde o início da narrativa, temos dois mundos aparentemente
antagônicos, enfrentando-se na disputa de versões sobre sua
morte. Os discursos se contradizem, as lacunas se multiplicam.
192 Niterói, n. 24, p. 191-201, 1. sem. 2008
Os velhos “marionetes”: Quincas Berro D’Água, versões e construção de identidade

A família defende a versão da morte matinal, enquanto outra


versão se propala nas ladeiras e becos excusos. Ao atestado
de óbito, “papel selado” com “letras impressas e estampilhas”,
versão oficial defendida pela família, vem se contrapor a pró-
pria narrativa, versão criativa defendida pelas “testemunhas
idôneas”.
A história se desenvolve num nível quase alegórico, com
a elevação da suposta frase final de Quincas não só à categoria
de epígrafe do texto como também a “um testemunho profético,
mensagem de profundo conteúdo” – seja lá esse qual for, já que
isso é deixado em aberto para a interpretação dos leitores do
“jovem autor de nosso tempo” (AMADO, 1961, p. 19, passim).
Como numa revolta dos brinquedos, todas as marionetes
companheiras de Quincas se reúnem na criação de uma versão
antagônica à dos familiares de Joaquim Soares da Cunha. O
fantoche abandonado sobre a cama vai ser vestido e desvestido,
colocado em repouso ou em movimento, criando um espetáculo
ao luar que se pretende portador de um sentido mais além das
versões duplas e díspares.
O objetivo da filha Vanda é recuperar a imagem anterior
do “boneco”, a imortalizada no quadro pendurado na parede de
sua sala: “um senhor bem posto, colarinho alto, gravata negra,
bigodes de ponta, cabelo lustroso e faces róseas” (AMADO,
1961, p. 24). Este retrato, tão estereotipado quanto o de sua mãe,
é o paradigma pelo qual a família se guia para a recuperação
do morto. Retirando a “fantasia” de vagabundo e colocando no
corpo inanimado a “fantasia” de correto funcionário da Mesa
de Rendas Estadual, a identidade do morto se modifica. Já não
se trata mais de Quincas Berro D’Água, mas de Joaquim Soares
da Cunha.
Não compreendiam que Quincas Berro D’Água terminara ao
exalar o último suspiro? Que ele fora apenas uma invenção
do diabo. Um sonho mau, um pesadelo? Novamente Joaquim
Soares da Cunha voltaria e estaria um pouco entre os seus, no
conforto de uma casa honesta, reintegrado em sua respeita-
bilidade. Chegara a hora do retorno e desta vez Quincas não
poderia rir na cara da filha e do genro, mandá-los plantar ba-
tatas, dar-lhes um adeuzinho irônico e sair assoviando. Estava
estendido no catre, sem movimentos. Quincas Berro D’Água
acabara. (AMADO, 1961, p. 26)
O morto, bem comportadamente, se deixa manipular
pelos funcionários da empresa funerária que, trocando-lhe a
roupa, mudam-lhe a identidade. A metamorfose seria perfeita,
não tivesse Vanda esquecido “de pedir uma fisionomia mais a
caráter, mais de acordo com a solenidade da morte” (AMADO,
1961, p. 38).
Constatando, segundo as palavras do santeiro, que “nem
parecia o mesmo morto”, Vanda contempla com prazer a recu-
peração de Joaquim Soares da Cunha:
Niterói, n. 24, p. 191-201, 1. sem. 2008 193
Gragoatá Lúcia Bettencourt

Penteado, barbeado, vestido de negro, camisa alva e gra-


vata, sapatos lustrosos, era realmente Joaquim Soares da
Cunha quem descansava no caixão funerário – um caixão
régio (constatou satisfeita Vanda), de alças douradas, com
uns babados nas bordas.[…] Fisionomia melancólica,
fitou o cadáver. Sapatos lustrosos, onde brilhava a luz
das velas, a calça de vinco perfeito, o paletó negro as-
sentando, as mãos devotas cruzadas no peito. (AMADO,
1961, p. 34, 37)
No entanto, a metamorfose não estava completa. Para o
homem do retrato – Joaquim – faltava a fisionomia séria. E para
o defunto bem composto faltava a mão bem colocada, o polegar
abaixado.
Para Vanda estes detalhes são sinais de resistência e per-
manência, vistos e ouvidos por ela, o sorriso e os deboches do
morto levam a narrativa a uma ambiguidade fantástica que vai
imperar até o final da mesma.
A história já está em sua metade. Até então, tudo o que
se apresenta vem filtrado por narrativas de outros: a narrativa
do santeiro, as lembranças, boas e más, de Vanda com relação
a seu pai, as evocações bem humoradas de tia Marocas são os
construtores da personalidade de Quincas/Joaquim. Mesmo no
instante em que as frases de Quincas começam a ressoar dentro
da história, o leitor hesita entre atribuir as falas ao morto ou às
prováveis alucinações que um ambiente fechado, abafado e ex-
cessivamente perfumado poderia provocar na filha autoritária. O
narrador fornece argumentos bastantes para as duas “versões”:
a que ele habilmente vai construindo e a da família, que a essa
altura já está grosseiramente caricaturizada através de suas pró-
prias palavras e ações. A cada descrição de Quincas/Joaquim, a
família se retrata a si mesma. A cada providência para o enterro,
a família se denuncia como um pastiche da pequena burguesia,
sem que seja necessária a intervenção do narrador. O uso hábil
do discurso indireto serve, então, como instrumento de caracte-
rização dos grupos divididos quanto à imagem do morto.
Já Quincas/Joaquim se constrói a partir de retalhos (frag-
mentos) de memória. É um boneco de trapos que vai sendo re-
cheado a cada fala. Aqui, um funcionário exemplar, sisudo; ali,
um exímio conhecedor de cachaça, rei das meretrizes. Aqui, um
marido acovardado e calado; ali, amante sábio e divertido. As
diferenças se multiplicam, mas não a ponto de criar duas per-
sonalidades totalmente distintas. Em Joaquim vislumbramos as
características compassivas e ternas de um Quincas. Em Quincas
vemos os resquícios de uma vida passada: idade, educação e
“cultura” (entendida aqui como saber falar e expressar-se melhor
que o grupo em que se insere).
Esse boneco de trapos, marionete que cobra vida indepen-
dente revoltando-se contra sua manipulação, se torna, segundo a
194 Niterói, n. 24, p. 191-201, 1. sem. 2008
Os velhos “marionetes”: Quincas Berro D’Água, versões e construção de identidade

opinião de Vanda, inquieto ao chegar a noite. Através do discurso


indireto livre ele é apresentado como alguém que esperasse por
alguma coisa, ou por outro alguém, com os olhos voltando-se
ora para a janela ora para a porta. Descobrimos, mais tarde, que
ele esperava pelos amigos.
Estes vão surgindo pouco a pouco na narrativa. O primeiro
comparsa de Quincas a aparecer é Curió, com sua casaca inusi-
tada, seu rosto pintado de vermelhão:
Empregava ele seus múltiplos talentos na propaganda
de lojas da Baixa do Sapateiro. Vestido com um velho
fraque surrado, a cara pintada, postava-se na porta de
uma loja, contra mísero pagamento, a louvar-lhe a ba-
rateza e as virtudes, a parar os passantes dizendo-lhes
graçolas, convidando-os a entrar, quase arrastando-os à
força. (AMADO, 1961, p. 46-45)
Sua gaforinha alta de mulato e a pintura de suas faces esta-
riam mais à vontade num picadeiro que num velório ou mesmo
nas ruas da cidade. No entanto, ninguém parece estranhar sua
figura, que se torna mais engraçada pelas suas tentativas de
comportar-se como elemento sério. O ponto alto da comicidade
de Curió pode ser colocado na cena do velório quando ele tenta
puxar uma reza, colocando-se de joelhos e de cabeça baixa, num
arremedo vão do comportamento tradicional.
A seguir aparece Negro Pastinha, “que media quase dois
metros” e “quando estufava o peito semelhava a um monumen-
to, tão grande e forte era” (AMADO, 1961, p. 45). Esse aspecto
assustador, no entanto, contrapõe-se a um “natural alegre e bo-
nachão”, construindo o estereótipo do Bom Crioulo, do gigante
gentil, ameaçador pelo tamanho e pela força, mas espontâneo e
natural como uma criança. Dele só se pode esperar uma lealdade
a toda prova ao seu “paizinho Quincas” e o à-vontade infantil
que o leva a sentar-se no chão e a rir no velório sem nenhum
sinal de constrangimento.
Cabo Martim é o próximo elemento do grupo a surgir
na narrativa. Encontrado em plena atividade como jogador,
Martim é o galã do grupo. Se Curió pode ser aproximado do
Pierrô apaixonado por estar sempre noivando, vítima de pai-
xões fulminantes, Martim está mais próximo de Arlequim, por
quem as mulheres suspiram, ou do miles gloriosus, por sua pa-
tente. Ex-cabo do exército, cultua a farda (ao fim e ao cabo, uma
fantasia), o amor, a conversação e o jogo. Com seus olhos azuis
se une ao grupo na procura de Pé-de-Vento, personagem que,
mais desenvolvido em outras histórias, sobrevivia ajudando os
outros a morrer, “especialista em abreviar o passamento para o
outro mundo desses moribundos renitentes, ‘agarrados ao fifó
da vida’, mas foi pilhado complementando a eficácia das orações
com o cotovelo no gasnete do agonizante” (TAVARES, 1985, p.
268). Na história de Quincas, o lado mórbido de Pé de Vento se
Niterói, n. 24, p. 191-201, 1. sem. 2008 195
Gragoatá Lúcia Bettencourt

revela graças a sua profissão de caçador de ratos e de pequenos


animais para experimentos científicos. Essa sua identificação
com a ciência lhe traz prestígio perante o grupo:
Caçava ratos e sapos para vendê-los aos laboratórios de exames
médicos e experiências científicas – o que tornava Pé-de-Vento
figura admirada, opinião das mais acatadas. Não era ele um
pouco cientista, não conversava com doutores, não sabia pa-
lavras difíceis? (p. 49).
Vestido em um paletó grande demais, parece um menino
fazendo-se de grande. Para melhor caricaturá-lo, o autor lança
mão dos animais à custa dos quais a personagem sobrevive.
Suas características são a imobilidade, o olhar parado, o deslizar
silencioso dos répteis. Assim sendo, não é de espantar que ele
traga ao velório uma de suas presas, uma “pequena jia verde,
polida esmeralda” – um tesouro de olhos saltados que vai ser
oferecido a Quincas na primeira oportunidade (Diga-se de pas-
sagem, que é oferecido na esperança de obter outro tesouro de
olhos arregalados – Quitéria).
Cabo Martim, o rufião romântico, galã do circo mambem-
be, que se desenrola pelas ruas de Salvador num carnaval atem-
poralizado, chefia o grupo que comparece ao velório de Quincas/
Joaquim para desgosto de sua família. Com modos educados
– “em matéria de educação só perdia para o próprio Quincas”
(p. 50) – ele se coloca à disposição para tomar conta do falecido.
Vanda não deseja abandonar sua presa: o fantoche de Joaquim.
Entretanto, se vê forçada, pelas conveniências, a retornar a casa,
acreditando que, no dia seguinte de manhã, conseguiria retomar
as rédeas do morto, continuando no comando da situação.
Após sua partida, Eduardo, o irmão comerciante de Quin-
cas/Joaquim acaba por abandonar o defunto. Pensando apenas
numa boa cama e em seu conforto, oferece algum dinheiro
para o Cabo Martim “comprar uns sanduíches” e vai para casa,
deixando o morto com o grupo de amigos.
A partir daí Quincas começa a se transformar, por conta da
influência do grupo. De “defunto porreta” passa a companheiro
de bebidas e piadas. Com a manipulação dos amigos acentua-
se seu ar de marionete. Ele é colocado sentado no caixão, onde
fica com a cabeça balançando de um lado para o outro, o sorriso
ampliado pelo gole de cachaça. Sua herança – mulher e roupa
nova – é cobiçada pelo grupo. Se o cadáver parece relutar em
abrir mão da mulher, os amigos interpretam os meneios de sua
cabeça como autorização para despojá-lo das roupas.
– Bom paletó… – Cabo Martim examinou a fazenda. – Bes-
teira botar roupa nova em defunto. Morreu, acabou, vai para
debaixo da terra. Roupa nova pra verme comer, e tanta gente
aí precisando […]

196 Niterói, n. 24, p. 191-201, 1. sem. 2008


Os velhos “marionetes”: Quincas Berro D’Água, versões e construção de identidade

Palavras cheias de verdade, pensaram. Deram mais um gole


a Quincas, o morto balançou a cabeça, era homem capaz de
dar razão a quem a possuía, estava evidentemente de acordo
com as considerações de Martim.

– Ele está é estragando a roupa.

– É melhor tirar o paletó pra não esculhambar.

Quincas pareceu aliviado quando lhe retiraram o paletó


negro e pesado, quentíssimo. Mas, como continuava a cuspir
a cachaça, tiraram-lhe também a camisa. Curió namorava os
sapatos lustrosos, os seus estavam em pandarecos. Pra que
morto quer sapato novo, não é, Quincas?

– Dão direitinho nos meus pés.

Negro Pastinha recolheu no canto do quarto as velhas roupas


do amigo, vestiram-no e reconheceram-no então:

– Agora sim, é o velho Quincas. (p. 58)


Com a mudança de roupas, muda-se também a identidade
do fantoche, definitivamente. O boneco já não é mais um híbrido
Quincas/Joaquim e a marionete é mais bem manipulada. Capaz
de reações, cospe cachaça no olho de Curió, ao escutar o que
não deseja. Participa das críticas contra seus parentes e disputa
seus goles de cachaça com disposição. E, finalmente, presta-se ao
passeio pelas ruas enluaradas de Salvador, recuperando a “vida”
através das roupas, da cachaça e da interpretação dos amigos.
“Bêbedo que não se agüenta” sai Quincas, “satisfeito da
vida, num passo de dança” (p. 61), para participar de uma noite
memorável.
O grupo segue carregando seu velho “marionete”, que,
“divertidíssimo, tentava passar rasteiras no Cabo e no Negro,
estendia a língua para os transeuntes”, e “pretendia, a cada passo,
estirar-se na rua”. No “cenário fantasmagórico” do Pelourinho (p.
62), o velório já está transformado em comemoração ao aniversá-
rio de Quincas. À chegada de Quitéria do Olho Arregalado, cuja
caracterização teatral se coaduna com a cena, Curió se apressa
a fazer seu pequeno discurso explicativo:
– Tinha corrido a notícia de que Berro Dágua bateu as botas,
tava tudo de luto. – Quincas e os amigos riram. – Ele tá aqui,
minha gente, é dia do aniversário dele, tamos festejando, vai
ter peixada no saveiro do Mestre Manuel (p. 63).
Quitéria do Olho Arregalado, a heroína cômica, vestida
com mantilha negra num arremedo melodramático da viúva
inconsolável, ao cair de bunda no chão reforça a farsa que se
vai elaborando. Os fantoches se arrastam pelas ruas de Salvador
com movimentos desengonçados de pantomima, caminhando
Niterói, n. 24, p. 191-201, 1. sem. 2008 197
Gragoatá Lúcia Bettencourt

sob a luz do luar que encobre as cordas que manipulam esses


títeres.
Essas cenas humorísticas da narrativa começam a acontecer
já depois de adiantada a história. Primeiro, como vimos, temos
a construção de uma duplicidade de versões da morte do herói:
discute-se a possibilidade de cada um tratar de seu enterro – “Im-
possível não há”! O tom da narrativa não promete nada de novo.
Uma história fantástica, talvez. A repetição de adjetivos como
“mágico”, “fantástico”, “misterioso” reforça essa aproximação ao
texto. Em verdade, discute-se também a possibilidade e a vali-
dade de duas versões para um mesmo fato, uma documentada
por um papel oficial – o atestado de óbito – a outra confirmada
por pessoas de “uma só palavra”. Poderíamos cair na discussão
entre o valor do humano versus o valor do documental. No en-
tanto, o narrador, através da garantia de idoneidade de ambas
as versões, deixa a opção a cargo do leitor, e para isso ele cons-
trói o palco onde as personagens vão agir, demonstrando sua
verdade. Ao papel oficial, vai-se contrapondo, gradualmente, o
papel que se constrói a partir da narrativa, o papel artístico, o
documento literário.
Para melhor redigir esse documento, o narrador deixa
que as próprias personagens construam a cena e elaborem suas
fantasias, até mesmo Quincas. Ele é sempre versão. O morto e o
vivo se equivalem, pois cada uma das pessoas do texto oferece
uma interpretação para seu corpo, e essa explicação é a que per-
manecerá na memória de uns e outros. Até mesmo sua alcunha
é produto de uma fala, de um berro: “águuuuua!” E esse seu
caráter “literário”, prestando-se a toda interpretação, perdura
por todo o texto. Agindo ou reagindo, seus gestos, suas pausas,
seus silêncios são sempre trazidos ao leitor através do filtro da
interpretação de outras personagens. Como num teatro de ma-
rionetes em que o movimento convulso dos bonecos gera mais
ação e, com isso, propulsiona o desenvolvimento da cena, aqui
os estertores de Quincas – ou sua imobilidade, tanto faz – geram
mais interpretações, levando a narrativa e as personagens ao
momento culminante do passeio de saveiro.
Finalmente temos Quincas em pé junto à vela menor,
debaixo da tempestade que ameaçava a embarcação. Ninguém
sabe como ele se pôs em pé naquele lugar. Na confusão da tem-
pestade, é impossível ver as cordas que movimentam este títere,
mas todos presenciam sua queda no mar e ouvem sua frase
derradeira. Essa cena final poderia desfazer a ambigüidade ha-
bilmente construída pela narrativa, por causa da unanimidade
de versões. Só que a famosa frase final também terá “versões
variadas”, invalidando a univocidade dos fatos. Desse modo,
a história de Quincas começa e termina com duas versões de
uma mesma citação. A epígrafe inicial, “segundo Quitéria que
198 Niterói, n. 24, p. 191-201, 1. sem. 2008
Os velhos “marionetes”: Quincas Berro D’Água, versões e construção de identidade

estava a seu lado” e o verso final, “[s]egundo um trovador do


Mercado”.
O velho “marionete” escapa da sua rigidez de boneco e
transforma-se na personagem mítica da literatura, com ou sem
cordel que o comande.
Os textos que pertencem à “fala” do narrador externo,
possuem uma qualidade que o aproximam de uma literatura
“fora-de-moda”. Com frases grandiloqüentes e torneadas, são
uma espécie de “literatura popular culta” – lembrando o con-
ceito lingüístico da hipercorreção, quando se peca pelo exagero
–, e exprimem conceitos tão ultrapassados quanto sua retórica.
Pensamentos convencionais a respeito das personagens e de
suas ações se misturam a românticas descrições de cenários
enluarados numa recriação de padrões descritivos do século
dezenove. O efeito dessa retórica anacrônica, em contrapo-
sição às cenas de comicidade “chula”, cria uma atmosfera de
“domingo na TV”, quando a pieguice de quadros sentimentais
disputa a audiência com as palhaçadas das video-cassetadas.
Esse efeito de “patchwork”, uma obra composta por retalhos
díspares, mas unidos todos num mesmo padrão estético, é que
vai dar profundidade à obra. O equilíbrio das duas propostas:
um misticismo mágico e piegas, frente a uma comicidade gros-
seiramente circense , neutraliza os defeitos e exageros de cada
uma. A presença de ambas, porém, torna o leitor agudamente
consciente da construção “artística” de um texto que se elabora
a partir de sugestões e possibilidades. O texto adquire ambigüi-
dade já que é impossível a opção por qualquer uma das versões
apresentadas. Os testemunhos “valem o escrito”, têm tanto valor
como a forma em que vêm expressos. Para um grupo social árido
como a família de Joaquim Soares da Cunha, a secura denotati-
va do atestado de óbito é a melhor expressão. Para a troupe de
polichinelos que arrasta Quincas consigo, o que importa é um
modo diferente de olhar, de perceber. Quincas/Joaquim/velho
“marionete” é um signo vazio que adquire valor através de suas
relações no texto.
Com tudo isso, “A morte e a morte de Quincas Berro
D’Água” se deixa analisar sob diferentes aspectos. A constru-
ção cuidadosa do clima ambíguo que permite a classificação da
história como narrativa fantástica já mereceu o estudo de Earl
Fitz. Dividindo o texto em três partes, Fitz demonstra como a voz
narrativa cede sua vez aos próprios personagens, permitindo-
lhes contar a história em suas próprias palavras, para, ao final,
reentrar no texto, chamando a atenção para o lado mágico dos
acontecimentos narrados.
Esse lado mágico, mítico mesmo, que se desenvolve no
correr da história de Quincas tem raízes no imaginário popu-
lar, com o qual Jorge Amado mantém uma relação constante,
alimentando-se e servindo de alimento para as obras de cordel.
Niterói, n. 24, p. 191-201, 1. sem. 2008 199
Gragoatá Lúcia Bettencourt

Essa proximidade da literatura popular pode explicar o sistema


binário de valores que forma a base ideológica de sua obra, como
pressupõe Nelson Vieira em seu artigo “Short Stories of Jorge
Amado”. A memória popular que está presente na história de
Quincas, bem como em outras histórias do mesmo autor, leva
seus críticos a identificarem os elementos de maior apelo exó-
tico da cultura baiana. Assim sendo, a crítica pode até mesmo
demonstrar a ligação de “A morte e a morte de Quincas Berro
D’Água” com a religião afro-baiana, tal como o faz Almir de
Campos Bruneti.
Nas fantasias de suas personagens revela-se a fantasia
essencial ao texto. Lidando com o imaginário que lhes permite
ver significações em todos os sinais, as personagens constróem
uma farsa que invade suas vidas, suas mortes e até mesmo sua
literatura. A ânsia interpretativa antepõe-se ao próprio texto e
a criação antecede ao próprio criador, comandando seus atos e
validando suas propostas.
Quincas Berro D’Água, signo literário, construiu seu pró-
prio texto por se negar a uma revelação total. Sua vitória sobre
a morte não está em nível mítico, ou sobrenatural, ou é leitura
equivocada, pois está em todos esses níveis. As narrativas sobre
ele o constroem a cada enunciação e contra esses documentos
não têm poder os selos, os cartórios, as firmas-reconhecidas.
Jorge Amado, nesta novela, revela uma sociedade fraturada
entre a imitação de modelos de padrão culto e a espontaneidade
da tradição popular. Sua estratégia para a elaboração de seus
personagens leva os leitores a refletirem sobre a própria cons-
trução da identidade, que, no caso, vai-se apresentar como fruto
do discurso que se impõe ao outro e das interpretações que dele
possam ser inferidas.

Abstract
In this article, the examination of the short story
“A morte e a morte de Quincas Berro D’Água”,
published in: Os velhos marinheiros (1961), re-
veals that, in elaborating this fiction, Jorge Amado
has used characters present in popular Brazilian
dramaturgy. These characters are recurrent in
other novels by the same author. They are based
on models taken from the traditional European
dramaturgy known as “comedia dell’arte”, and
Amado mixes them with regional popular art
that show a very strong African influence. In this
way, the short story may be read under a new
light that, instead of privileging the fantastic,
prefers to illuminate the dramatic qualities of the
text , allowing for the subversion of the figure

200 Niterói, n. 24, p. 191-201, 1. sem. 2008


Os velhos “marionetes”: Quincas Berro D’Água, versões e construção de identidade

of the Brazilian citizen, Quincas, who acquires,


through the manipulation of popular art, new
meanings while at the same time, standing out as
a marionette. The final scene shows the ropes of
the saveiro dangling in the night, after the main
character disappears, leaving behind the possibil-
ity of multiple versions of himself.
Keywords: Marionettes (puppets). Popular dra-
maturgy. Jorge Amado. Quincas Berro D’Água.

Referências
AMADO, Jorge. A morte e a morte de Quincas Berro D’água. In:
. Os velhos marinheiros. São Paulo: Martins, 1961.
. É preciso viver ardentemente. In: . Litera-
tura comentada: Jorge Amado. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
. et al. Jorge Amado povo e terra: 40 anos de literatura.
São Paulo: Martins, 1972.
BRUNETI, Almir de Campos. Nascimento e dispersão de Quin-
cas Berro Dágua. Luso-Brazilian Review, [S.l.], v. 19, n. 2, p. 237- 42,
Winter 1982.
FITZ, Earl E. Structural ambiguity in Jorge Amado’s A Morte
e a Morte de Quincas Berro Dágua. Hispania, [S.l.], v. 67, n. 2, p.
221-22, May 1984.
TAVARES, Paulo. Criaturas de Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record;
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. O baiano Jorge Amado e sua obra. Rio de Janeiro: Re-
cord, 1980.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo:
Perspectiva, 1975.
VIEIRA, Nelson H. Myth and identity in short stories by Jorge
Amado. Studies in short fiction, [S.l.], v. 23, n. 1, p. 25-34, Winter
1986.

Niterói, n. 24, p. 191-201, 1. sem. 2008 201


Quando o preconceito se faz silêncio:
relações raciais na literatura
brasileira contemporânea
Regina Dalcastagnè

Recebido 29 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo
As personagens negras são francamente mino-
ritárias na narrativa brasileira contemporânea,
conforme uma ampla pesquisa demonstrou. O
artigo analisa algumas exceções a esta regra,
identificando diferentes modos de representação
literária das relações raciais numa sociedade mar-
cada pela discriminação.
Palavras-chave: Literatura brasileira contempo-
rânea. Relações raciais. Preconceito.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 203-219, 1. sem. 2008


Gragoatá Regina Dalcastagnè

A literatura contemporânea reflete, nas suas ausências,


talvez ainda mais do que naquilo que expressa, algumas das
características centrais da sociedade brasileira. É o caso da po-
pulação negra, que séculos de racismo estrutural afastam dos
espaços de poder e de produção de discurso. Na literatura, não
é diferente. São poucos os autores negros e poucas, também, as
personagens – uma ampla pesquisa com romances das principais
editoras do País publicados nos últimos 15 anos identificou quase
80% de personagens brancas, proporção que aumenta quando
se isolam protagonistas ou narradores. Isto sugere uma outra
ausência, desta vez temática, em nossa literatura: o racismo. Se é
possível encontrar, aqui e ali, a reprodução paródica do discurso
racista, com intenção crítica, ficam de fora a opressão cotidiana
das populações negras e as barreiras que a discriminação impõe
às suas trajetórias de vida. O mito, persistente, da “democracia
racial” elimina tais questões dos discursos públicos, incluindo
aí o do romance.
Se os dados agregados da pesquisa de “mapeamento” do
romance brasileiro recente revelam a baixa presença da popu-
lação negra entre as personagens – além de sua representação
estereotipada –, o exame das exceções pode permitir a compre-
ensão das potencialidades e dos limites das (poucas) abordagens
do tema. Aqui, serão discutidos alguns números desta pesquisa,
referentes à cor das personagens e dos seus autores, para, em
seguida, fechar o foco sobre obras em que as relações raciais
estão presentes: seja reforçando os estereótipos racistas, seja
parodiando-os, ou ainda refutando-os a partir da construção de
outros modos de interpretá-los. Nestas narrativas, encontramos
estratégias diferentes, com diferentes resultados, de inclusão de
identidades negras em nossa literatura – um gesto político que se
faz estético (ou vice-versa) e que se dá, sempre, no embate com
formas abertas ou sutis de discriminação e preconceito.
Ao falar de racismo neste texto, estarei pensando-o nos
termos de Ella Shohat e Robert Stam (2006, p. 51):
O racismo é a tentativa de estigmatizar a diferença com o
propósito de justificar vantagens injustas ou abusos de po-
der, sejam eles de natureza econômica, política, cultural ou
psicológica. Embora membros de todos os grupos possam ter
opiniões racistas – não há imunidade genética nesses casos –
não é todo grupo que detém o poder necessário para praticar
o racismo, ou seja, para traduzir uma atitude preconceituosa
em opressão social.
E uma vez que a opressão é tanto material quanto simbólica,
podemos percebê-la também na própria literatura, uma forma
socialmente valorizada de discurso que elege quais grupos são
dignos de praticá-la ou de se tornar seu objeto.
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Quando o preconceito se faz silêncio: relações raciais na literatura brasileira contemporânea

Literatura e estatística
Os estudos literários são, em geral, avessos aos métodos
quantitativos, que parecem inconciliáveis com o caráter único
de cada obra. Tal singularidade, porém, não é privilégio da li-
teratura: é algo comum aos diversos fenômenos sociais. Ainda
assim, o tratamento estatístico permite iluminar regularidades
e proporciona dados mais rigorosos, evitando o impressionismo
que, facilmente contestável por um impressionismo em direção
contrária, impede que se estabeleçam bases sólidas para a dis-
cussão. Se alguém diz que os negros estão ausentes do romance
brasileiro contemporâneo, outra pessoa pode enumerar dezenas
de exemplos que contradizem a afirmação. Mas verificar que 80%
das personagens são brancas mostra um viés que, no mínimo,
merece investigação.
O esforço de pesquisa sobre o romance brasileiro dos úl-
timos anos, do qual retiramos os dados referentes às persona-
gens negras, envolveu a leitura cuidadosa de todos os romances
constantes do corpus, seguida do preenchimento de fichas para
as personagens mais importantes e, muitas vezes, de discussão
em grupo dos casos em que havia alguma dúvida. Uma vez que,
em geral, não se podia contar com uma descrição em regra, à la
século XIX, das personagens do livro, eram buscados os indícios
presentes no texto. Assim, a pesquisa buscou compatibilizar o
método quantitativo com aquilo que o historiador italiano Carlo
Ginzburg (1989) chamou de “paradigma indiciário” nas ciências
humanas – a busca de indícios das características que queríamos
analisar.
É importante ressaltar que os problemas da representação
literária indicados pela pesquisa não insinuam, absolutamente,
qualquer restrição do tipo quem pode falar sobre quem, nem buscam
estabelecer que um determinado recorte temático é mais “corre-
to” do que outro. A pesquisa não comunga de nenhuma noção
ingênua da mimese literária – que a literatura deva ser o retrato
fiel do mundo circundante ou algo semelhante. O problema que
se aponta não é o de uma imitação imperfeita do mundo, mas
a invisibilização de grupos sociais inteiros e o silenciamento de
inúmeras perspectivas sociais, como a dos negros. A proposta,
então, é entender o que o romance brasileiro recente – aquele que
passa pelo filtro das grandes editoras, atinge um público mais
amplo e influencia novas gerações de escritores – está escolhendo
como foco de seu interesse, o que está deixando de fora e, enfim,
como está trabalhando as questões raciais.
Os números apresentados aqui são relativos a um corpus
de 258 romances, que correspondem à totalidade das primeiras
edições de romances de autores brasileiros publicadas pelas três
editoras mais prestigiosas do País, de acordo com levantamento
realizado junto a acadêmicos, críticos e ficcionistas: Companhia

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das Letras, Record e Rocco.1 No conjunto, são 165 escritores di-


ferentes, sendo que os homens representam 72,7% do total de
autores publicados. Mas a homogeneidade racial é ainda mais
gritante: são brancos 93,9% dos autores e autoras estudados (3,6%
não tiveram a cor identificada e os “não-brancos”, como categoria
coletiva, ficaram em meros 2,4%).
Como se vê por esses exemplos, embora o romance contem-
porâneo venha perseguindo reiteradamente, em seu interior, a
multiplicidade de pontos de vista; do lado de fora da obra, não
há o contraponto; quer dizer, não há, no campo literário brasi-
leiro, uma pluralidade de perspectivas sociais. De acordo com
a definição de Iris Marion Young (2000, p. 136), o conceito de
“perspectiva social” reflete o fato de que “pessoas posicionadas
diferentemente [na sociedade] possuem experiência, história e
conhecimento social diferentes, derivados desta posição”. Assim,
negros e brancos, mulheres e homens, trabalhadores e patrões,
velhos e moços, moradores do campo e da cidade, homossexu-
ais e heterossexuais vão ver e expressar o mundo de diferentes
maneiras. Mesmo que outros possam ser sensíveis a seus pro-
blemas e solidários, nunca viverão as mesmas experiências de
vida e, portanto, enxergarão o mundo social a partir de uma
perspectiva diferente.
A cor da personagem
A personagem do romance brasileiro contemporâneo é
branca.2 Os brancos somam 79,8% das personagens,3 contra
apenas 7,9% de negros e 6,1% de mestiços – os restantes incluem
indígenas, orientais e personagens sem indícios de cor ou não
humanas. Em 56,6% dos romances, não há nenhuma persona-
gem não-branca. Em apenas 1,6%, não há nenhuma personagem
branca. E dois livros, sozinhos, respondem por mais de 20% das
personagens negras.
1
As editoras mais im- Apenas como base de comparação, é possível notar que o
portantes, que não são
necessa riamente as censo de 2000 realizado pelo IBGE – que é, muitas vezes, acu-
maiores, mas dificil- sado de “embranquecer” a população, pela forma como coleta
mente estarão entre as
menores, garantem a os dados sobre raça e cor – aponta 54% de “brancos”, 6% de
atenção de livreiros,
leitores e críticos para
“pretos” e 39% de “pardos”, além de uma pequena parcela de
seus lançamentos. Seus indígenas, de “amarelos” e sem declaração. Já em relação ao ro-
livros são aqueles que,
no cu r to pra zo, têm
mance produzido no período 1965-1979, objeto de uma pesquisa
maior possibilidade de similar cujos dados ainda estão sendo trabalhados, observa-se
influenciar outros es-
critores. a ampliação da predominância das personagens brancas (eram
2
Os resultados gerais da 76% no período mais antigo), mas também um ligeiro aumento
pesquisa e mais dados
sobre as personagens das negras (eram 6,3%, passam a 7,9%), com o recuo das mestiças
negras estão em Dalcas- (de 10,4% para 6,1%). A interpretação dos dados ainda precisa ser
tagnè (2005).
3
O mapeamento incluiu
feita, mas talvez se possa ver aí um indício do enfraquecimento
as personagens “impor- da ideologia da mestiçagem no Brasil.
tantes”, isto é, com al-
gum peso no desenrolar Além de reduzida, a presença negra e mestiça entre as per-
da trama. sonagens é menor ainda quando são focados os protagonistas e,
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Quando o preconceito se faz silêncio: relações raciais na literatura brasileira contemporânea

em especial, os narradores. Os negros são 7,9% das personagens,


mas apenas 5,8% dos protagonistas e 2,7% dos narradores.
Os brancos representados possuem um perfil sócio-econô-
mico nitidamente mais privilegiado do que os mestiços e, sobre-
tudo, os negros (tabela 1). Enquanto os brancos oscilam entre as
classes médias e (um pouco menos) a elite econômica, os mestiços
se dividem entre classes médias e (um pouco mais) pobres e os
negros são maciçamente retratados entre os pobres.

Tabela 1: Estrato sócio-econômico e cor das personagens


elite classes sem não
pobres miseráveis outro
econômica médias indícios pertinente
branca 36,2% 56,6% 15,5% 1,8% 1,6% 0,1% 0,2%
negra 10,2% 16,3% 73,5% 12,2% 1,0% 1,0% -
mestiça 19,7% 42,1% 52,6% 5,3% 1,3% - -
indígena 26,7% 20,0% 53,3% 6,7% - 13,3% 6,7%
oriental 25,0% 37,5% 50,0% - - - -
sem indícios 2,3% 50,0% 40,9% 2,3% 6,8% - -
não
- 10,0% 10,0% - 10,0% - 70,0%
pertinente
total 31,5% 51,4% 23,9% 2,9% 1,8% 0,3% 0,8%
Obs. Eram possíveis respostas múltiplas na variável “estrato sócio-econômico”.
Fonte: Pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”

Quanto o foco é a ocupação, percebe-se que as persona-


gens brancas são, em geral, donas-de-casa (9,9%), artistas (8,5%),
escritores (6,8%) e estudantes (6,8%). O contraste com as perso-
nagens negras é enorme: 20,4% dos negros representados nos
romances em foco são bandidos ou contraventores. Seguem-se
empregados domésticos (12,2%), escravos (9,2%) e profissionais
do sexo (8,2%).
Algumas exceções
Estudos sobre o jornalismo (CARRANÇA; BORGES, 2004),
a telenovela (ARAÚJO, 2000), o cinema (RODRIGUES, 2001)4
apresentam dados similares: a invisibilidade dos negros e os
estereótipos a eles associados não são problemas exclusivos
da literatura. Tal como outras formas de expressão, ela apenas
manifesta uma discriminação que permeia toda a nossa estru-
tura social (cf. GUIMARÃES; HUNTLEY, 2000). O que não quer
dizer que estas questões não possam ser discutidas em nossas
narrativas, e, inclusive, pelos estudos literários. Se a maior parte
dos autores e autoras contemporâneos evita trazer personagens
negras para o centro (ou mesmo para dentro) de suas tramas, é
Para uma discussão
preciso observar o que acontece com aqueles que fogem à regra e
4

sobre as pesquisas refe-


rentes às relações raciais ensaiam um movimento diferente. Assim, o exame das exceções
e/ou o racismo na mídia
brasileira, ver Silva; Ro- pode revelar as possibilidades e as implicações das aproximações
semberg (2008). literárias ao problema das relações raciais no Brasil.
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Gragoatá Regina Dalcastagnè

Dar concretude e existência a uma personagem não é


tarefa fácil, especialmente quando a tradição literária não está
disponível como recurso, ou seja, quando nossa poesia, nossos
contos e romances não trazem modelos suficientemente ricos
que possam servir de inspiração. Há a idéia equivocada, mas
muito disseminada, de que o escritor constrói suas personagens
a partir de pessoas que conheceu em sua vida – ela lembra a ima-
gem do pintor trabalhando com agilidade diante de um modelo
vivo. Essas experiências podem ser até aproveitadas, mas não
são o bastante para erguer e dar solidez a uma personagem. O
pintor e sua desenvoltura escondem, na verdade, anos de estu-
do de antigos álbuns de anatomia, páginas de cabeças, mãos,
pés e músculos cuidadosamente copiados. E esconde, é claro, a
observação direta de retratos e mais retratos.
Não é diferente com um escritor, que precisa buscar seus
modelos em representações discursivas já estabelecidas, mesmo
que seja para se contrapor a elas. Por isso, a ausência de perso-
nagens negras na literatura não é apenas um problema político,
mas também um problema estético, uma vez que implica na
redução da gama de possibilidades de representação. Usar um
“modelo” branco e fazer dele uma personagem negra (como no
filme O homem que copiava, por exemplo, onde o ator negro Lázaro
Ramos atua no papel de uma personagem que poderia ser bran-
ca) não resolve, porque ser negro numa sociedade racista não é
apenas ter outra cor, é ter outra perspectiva social (nos termos
de Iris Marion Young), outra experiência de vida, normalmente
marcada por alguma espécie de humilhação.
Daí a necessidade de, ao se construir uma personagem
negra, envolvê-la em sua realidade social ou ela não parecerá
viva – pretensão que a literatura não pode descartar. Um negro
que namore uma jovem branca, como no filme citado, não será
negro se não receber ao menos um olhar atravessado ao longo
de seu caminho, e se não sentir de algum modo em sua carne
esse olhar. Ou ao menos não será um negro brasileiro do início
do século XXI. Nada contra o uso político dessa estratégia, que
procura chamar atenção para o fato de que negros, tanto quanto
brancos, sentem, amam e sofrem, mas ela é insuficiente para
abranger essa experiência diferenciada, que ainda precisa se
legitimar, por si só, em nossa literatura e em nossa sociedade.
O racismo e sua paródia
Mas dizer que os negros são humanos parece ser ainda
5
Cumpre registrar que,
uma necessidade, quando se percebe que sua animalização se
por critérios de data de mantém como um “recurso” literário. Para ficar em apenas um
publicação, editora e
mesmo gênero, as obras exemplo, o homem negro diante da mulher branca continua
discutidas no restante sendo representado como o animal sujo cobiçado pela fêmea de-
do texto não integram
o corpus da pesquisa pravada – como nos contos “O negro”, de Dalton Trevisan (1979) e
quantitativa. “O negro e as cercanias do negro”, de Haroldo Maranhão (2005).5
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Na primeira narrativa, uma mulher tomada de desejos aproveita


a viagem do marido para “curar seu corpo” com a “experiência
medonha” de entregar-se “ao primeiro negro com quem cruza
na rua” (TREVISAN, 1979, p. 55). O tom de deboche do narrador
em terceira pessoa não esconde o racismo, e o chauvinismo, que
lhe servem para fazer graça com o leitor, com quem troca uma
piscadela. O estereótipo é usado na narrativa não como crítica,
mas como recurso fácil de aproximação com o leitor, que ela
assume como compartilhando dos mesmos preconceitos. Ou
seja, a imagem conhecida permite que o leitor se identifique, ao
mesmo tempo em que se reforça a si própria, naturalizando seu
conteúdo. Daí sua recorrência, e sua repercussão para além das
páginas do livro.
A mesma construção reaparece, sem pudor, 30 anos depois
no conto de Haroldo Maranhão. Mais uma vez, o homem negro
não se faz personagem, mas apenas objeto em cena. Outra vez,
ele é o corpo desprezível que a mulher branca, em sua irraciona-
lidade, deseja. O narrador em terceira pessoa busca se aproximar
do que seria a perspectiva de sua personagem e troca o tom de
deboche de Trevisan pelo mau gosto grosseiro:
Se na véspera houvesse alguém idealizado semelhante encena-
ção, repeliria como se repelem disparates, ela! Ali!, a haver-se
com um negro!, aqueles bafios! O suor tudo circundava por-
que a brisa cessara, o mormaço, aumentava o fartum, fartum
dos que destilam merda pelos sovacos. O olhar do negro
bolinava-lhe os peitos. Ela sentia deslizar gosmas pelas coxas.
Em momento nenhum o negro temeu malogro, porque sua
6
Quanto mais “elevado” ascendência impusera-se. (MARANHÃO, 2005, p. 24)
é o produto cultural,
quanto maior é a le- O que mais impressiona aqui é a idéia de que a literatura
g itimidade social de
que desfruta, maior é a ainda possa abrigar – com o respaldo de um crítico literário, que
desenvoltura com que selecionou o conto para a coletânea, e de uma grande editora,
pode abrigar discursos
preconceituosos. A letra que publicou o livro – esse tipo de construção.
de um funk foi proibida
pela justiça brasileira
Talvez a resposta esteja nas formas de preservação do
por seu conteúdo ma- preconceito na sociedade brasileira, e um dos mecanismos dessa
chista, que incitaria à
violência contra a mu- preservação é justamente a legitimação do racismo no interior
l h e r ( PIC HON ELL I; dos discursos artísticos. Assim, o preconceito pode continuar
BÄCHTOLD, 2008), sem
que se ouvisse dos inte- sendo veiculado porque a sociedade se mantém preconceituosa,
lectuais qualquer pro-
testo pela censura. Al-
e ela se mantém preconceituosa porque vê seus preconceitos
guém imagina um juiz se “confirmarem” todos os dias nas diferentes representações
proibindo um romance
ou um livro de poemas sociais.6 Daí a necessidade da denúncia desse processo,7 o que
por serem machistas? pode ser feito na literatura através da paródia aos discursos ra-
Afinal, nos termos de cistas, por exemplo. Essa é a proposta de um autor como André
7

Antônio Sérgio Alfredo


Guimarães (2004, p. 27), Sant’Anna.
“para combater o racis-
mo e para reduzir as No romance O paraíso é bem bacana, Sant’Anna (2006) move
desigualdades econômi- um arsenal de representações sociais para apresentar seu pro-
cas, precisamos, antes
de tudo, denunciar as tagonista, o Mané. Mané é um garoto negro e miserável que
distâncias sociais que as
naturalizam, justificam
vai jogar futebol na Alemanha e acaba se envolvendo com um
e legitimam”. grupo de terroristas mulçumanos. Enquanto lemos sua história,

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Mané está em um hospital, com o corpo dilacerado pela bomba


que ele mesmo explodiu, morrendo e delirando obscenamente
com as setenta e duas virgens que caberiam a todo mártir da
fé, de acordo com uma pretensa tradição islâmica. O garoto –
que, segundo nos contam, é quase afásico – só chega até nós
através dos discursos ruidosos que estão à sua volta, invadindo
seu espaço, contaminando sua história. Todos falam do Mané,
todos dizem o quanto ele é idiota, todos destilam sua raiva. O
narrador, não menos autoritário, recolhe essas falas e despeja-as
sobre sua personagem, soterrando-a, e ela permanece inerte, na
cama do hospital.
Embora seja o protagonista do livro, Mané é explicitamente
silenciado – é, ainda, objeto da fala dos outros, dos médicos, trei-
nadores, vizinhos, torcedores e jornalistas. O foco do romance
não é o seu corpo objetificado (ou o desejo que esse corpo ins-
pira em alguma mulher animalizada), e sim os discursos que
incidem sobre ele e que parecem tentar desviar nossa atenção do
rapaz. Mesmo assim, por trás de tanto barulho ainda podemos
enxergar um garoto negro e assustado nos olhando nos olhos,
em silêncio. A narrativa não apaga a sua existência, não o eli-
mina como indivíduo. Mané lembra um pouco a “pardacenta”
Macabéa em seu confronto com Rodrigo S. M., em A hora da
estrela, de Clarice Lispector (1977). Como a jovem nordestina, ele
impõe sua presença calada às outras falas, que se tensionam. O
próprio narrador é de algum modo constrangido, já que nos é
dado perguntar sobre suas intenções ao dizer o que diz sobre
sua personagem.8 Do mesmo modo que precisamos indagar
quem são, afinal, todas aquelas pessoas que falam sobre ele e,
em última instância, quem somos nós para julgá-lo, se sequer
o conhecemos.
A guerra épica
Se o foco da narrativa é o próprio discurso, como aconte-
ce com toda paródia, não há aqui, ainda, a construção efetiva
de uma personagem negra.9 Voltando ao problema da falta de
modelos para essas personagens em nossa tradição literária, é
preciso observar as estratégias dos autores que se propõem de
fato a incluí-las. Diante dessa ausência, eles se apropriam de gê-
neros e estilos literários já consagrados (e brancos) fazendo com
que eles se dobrem aos seus interesses. Lidam, assim, na maior
8
Para uma discussão
parte do tempo, com a dissonância causada entre a “estrutura
sobre a relação entre branca” (porque normalmente construída para personagens
Macabéa e Rodrigo S.M.,
ver Dalcastagnè (2000). brancas) e suas personagens negras. Daí o desconforto causado
9
Como não há, também, no leitor, como se algo estivesse fora de seu devido lugar. Ao
em outro autor que em-
prega a paródia como
contrário do que acontece em O homem que copiava – onde o
insubordinação crítica rapaz negro não é visto como negro pelas outras personagens,
ao discurso racista ou
homofóbico, Marcelino apenas pelo espectador, que estabelece a tensão entre o que vê
Freire (2003, 2005). e o que conhece do lado de fora do filme –, nessas narrativas o
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leitor sente a tensão no interior do próprio texto. A dissonância


se estabelece entre a personagem efetivamente negra, envolta
em todas as suas circunstâncias, e a construção textual, que não
as acolheria.
É assim que em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves
(2006), acompanhamos a trajetória épica de Kehinde. Em uma
história cheia de peripécias, nos deparamos com a sagacidade,
a inteligência, a capacidade de adaptação às situações mais ad-
versas, a resistência e a lealdade dos heróis épicos. Mas Kehinde
é mulher, é negra e escrava. O romance começa na África, onde
a menina é seqüestrada – após presenciar o assassinato da mãe
e do irmão – e embarcada para o Brasil. Aqui, é comprada para
servir de mucama a uma sinhazinha. Vendo e sofrendo todo
tipo de abuso, ela vai crescendo, aprendendo a ler e escrever, a
fazer contas e a ganhar dinheiro para comprar sua liberdade.
Muito tempo depois, acaba retornando à África, para ter uma
vida rica e confortável, como proprietária de uma empreiteira,
casada com um inglês, mãe de filhos educados em Paris. O relato
de quase mil páginas, destinado a um filho que se perdeu no
Brasil, teria sido ditado em sua viagem de volta ao país, quando
ela já é uma octogenária.
Portanto, mais do que protagonista, Kehinde é a narrado-
ra de sua história e é pela sua perspectiva que o leitor revisita
a História brasileira do século XIX, olhando da cozinha, pelas
frestas. O romance busca fugir do modelo “pobre escravo da
senzala” para apresentar, em detalhes, a vida e as possibilidades
de uma escrava instruída, que aproveita todas as brechas para
aprender e conquistar sua liberdade, inclusive como mulher.
Kehinde entra no Brasil dando um jeito de não ser batizada,
para manter sua identidade, e termina na África, batizando os
filhos para garantir-lhes o status superior de “brasileiros”. Essa
ambigüidade é o que dá força à personagem, ainda que a estru-
tura épica da narrativa pareça transbordar à sua volta, fazendo-a
sempre mais poderosa diante das adversidades.
Se o Mané, na força de seu silêncio, é um pouco herdeiro
de Macabéa, Kehinde é descendente da guerreira Maria da Fé,
protagonista do romance Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo
Ribeiro (1990). São ambas heroínas épicas,10 que extrapolam
qualquer pretensão de realismo – belas, fortes e sábias, agindo
sempre com segurança e convicção, ainda quando têm dúvidas.
Ao ocupar lugar central na narrativa, podem não nos parecer
reais, mas trazem consigo a realidade de seu povo. Sendo mulhe-
res, negras e escravas, elas percorrem outros chãos, se encontram
10 A aproximação me foi com outras trajetórias, se deslocam de acordo com outros ritmos
sugerida por Eduardo
de Assis Duarte, em co- que não aqueles vividos pelas personagens brancas (e por seus
municação pessoal. leitores, igualmente brancos).
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Dor e amor românticos


Deixando de lado as heroínas épicas e atravessando alguns
séculos de História, chegamos à representação do cotidiano de
um advogado negro no Rio de Janeiro de hoje. Frederico Caval-
canti de Souza, protagonista de Bandeira negra, amor, de Fernando
Molica (2005), não empunha armas em nome da revolução, como
Maria Dafé, tampouco enriquece, como Kehinde – é apenas um
sujeito honesto, que trabalha o dia inteiro e ama uma mulher
chamada Beatriz. Mas ele é negro. E, sendo negro no Brasil de
hoje, sua história começa pela dificuldade de assumir a própria
cor. O que implica, em primeiro lugar, o confronto com o amor
da mãe, que fez tudo para torná-lo mais branco do que é – outra
faceta do racismo brasileiro, ligada à valorização do “branque-
amento” de sua população (cf. HOFBAUER, 2006). Neste caso,
o conflito racial se inscreve no corpo mesmo da personagem,
espaço em disputa para a demarcação de uma identidade.
Depois de se decidir negro, Frederico passa a defender os
direitos dos moradores da favela (quase todos negros também).
O confronto se dá, então, com a Polícia Militar (apontada como
responsável pelo desaparecimento de três rapazes do morro do
Borel), da qual Beatriz, ou a major Ferreira, é a porta-voz. Daí a
necessidade de esconderem sua relação – e não só da PM, como
também da família da moça que, “branca”, tem uma avó negra
que se orgulhava de sua “barriga limpa”: de onde saíam filhos
sempre mais brancos que ela (MOLICA, 2005, p. 102). Pela pers-
pectiva do advogado militante, o leitor é conduzido por vielas e
estradas rápidas, por casebres, escritórios, mansões, por cambu-
rões, para testemunhar a rotina de ofensas, veladas ou explícitas,
experimentada pelos negros todos os dias. Contra esse cenário
realista, é a história de “amor impossível” entre o advogado e a
major, com seus contornos românticos, a causar a dissonância
no texto, chamando a atenção do leitor.
Discutindo o tema do escravo na poesia romântica brasi-
leira, Antonio Candido lembra a importância da poetização da
vida afetiva do negro, realizada por Castro Alves, que teria dado
ao escravo “não só um brado de revolta, mas uma atmosfera de
dignidade lírica, em que seus sentimentos podiam encontrar
amparo”, garantindo “à sua dor, ao seu amor, a categoria reser-
vada aos do branco, ou do índio literário” (CANDIDO, 2006, p.
592). Assim, colocar em cena personagens negras envoltas em
sua subjetividade, amando e sofrendo, talvez não devesse mais
ser novidade em nossa literatura, mas pouco se evoluiu desde
então. Se Fernando Molica expande a narrativa fazendo do amor
o elo entre sua personagem e a sensibilidade do leitor – afinal,
o brado de revolta pode não ser suficiente –, Conceição Evaristo
(2003) o faz pela encenação da dor.
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Quando o preconceito se faz silêncio: relações raciais na literatura brasileira contemporânea

Em Ponciá Vicêncio, ela volta ao meio rural (espaço pouco


freqüentado pela literatura contemporânea), vai até um povoado
miserável formado por descendentes de ex-escravos e tira de
lá suas personagens: uma mãe, a filha e o filho já adultos que
migram, separadamente, para a cidade, dissolvendo a unidade
familiar. Uma dissolução que já começara muito antes, com o avô
escravo que, desesperado com a venda dos filhos, mata a mulher
e tenta o suicídio cortando o próprio braço. Ponciá, a neta, é sua
herdeira. Acompanhamos, então, através do olhar de um nar-
rador em terceira pessoa, as suas perdas – aos poucos, vão-se a
esperança em uma vida melhor; a relação com o marido, que se
torna violento; a possibilidade de filhos, nos abortos sucessivos.
A loucura se torna o seu refúgio e é ali que sua mãe a encontra,
conduzindo-a de volta para casa.
Vista de fora, Ponciá não nos dirige a palavra, não nos diz
quem é. Somos informados que ela herda a loucura do avô, que
precisa abandonar a família e as origens, que é submetida a
um trabalho subalterno, que apanha do marido e não consegue
gerar um filho. Sem lugar no mundo, é a mãe que a acolhe e
lhe dá guarida, talvez porque ela simbolize as origens, a iden-
tidade negra que precisa ser abraçada. Ponciá, então, mais que
a sua própria dor, representa a dor de seu povo. E são os restos
desse povo que o leitor vai encontrando pelo caminho em que
ela passa: os terrenos abandonados, tomados pelo mato e pelos
brancos; os objetos de barro feito por ele e expostos em museus
sem qualquer identificação; os sobrenomes que traziam ainda a
marca dos coronéis, proprietários de terras e de gente.
A força da ambigüidade
Se Ponciá precisa ser resgatada, e narrada por outro, Rísia,
de As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto (1982), faz seu
próprio trajeto, e grita ela mesma a sua história. Também vinda
do interior, negra, pobre e nordestina, sem qualquer relação de
afeto na família, ela já está no meio do caminho de Tijucopapo
quando a encontramos, como uma migrante às avessas, que sai
de São Paulo e retorna às origens dando as costas para a BR e
penetrando cada vez mais fundo no Brasil cindido que a espelha.
Sua viagem é geográfica, literária e mítica. Ao construir o percur-
so de volta, dilacerada pela perda do homem que amava, Rísia
vai refazer sua história, afirmando sua identidade. Só que muito
antes de chegar a algum termo, de resgatar a mãe e as mulheres
da família, Rísia tem de construir um sentido para si, ainda que
seja incoerente, ou improvável. Daí ela sair buscando a paz, a
calma necessária para conter sua vontade de matar, ao mesmo
tempo em que alimenta febrilmente o ódio que a devora.
Rísia odiaria Ponciá, como odeia a mãe, a avó e as tias, todas
traídas, sofredoras, e todas fracas. Não quer parecer com elas, se
reconhecer nelas. Mas também não aceita a loucura: “a loucura é
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Gragoatá Regina Dalcastagnè

a margem que não suporto. A margem não. Eu prefiro o meio da


multidão, a massa, os elos da corrente que nos conduz ao nada,
mas que nos conduz juntos. A margem não. Não a solidão dum
louco” (FELINTO, 1982, p. 90-91). É para fugir dessa solidão que
ela retorna à terra da avó, Tijucopapo (um pequeno arraial, no
Recife, onde, no século XVII, mulheres lutaram, sozinhas, contra
os invasores holandeses, vencendo-os e expulsando-os). E é ali
que se dará a reconciliação de Rísia com sua condição feminina,
onde ela percebe que as outras mulheres talvez sejam como ela,
que se sente morrer, mas que precisa continuar de pé, lutando
para resguardar uma idéia de si. Mulheres que possuem “a força
de um fraco” (FELINTO, 1982, p. 40), mas que continuam empu-
nhando as armas possíveis, mesmo que “as armas do fraco sejam
sempre fracas armas” (BIANCO apud BOURDIEU, 1998, p. 38).
É a força, muito antes da dor, que impulsiona essa narrati-
va, que convida a empatia do leitor. Nesse sentido, Rísia é mais
consistente como personagem, não apela para nossa compaixão,
nem aceita nossa solidariedade. Ela parece esperar apenas que
sua história seja ouvida. Sua força não é épica, ela não tem nada
de Maria Dafé ou Kehinde. Talvez se aproxime mais da prota-
gonista dos livros de Carolina Maria de Jesus (1983, 1986). Rísia
duvida, erra, exagera, vocifera, e não sabe muito bem o que está
fazendo, mas talvez seja exatamente isso que lhe dê densidade.
Ela é a menina que nunca foi baliza no desfile do Sete de Setem-
bro, nem rosada como as “filhas de sargento” (FELINTO, 1982,
p. 72), e é a mulher que convive com os universitários bem de
vida do Higienópolis paulista, gente com quem ela discute os
livros em inglês que sua mãe nunca lerá (FELINTO, 1982, p. 91).
Ou seja, ela traz para dentro do texto sua experiência individual
e suas circunstâncias como mulher negra.
Também é essa força o que mantém de pé as personagens,
quase todas negras, de Ferréz (2006) nos contos de Ninguém é
inocente em São Paulo. As humilhações e o sofrimento fazem
parte de suas vidas de moradores da favela, mas não impedem
que eles se constituam como indivíduos diante de nossos olhos.
Em narrativas muito curtas, que aproveitam a estrutura do
rap, Ferréz abandona a roupagem romântica que ainda podia
ser encontrada em seus outros livros (2000, 2003) e aposta na
representação realista para levar o leitor para dentro da favela.
Mas essa não é a favela de obras como Cidade de Deus, de Paulo
Lins (1997), ou Inferno, de Patrícia Mello (2000), que ecoam aquilo
que seus leitores encontram cotidianamente no noticiário poli-
cial: ele não abre sua escrita para os traficantes atuarem. Seus
protagonistas são trabalhadores e não aceitam o discurso fácil
e fartamente veiculado de que o destino certo para um morador
da favela é a bandidagem.
Assim, no lugar de tiros e conversas entre traficantes, o
que ouvimos é o escritor digitando em seu barraco, ou rapazes
214 Niterói, n. 24, p. 203-219, 1. sem. 2008
Quando o preconceito se faz silêncio: relações raciais na literatura brasileira contemporânea

discutindo sobre alguma possibilidade de emprego. A favela


cheira a esgoto, os barracos são invadidos pelos policiais, a pro-
messa de trabalho era uma enganação, a vida está difícil, mas
eles vão levando. Resistem como podem, insubordinando-se
diante do chefe no supermercado, batendo boca com universi-
tários no botequim, fazendo um pouco de poesia, produzindo
rap. No conjunto, temos um livro barulhento, cheio de gente
que se desloca de um lado para o outro (o espaço não é muito
grande) e que, no final das contas, se parece muito com qualquer
um, talvez até conoscos mesmos. Ferréz não apenas incorpora
personagens diferentes – diferentes por serem negras, por serem
pobres e, sendo pobres e negras, por serem honestas – à nossa
literatura, ele procura inscrever nela um universo inteiro de
exclusão. A dissonância, aqui, é causada pelo confronto com
toda uma série de representações sociais que fazem do negro
pobre o estereótipo do bandido, da prostituta, da empregada
subserviente (observe-se de novo os números da pesquisa sobre o
romance, apresentados no começo deste texto), todos silenciados,
de algum modo domesticados.
Enfim
Espaço onde se constroem e se validam representações do
mundo social, a literatura é também um dos terrenos em que
são reproduzidas e perpetuadas determinadas representações
sociais, camufladas, muitas vezes, no pretenso “realismo” da
obra. A idéia de realismo se ancora, neste caso, na ilusão de que
o escritor toma seus modelos diretamente da realidade, e não que
lida com outras representações. Ao manusear as representações
sociais, o autor pode, de forma esquemática: (a) incorporar essas
representações, reproduzindo-as de maneira acrítica; (b) descre-
vê-las, com o intuito de evidenciar seu caráter social, ou seja, de
construção; (c) colocar essas representações em choque diante
de nossos olhos, exigindo o nosso posicionamento – mostran-
do que nossa adesão, ou nossa recusa, que nossa reação diante
delas nos implica, uma vez que fala sobre o modo como vemos
o mundo, e nos vemos nele, sobre como se dá nossa intervenção
na realidade, e as conseqüências de nossos atos.
Percorrendo os números da pesquisa sobre o romance
brasileiro contemporâneo e umas poucas narrativas onde as
personagens negras têm destaque, é possível esboçar algumas
impressões sobre o problema da representação literária desse
grupo social. Há, em primeiro lugar, a quase ausência do negro
em nossa literatura – me refiro às personagens, mas a situação é
ainda mais grave em relação aos escritores. Quando os negros
são representados, costumam aparecer em posição secundária
no texto (não são os protagonistas e muito menos os narrado-
res) e em situação subalterna na trama (restringindo-se a algu-
mas posições estereotipadas, como as de bandido, prostituta e
Niterói, n. 24, p. 203-219, 1. sem. 2008 215
Gragoatá Regina Dalcastagnè

doméstica, por exemplo). Na análise das exceções – as poucas


narrativas onde os negros aparecem como figuras centrais –,
pode-se encontrar, ainda hoje, a reprodução acrítica de represen-
tações sociais estereotipadas sobre os negros, que, de algum
modo, reforça e legitima o preconceito racial; mas encontra-se,
também, a apropriação crítica dos discursos racistas, em narra-
tivas que, através da paródia, buscam justamente denunciar e
desarticular o sentido perverso dessas construções.
Embora as intenções dessas duas “possibilidades de ar-
ticulação” com os discursos racistas sejam completamente di-
ferentes, não existe em nenhuma delas a elaboração efetiva de
personagens negras (imaginando-as, aqui, enquanto artefatos
que possam ser incorporados como modelos em nossa tradição
literária), uma vez que na primeira há apenas o aproveitamento
de clichês e na segunda a tentativa de desmonte deles. Sendo
assim, é preciso atentar para as estratégias de narrativas que,
indo além de uma discussão “externa” do problema, procuram
introduzir, no interior mesmo de sua estrutura, o negro e sua
perspectiva social. A hipótese apresentada aqui é de que, jus-
tamente pela falta de modelos na tradição literária, os autores
têm de lidar com a dissonância causada entre os gêneros e os
estilos “brancos” (porque comumente habitados por personagens
brancas) e suas personagens negras.
Uma vez instalada a dissonância, que gera o estranhamen-
to do leitor, seria preciso construir, então, outros vínculos, para
que a identificação com as personagens não seja completamente
rompida. Daí o recurso a alguns elementos muito comuns nas
narrativas, como o heroísmo épico, que faz do racismo uma das
adversidades que o protagonista supera; o apelo romântico aos
sentimentos, com a produção de uma empatia capaz de ultrapas-
sar a barreira do preconceito; e, finalmente, a compreensão, que
se estabelece pelo reconhecimento da força e da ambigüidade
da personagem. Embora esses mecanismos possam não ser su-
ficientes para abranger as experiências da trajetória negra, eles
projetam a idéia da necessidade de inclusão de outras perspec-
tivas em nossa literatura.
E a diversidade na narrativa, além da importância estética,
possui importância política. Graças a seu poder expressivo, a
literatura pode permitir um acesso a diferentes perspectivas so-
ciais, mais rico do que aquele que é oferecido, por exemplo, pelo
discurso político em sentido estrito (cf. GOODIN, 2000). Perso-
nagens negras, assim, talvez ajudem leitores brancos a entender
melhor o que é ser negro no Brasil – e o que significa ser branco
em uma sociedade racista. Além disso, como apontou Nancy
Fraser, a injustiça social possui duas facetas (ainda que estrei-
tamente ligadas), uma econômica e outra cultural. Isto significa
que a luta contra a injustiça inclui tanto a reivindicação pela
redistribuição da riqueza como pelo reconhecimento das múltiplas
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Quando o preconceito se faz silêncio: relações raciais na literatura brasileira contemporânea

expressões culturais dos grupos subalternos (FRASER, 1997):


o reconhecimento do valor da experiência e da manifestação
desta experiência por negros, trabalhadores, mulheres, índios,
gays, deficientes. A literatura é um espaço privilegiado para tal
manifestação, pela legitimidade social que ela ainda retém. Ao
ingressarem nela, os grupos subalternos também estão exigindo
o reconhecimento do valor de sua experiência na sociedade.

Abstract:
Black characters are a frank minority in Brazilian
contemporary narrative, as extensive research has
demonstrated. This article analyses some excep-
tions to this rule, identifying different ways that
literature represents racial relations in a society
marked by discrimination.
Keywords: Brazilian contemporary literature.
Racial relations. Prejudice.

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Uma conversa entre macacos: percalços
de um diálogo entre a África e o outro*
Lucia Helena

Recebido 29 fev. 2008 / Aprovado 03 abr. 2008

Resumo
O artigo tem por objetivo discutir o tecido de cita-
ções, elaborado por John Maxwell Coetzee, entre
A vida dos animais (1999), Elizabeth Costello
(2003) e o texto de Kafka, “Um relatório para uma
academia”, extraído de Um médico rural (1919).
Como entender essa rede textual que se espraia
de modo agudo e delicado? Ao manter muito
enlaçadas as marcas da autoria, da autobiografia,
*
Até agora i nédito,
esse artigo tem como da ficção, do ensaio e da vida, o texto de Coetzee
origem o texto “Exercício indica tanto a porosidade quanto a complexidade
de leitura: Coetzee em
Kafka”, escrito para a do ato de escrever. Com essa capacidade de ra-
aula de 3 de maio de
2007, que ministrei no
mificação, sublinha as fronteiras tênues entre o
primeiro semestre de real e o mundo do “como se” que a literatura cria
2007, no curso “Uma e, também, aponta para candentes problemas de
cultura em crise: consti-
tuição e percalços do nossa época. Estas questões - que conectam os
horizonte moderno”, na
Pós-graduação em Le-
jogos de linguagem do processo ficcional do autor
tras da Universidade à representação na linguagem literária atual - é o
Federal Flum i nen se.
Posteriormente, foi re- que se pretende examinar.
escrito e apresentado
como conferência, sob o Palavras-chave: Coetzee. Kafka. Diálogo. Ficção.
título de “A literatura, a África do Sul. Mundo.
vida dos animais e o ma-
caco de Kafka”, no VIII
Seminário Internacional:
Crítica Literária, na PUC-
RJ, em 19 de setembro de
2007, em mesa plenária
composta por Flora Süs-
sekind, Ana Cristina
Chiara e eu mesma. O
presente artigo reescre-
ve, com transformações
e acréscimos, os dois
textos anteriores, tam-
bém inéditos até o mo-
mento. Entregue para
publicação na Gragoatá
24, UFF.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 221-233, 1. sem. 2008


Gragoatá Lucia Helena

“Acreditamos que houve um tempo


em que podíamos dizer quem éramos. Agora, somos
apenas atores recitando nossos papéis. O fundo caiu.”
(John Maxwell Coetzee, Elizabeth Costello)1
O texto de J. M. Coetzee, A vida dos animais (1999),2 entrega
ao leitor reflexão fascinante. Não menos incisiva é a experiência
da escrita que põe em prática. Operando por um jogo cruzado
de referências, o texto se estrutura em dobradiças. Mas essa
ferramenta, que organiza o processo, não o transforma em mais
uma aventura, na farta bibliografia de narrativas semelhantes.
Produzidas por artistas que desenvolvem trabalhos híbridos e
dissolvem fronteiras entre a ficção e a intervenção crítica, tais
narrativas já se banalizaram. O que, então, delas distingue A vida
dos animais, a ponto de se afirmar que esse texto não é mais um
exemplar da estetização contemporânea que caiu sobre nossas
cabeças? Apesar de utilizar conhecido artifício, o livro se funda-
menta numa aventura ética da reflexão, que penetra sua armação
lúdica dando-lhe espessura, fazendo a estrutura ganhar força,
retirando-a do campo das evidências consagradas, para torná-
la capaz de dinamizar o pensamento e anunciar questões que
adensam a conexão entre a palavra, o mundo e a possibilidade
do sentido para a linguagem literária e a existência.
Em tudo diverso do trajeto da velha máxima de que, por
força de tanto imaginar, transforma-se o amador na coisa ama-
da, A vida dos animais é, pois, uma aventura do estranhamento
e do sentido, na qual a razão mexe com o coração, e um e outro
se imprimem batimentos mais fortes, sem que se estabeleçam
1
O fragmento é retirado como um par meramente antitético, prisioneiro dos limites do
do livro Elizabeth Costello maniqueísmo, do sentimentalismo e da exclusão. Ainda que o
(Cf. COETZEE , 2004, p.
26-7). Posterior a A vida texto acentue a necessidade ética e política de uma razão não
dos animais, este livro
(sua primeira edição
instrumental, i.é., de uma racionalidade que não se prenda à de-
em inglês é de 2003) põe fesa exclusiva do progresso pelo avanço tecnológico, a narrativa
em pauta a discussão da
teoria da representação, não se subjuga a uma ideologia, nem se presta a passar lições
que configura um dos de comportamento.
mais instigantes inte-
resses desse intelectual A estrutura desmonta a expectativa do leitor que espera
que, além de ficcionista,
tem trabalhado como
um romance, forma adotada pelo autor em outras de suas nar-
professor de literatura rativas, até premiadas com o Booker Prize, como Vida e época de
e participa, como ar-
ticulista, do setor de Michael K (1999) e Desonra (2002). O leitor percebe que algo de
resenhas de livros do insólito ronda as páginas de A vida dos animais. Suas fronteiras
suplemento literário do
New York Times. Coetzee transbordam o sentido do romanesco. E, mesmo que o título
ganhou o Prêmio Nobel
de Literatura, em 2003.
do livro pudesse sugeri-lo, o texto nem apenas defende agenda
2
COETZEE, John Ma- ecológica, nem resulta em um abaixo-assinado em prol do po-
xwell. A vida dos ani- liticamente correto.
mais. Trad. José Rubens
Siquei ra. São Pau lo: A correlação entre ética e estética nele se evidencia, provo-
Companhia das Letras,
2002. (A primeira edição
cando articulações multidirecionais que ultrapassam qualquer
da obra saiu em língua quadro de homenagem à interdependência dos campos do saber.
inglesa e foi publicada
pela Princeton Univer-
A vida dos animais vai além disso, pelo inesgotável agenciamento
sity Press, em 1999). de uma forma de palavra-puxa-palavra, que remete o leitor do
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Uma conversa entre macacos: percalços de um diálogo entre a África e o outro

romance ao “não-romance”, que o próprio texto contém. É com


mestria que o autor requisita um processo de costura de um
livro com outros, entretecendo livros de outros autores (Paul
Singer é um deles) com seus próprios livros ficcionais e de en-
saios, como Stranger shores, Inner workings e Giving offense, essays
on censorhip, e nos quais Coetzee dá vazão ao trabalho de crítico
literário sutil e bem aparelhado, de teórico e de pensador da
cultura extremamente culto.
A estrutura multifacetada e fragmentária de A vida dos
animais é um caso de hibridismo explícito, no qual o cânone dos
“gêneros literários” encontra-se extremamente abalado, bem
como a diferença entre homens e animais é posta em xeque e
re-investigada, disso resultando que o jogo de espelhamento e
contaminação de gêneros envolva-se no novelo da mise-en-abîme,
aprofundando a estratégia de aproximação e distanciamento
entre as partes, num mergulho inter e intratextual e inter e
intradiscursivo.
Desse modo, o livro de Coetzee avança para o saber en-
quanto descoberta, absorvendo uma rede de fronteiras que se
movem sem cessar, jogando com o obscuro que, uma vez cla-
rificado pelo leitor, insiste em modificar-se para, de novo, dar
reinício ao processo, sugerindo uma possibilidade infinita de se
jogar com a linguagem.
A vida dos animais apresenta-se em quatro partes: 1) “In-
trodução de Amy Gutmann”, 2) “A vida dos animais por J. M.
Coetzee”, 3) “Reflexões” e, 4) “Colaboradores” – que logo contra-
riam a idéia de “capítulos de romance” que o leitor traz consigo,
impedindo-o de usar, confortavelmente, a expressão romance ou
mesmo qualquer outra a que esteja acostumado. Nisso Coetzee
mostra-se um herdeiro dos primeiros modernistas, não só por
trabalhar com a idéia de ficção-limite,3 como também pelo caráter
espesso e opaco de sua trama altamente complexa, exemplo de
uma escrita “biscoito fino”.4
Uma das dificuldades de A vida dos animais – e marca de
sua originalidade – é o fato de que, na recepção inicial, e até
em releituras posteriores, o leitor custa a querer aceitar, não
acredita mesmo, persistindo na dúvida, que a primeira parte,
a introdução, seja escrita por Amy Gutmann e que as réplicas
sejam, também, feitas por outros quatro intelectuais: Marjorie
3
A ficção romanesca, no Garber, Peter Singer, Wendy Doniger e Barbara Smuts. E são.
caso, que está aquém,
ou além, da concepção
São? O leitor fica um tanto aturdido pela colisão de disfarces que
canônica de romance se dobram sobre si mesmos, a ponto de negar a evidência (tão
desenvolvida no século
XIX. evidente) de uma autoria que, todavia, indo-se verificar, consta
4
A e x p r e s s ã o é de da folha de rosto da publicação de A vida dos animais. Todavia, o
Oswald de Andrade,
que afirmou que a mas- leitor (comum) de romance não costuma prestar atenção a esse
sa um dia comeria do detalhe.
“biscoito fino” que ele
fabricava e constituía O jogo é tão bem feito, que a maior dificuldade advém de
sua obra. sua aparente simplicidade, o que coloca essa ficção no campo
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Gragoatá Lucia Helena

do paradoxo: tudo é e não é, em rápidos insights, criando oxí-


moros, gerando chispas velozes e múltiplos cruzamentos na
mente do leitor. A leitura (e as releituras) desse texto de Coetzee
traz (em) o impulso de associá-lo a um jogo que se afina com
a técnica empregada por Edggar Allan Poe, em um de seus
contos, segundo a exegese, feita por Bárbara Johnson, em The
critical difference,5 acerca da “Carta roubada” (1845) de Poe, – a
terceira de suas três histórias de detetive, com a qual o escritor
conquistou, como mostra a scholar norte-americana, a atenção
de sofisticada linhagem de estudiosos, como Derrida e Lacan.
O segredo da carta roubada, na história de Poe, carta tão difícil
de ser achada, é ter sido ela deixada em lugar tão evidente que
ninguém fora ali procurá-la.
Coetzee, de escolhas agudas e refinadas, brinca com a pista
e a contra-pista da evidência do roubo da carta e do logro da lin-
guagem. Brinca, ao mesmo tempo, com a idéia de ocultação e de
cultuar, gerando, na interpretação em português, a possibilidade
de se relacionar seu texto com a paronomásia entre o oculto e
o culto, por meio dessa e de muitas outras referências que fica-
rão ignoradas, por serem demasiado sutis para leitores menos
atentos. Ou seja, operando no eixo das citações – Coetzee não
trabalha nem por pastiche, nem por paródia, seu texto como que
gira e nos faz girar, como se fosse um “romance não-romance”
que abriga e instiga o caráter de charada dos textos policiais. Um
texto que oferece a seus leitores, sob a forma de armadilha, a
promessa sub-reptícia de um certo prazer da “descoberta” da res-
posta “certa” – “Quem escreveu o comentário, Coetzee ou Amy
Gutmann?” – para questões que não só não admitem respostas
certas, como também não deixam de existir quando parecem
ter sido respondidas, posto que as soluções dadas avançam em
direção a outros patamares e a outros enigmas.
A vida dos animais começa, como já foi dito, por uma “Intro-
dução de Amy Gutmann”, seguida de sessão intitulada “A vida
dos animais, por J.M. Coetzee”; e de quatro reflexões, em uma
sessão separada, contendo comentários às palestras da segunda
parte, feitos por Marjorie Garber, Peter Singer, Wendy Doniger
e Bárbara Smuts; e finalizando com uma sessão em que, sob a
forma de um pequeno currículo, se esclarece quem são aqueles
cinco intelectuais que apresentam reflexões às palestras de Eliza-
beth Costello, no Appleton College (e, no outro lado do espelho,
também as que foram feitas por Coetzee, nas Tanner Lectures da
5
Verificar, de Barbara Universidade de Princeton). O jogo prossegue apoiado em uma
Joh nson, o livro T he numerologia na qual se confirma o gosto pelo duplo: o texto
critical difference no qual,
no capítulo “The frame inteiro tem quatro partes, a segunda parte tem dois textos, são
of reference: Poe, Lacan,
Derrida”, de sua tercei-
quatro colaboradores, dentro da terceira parte, assim como na
ra parte, ela discute as quarta parte são quatro as referências, uma para cada um dos
exegeses que Lacan e
Derrida fazem do texto colaboradores.
de Poe.

224 Niterói, n. 24, p. 221-233, 1. sem. 2008


Uma conversa entre macacos: percalços de um diálogo entre a África e o outro

Na introdução de Amy Gutmann, à guisa de prefácio


crítico, o leitor recebe, de partida, um mapa da mina ficcional,
espécie de bastidores do que vai ler, pois Gutmann se refere
a duas conferências escritas e pronunciadas por Coetzee na
Universidade de Princeton, que integraram o ciclo anual das
Tanner Lectures, em 1997-98. Nestas conferências, ele teria criado
um personagem, como um alter-ego, e introduzido a figura de
Elizabeth Costello. Constituiriam, portanto, uma obra literária
e, não propriamente, conferências.
Na segunda parte, introduzidas e guiadas por um nar-
rador em terceira pessoa, estão, escritas para serem recebidas
como contos, e não mais apenas referidas, duas conferências,
intituladas: “Os filósofos e os animais” e “Os poetas e os ani-
mais” (escritas, como dissemos anteriormente, por Coetzee e
pronunciadas por Elizabeth Costello, no Appleton College e por
Coetzee nas Tanner Lectures). Forma-se, portanto, na matemática
textual, uma conta que não é de somar, pois dois e dois, no livro,
não são quatro (nem cinco, conforme aparece em letra composta
por Caetano Veloso): são dois, o duplo.
Seriam, portanto, duas as bocas (J. M. Coetzee, o autor e
Elizabeth Costello, a personagem) a emitir; são, também, duas as
(“mesmas”) palestras, e, finalmente, são duas as universidades a
que o livro se refere (Princeton e Appleton College), em um texto
em que estão entrecruzados – como uma unidade em dobradiça,
o ensaio e a literatura, a arte e a ciência, a realidade e a ficção,
a emissão e a recepção, o narrador e o escritor, a personagem
e a pessoa – pares que, pelo hibridismo, constituem uma tensa
dualidade ambígua, perfazendo uma estratégia de reflexão
(em, pelo menos, dois sentidos: a reflexão como ato sinônimo
ao ato de pensar e a reflexão como campo conexo à teoria da
representação).
Resumindo, temos duas palestras pronunciadas pela per-
sonagem Elizabeth Costello: uma se intitula “Os filósofos e os
animais”, e a outra, “Os poetas e os animais”. Elas provocam
quatro réplicas, cuja extensão se assemelha ao tamanho de cada
uma das palestras, que podem ser fruídas pelo leitor como ou-
tros tantos “contos” inseridos na estrutura de uma coleção de
histórias breves, agilmente interligadas. Essas duas palestras
(indicadas como “contos”, em A vida dos animais) serão deslocadas,
em 2003, para a ambiência de um novo livro, Elizabeth Costello,
no qual integrarão, com mais seis textos, os oito capítulos dessa
nova textualização, sendo ali, então, nomeados “ensaios”.
Tudo empurra o leitor para o câmbio e o intercâmbio entre
partes móveis. E a produção de sentido é acionada pelo jogo de
repetição de elementos que, se parecem semelhantes, resultam
em uma repetição diferencial ao serem inseridos em novo con-
texto de sentidos. Em A vida dos animais, e também em Elizabeth
Costello, o grande público que esteja fora do eixo de alcance dos
Niterói, n. 24, p. 221-233, 1. sem. 2008 225
Gragoatá Lucia Helena

intelectuais citados nos contos que se repetem em ambos os


textos, não sabe exatamente quem eles são. Conhecidos no meio
que os circunda, seu trabalho, no entanto, fica retido, na maioria
dos casos, no universo dos países em que atuam, mesmo que
o capítulo final atribua uma biografia a cada um dos que apre-
sentaram réplica ao que disse Elizabeth Costello.
Tudo se organiza à luz de um jogo de espelhos, com o
leitor podendo supor, durante algum tempo, ou até durante
todo o tempo, que tudo é ficção. E, mesmo que não seja assim,
também pode ser assim entendido, uma vez que o deslocamen-
to dos textos “não-romanescos” daqueles intelectuais, levados
para uma ambiência “romanesca”, a do texto de Coetzee, atribui
teor ambíguo ao conjunto, no qual a representação literária se
mistura com a possibilidade de representação da própria lin-
guagem. Examinando-se, por outro ângulo, o da impostura, as
estratégias narrativas de que o autor lança mão em A vida dos
animais e também em Elizabeth Costello, levam a considerar que
o procedimento convoca a força da ironia para, de forma disfar-
çada, tratar do jogo de máscaras em que se pode transformar, e
não de modo “positivo”, a vida entre scholars.
Tanto o assunto abordado em A vida dos animais, quanto
a maneira de apresentá-lo assinalam o inusitado dos recursos
técnicos e criativos desse escritor sul-africano de ascendência
holandesa, que estudou na Inglaterra e nos Estados Unidos, e
trabalhou em universidades americanas e sul-africanas e, no
momento, está radicado na Austrália. Essa “biografia intelec-
tual” faz, enfim, de Coetzee um homem também híbrido e de
seu tempo. Um tempo ao qual ele ainda surpreende, à medida
que é flagrado mobilizando a platéia da renomada Ivy League à
qual se integra a Universidade de Princeton, mas sem recorrer a
apelações jocosas – pois não se vale do humor rasteiro que, por
vezes, costuma acompanhar algumas dessas apresentações de
figuras notórias, nas quais o keynote speaker abusa do direito de
acariciar uma platéia dócil, com jogos verbais destinados a fazer
rir e distender o ambiente.
Discutir quem emite e para quem se emite são questões
básicas em A vida dos animais (1999). E o jogo de espelhos conti-
nua, pois, como já dissemos, quatro anos depois, os dois textos
atribuídos a Coetzee no sumário de A vida dos animais foram
extraídos para virem a fazer parte de uma nova ficção de Coet-
zee, intitulada, desta vez, Elizabeth Costello, fazendo com que a
personagem romanesca se transforme agora em autora de um
tipo de memória ensaística e os oito “contos” que compõem
o novo todo ficcional passem a ter o subtítulo de “ensaios”. O
pensamento do emissor se entrecruza com o do receptor, assim
como se estilhaça a estratégia recepção-emissão, uma vez que o
objeto da escrita, em uma faixa, torna-se o emissor na outra.

226 Niterói, n. 24, p. 221-233, 1. sem. 2008


Uma conversa entre macacos: percalços de um diálogo entre a África e o outro

Na leitura dessa estratégia e do choque que ela provoca,


uma espécie de constrangimento abre-se, revela-se. O processo
de elaboração do sentido surge como se viesse de uma cartola de
mágico, brotasse como um coelho, e saltasse para as mãos do lei-
tor. De modo gradativo, como se acompanhando um videoclipe,
retinas permanecem atentas, tensas na atitude de aturdimento,
observação e tentativa de compreensão. O que se aceitara ou não
se percebera, continua a se disseminar.
Nem estamos no calor da leitura. Retornamos aos textos, às
partes do texto, ao que parece parte e todo, como um viajante que
chega e rememora. Detalhes não registrados em uma primeira
leitura levam a outros, ainda a outros e mais outros. Logo um
quadro parece que se completa e diz. Mas essa completude é sem-
pre ilusória, as partes trazem suas dobradiças e seu potencial de
gerar dobras e ramificações, à maneira de Fênix. Na linguagem
dos diálogos interiores, ao mesmo tempo enigmáticos e claros,
cintilantes, uma transformação se realiza, insistente, imperiosa
e, por que não, penosa.
O que é? O que significa?
A imagem possui um gosto à maneira de Hannah Arendt,
naquilo em que busca articular ação e abstração, relembrando-
nos do que faz a filósofa em seu último livro A vida do espírito,
de publicação póstuma, quando examina o universo do espírito,
absolutamente real e humano na sua abstração. Enquanto essa
imagem se manifesta, arrostando, na velocidade dos espelhos,
as fronteiras híbridas do concreto e da abstração, entre A vida
dos animais e Elizabeth Costello um confronto se estabelece. E há
todo um esforço do leitor para evitar (ao mesmo tempo para
fazê-lo desejar) a busca da verdade dos fatos – afinal, quem
escreve o que diz Peter Singer? Ele, o filósofo australiano, ou
Coetzee, o escritor que mora na Austrália? Quem de fato estabe-
lece a seqüência das partes? Coetzee ou Amy Gutmann que, na
folha de rosto é mencionada como organizadora? Todo esforço
de decifração do leitor parece pequeno, insuficiente na ilusão
que o aproxima e distancia, entrega e retira, desvia. É e não é.
Carta roubada escondida na ponta do nariz. Tão na cara, que
quem a procura, tem-na diante de si, mas pensa que ainda não
a encontrou. A evidência e a recusa da evidência. O abstrato e
o empírico. E mais não sei quantas e quais teorias da represen-
tação, desde os gregos e troianos, ocidentalizando-se, estão em
jogo no jogo de Coetzee.
Em A vida dos animais se mostram pensamentos traduzidos
em palavras ditas por Elizabeth Costello, escritas por Coetzee,
por Amy Gutmann, por Peter Singer, por Wendy Doniger, por
Barbara Smuts e por mim e por você, leitor, o próximo da cadeia
leitor-emissor-receptor, dessa teia de mise-en-abîme. Pensamentos
assaltam-nos de uma vez, num golpe. Ou, então, entregam-se à
Niterói, n. 24, p. 221-233, 1. sem. 2008 227
Gragoatá Lucia Helena

busca do leitor. E o leitor tem, cumpre reconhecer, pensamentos


e pensamentos. Mas, severo e habituado à ficção contemporânea,
dirá que qualquer bom escritor dotado de discernimento em-
prega este arsenal e até pode sair-se bem. E, implacável, quem
sabe, perguntará: o que faz, mesmo, com que A vida dos animais
se torne tão digno de nota?
Em uma entrevista ao Jornal do Brasil, datada de 27 de no-
vembro de 2002, sobre a edição brasileira de sua obra Libertação
animal,6 o filósofo australiano Peter Singer é convidado a opinar
sobre a referência que a suas idéias fez John Maxwell Coetzee,
em A vida dos animais.
JB – O senhor é personagem do livro de J.M. Coetzee. Como
isso aconteceu? Até que ponto é possível separar o que é ficção
e realidade neste livro?

Peter Singer – Eu não sou um personagem do livro. A per-


sonagem central, Elizabeth, apresenta alguns pensamentos
semelhantes aos meus, mas, no que diz respeito a certas coisas,
o ponto de vista dela é muito diferente, como eu tentei indicar
na minha resposta ficcional publicada no livro. Eu suspeito que
o ponto de vista de Elizabeth esteja mais para o de Coetzee.
(Jornal do Brasil, 27 nov. 2002, grifo nosso)
Ao traduzir sua resposta para o registro do mundo fic-
cional (“minha resposta ficcional”, diz Singer na entrevista ao
JB), Peter Singer sublinha um dos sintomas do nosso tempo – a
afirmativa tanto repisada do caráter movediço das fronteiras. Por
outro lado, ao requisitar para seu texto ficcional a presença da
discussão filosófica de Peter Singer, Coetzee mobiliza um arsenal
crítico não-moralista que põe em pauta, de forma importante, o
estatuto ético necessário de ser discutido nas comunidades em
mudança de pele e pêlo.
A estratégia crítica não é nova na literatura. Nem é nova
na literatura a retomada do passado para citá-lo. Antes da apro-
priação de estilos pelo pós-moderno, ainda que com rendimento
diverso, o modernismo já o tornara uma prática costumeira.
Coetzee vai retomar, em A vida dos animais, e, sob a forma de
repetição diferencial, em Elizabeth Costello, uma experiência de
6
Lançado em 1975, Liber-
Kafka. Nesta, o traço irônico também investe sobre as dicotomias
tação animal foi recebido razão e emoção, homens e animais, além de contemplar as formas
como um marco. Basea-
do na idéia de que o ho-
acres do relacionamento acadêmico. No jogo de esconde-esconde
mem exerce uma tirania (em intertexto com a face detetivesca de busca da “verdade”) que
sobre os bichos inacei-
tável do ponto de vista constitui o livro, ele é, também, campo de reflexão sobre uma e
ético, o livro virou a simulada palestra: a narrativa breve de Kafka, intitulada “Um
bíblia do movimento de
proteção dos animais. relatório para uma academia”, extraído da coletânea Um médico
Como o autor aponta
nessa edição atualizada,
rural, pequenas narrativas (KAFKA, 1999, p. 59-72).
seu impacto fez com que Coetzee realça, na apropriação que faz do texto de Kafka,
vários países, sobretudo
da Europa, adotassem uma construção fora do pastiche e da paródia, em que a visão
medidas importantes mais intensificada é a de produzir uma alteração e desvio ao
nessa área.

228 Niterói, n. 24, p. 221-233, 1. sem. 2008


Uma conversa entre macacos: percalços de um diálogo entre a África e o outro

rumo dado a certas questões que ele retoma do texto inicial.


O narrador, no texto de Coetzee, age como quem deseja que o
leitor compare o uso distinto que ele e Kafka fazem da idéia de
liberdade. Cotejando o texto de Coetzee com o de Kafka, vemos
que o macaco de Kafka revela-se contrário à abstração. Ele quer
uma saída concreta e sem idealizações: quer sair da jaula. Esta
7
Para além dessa ques- saída é vista como uma ação, algo derivado do ato de sair. Já
tão, o problema pros-
segue para o Autor, no Coetzee, em A vida dos animais, afastando-se do que faz Kafka
qual a referência a Pedro em “Um relatório para uma academia”, enfatiza, com o macaco,
Rubro alcança também,
ainda que não direta- uma articulação entre o concreto e o abstrato, sem rechaçar nem
mente, seu rom a nce
Elizabeth Costello, que
uma, nem outra possibilidade.7
fornece uma chave para Kafka narra a história de um macaco que, tendo sido cap-
a releitura da diferença
entre a posição de Co- turado por caçadores africanos é levado de navio para a Europa.
etzee e Kafka. Nesse Nessa viagem, o maltrato que os humanos lhe impuseram fazem
romance, a personagem
de mesmo nome dialoga o macaco decidir tornar-se humano, não por desejo de liberdade,
com um seu desafeto,
Emmanuel Egudu, que
conceito abstrato de que ele nada entendia e que só os homens
com ela viaja como in- almejam, segundo pensa Pedro Vermelho (esse é o nome do
telectual entertainer de
turistas ricos em um macaco de Kafka). Preso e torturado, ele quer encontrar uma
navio de cruzeiro, onde saída que o tire de seu cativeiro, numa busca da liberdade como
ambos fazem conferên-
cias sobre literatura. No algo bem concreto. O Pedro de Kafka diz: “Não, liberdade eu
diálogo entre os dois
fica demonstrado o cru-
não queria. Apenas uma saída: à direita, à esquerda, para onde
zamento da idéia de quer que eu fosse; eu não fazia outras exigências: [...] a exigência
saída, para Elizabeth e
Egudu, o que nos remete
era pequena, o engano não seria maior” (KAFKA, 1999, p. 65).
para A vida dos animais, Ao que nos remete o conto de Kafka? Pedro Rubro, na ver-
texto no qual Coetzee
enfatizara duas dife- são de Coetzee, se pôs perante a Academia em 1917, o ano da
rentes concepções de revolução da Rússia (vermelha). É uma dobra que alude à situação
saída. A palavra saída é
o ponto do enclave entre política que a data sugere. Em Kafka, essa alusão – seu texto
o texto de Kafka e os dos
romances Elizabeth Cos-
data de 1919 parece transportar um acento cético-irônico: tanto
tello e A vida dos animais. faz ser à esquerda, à direita, são direções. Refreia-se a utopia, a
Tomemos um fragmento
desse diálogo:-- Egudu: idealização. Na versão de Kafka a data não aparece e o macaco
“Não tem futuro”, diz é Pedro Vermelho em virtude de um ferimento, causado por
Egudu, refletindo. “Isso
soa muito desolador, agressão. E esse “apelido”, não no sentido de sobrenome, mas
Elizabeth. Tem uma sa-
ída para nos oferecer?
de aposto jocoso, é considerado inconveniente pelo macaco:
Elizabeth: - Uma saída? “Atiraram, fui o único atingido; levei dois tiros. Um na maçã do
Não tenho de oferecer
nenhuma saída a você. rosto. Esse foi leve, mas deixou uma cicatriz vermelha de pelos
O que tenho mesmo é raspados, que me valeu o apelido repelente de Pedro Vermelho
uma pergunta” (CO-
ETZEE, 2004, p. 58, gri- [...]” (KAFKA, 1999, p. 61).
fos nossos). Nas suas
duas obras, Coetzee afia
Além de apontar a força dessas alusões que, se pudéssemos
a navalha do jogo de levaríamos adiante, é necessário dizer que o macaco de Kafka
espelhos que urde tão
bem, ressaltando que a
(que, apesar da repetição em diferença torna-se, em A vida dos
literatura é, sobretudo, e animais, o macaco de Coetzee e de Elizabeth Costello) de alguma
de modo cada vez mais
sofisticado, um fenôme- forma ridiculariza fenômeno tido como bem alemão, que foi o
no de auto-referenciali- Bildungsroman, o romance de formação. Mais do que uma forma-
dade, mas que produz
cenas de uma atuação ção, o macaco de Kafka e sua repetição diferencial em Coetzee
imaginarizante cuja ca-
pacidade de especular
parecem narrar, de modo positivo, uma ‘de-formação’; isto é, o
é infinita, embora sua processo que Pedro Rubro “narra não é o de uma formação em
relação com as ações e
o mundo não deva ser seu usual sentido positivo, de construção de uma identidade, de
deixada de lado.

Niterói, n. 24, p. 221-233, 1. sem. 2008 229


Gragoatá Lucia Helena

uma personalidade, mas sim [...] a educação como um necessário


processo de deformação”. 8
Mais do que ridicularizar um status quo, como parece
ser um dos ângulos da proposta de “Um relatório para uma
academia”, o processo de citação de Kafka por Coetzee atribui
à deformação, portanto, sentido que corrói a textualização dos
romances de formação. Ao retomar Pedro Rubro e sua conver-
são em homem, e discutir a transformação das fronteiras entre
o homem e o animal, do ponto de vista da racionalidade car-
tesiana, provoca, pela transposição, também novos efeitos de
reflexão sobre uma outra questão incômoda: a da racionalidade
que, com arrogância, dá primazia a uma determinada forma de
conhecimento, por vezes sob o perigo de excluir todas as demais
formas de exercício da razão, porque incapaz de percebê-la como
algo plural e, não, apenas excludente. Coetzee, em seu texto,
assinala, portanto, essa outra forma de concepção de conheci-
mento, visto como maneira de descaracterizar os sentidos de
identidade e de formação mantidos pela tradição dos saberes
médicos, zoológicos, cognitivos, retomando, por sua vez, o im-
pulso revolucionário de Kafka sobre o que – a literatura – para
ele, devia ser um instrumento de corte e reflexão, além de prazer
e artifício, como se depreende da carta escrita por Kafka, em
1904, a Oskar Pollak.9
Em Coetzee, retomar, com diferenças, nas páginas de A
vida dos animais e de Elizabeth Costello o macaco Pedro Vermelho,
magnífica criação de Kafka, é de suma importância, pois permite
realizar uma reconsideração da força do discurso literário, ou
que nome se lhe dê, carregada de intenções e de despistamentos.
Um leitor que conheça Coetzee também como ensaísta não se
pode furtar a mais uma articulação da dobradinha Coetzee e
Kafka com um outro livro de Coetzee, desta vez um de ensaios
literários, ainda não traduzidos para o português (Stranger Shores,
8
Este fragmento dialoga
com artigo de Sílvio literary essays).
Gallo, “O macaco de Ka-
fka e os sentidos de uma
Nele está um saboroso artigo de Coetzee dedicado ao exa-
educação filosófica”, no me de uma conferência de Eliot, intitulada “What is a classic?”
qual o autor traz à baila
a idéia de “deformação (e escrita por Eliot em 1944). Acrescente-se que esse estudo de
do romance de forma- Coetzee sobre a conferência de Eliot, antes de ser publicado
ção. Pode-se ler o artigo
de Gallo no site: <http:// como artigo, em 2001, foi proferido por ele, como palestra, na
www.educacaopublica.
rj.gov.br/biblioteca/filo-
Áustria, em 1993. Se, no jogo de espelhos dessa ficção em dobra,
sofia/filo_especial1001. temos palestra contra palestra, o que ressalta, ao final, é tam-
html>.
bém uma outra dobra em que palestra conta palestra, ou mesmo
9
Kafka formula um con-
ceito para a literatura palestra – conto – palestra, em outra dobra, e assim continua o
em sua carta a Oskar
Pollak, datada de 27 de
incessante processo de articulação em que o pensamento busca
janeiro de 1904. Segun- alcançar uma outra lógica, a do estilo cabralino, de “o sim contra
do o autor, a literatura é
“[...] um soco no crânio” o sim”.
do leitor; ou uma “ma- O “Sim contra o sim” a que me refiro é o título de um poema
chadin ha que rompe
em nós o mar de gelo” de João Cabral de Melo Neto, publicado no livro Serial. Nesse
(LÖWY, 2005, p. 15). texto, Cabral compara, em grupos de duas estrofes, e atribuindo-
230 Niterói, n. 24, p. 221-233, 1. sem. 2008
Uma conversa entre macacos: percalços de um diálogo entre a África e o outro

lhes igualmente valores positivos, dois artistas (poetas, pintores,


romancistas) que, em sua arte, comportam-se um ao contrário
do outro, nas técnicas e nos temas abordados, mostrando que
os caminhos da arte são abertos e incluem procedimentos que
se abrem uns para os outros, apesar das diferenças de técnicas,
estilos, formas e gêneros. Ou, como diz Coetzee, no artigo citado,
bastando para isso, ser “um clássico”. Neste sentido, a reunião,
em um paralelo, por inclusão, de procedimentos díspares,
contudo considerados positivamente, revela-se uma proposta
integradora.
É uma forma de pensar que implica a inclusão dos contrá-
rios, do mesmo modo que a rede tecida por Coetzee, reunindo,
aos seus, o texto de Kafka, sob o patrocínio da metáfora do
macaco, implica em abertura para novos conceitos de raciona-
lidade e novas formas de inclusão. Portanto, retomar, de modo
intertextual, a referência ao macaco de Kafka, torna-se, acima de
tudo, uma forma de se pensar a arte e a razão como fenômenos
integradores, ambíguos em sua pluralidade, em uma atitude de
exercício do pensamento focalizado, ele mesmo, como recusa à
exclusão e às formas sociais excludentes.
Em seu artigo-palestra sobre Eliot, Coetzee se permite
um momento autobiográfico, ao investigar em que sentido se
pode tomar Eliot como um clássico. Coetzee indaga de que ma-
neira se pode ser e compreender um clássico fora daquilo que,
usualmente, se toma por clássico e fora, também, da academia,
para pensar a vida. Tomando como fundamento da reflexão
teórica as forças da rememoração pessoal, Coetzee relembra da
transformação, provocada dentro de si, pelo primeiro instante
em que, aos quinze anos, ouviu o “Cravo bem temperado”, de
Bach, tocado na casa de um vizinho, sem que tivesse a mínima
idéia de quem era Bach, nem do que esse representava em um
registro cultural fora de sua classe. Sem que ele conhecesse
música, e muito menos, os “clássicos”, aquele foi um momento
de descoberta para Coetzee.
É dessa forma que nós, leitores, somos apresentados a
um outro Coetzee, personagem homônimo do Autor, jovem
de quinze anos em um mundo sul-africano ainda colonial, em
plena década de 1950, em que o background da mídia era a mú-
sica norte-americana, e não a européia. E tudo isso feito em um
ensaio crítico desviado, aparentemente, de sua rota acadêmica.
Ou, quem sabe, Coetzee estaria escrevendo com aquele ensaio
“Um outro relatório para uma academia”?
Enfim, ao retomar a escrita em mosaico, Coetzee re-insere
a categoria autor na escrita, ao se inserir e ao inserir Kafka e
Eliot, perfazendo com todas essas subjetividades e vozes uma
poderosa interlocução sobre o potencial transformador de tudo
aquilo que, na articulação entre razão e sensibilidade, sem re-

Niterói, n. 24, p. 221-233, 1. sem. 2008 231


Gragoatá Lucia Helena

montar ou trazer de volta um mundo mítico clássico, instaura


força e mudança.
Se relembrarmos nossa epígrafe, avançando um pouco
mais no texto do romance Elizabeth Costello, do qual foi extraída,
e a transformarmos, neste momento, em citação, reunindo-a ao
que dissemos de A vida dos animais, e ao experimento que pros-
segue na urdidura de Elizabeth Costello, veremos que a narrativa
de Coetzee está tratando, sempre, de um só problema, obstina-
damente refletido e repetido – o da representação, a ponto de o
narrador declarar:
Acreditamos que houve um tempo em que podíamos dizer
quem éramos. Agora, somos apenas atores recitando nossos
papéis. O fundo caiu. Poderíamos considerar trágico esse
evento, não fosse pelo fato de ser difícil respeitar um fundo
que cai, seja ele qual for – isso agora nos parece uma ilusão,
uma dessas ilusões sustentadas apenas pelo olhar concentrado
de todos da sala. Removam seu olhar apenas um instante, e o
espelho cai ao chão e se parte. (COETZEE, 2004, p. 26-27)
Em Elizabeth Costello, nosso Autor substitui a introdução
teórica de Amy Gutmann, por um capítulo chamado “Realismo”.
Que teoria da mímesis vai ou não vai sustentar os simulacros de
nossa era? Ou não são, nem serão mais simulacros, esses dogmas
de fé da nova profissão de época, a realidade virtual, de nosso
tempo? Nosso tempo? E as fronteiras tornadas tão tênues como
se tivessem desaparecido de todo? Será que seu desaparecimen-
to é ilusório? Ou será que elas são tão duras e pesadas, na sua
ilusão, que chegam a ser tão concretas, quanto concretas são
as divisas aduaneiras que fecham sua porta de acesso aos que
provêm de países ditos emergentes? Lamento, mas não podemos
continuar. Tenho que terminar aqui e agora, já que não me resta
mais tempo, pois ontem marquei um encontro com Elizabeth e
ela está tocando a campainha.

232 Niterói, n. 24, p. 221-233, 1. sem. 2008


Uma conversa entre macacos: percalços de um diálogo entre a África e o outro

Abstract
This article intends to discuss the web of texts
created by J.M.Coetzee to entangle three literary
texts: his two novels The lives of animals (1999)
and Elizabeth Costello (2003), and Kafka’s “A
Report to an Academy”, taken from A Country
Doctor [Ein Landarzt] (1919). How are we to
understand this textual network that spreads itself
in a sharp and delicate way? While inteweaving
the marks of authorship, autobiography, and fic-
tion, Coetzee’s text indicates both the porosity
and complexity of the act of writing. With this
capacity of branching, Coetzee’s texts highlight
the thin bordes between reality and the world of
“might have been” that literature creates. This
essay aims at examining these issues, which con-
nect the games of language to the representation
of today’s literary language.
Keywords: Coetzee. Kafka. Dialogue. Fiction.
South Africa. World.

Referências
ADORNO, Theodor W. Minima moralia: reflexões a partir da vida
danificada. Trad. Luiz Eduardo Bicca. 2. ed. São Paulo: Ática,
1993.
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Niterói, n. 24, p. 221-233, 1. sem. 2008 233


ENTREVISTA
O peixe e o macaco: emblemas
do subdesenvolvimento numa
entrevista com José Eduardo
Agualusa sobre o Brasil e Angola
Maurício de Bragança

“Angola... de cujo triste sangue, negras e infelizes almas se nutre, anima, sustenta, serve e conserva
o Brasil.”
(Pe. Antônio Vieira)
Brasil e Angola possuem muitos elementos em comum nos seus processos de forma-
ção histórica. É conhecida a relação que se formou com os projetos de expansão ibérica do
século XVI rumo à América, aproximando os dois países a partir de um contexto econô-
mico que levava as capitanias sul-americanas, o Brasil especificamente, a se interligarem
num espaço complementar ao de Angola através do abastecimento de escravos africanos
na colônia portuguesa. Dessa maneira o africano incorpora-se à paisagem americana.
Tanto o Brasil quanto Angola foram colônias (des)ajustadas ao mundo econômico
desde uma perspectiva periférica, complementando e apoiando, através da exportação
de suas riquezas (materiais e humanas), o império português. Os escravos africanos pro-
venientes, em grande número, do território angolano, se estabeleceram como a principal
mão-de-obra da América portuguesa. Esta estrutura do sistema colonial configurou o
primeiro fluxo de migração forçada de angolanos ao Brasil. Esta força de trabalho iria mar-
car profundamente a história e a cultura brasileiras, conectando estes dois continentes.
O Brasil foi colônia portuguesa até 1822 e Angola até 1975, quando o país africano
conquistou sua independência política, depois de passar por uma sangrenta guerra.
O MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), de inclinação comunista, foi
criado ainda na década de cinqüenta como uma articulação em torno do processo anti-
colonialista. Mesmo após 1975, Angola seguiu numa violenta guerra civil, exacerbada
pela competição entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria. O MPLA
e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), identificada com os
Estados Unidos, destruíram o país em décadas de luta intensa. Isto estimulou, a partir
dos anos oitenta, um processo de emigração de Angola, que buscava refúgio especial-
mente em Moçambique, Portugal e Brasil. Em 1992, houve eleições em Angola, nas quais o
MPLA saiu vitorioso. Em 1993, foi assinado um acordo de paz entre o MPLA e a UNITA,
reduzindo o fluxo emigratório de Angola, mas, na segunda metade da década, a guerra
civil recomeçou e, conseqüentemente, a imigração de angolanos no Brasil retomou seu
crescimento.

Gragoatá Niterói, n. 24, p. 235-247, 1. sem. 2008


Gragoatá Maurício de Bragança

Atualmente Angola vive sob um novo acordo de paz,


assinado em 2002 e que parece ter estabilizado, em parte, a
realidade de violência proveniente da guerra civil. A política
externa do governo Lula, buscando uma frente de coalizão entre
os países do chamado terceiro mundo, levou o nosso presidente
ao continente africano em 2003, com uma passagem por Luan-
da, onde acordos econômicos e de cooperação com a ex-colônia
portuguesa foram selados. Medidas como essa podem até tentar
diminuir gradualmente a violência em Angola e minimizar o
preconceito contra a presença angolana no Brasil, mas décadas
de sangrentas batalhas e extrema violência no país deixaram
marcas profundas de exclusão na sociedade que ainda produzem
efeitos sociais pungentes.
No Brasil, os angolanos chegavam, na década de noventa,
como turistas, com um visto que lhes permitia permanecerem
legalmente pelo prazo de um mês. Depois disso, a ilegalidade, e
os problemas decorrentes dela, era o destino de quase todos eles.
No final de 1998, o governo brasileiro implementou um projeto de
anistia aos angolanos que se encontravam em condição ilegal no
país. Mas os problemas em Angola não terminaram. A migração
Luanda - Rio ainda permanecia e o número de angolanos em
condição ilegal continuava a crescer.
Hoje em dia existem, aproximadamente, mais de 2000
angolanos no Brasil. Muitos deles moram no Rio, espalhados
entre os bairros da Lapa, da Glória, do Estácio e o centro da
cidade, além de algumas comunidades ao longo da Avenida
Brasil. Um grande número dos angolanos do Rio vive na Vila do
João, uma das diversas comunidades que formam o Complexo
da Maré, convivendo com uma realidade de extrema violência,
reforçada pela presença da polícia na disputa com as facções
rivais do tráfico.
Em fevereiro de 2000, uma ação da polícia do Rio chegou a
causar um incidente diplomático entre Brasil e Angola. Oitenta
angolanos moradores da Vila do João foram detidos pela polícia,
depois da morte de um policial numa ação contra traficantes no
local. Ativistas pelos direitos humanos e movimentos negros
protestaram contra a maneira como tais angolanos foram trata-
dos pela ação policial e irresponsavelmente apresentados pela
imprensa, fomentando a suspeita de sua participação no tráfico
da Vila do João. Dois dias depois, a prefeitura da cidade oficial-
mente se desculpou ao cônsul angolano no Rio. Este episódio
mostra-nos a vulnerabilidade em que se encontra a comunidade
angolana, segregada do mercado de trabalho, sujeita à arrogância
e à violência da polícia (tratamento este não diferente de suas
ações contra quaisquer comunidades pobres das periferias da
cidade do Rio de Janeiro). Ações como essa vêm reforçar o pre-
conceito de que são vítimas os angolanos residentes no Brasil.
238 Niterói, n. 24, p. 237-248, 1. sem. 2008
O peixe e o macaco: emblemas do subdesenvolvimento
numa entrevista com José Eduardo Agualusa sobre o Brasil e Angola
Por outro lado, a comunidade angolana desenvolve estra-
tégias de relacionamento visando à inserção e integração na
comunidade local, estabelecendo cadeias de reconhecimento e
identificação com outros grupos.
Em 2005, durante o processo de realização de um video-
documentário sobre os angolanos residentes na Vila do João,
tivemos a oportunidade de entrevistar o escritor angolano José
Eduardo Agualusa, que se encontrava no Brasil para participar
de mais uma Bienal Internacional do Livro, no Rio de Janeiro.
Após alguns contatos, o escritor gentilmente nos recebeu no
Hotel Glória, no dia 16 de maio, para uma conversa sobre as
questões que moviam o documentário e as problemáticas histó-
ricas das relações entre Brasil e Angola. O videodocumentário
ainda se encontra em fase de finalização, mas a entrevista pode
ser conferida abaixo.

Maurício de Bragança: A história recente de Angola é marcada pela


questão da diáspora, proveniente de uma guerra civil, principalmente
nos anos 90, e que proporcionou inclusive o que a gente tem percebido
como uma espécie de identidade fraturada na Vila do João. A sua lite-
ratura também é muito marcada por essa constância da guerra como
elemento motivador. Gostaria que você falasse um pouco disso: da guerra
civil na sua história pessoal e essas marcas na sua literatura.
José Eduardo Agualusa: Bem, a guerra em Angola tem diver-
sas fases. Na verdade nós podemos até considerar que a guerra
civil começou de uma certa forma com a própria guerra de
Independência, em 60. Porque logo quando se desencadeiam
as primeiras manifestações nacionalistas violentas no norte de
Angola na altura das possibilidades da União dos Povos de An-
gola, da UPA, que era uma estrutura financiada pelos Estados
Unidos da América, além dos colonos que são assassinados,
são assassinadas também muitas centenas de angolanos negros
que trabalhavam nas fazendas coloniais. Portanto, de uma certa
maneira, já era uma guerra civil, que continua depois entre os
movimentos de libertação. Eram três movimentos de libertação:
a UNITA, que só surge mais tarde, o MPLA e a UPA, depois
FNLA. Esses movimentos lutavam contra os portugueses, mas
também lutavam uns contra os outros, e representavam diversos
interesses internacionais. Estávamos em plena Guerra Fria, entre
os Estados Unidos e a União Soviética, e até a China. No caso, a
UNITA, quando surge, surge apoiada pela China; UPA-FNLA,
apoiada pelos Estados Unidos e o MPLA, apoiado pelos países
do leste. Portanto, estas três potências internacionais, grandes
potências, usavam seus peões para se digladiarem entre si. De
fato, estes movimentos lutaram contra os portugueses, mas lu-
taram também uns contra os outros. Já era uma guerra civil que
depois da independência se torna evidente. Em 1992, acontecem

Niterói, n. 24, p. 237-248, 1. sem. 2008 239


Gragoatá Maurício de Bragança

em Luanda os acordos de paz, um pouco antes até, em 1990, e


em 1992 já há as primeiras eleições. Portanto, há um pequeno
interregno de paz logo a seguir às eleições. As eleições são em
setembro. Logo no início de outubro, a UNITA, o líder da UNI-
TA, doutor Jonas Savimbi, recusa-se a aceitar o resultado das
eleições e a guerra recomeça com extrema violência, muito mais
violenta do que anteriormente e nas cidades inclusive, dentro de
Luanda e dentro de outras grandes cidades angolanas. Portanto,
aí temos uma nova fase da guerra que vai até recentemente, no
fundo. Depois há pequenos acordos de paz, mas no fundo, enfim,
a guerra prolonga-se até a morte do Jonas Savimbi, já em 2002.
Mas, enfim, temos estas diferentes fases da guerra que afetaram
as pessoas de uma forma diferente. No caso, por exemplo, das
populações de desalojados e de refugiados, isso ocorre logo no
início da guerra, logo que ainda a guerra anti-colonial se desen-
cadeia em 1960, logo aí há angolanos que procuram refúgio nos
países vizinhos, no Zaire, na Zâmbia. Depois, com a guerra civil
em 75, há uma nova vaga de refugiados, mais uma vez para os
países limítrofes, incluindo um pouco também a África do Sul,
mas também para Portugal. A grande vaga foi para Portugal.
Muitos milhares de angolanos buscaram refúgio em Portugal e
também no Brasil. Vários angolanos, já nessa altura, buscaram
refúgio no Brasil. Depois das eleições há esta nova fase da guer-
ra, terceira guerra, digamos assim, e então aí eu creio que sim,
aí há um grande número de jovens angolanos que, para fugir
à incorporação militar, vem para o Brasil, sobretudo para o Rio
de Janeiro.
MB: A gente percebe, de vez em quando, um questionamento grande
dos angolanos lá na Vila do João a respeito do papel do intelectual
angolano no processo histórico de Angola. Para você, qual é o papel do
intelectual em Angola?
JEA: É interessante isso. Às vezes quando as pessoas colocam
“a literatura não tem grande utilidade”, eu sempre digo não, o
caso de Angola demonstra que a literatura pode mudar o mun-
do, às vezes nem sempre para melhor. Porque o movimento
nacionalista em Angola foi de fato antecedido por um movi-
mento cultural, por um movimento literário. Este movimento
literário, com revistas, com debates, etc preparou a insurreição
nacionalista e não por acaso, logo a seguir à independência, nós
temos um primeiro governo formado por um grande número
de intelectuais, poetas, escritores, etc. O próprio presidente da
república era um poeta. Nem por isso foi o melhor governo, infe-
lizmente. Mas, portanto, vamos dizer que os intelectuais tiveram
um papel ativo na insurreição nacionalista. Isto é absolutamente
claro, sobretudo, do lado do MPLA. Agora, o que eu acho é que a
seguir à independência estes intelectuais, muitos, se colocaram
do lado do regime e enfraqueceram sua visão crítica, ou seja,
240 Niterói, n. 24, p. 237-248, 1. sem. 2008
O peixe e o macaco: emblemas do subdesenvolvimento
numa entrevista com José Eduardo Agualusa sobre o Brasil e Angola
deixaram de agir como uma entidade capaz de refletir sobre o
país de forma livre porque estavam do lado do regime, estavam
do lado do poder. Isto durou muito tempo, durou bastante tem-
po, e eu creio que só depois, com o fim do sistema de partido
único, com as primeiras eleições, os intelectuais começaram a
ver, começaram a reaparecer alguns intelectuais um pouco mais
críticos. Mas seja como for, eu acho que se deve ir bastante mais
longe, eu penso que, sobretudo no que diz respeito ao escritor,
eu acho que num país totalmente democratizado, num país es-
tável e próspero, o escritor pode não ter nenhuma outra função
que não seja, enfim, as grandes questões filosóficas ou divertir
simplesmente as pessoas. Mas num país como Angola, que é
um país no qual a maioria da sua população não tem voz, não é
capaz de fazer ouvir a sua voz, e é um país onde existem tantos
problemas, tão graves, eu acho que o escritor num país assim
tem obrigação de dar voz a essas pessoas, de procurar dar voz
a essas pessoas.
MB: O perfil do angolano, que migrou nos anos 90 para a Vila do João,
é um perfil de jovem, entre 18 e um pouco menos de 30 anos, homens
em sua maioria, provenientes dos musseques de Luanda, pobres, e to-
dos, absolutamente todos eles que a gente encontrou até agora, negros.
Você, sendo um angolano branco, como é que você vê a questão racial
em Angola?
JEA: Essa vaga é muito diferente daquela que aconteceu em 75.
Eu acho, que em 75, a maioria dos angolanos que migraram para
cá eram angolanos da pequena-alta burguesia; portanto, uma
burguesia mestiça, branca. A guerra curiosamente teve isto. Du-
rante muito tempo, logo a seguir à independência, os oficiais, ou
parte, vamos dizer, dos oficiais generais dos exércitos angolanos,
podemos dizer a maioria dos generais, eram mestiços e brancos,
que eram aqueles que tinham estudado nas universidades mi-
litares, que tinham tido alguma possibilidade de estudar, que
tinham desenvolvido a sua capacidade a uma direção militar.
Hoje a situação já não é mais tanto assim, mas ainda é um pou-
co, ou seja, em um certo nível das forças armadas ainda há essa
presença. Em 75, você ainda podia encontrar entre os soldados
elementos dessa pequena burguesia mestiça, mas pouco a pouco
o que foi acontecendo é que a guerra foi sendo feita cada vez
mais pelos pobres. Quem morreu nesta guerra foram os pobres,
a partir de uma certa altura. E quando chegamos a 92, então,
isso é absolutamente claro. Na terceira fase da guerra, quem dá a
vida, quem faz a guerra, quem morre na guerra, são geralmente
os pobres. Os generais podem ser ainda mestiços, brancos, mas
quem morre na guerra são os pobres. Há até um verso do Ruy
Duarte de Carvalho que diz que “o sangue agora é dos outros”, ou
seja, o sangue não é nosso. Não é dessa pequena-alta burguesia.
Portanto, não é de admirar que sejam estes pobres que tentam
Niterói, n. 24, p. 237-248, 1. sem. 2008 241
Gragoatá Maurício de Bragança

fugir da guerra também e que sejam esmagadoramente na sua


totalidade, ou quase totalidade, negros.
MB: No seu “O ano em que Zumbi tomou o Rio”, você faz declarações
bastante corajosas, tanto a respeito do processo de Angola quanto ao pro-
cesso brasileiro, de exclusão da sociedade brasileira, inclusive afirmando
que o Brasil nunca tinha sido de fato descolonizado. Isso na boca de um
personagem angolano. Qual a diferença do processo de descolonização
do Brasil e o de Angola, vistos por você?
JEA: Bem, é totalmente diferente, não tem comparação, realmen-
te. Eu falo disso no livro, e enfim é uma provocação, mas... É evi-
dente: quem fez a independência do Brasil foi um rei português,
que depois de ter feito a independência do Brasil, regressou a
Portugal e foi rei em Portugal. É extraordinário isso. E quem fica
no poder, quem fica a controlar o poder, são de fato ou portugue-
ses ou descendentes de portugueses. E ficam sempre, ou seja, não
há uma passagem de poder. A vasta maioria de brasileiros de
descendência africana, que nessa altura era vastíssima maioria,
mais de 80 por cento dos brasileiros no século XIX, eram negros.
E os índios, as populações indígenas, são totalmente afastados
do poder, totalmente afastados. De fato, até essa altura, havia
uns mestiços no meio daquela situação. Por exemplo, é curioso
que a literatura brasileira, toda ela, seja fundada por mulatos e
negros, mas depois... Mesmo esse poder, que até podia ser ainda,
enfim, um pouco escuro, vai clareando, até que no século XX,
em meados do século XX, não havia nenhuma participação de
afro-descendentes no poder, no poder político.
Em Angola, não. Em Angola o que acontece é que... É muito
curioso, é muito interessante comparar isso: no século XIX, até
finais do século XIX, criou-se em Angola uma elite baseada no
tráfico de escravos, quase uma aristocracia, uma elite econômi-
ca, política e até cultural de angolanos, negros e mestiços. Esses
angolanos tinham de fato muito poder, quer poder econômico
– algumas das maiores fortunas de Angola nessa época estavam
nas mãos de angolanos negros e mestiços –; quer poder político,
uma boa parte do pequeno poder local, sei lá, o equivalente
ao prefeito aqui ou o presidente da Câmara, eram angolanos;
quer culturalmente. Por exemplo, para escrever alguns dos
meus livros, li muito dos jornais publicados entre 1880 e 1900.
Há inúmeros títulos, são dezenas e dezenas de títulos e muitos
desses jornais eram dirigidos por angolanos negros, negros e
mestiços. E você vê claramente, ao contrário do que se pudesse
pensar, havia uma elite angolana com poder. Depois, já com o
fim do tráfico de escravos, muitas dessas famílias vêm para o
Brasil e as outras realmente perdem poder, poder econômico,
desde logo porque a principal fonte de rendimento desaparece.
E depois o próprio governo português, o próprio governo colo-
242 Niterói, n. 24, p. 237-248, 1. sem. 2008
O peixe e o macaco: emblemas do subdesenvolvimento
numa entrevista com José Eduardo Agualusa sobre o Brasil e Angola
nial preocupado com a possibilidade dessas pessoas que já nos
jornais da época falavam em independência – já naquela altura,
já no século XIX se falava em independência – preocupado com
a possibilidade real disso acontecer vai retirar ainda mais po-
der a essas pessoas, vai criar legislação no sentido de retirar, de
empobrecer essa elite, e consegue, consegue fazer isso. Agora, a
grande diferença relativamente ao Brasil é que nós temos, seja
como for, temos uma classe média-alta negra em Angola que
vem de há muito tempo, que tem séculos, essa é uma primeira
grande diferença. Por outro lado, logo a seguir à independência,
mesmo antes da independência, já com a luta nacionalista, já com
a luta anti-colonial, quando surgem os primeiros movimentos
de libertação, logo aí há uma revolução de mentalidades porque
há essa apreciação de que quem vai ter o poder será a maioria
negra e portanto há uma integração dos angolanos brancos
e mestiços no movimento de libertação dentro dessa idéia. E
isso modifica completamente até a mentalidade das pessoas. E
quando acontece essa revolução, essa revolução de mentalidades
atinge o seu auge, ou seja, você tem, portanto, um país que passa
a ser gerido por uma maioria negra e isso muda a cabeça das
pessoas, completamente.
MB: Uma questão recorrente, voltando ainda a “O ano em que Zumbi
tomou o Rio”: nos depoimentos que a gente observa na Vila do João, é
que há um certo estigma na comunidade local, e na sociedade carioca
como um todo, de uma articulação do angolano com o tráfico no Rio de
Janeiro. A imprensa, irresponsavelmente, sempre inscreve este angolano
da Vila do João, ou do Estácio, enfim, da periferia, articulado a uma
rede do tráfico. Você de alguma forma toca neste ponto em “O Ano em
que Zumbi tomou o Rio”. Como é que você tomou contato com estas
questões e por que você resolveu colocá-las no livro?
JEA: Bem, na verdade não é o que se quer apenas do angolano,
é o brasileiro pobre que vive nas favelas e o brasileiro negro
porque nas favelas a maioria da população é afro-descendente,
e realmente sofre este estigma. Vive num território dominado
pelo tráfico e é identificado dessa forma pelos outros brasileiros
das classes mais ricas. Não são apenas os angolanos; estes an-
golanos sofrem este estigma porque vivem lá. Os outros poucos
angolanos que estão aqui, que também há alguns vivendo na
classe alta e há alguns extremamente ricos que evidentemente
vivem nos bairros ricos, não sofrem este estigma, naturalmen-
te. De fato eu já tinha essa idéia de escrever este livro há muito
tempo porque qualquer angolano, qualquer africano que chega
ao Brasil imediatamente repara nessa coisa extraordinária que
é um país que de fato não tem uma paranóia racial, não pensa
muito nisso, mas onde uma fratura racial corresponde a uma
fratura social, não? Ou seja, é muito claro que a pobreza aqui
tem cor, e qualquer angolano, sobretudo, está habituado a uma
Niterói, n. 24, p. 237-248, 1. sem. 2008 243
Gragoatá Maurício de Bragança

outra realidade. E muitos angolanos ainda por cima têm um


grande culto ao Brasil, as pessoas curtem aquelas coisas do Brasil,
como música, etc. Têm uma imagem muito favorável do Brasil, e
quando chegam ao Brasil reparam nisso, são confrontados com
isso, com esse fato de os negros estarem excluídos do poder, e
isso normalmente é um choque. Portanto desde há muito tempo
que eu tinha intenção de fazer este livro. Evidentemente depois
houve um outro click, vamos dizer, quando surgiram nos jornais
essas notícias dizendo que eventualmente haveria mercenários
angolanos ao lado do tráfico. Eu acho que a originalidade do
meu livro é supor que aquilo que já é uma guerra, um confronto
militar já, passa a ter contornos políticos, ou seja, aquilo que é
uma guerra simples, uma guerra entre polícias e bandidos, di-
gamos, passa a ter contornos políticos, ou seja, é imaginar uma
espécie de Che Guevara das favelas, uma espécie de Zumbi
do século XXI que dê uma consistência política a esta revolta.
Essa é a originalidade do livro; é isso que eu tento imaginar.
E aí interessou-me imaginar o próprio Zumbi de ascendência
angolana, ou seja, teria uma origem angolana, interessou-me
imaginar, porque faz algum sentido, que um antigo oficial do
exército angolano com experiência militar pudesse ter esse pa-
pel, porque eventualmente o que falta aos soldados do tráfico
é essa experiência militar, alguém que organize, que não só dê
consistência política mas também dê uma maior articulação
militar a esta guerra. Então, foi assim que surgiu. Agora, eu
tento, você deve ter reparado, eu tento um pouco salvar a face
desses angolanos pobres que fugiram à guerra, explicando o que
é uma verdade: que a maior parte deles fugiram a uma guerra
e o que eles querem, o que eles menos querem é outra guerra, é
verem-se envolvidos numa outra guerra. Portanto eu acredito
que, acredito realmente nisso, acredito que a maior parte dessas
pessoas sejam trabalhadores honestos. O que querem é fugir da
guerra, caramba! Conseguiram fugir de uma, não é? Não vão
meter-se numa outra.
MB: A sua literatura propõe uma reescrita da história a partir do
desmoronamento de uma história oficial, criando um entrelugar que
desliza entre a ficção e a realidade. A gente percebe, na Vila do João,
que a memória dos angolanos que vão para lá, ela de uma certa forma
também reescreve uma outra narrativa histórica, justamente através
dessa questão da diáspora, até propondo umas lacunas da memória
como lugar da própria memória, ou seja, o esquecimento como memó-
ria, seja pelo afastamento cada vez maior da época em que viviam em
Angola – tem angolano que está há quinze, dezesseis anos já aqui – seja
pela tentativa de fuga realmente daquela realidade, como você acabou
de colocar. O quanto você acha que pode haver de memória no próprio
esquecimento? Quando esta lacuna se transforma na inscrição de uma
memória?

244 Niterói, n. 24, p. 237-248, 1. sem. 2008


O peixe e o macaco: emblemas do subdesenvolvimento
numa entrevista com José Eduardo Agualusa sobre o Brasil e Angola
JEA: Eu acho que há duas questões: por um lado, os angolanos, se
você for a Angola e mesmo por aqui, provavelmente, você sente
essa coisa, os angolanos têm uma aparente e elevada auto-estima.
O angolano é bem arrogante, muito orgulhoso da sua raiz, de
sua origem, às vezes exagera. Eu acho que isso tem a ver com o
fato de ser um país tão sofrido, né? E com tão poucos motivos
de orgulho, na verdade. Então a pessoa muitas vezes tende a
transformar o passado, tende a recriar o passado para conseguir
motivos de orgulho, para conseguir uma certa auto-estima. Por
exemplo, relativamente a Moçambique, Angola sempre teve uma
disputa com Moçambique. Moçambique, pelo menos, teve uma
Lurdes Mutola, que é uma grande campeã de atletismo ou casou
a sua primeira-dama, a sua antiga primeira-dama, ex-mulher de
Samora Machel, veio a casar com o presidente da África do Sul,
um homem que todos nós, enfim, a maior parte das pessoas no
mundo, venera, o Nelson Mandela. Então até dessas pequenas
coisas Moçambique pode-se orgulhar, enquanto que nós de fato
tenhamos poucos motivos de orgulho, muito poucos. E talvez
isso faça com que o angolano tente reinventar a sua própria
história, a sua própria memória de forma a conseguir manter a
cabeça erguida. Por outro lado também é verdade que em An-
gola desde sempre houve esta... realidade e fantasia sempre se
misturaram. Sempre houve uma coisa fluida. Há um livro muito
interessante com uma entrevista com Gabriel García Márquez,
creio que está publicado no Brasil. Eu li no original em espanhol,
“El olor de la guayaba”, em espanhol, portanto “O perfume da
goiaba”, em que ele conta que a experiência mais importante de
sua vida aconteceu numa viagem a Angola, em 1977. Ele foi a
Luanda e ao desembarcar em Luanda, ele diz, foi como se tivesse
desembarcado na sua própria infância. E naquele momento ele
percebeu que também era africano. E percebeu que aquilo a que
nós chamamos realismo mágico é uma coisa que vem da África.
Essa mistura entre a fantasia e a realidade é uma coisa africana
e eu acho que ele tem razão nisso. Acho que ele tem razão. Em
Luanda isso é muito perceptível. Talvez também essa capacidade
de fabulação venha daí.
MB: E essa questão dessa porosidade de limites, de contaminação dos
limites entre realidade e ficção, as personagens que transitam muito
nos seus livros, não só transitam geograficamente, fazendo quase um
triângulo entre Brasil, Angola e Portugal e aí se expandindo para ou-
tros lugares – Goa, Berlim, etc e tal – mas transitam entre os próprios
livros. Tem uma “migrância” muito grande, né? E a sua literatura
constantemente é colocada como uma literatura mestiça. Existe uma
série de questionamentos a respeito das teorias de mestiçagem... de que
elas proporcionariam uma síntese apaziguadora dos conflitos. Você não
acha que, ao invés de mestiça, seria mais própria à sua literatura a idéia
de uma literatura migrante porque aí você tem realmente as questões

Niterói, n. 24, p. 237-248, 1. sem. 2008 245


Gragoatá Maurício de Bragança

que migram e não encontram seus lugares e os conflitos são preserva-


dos? Como você vê essa história da mestiçagem e da “migrância” na
sua literatura?
JEA: Nunca pensei nisso assim, mas faz algum sentido no que
você está a dizer, sim, claro. Faz sentido neste aspecto, sim.
MB: E agora uma pergunta: estamos à beira de trinta anos de indepen-
dência de Angola. Já a quase três anos, ou três anos, de um acordo de
paz. Quais são as suas perspectivas com relação a essa Angola, a este
momento de Angola, ou a um futuro próximo de Angola? O que você
pensa a respeito disso?
JEA: Como todo angolano, sou otimista. Sou realmente otimis-
ta. Eu acho que, pois, já alcançamos a paz, que foi um grande
triunfo e é evidente que... Eu não creio que a guerra... Por vezes
o governo tentou durante muito tempo, o regime tentou ven-
der esta idéia de que tudo estava errado por causa da guerra,
de que qualquer coisa que não funcionasse era a guerra. Não é
verdade, tão simples como isto, porque Angola evoluiu muito.
Aliás, o grande período de evolução de Angola no crescimento
econômico, foi entre 60 e 74, ou seja, durante a guerra colonial. A
guerra foi o motor até do desenvolvimento, serviu como motor
do desenvolvimento. Portanto, a guerra não pode ser a razão de
todos os males e de fato não é. A razão de todos os males tem a
ver com a incompetência do regime. Com o desinteresse e com
a corrupção. Essa é a principal. Agora, é verdade também que,
ao conseguirmos alcançar a paz, deixou de haver essa desculpa
do próprio regime. Eu creio que o grande desafio atual, evi-
dentemente, é democratizar o país, tentar conseguir que haja
eleições, em primeiro lugar. É conseguir fortalecer a imprensa
independente, é conseguir que a sociedade civil se refaça na sua
totalidade, ou seja, que voltem a surgir, cada vez mais e cada
vez com mais força, não apenas partidos políticos, mas também
sindicatos, igrejas e organizações não-governamentais. Eu acho
que se está a conseguir, está-se a fazer, embora de forma muito
lenta. Eu gostaria que fosse mais rápido, sobretudo no caso das
eleições. Eu acho importante haver eleições, eu acho importante
haver eleições, sobretudo para o poder local. O poder local é
absolutamente essencial. É com o poder local que se vê um país
a desenvolver-se. Não acredito, realmente de todo, que seja pos-
sível desenvolver sem democratizar. Acho que não é possível. E
eu acho curioso que, quando você olha para o mapa da África,
percebe que os países desenvolvidos em África, que os países
que se desenvolveram, como África do Sul, como Botswana,
como a Namíbia, como o Senegal, como Cabo Verde, que é um
país sem condições nenhumas do ponto de vista de riqueza,
riquezas minerais, etc, mas todos estes países se desenvolveram
muito nestes últimos anos e se desenvolveram muito porque são
246 Niterói, n. 24, p. 237-248, 1. sem. 2008
O peixe e o macaco: emblemas do subdesenvolvimento
numa entrevista com José Eduardo Agualusa sobre o Brasil e Angola
países democráticos e, quanto mais profunda é a democracia,
mais desenvolvido é o país. Portanto, eu acho que o essencial
agora é democratizar, é criar estruturas, é forçar o regime a
democratizar-se e depois, e depois, ao mesmo tempo, investir no
desenvolvimento do país. Quando eu falo em desenvolvimento,
por exemplo, uma área absolutamente fundamental é a questão
da educação e da cultura. É impressionante que ainda hoje as
forças armadas da defesa tenham um orçamento muitíssimo
superior àquilo que é reservado para a educação. Eu não sei se
ainda hoje é assim, mas creio que ainda hoje é assim: há mais
dinheiro para as bolsas de estudo no estrangeiro, de doutora-
mento e de mestrado, do que para a educação básica. As escolas
primárias de Angola estão totalmente abandonadas. Totalmente
abandonadas. Os professores ganham nada, uma miséria. Você
depois tem isso sim, escolas privadas a surgirem, têm universi-
dades privadas. Há cada vez mais universidades privadas, mas o
sistema de ensino público foi totalmente abandonado. O que vai
dar até no que conversávamos da questão racial, ou seja, há uma
perpetuação do sistema, dos erros e das perversões do sistema
colonial. Aqueles que eram mais favorecidos no sistema colonial,
os brancos e os mestiços, continuam a ser os mais favorecidos
hoje porque são aquelas pessoas que podem colocar os filhos
nas universidades privadas ou, inclusive, mandar estudarem
os filhos fora do país, que é o que acontece. E a vasta maioria
da população não tem sequer forma de educar os seus filhos,
porque as escolas não são más: elas não existem. O sistema de
saúde, outro problema, o sistema de saúde. Ainda recentemente,
e ainda agora estamos em Angola com um problema gravíssimo:
o vírus do Marburg, que é um vírus que será mais grave ainda
do que o Ébola, portanto o nível máximo que pode haver de
periculosidade. E o estado angolano destinou, queria destinar
inicialmente quando o vírus aparece, poucas semanas depois,
um orçamento de 200 mil dólares para combater o vírus, e meses
antes tinha havido um escândalo porque o Supremo Tribunal
tinha comprado dois carros, no valor de 800 mil dólares cada
um. Então por aqui você percebe quais são os interesses e quais
são as prioridades do regime angolano. Quer dizer, o presidente
da república não foi capaz de fazer uma única comunicação a
respeito do vírus. Não fez. Não há uma comunicação em Angola
do presidente da república sobre este vírus numa altura em que
já morreram mais de 300 pessoas atingidas pelo vírus. Por que?
Porque mais uma vez “o sangue é dos outros”, porque quem
está a morrer, mais uma vez, é a população pobre. Não são os
angolanos ricos das grandes cidades.
MB: Angola, assim como o Brasil, tem uma forte tradição oral. E é
muito interessante, a gente observar lá na Vila do João, que os angolanos
muitas vezes se comunicam através de parábolas. E eles contam muitas
Niterói, n. 24, p. 237-248, 1. sem. 2008 247
Gragoatá Maurício de Bragança

histórias. E aqui vai um pedido: você teria alguma parábola para contar
para a gente sobre tudo isso que a gente conversou aqui hoje?
JEA: Há uma história que eu gosto muito e tem um pouco a ver
com essa idéia de muitas vezes os estrangeiros terem a idéia de
que vão à África salvar os africanos. E está cheia de organiza-
ções não-governamentais estrangeiras que entram no país com
a idéia que “nós sabemos, nós é que sabemos, nós é que vamos
ensinar a essa gente como é que é” e com experiências horríveis.
Por exemplo, na ajuda, até na ajuda, pessoas bem intencionadas,
por exemplo, levam trigo para oferecer à população, esquecendo
que os camponeses estão a produzir milho, massambala, que são
produtos locais, e que estão a fazer concorrência direta a estes
camponeses que de repente empobrecem ainda mais porque têm
uma concorrência desleal de gente que está a dar. Enquanto eles
querem vender, as pessoas estão a dar trigo, que ainda por cima
não é um produto local. Então há uma história muito engraçada
que é a história de um macaco e do peixe.
O macaco está a passar por um rio, junto a um rio, um ribeiri-
nho, e vê um peixe e o macaco diz: “olhe o pobre animal, caiu à
água, está se afogando, está a se afogar esse animal. Deixe-me
salvar esse animal”. Então o macaco mergulha na água, com
coragem e tal, agarra o peixe, tira o peixe para fora da água e o
peixe, coitado, começa a estrebuchar e o macaco diz: “Oh! Vejam
como esse pobre animal está feliz porque eu o salvei”. Aí o peixe
dá mais uns saltinhos, e com falta de ar, morre. E diz o macaco:
“coitado, já não foi a tempo, mas ainda tentei salvá-lo”.

248 Niterói, n. 24, p. 237-248, 1. sem. 2008


Colaboradores BENJAMIN ABDALA JUNIOR
deste Número Pesquisador do CNPq e coordenador de Letras e Lingüística da CAPES/MEC,
é professor titular da FFLCH da Universidade de São Paulo. Publicou cerca
de quarenta títulos de livros (livros de autoria individual, organização de
coletâneas críticas e antologias), entre eles A escrita neo-realista (1981); História
social da literatura portuguesa (1984); Tempos da Literatura Brasileira (1985); Litera-
tura, história e política (1989); Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio
sobre mestiçagem e hibridismo cultural (2002); De vôos e ilhas: literatura e
comunitarismos (2003). Entre as coletâneas que organizou ou co-organizou,
podem ser mencionadas Ecos do Brasil: Eça de Queirós, leituras brasileiras e
portuguesas (2000); Personae: grandes personagens da literatura brasileira
(2001); Incertas relações: Brasil e Portugal no século XX (2003); Margens da
cultura: mestiçagem, hibridismo & outras misturas (2004); Portos flutuantes:
trânsitos ibero-afro-americanos (2004) e Moderno de nascença: figurações
críticas do Brasil (2006).

BETHANIA MARIANI
Doutora pela UNICAMP, é professora do Departamento de Ciências da
Linguagem da UFF e pesquisadora do CNPq. Desenvolve estudos sobre a
história das idéias lingüísticas no Brasil e sobre o modo como os portugueses
empreenderam o processo de colonização lingüística em diferentes regiões
do planeta. Publicou pela Editora Pontes, em 2004, o livro Colonização lingüís-
tica: línguas, política e religião no Brasil (séculos XVI a XVIII) e nos Estados
Unidos da América (século XVIII).

CARMEN LUCIA TINDÓ SECCO


Nascida no Rio de Janeiro, Brasil. Doutora em Letras pela Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro, Professora Associada da Faculdade de Letras desta
Universidade, implantou em 1993 o Setor de Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa. Foi Chefe do Departamento de Letras Vernáculas/UFRJ de 2003
a 2004 e é Membro da Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-
Brasileiros. É consultora da FAPERJ e da CAPES, pesquisadora I do CNPq.
Publicações nas áreas de Literaturas Africanas e Brasileira, entre as quais:
Morte e prazer em João do Rio (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976); Além da
idade da razão (Rio de Janeiro: Graphia, 1994); Guia bibliográfico das literaturas
africanas em bibliotecas do RJ (Rio: Faculdade de Letras/ UFRJ, 1996); Antologias
do mar na poesia africana (Rio de Janeiro: Faculdade de Letras / UFRJ, 1996,
1997, 1999. 3 v.). O volume 1 desta Antologia, dedicado a Angola,teve uma
edição angolana, em Luanda, no ano de 2000, sob a chancela do Editorial
Kilombelombe, com o apoio do Ministério da Cultura de Angola. Publicou
também os livros: A Magia das letras africanas: ensaios escolhidos sobre as
literaturas de Angola e Moçambique. Rio de Janeiro: ABE Graph, 2003; Entre
fábulas e alegorias. Rio de Janeiro: Quartet, 2007; Como se o mar fosse mentira (em
co-autoria com Rita Chaves e Tânia Macedo). Luanda: Chá de Caxinde, 2006.

CHARLOTTE GALVES
É professora do Departamento de Lingüística da Unicamp. É doutora em

Niterói, n. 24, p. 249-253, 1. sem. 2008 249


lingüística portuguesa pela Universidade Paris IV. Sua área central de atu-
ação é a sintaxe do português, no quadro da Teoria da Gramática Gerativa,
com ênfase na comparação do português europeu e do português brasileiro,
e na história da língua em Portugal e no Brasil. Desde 1998, coordena a ela-
boração do Corpus Anotado do Português Histórico Tycho Brahe (http://
www.ime.usp.br/~tycho/corpus). Em 2001 publicou o livro Ensaios sobre
as gramáticas do português, pela Editora da Unicamp. Desde 2006, vem inte-
grando a questão do contato com as línguas africanas à sua pesquisa sobre
a história do português. Outros aspectos importantes da sua atuação são o
papel da interface sintaxe/fonologia na mudança lingüística, a modelagem
probabilística do ritmo na escrita, e a lingüística de corpus.

DENISE BRASIL ALVARENGA AGUIAR


Doutora em Literatura Comparada; Professora adjunta do Instituto de Apli-
cação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); vice-líder do
grupo de pesquisa do CNPq Nação e narração; autora de capítulos de livros
e artigos diversos sobre literatura contemporânea.

LUCIA BETTENCOURT
Formada em Português-Literaturas pela UFRJ, e mestre em Literatura pela
Universidade de Yale, cursa agora o Doutorado na UFF. Possui alguns tra-
balhos acadêmicos publicados, tais como “Em breve cárcel de Sylvia Molloy
e a leitura aprisionada” in: América Hispânica (11-12 –Ano VII:Jan-Dez-1994);
“Cartas brasileiras: visão e revisão dos índios” in: Índios no Brasil. Org. GRU-
PIONI, L. D. B. MEC, 1994 e “Banquete, literatura e civilização” in: Cadernos
de Letras da UFF (11 - 1996). Prêmio Osman Lins de Contos, com o texto
“A cicatriz de Olímpia”, Recife, 2005. Prêmio SESC Categoria Contos, com
seu livro A secretária de Borges, publicado pela Record, 2006. Prêmio Josué
Guimarães, pelos contos “Manhã”, “A caixa” e “A mãe de Proust”, Jornada
Literária de Passo Fundo, 2007.

LUCIA HELENA
Doutorou-se em 1983 pela UFRJ, na área de Teoria da literatura. Fez pós-
doutorado em 1989, em Literatura Comparada, nos Estados Unidos, na
Brown University. Ministra cursos em universidades norte-americanas e
vem atuando como conferencista nos Estados Unidos e na Europa. Integrou
durante muito tempo a cadeira de Teoria da Literatura na UFRJ. Hoje é
professora Titular da UFF e pesquisadora 1-A do CNPq. Dentre suas publi-
cações destacam-se Totens e tabus da modernidade brasileira, 1985 (com prêmio
nacional), Uma literatura antropofágica,1982; Escrita e poder, 1985; A cosmo-agonia
de Augusto dos Anjos, 1984; Modernismo brasileiro e vanguarda, 1996; Nem musa,
nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector , 2ª. Ed 2006; e A solidão
tropical: a modernidade do Brasil e de Alencar, 2006. No prelo, tem o livro Ficções
do desassossego: o romance e a consciência trágica, a sair em 2009. Organizou,
para a editora Contra Capa, os volumes: Nação-invenção: ensaios sobre o nacional
em tempos de globalização, 2004; Literatura e poder, 2006 e Literatura, intelectuais
e a crise da cultura, 2007.

250 Niterói, n. 24, p. 249-253, 1. sem. 2008


MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
É professor livre-docente de Teoria Literária na UNICAMP e pesquisador do
CNPq. É autor de Ler o Livro do Mundo (Iluminuras, 1999), Adorno (PubliFolha,
2003) e O Local da Diferença (Editora 34, 2005); organizou os volumes Leituras
de Walter Benjamin: (Annablume/FAPESP, 1999; 2ª. edição 2007), História,
Memória, Literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes (UNICAMP, 2003)
e Palavra e Imagem, Memória e Escritura (Argos, 2006) e coorganizou Catástrofe
e Representação (Escuta, 2000).

MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO


É investigadora no Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra;
Responsável da cátedra Eduardo Lourenço, na Universidade de Bolonha e
Visiting Researcher Associate do King’s College, Universidade de Londres.
Os seus actuais interesses de investigação incluem estudos pós-coloniais,
literatura portuguesa e de países de língua portuguesa, e história do império
português, em particular as guerras coloniais.
Das suas publicações, destacam-se os livros África no Feminino: as mulheres
portuguesas e a Guerra Colonial (Afrontamento, 2007); Uma História de Regressos:
Império, Guerra Colonial e Pós-Colonialismo (Afrontamento, 2004); Fantasmas
e Fantasias Imperiais no Imaginário Português Contemporâneo (com Ana Paula
Ferreira) (Campo das Letras, 2003).

MAURÍCIO DE BRAGANÇA
Graduado em História e Cinema, Mestre em Comunicação, Imagem e In-
formação e Doutor em Letras (Literatura Comparada) pela Universidade
Federal Fluminense. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutoramento
no programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal Flumi-
nense financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

REGINA DALCASTAGNÈ
Professora de literatura da Universidade de Brasília e pesquisadora do CNPq.
Coordena o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea e
edita a revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. É autora, entre
outros livros, de A garganta das coisas: movimento(s) de Avalovara, de Osman
Lins e de Entre fronteiras e cercado de armadilhas: problemas de representação
na narrativa brasileira contemporânea.

REGINA ZILBERMAN
Licenciou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
e doutorou-se em Romanística pela Universidade de Heidelberg. Com
pós-doutorado na Brown University, recebeu, da Universidade Federal de
Santa Maria, o título de Doutor Honoris Causa. É professora colaboradora da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora da Faculdade Porto-
Alegrense. Entre suas publicações recentes, contam-se Fim do livro, fim dos
leitores?, O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose, Como e por que
ler literatura infantil brasileira, Literatura e pedagogia: ponto & contraponto.

Niterói, n. 24, p. 249-253, 1. sem. 2008 251


ROBERTO VECCHI
Lusitanista, brasilianista, é Professor Associado de Literatura Portuguesa e
Brasileira e de História das culturas de língua portuguesa na Universidade
de Bologna. É também professor de Literatura Portuguesa na Universidade
de Milão.
Em Bologna, é professor do programa de doutorado de Iberística, diretor do
Centro de Estudos Pós-Coloniais (CLOPEE) desta Universidade e coordena-
dor de vários projetos de pesquisa, nacionais e internacionais.
No Brasil, é pesquisador CNPq, atuando em vários projetos, entre os quais o
sobre “Violência e representação” coordenado por Márcio Seligmann-Silva
e, em Portugal, é investigador associado do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra onde colabora com programas sobre a represen-
tação do trauma, coordenados por Margarida Calafate Ribeiro.
Entre as publicações recentes, destacam-se: a organização, no âmbito da co-
lecção “Extrema Europa”, que coordena pela editora Diabasis, com Vincenzo
Russo; de Eduardo Lourenço Il labirinto della saudade. Portogallo come destino
(2006) e de Eça de Queirós, La corrispondenza di Fradique Mendes (2008); a edi-
ção em Portugal da obra de Cornélio Penna, A menina morta (Lisboa, 2006); a
publicação, no Brasil, do segundo volume de pesquisas sobre cultura brasi-
leira e trágico com Ettore Finazzi-Agrò e Maria Betânia Amoroso, Travessia
do pós-trágico. Os dilemas de uma leitura do Brasil (São Paulo, 2006).

SHEILA KHAN
Pós-Doutoranda nas Universidades de Manchester e Coimbra, com projecto
de investigação coordenado pelas Professoras Hilary Owen (Un. Manchester)
e Paula Meneses (CES, Un. Coimbra). É Investigadora Associada no CICS na
Universidade do Minho. Dentre suas publicações, destacam-se os artigos: Are
we all post-colonial? A Socio-Literary Reading of Crónica do Tempo’, Paulo
de Medeiros (ed.), Postcolonial Theory and Lusophone Literatures. Universiteit
Utrecht, Utrecht Portuguese Studies Series, pp. 79-97, 2007; Velhas Margens,
Novos Centros em ‘Ventos do Apocalipse’ de Paulina Chiziane’. Revista Teia
Literária, PUC/RJ, Brasil, 119-131, 2007; Identidades sem chão. Imigrantes
Afro-Moçambicanos: Narrativas de Vida e Identidade, e Percepções de um
Portugal pós-colonial’. Luso-Brazilian Review, 43:2. University of Wisconsin:
1-26, 2006.

SILVIA REGINA PINTO


Professora-Adjunta do Departamento de Cultura Brasileira, Teoria da Li-
teratura, Literatura Brasileira e Literatura Comparada, Instituto de Letras,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atuando na Graduação, no
Mestrado em Literatura Brasileira e no Doutorado em Literatura Compara-
da. Doutorou-se em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Desenvolve pesquisas na linha: “Perspectivas filosóficas da teoria
da literatura”, trabalhando os seguintes temas: teoria da literatura, filosofia,
literatura e ficção, em perspectivas contemporâneas. Suas mais recentes publi-

252 Niterói, n. 24, p. 249-253, 1. sem. 2008


cações englobam “A performance do lobo”, In: Paisagens ficcionais: perspectivas
entre o eu e o outro, org. VALLADARES, Henriqueta do Coutto Prado, Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2007, p.91-106, e, “Le réalisme dans la fiction brésilienne
contemporaine“, palestra proferida na Sorbonne, em 17 de janeiro de 2008,
atualmente em edição, a ser publicada pela revista do CREPAL (Centre de
Recherches sur les Pays Lusophones, Sorbonne - Paris 3).

SILVIANO SANTIAGO
É ensaísta, romancista e professor. Lecionou em importantes universida-
des no Brasil. (Universidade Federal Fluminense e a PUC-Rio), nos Estados
Unidos (New Mexico, Stanford, Texas, Indiana) e na França (Université de
Paris – III). Publicou recentemente O falso mentiroso (romance) e Histórias mal
contadas (contos). Seus ensaios recentes foram reunidos em O cosmopolitismo
do pobre e Ora (direis) puxar conversa. Co-editou Carlos & Mário (correspondên-
cia) e foi responsável pela antologia Intérpretes do Brasil (3 volumes). Heranças
(romance) acaba de chegar às livrarias.

Niterói, n. 24, p. 249-253, 1. sem. 2008 253


UNIVERSIDADE
FEDERAL FLUMINENSE
Normas de apresentação de trabalhos
Instituto de Letras
1 A Revista Gragoatá, do Programa de Pós-graduação em Letras da
Revista Gragoatá UFF, aceita originais sob forma de artigos inéditos e resenhas de
Av. Visconde do Rio
Branco s/nº interesse para estudos de língua e literatura.
Campus do Gragoatá - 2 Os textos serão submetidos a parecer da Comissão Editorial, que
Bloco C - Sala 501
24220-200 - Niterói - RJ poderá sugerir ao autor modificações de estrutura ou conteúdo.
e-mail: gletras@vm.uff.br
Telefone: 21-2629-2608
3 Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8
páginas, no caso de resenhas. Devem ser apresentados em duas
cópias impressas sem identificação do autor, bem como em disquete,
com indicação do autor, no programa Word for Windows 7.0, em
fonte Times New Roman (corpo 12, espaço duplo), sem qualquer
tipo de formatação, a não ser:
3.1 Indicação de caracteres (negrito e itálico).
3.2 Margens de 3 cm.
3.3 Recuo de 1 cm no início do parágrafo.
3.4 Recuo de 2 cm nas citações.
3.5 Uso de sublinhas ou aspas duplas (não usar CAIXA ALTA).
3.6 Uso de itálicos para termos estrangeiros e títulos de livros e perí-
odicos.
4 As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre
parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em
caixa alta; vírgula; data da publicação; abreviatura de página (p.) e
o número desta. (Ex.: SILVA, 1992, p. 3-23).
5 As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão
ser apresentadas no final do texto.
6 As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do
texto, obedecendo às normas da ABNT(NBR-6023).

Livro: sobrenome do autor, título do livro (itálico), local de publicação,


editora,data.
Ex.: SHAFF, Adan. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes,
1991.

Artigo: nome do autor, título do artigo, nome do periódico (itálico),


volume e nº do periódico, data.
Ex.: COSTA, A.F.C. da. Estrutura da produção editorial dos periódi-
cos biomédicos brasileiros. Trans-in-formação, Campinas, v. 1, n.1,
p. 81-104, jan./abr. 1989.

7 As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa re-


produção gráfica. Deverão ser identificadas, com título ou legenda,
e designadas, no texto, de forma abreviada, como figura (Fig. 1, Fig.
2 etc).

Niterói, n. 24, p. 255-258, 1. sem. 2008 255


8 Os textos deverão ser acompanhados de resumo em português e
abstract, em inglês, que não ultrapassem 250 palavras, bem como de
3 a 5 palavras-chave também em português e em inglês.
9 Os autores deverão encaminhar, em folha separada, sua identifica-
ção (nome do artigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo,
últimas publicações etc.) em texto que não ultrapasse 6 linhas. Na
mesma folha, devem constar o endereço, o telefone e o e-mail.
10 Os colaboradores terão direito a 2 exemplares da revista.
11 Os originais não aprovados não serão devolvidos.

Próximos números
Número 24
Tema: Brasil e África: trajetórias, rostos e destino
Organizadores: Laura Padilha e Lucia Helena
Prazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2008
Ementa: Literatura, política e ideologia no cenário do neoliberalismo. Nação e narração na
estrutura pós-colonial contemporânea do Brasil e da África. O Brasil e a África
em suas literaturas e linguagens: paradoxos, identidades, dilemas e problemas.
O discurso e a construção da subjetividade e das formas estéticas. Literatura e
outras artes. As perspectivas da crítica e a questão da teoria no Brasil e na África.
Línguas em contato e política lingüística. Reflexão, história, antropologia e filosofia
na cultura brasileira e africana contemporânea. Literatura, crise e utopias.

Número 25
Tema: Transdisciplinaridades
Organizadores: Claudia Roncarati e Vera Lucia Soares
Prazo para entrega dos originais: 30 de junho de 2008
Ementa: Relações entre perspectiva teórica e abordagem prática na investigação lingüística
e na literária. Implicações e conflitos entre princípios analíticos e metodologias
de pesquisa. Inter e transdisciplinaridade – contribuições e problemas na pós-
modernidade.

Número 26
Tema: Metáfora – o cotidiano e o inaugural
Organizadores: Solange Coelho Vereza e Lívia de Freitas Reis
Prazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2009
Ementa: A metáfora no discurso cotidiano e na produção literária. O rotineiro e o insólito
nos processos de metaforização. A trajetória da abstratização dos sentidos – recortes
sincrônicos e diacrônicos. Fatores motivadores da linguagem metafórica. Fronteiras
conceituais e analíticas: literalidade e figuratividade. Metáfora e alegoria.

256 Niterói, n. 24, p. 255-258, 1. sem. 2008


UNIVERSIDADE
FE­DE­RAL FLUMINENSE
General Instructions for Submission of Papers
Instituto de Letras
1 The Editorial Board will consider both articles and reviews in the
Revista Gragoatá areas of language and literature studies.
Av. Visconde do Rio
Branco s/nº 2 In considering the submitted papers, the Editorial Board may
Campus do Gragoatá - suggest changes in their structure or content. Papers should be
Bloco C - Sala 501
24220-200 - submitted in floppy disks together with two printed copies, typed
Niterói - RJ- Brazil
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in Word for Windows 7.0, double-spaced, Times New Roman font
Telefone: 12, without any other formatting except for:
+55-21-2629-2608

2.1 bold and italics indication;


2.2 3cm margins;
2.3 1cm identation for paragraph beginning;
2.4 2cm identation for long quotations;
2.5 underlining or double inverted commas (NEVER UPPERCASE)
for emphasis;
2.6 italics for foreign words and book or journal titles.

3 Papers should be no more than 25 pages in length and reviews no


more than 8 pages.

4 Authors are requested to resort to as few footnotes as possible,


which are to be placed at the end of the text. As for references in
the body of the article, they should contain the author’s surname
in uppercase as well as date of publication and page number
in parentheses (eg.: JOHNSON, 1998, p. 45-47).

5 Bibliographical references should be placed at the end of the text


according to the following general format:

Book: author’s surname and first name, title of book (italics), place of
publication, publisher and date (eg.: ELLIS, Rod. Understanding se-
cond language acquisition. Oxford : Oxford University Press, 1994).
Article: author’s surname and first name, title of article, name of journal
(italics), volume,number and date (eg.: HINKEL, Eli. Native and
nonnative speakers’ pragmatic interpretations of English texts.
TESOL Quarterly, v. 28, no. 2, p. 353-376, 1994).

6. Tables, graphs and figures should be identified, with a title or legend,


and referred to in the body of the work as figure, in abbreviated
form (eg.: Fig. 1, Fig. 2 etc.).

7. Papers should contain two abstracts (a Portuguese and an English


version), no more than 5 lines in length. In addition, between 3 to
5 keywords, also in Portuguese and in English, are required.

Niterói, n. 24, p. 255-258, 1. sem. 2008 257


8 Authors are requested to send in an abridged CV (name, institution,
post, degrees, titles, latest publications, research interests, etc.), no
more than 5 lines in length.

9 Authors, whose articles are accepted for publication, will be entitled


to receive 2 copies of the journal. Originals will not be returned.

Na Revista Gragoatá 23 – Releituras da tradição – o artigo “Uma (re)leitura contempórânea


do imaginário português: as mezinhas de Dom Duarte” é de autoria de Mariangela Rios de
Oliveira, Sebastião Josué Votre e Káthia Eliane Santos Avelar.

258 Niterói, n. 24, p. 255-258, 1. sem. 2008


Este livro foi composto na fonte Book antiqua.12
Impresso na Flama Ramos Manuseios e Acabamento Gráfico,
em papel Pólem Soft 80g (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa)
produzido em harmonia com o meio ambiente.
Esta edição foi impressa em setembro de 2008.
Tiragem: 500 exemplares

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