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n. 24 1o semestre 2008
Política Editorial
A Revista Gragoatá tem como objetivo a divulgação nacional e internacional
de ensaios inéditos, de traduções de ensaios e resenhas de obras que representem
contribuições relevantes tanto para reflexão teórica mais ampla quanto para a
análise de questões, procedimentos e métodos específicos nas áreas de Língua e
Literatura.
ISSN 1413-9073
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.
Organização: Laura Cavalcante Padilha e Lucia Helena
Projeto gráfico: Estilo & Design Editoração Eletrônica Ltda. ME
Capa: rogério Martins
Editoração: José Luiz Stalleiken Martins
Supervisão Gráfica Káthia M. P. Macedo
Coordenação editorial: ricardo Borges
Periodicidade: Semestral
Tiragem: 500 exemplares
Sumário
Apresentação...................................................................................... 5
ARTIGOS
O começo do fim............................................................................... 13
Silviano Santiago
Notas históricas: solidariedade e relações comunitárias
nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa......31
Benjamin Abdala Junior
Duas viagens, um destino, Moçambique....................................45
Regina Zilberman
Uma língua de viagens, transgressões e rumores..................... 61
Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco
Da colonização lingüística portuguesa
à economia neoliberal: nações plurilíngües...............................71
Bethania Mariani
Outros poderes, outros conhecimentos
– Ana Paula Tavares responde a Luís de Camões...................... 89
Margarida Calafate Ribeiro
Narrar o trauma: escrituras híbridas das catástrofes.............. 101
Márcio Seligmann-Silva
Corpos grafemáticos: o silêncio do subalterno
e a história literária........................................................................ 119
Roberto Vecchi
Narrativas, rostos e manifestações do pós-colonialismo
moçambicano nos romances de João Paulo Borges Coelho.... 131
Sheila Kahn
O papel das línguas africanas na formação
do português brasileiro: (mais) pistas
para uma nova agenda de pesquisa............................................ 145
Charlotte Galves
Agruras da ficção contemporânea............................................... 165
Silvia Regina Pinto
Narrar é resistir?............................................................................. 179
Denise Brasil Alvarenga Aguiar
Os velhos “marionetes”: Quincas Berro D’Água,
versões e construção de identidade............................................ 191
Lúcia Bettencourt
Quando o preconceito se faz silêncio:
relações raciais na literatura brasileira contemporânea.........203
Regina Dalcastagnè
Uma conversa entre macacos: percalços
de um diálogo entre a África e o outro......................................221
Lucia Helena
ENTREVISTA
O peixe e o macaco: emblemas do subdesenvolvimento
numa entrevista com José Eduardo Agualusa
sobre o Brasil e Angola................................................................ 237
Maurício de Bragança
Apresentação
Laura Padilha e
Lucia Helena
Resumo
O propósito de “O começo do fim” é o de apre-
sentar uma nova e suplementar interpretação do
conceito-chave do movimento Modernista – a
antropofagia de Oswald de Andrade. Durante
oito décadas o conceito foi responsável por uma
rica e precisa bibliografia, em que se salientaram
os aspectos ressentidos e beligerantes das culturas
colonizadas em relação aos colonizadores. Essa
interpretação, apesar de correta do ponto de vista
social e político, negligencia as qualidades básicas
do trabalho de arte escrito nas margens da cultura
Ocidental, em particular as relacionadas ao fato
que ele deveria despertar no leitor a premência
dum pensamento utópico, em que a paz, a espe-
rança e a alegria se tornariam os valores.
Palavras-chave: Literatura brasileira. Van-
guarda. Modernismo. Antropofagia. Pensamento
utópico.
Abstract
The purpose of the “Beginning of the end” is to
present a new and supplementary interpretation
of the key concept of the Brazilian Modernist
movement – Oswald de Andrade’s antropofagia.
For eight decades the concept has been responsible
for an extremely rich and accurate bibliography
that underscores the belligerent aspects of the
colonized cultures in regard to the colonizers.
This interpretation, in spite of being correct from a
social and political point of view, neglects the basic
qualities of the work of art written in the margins
of Western culture, in especial those related to the
fact that it should arouse in the reader the need
for a utopian thought, in which peace, hope and
joy are the values.
Keywords: Brazilian literature. Avant-garde.
Modernist movement. Antropofagia. Utopian
thought.
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Resumo
Notas sobre as histórias literárias dos países afri-
canos de língua oficial portuguesa, construídas a
partir da situação colonial. São relevados traços
históricos comuns, que apontam para perspecti-
vas neo-românticas quando essas literaturas se
voltam para imaginar questões relativas a suas
nacionalidades; processos de atualização da língua
literária portuguesa, cuja plasticidade remonta
nacionalmente aos tempos medievais; e as redes
comunitárias que elas conformam com o conjunto
das literaturas de língua portuguesa..
Palavras-chave: História literária. Países afri-
canos. Língua portuguesa. Perspectivas. Neo-
romantismo.
Abstract
Notes on the literary histories of African countries
that have Portuguese as their official language.
Common historical traits are stressed, pointing to
neo-romantic perspectives when these literatures
contemplate questions related to their constitution
as nations; strategies of renewal of the literary
Portuguese language, whose plasticity goes back,
in each nation, to Medieval times; the network
they create in the universe of Portuguese written
literature.
Keywords: Literary history. African countries.
Portuguese language. Perspectives. Neo-roman-
ticism.
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Resumo
Duas viagens, ocorridas entre 1550 e 1560, leva-
ram dois aristocratas portugueses da Índia para
a costa oriental da África, hoje Moçambique: a
do militar Manuel de Sousa Sepúlveda e a do
sacerdote D. Gonçalo de Oliveira. Jerônimo Corte
Real narra a primeira viagem em Naufrágio do
Sepúlveda, em 1594; Mia Couto, a segunda em
O outro pé da sereia, em 2006. As duas obras
expressam o modo como se manifestam as relações
entre Europa e África.
Palavras-chave: Relações Europa-África. Repre-
sentação. Hibridismo.
Abstract
Two travels took place between the years 1550
and 1560, leading two Portuguese aristocrats
from India to the East Cost of Africa, now Mo-
zambique: Captain Manuel de Sousa Sepúlveda
and priest D. Gonçalo de Oliveira. Jerônimo
Corte Real narrated the first travel in Naufrágio
do Sepúlveda, published in 1594; Mia Couto
narrated the second, in O outro pé da sereia,
published in 2006. The two books represent the
relations between Africa and Europe.
Keywords: Europe-Africa relations. Disclosure.
Hybridism.
REFERÊNCIAS
Resumo
A língua portuguesa e sua importância nas
literaturas dos países africanos, ex-colônias de
Portugal. Os laços identitários com a “pátria
colonizadora” se esgarçaram e o idioma imposto
adquiriu diferenciadas faces em Angola, Cabo
Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé
e Príncipe. Alguns elos permaneceram, ainda
que dispersos; outros se desmancharam no tem-
po. A língua portuguesa, tendo atravessado o
Atlântico, o Índico, aportou em diferentes terras,
recebeu novos saberes, musicalidades, acentos;
multiplicou-se, grávida, de outros espermas,
suores e salivas.
Palavras-chave: Língua portuguesa. Países
africanos. Laços identitários
Abstract
The Portuguese language and its importance to
the literature of African countries, i.e., former
Portuguese colonies. The identitary ties with
the “fatherland” decreased and the imposed lan-
guage acquired different facets in Angola, Cabo
Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e
Príncipe. Some links remained, albeit scattered,
others dissolved with time. The Portuguese lan-
guage, crossing the Atlantic, the Indic, arrived
in different lands, receiving new knowledges,
musicalities, accents; multiplied, pregnant, by
Other sperms, sweat and ‘sweat and blood’.
Keywords: Portuguese language. African coun-
tries. Identitary ties.
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Resumo
O objetivo deste texto é apresentar características
do presente lingüístico do Brasil e de Moçambique,
tendo em vista a memória histórica constitutiva
das duas formações sociais em sua dimensão
lingüística.
Palavras-chave: Colonização lingüística. Polí-
tica de línguas. Brasil. Moçambique.
Abstract
We aim to present some specific traces of Brazil´s
and Moçambique´s linguistic reality, while, at the
same time, taking into consideration the historical
memory that grounds the linguistic dimension of
both societies.
Keywords: Linguistic colonization. Linguistic
policies. Brazil. Mozambique.
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Resumo
A partir da poesia de Ana Paula Tavares, pro-
curarei mostrar neste artigo como a dupla pre-
missa do poder e do conhecimento, sobre a qual
se ergueu o colonialismo dos séculos XIX e XX,
foi femininamente reapropriada, subvertida, des-
multiplicada e antropofagizada, revelando outras
identidades. Este processo inaugura assim um
tempo pós-colonial de possibilidade de acesso e
valorização de outros conhecimentos, de outros
poderes, expressos noutras línguas, noutros sons,
noutras escritas, e hoje transmitidos em língua
portuguesa.
Palavras-chave: Poder. Conhecimento. Poesia.
*
Uma versão inicial des-
te texto ainda inédito
foi apresentada no “III
Encontro de Professores
de Literaturas Africanas
– Pensando África: Crí-
tica, Ensino e Pesquisa”,
que decorreu na Univer-
sidade Federal do Rio
de Janeiro de 21 a 23 de
novembro de 2007
A abrir
Gostaria de deixar claro desde o início que não é como
especialista da cultura e da literatura angolana que escrevo, mas
como estudiosa da cultura portuguesa sempre impressionada
com a pujança das culturas africanas face ao modelo colonial
imposto, ao sufoco do neo-colonialismo e ao tempo incerto do
pós-colonialismo, tantas vezes assombrado pelo seu inquilino
fantasmático, que é ainda o tempo colonial.
É portanto como visitante cerimoniosa destas culturas anti-
quíssimas e riquíssimas que me apresento com o atrevimento de
escrever algo sobre a bela poesia de Ana Paula Tavares, depois
do ruído crítico introduzido em mim pelas leituras penetrantes
de Laura Padilha, Rita Chaves ou Carmen Tindó Secco e pelo
desafio que para mim constituiu desde o início a poesia de Ana
Paula Tavares, uma das vozes poéticas com que aprendi que é
sempre possível um dia de manhã levantar-me e dizer “Não
vou”. É portanto a partir deste entre-lugar que vou falar desta
poesia que transforma, canibaliza e incorpora várias vozes
emitidas a partir de vários patrimónios culturais e geográficos,
obrigando a língua portuguesa a dobragens e redobragens nem
sempre imediatas, e que assim a engrandecem.
Ana Paula Tavares é poeta, mas também historiadora e,
como disse numa entrevista “por vezes está tudo misturado,
transforma-se o amador em coisa amada, e gera-se a grande
confusão […]”. Publicou vários livros de poesia – Ritos de passagem
(1985), O Lago da lua (1999), Dizes-me coisas amargas como os frutos
(2001), Ex-votos (2003), Manual para amantes desesperados (2007) e,
em prosa, O sangue da buganvília (1998) e A cabeça de Salomé (2004).
Recentemente escreveu um romance com Manuel Jorge Marme-
lo, Os olhos do homem que chorava no rio (2005) e re-publicou, em
2007, Ritos de passagem, com o traço de Luandino Vieira a ilustrar
cada poema. A poesia de Ana Paula Tavares tem sido objecto
de reconhecimento crítico em vários países e obteve já o Prémio
Mário António da Fundação Gulbenkian, 2004 e o Prémio Na-
cional de Cultura e Artes (Literatura) de Angola, em 2007.
Mas qual é de facto a novidade desta voz poética?
O olhar feminino, que desde 1985, Ana Paula Tavares lança
sobre o seu país através da sua poesia é de facto outro. Não se
trata mais de um o sujeito poético feminino que se posicionava
na pele de alguém que está ao lado de quem masculinamente faz
a guerra, a revolução, a nação; não se trata mais de um poema a
rimar, como então, com revolução, alfabetização, povo ou nação.
O tema é outro, a posição epistemológica do sujeito poético é
enquanto a palavra
salta o muro e volta com um sorriso tímido
[de dentes e sol.
(TAVARES, 2007b, p. 19)
Ou no quase auto-retrato:
Modesta filha do planalto
combina, farinhenta
os vários sabores
do frio.
Cheia de sono
mima as flores
e esconde muito tímida
o cerne encantado.
(TAVARES, 2007a, p. 26)
Por isso, o pronunciamento feminino contido na poesia de
Ana Paula Tavares é espaço de celebração da tradição e dos tra-
balhos e dos dias de paz em que as mulheres se realizam, mas
também espaço de denúncia da violência da tradição que perpe-
tua o patriarcado, presente ora no acto da troca de mulheres por
gado (“Cresce comigo o boi com que me vão trocar”, TAVARES,
2007a, p. 48), ora nos rostos das mulheres e das crianças sobre
as quais recai toda a violência da guerra (“November Whitout
Water”, TAVARES, 1999, p. 36), ora nas relações de poder que
conduzem ao silêncio (“Um grito espeta-se faca/ na garganta
da noite”, TAVARES, 1999, p. 33), mostrando assim que o sangue
da mulher não é só, como deveria ser, mensal, como o ritmo do
ciclo das estações, que orienta os ciclos das mulheres dos homens
do gado. Ele escorre diariamente de corpos com feridas e cicac-
trizes que têm a espessura de séculos, sangue que ciclicamente
vai manchando a terra e a casa-corpo, e, por isso, o lago da lua
(título de livro) onde as mulheres lavam o seu primeiro sangue,
não é um lago simples que corra como um rio escorreitamente
para o mar. O lago branco da lua, primeiro poema do livro ho-
mónimo, é um lago bloqueado, mas por isso também um arquivo
de evasão e de sobrevivência onde o sujeito poético feminino
deposita os sonhos.
No lago branco da lua
lavei meu primeiro sangue
Ao lago branco da lua
voltaria cada mês
para lavar
meu sangue eterno
a cada lua
No lago branco da lua
misturei meu sangue e barro branco
e fiz a caneca
onde bebo
a água amarga da minha sede sem fim
A fechar
Captar o retrato deste corpo-mapa-nação inscrito cicatri-
cialmente no feminino na poesia de Ana Paula Tavares exige
uma leitura geográfica e sexualmente deslocada, para assim
entender como se vivem outros “costumes” – nunca assumidos
como relevantes – se adoptam outras “leis” – apenas consuetudi-
nariamente aplicadas – e se regista o poder de outras “rainhas”,
senhoras de outros “conhecimentos”. Costumes, leis, reis, conhe-
cimentos que sempre estiveram na margem, mas que sempre estiveram
presentes – evocando assim o subtítulo da obra organizada por
Laura Padilha e por Inocência Mata, sobre A mulher em África
(2007) –, pois são eles que inventam e constroem a vida que novas
vidas gera, ao ritmo dos ciclos das estações.
Respondendo camonianamente a Camões, a partir do
Sul, mas também àquela mais contemporânea questão, politi-
camente provocadora, colocada em tempo de guerra em Novas
cartas portuguesas – “será a mulher a última colónia do homem?”
(BARRENO; COSTA; HORTA, 1974, p. 285) – Ana Paula Tavares
sem concluir responde contra esta outra forma de colonização
vivida no feminino que é o patriarcado, mostrando ser sobretudo
delas a mão que comanda a vida não só na Angola moderna,
urbana, cosmopolita de Luanda, mas na Angola mais tradicio-
nal do interior, representada localmente no planalto da Huíla.
Trata-se portanto da denúncia de uma dupla colonialidade: uma
colonialidade política, ainda que não mais exercida nos moldes
europeus; e uma colonialidade social e familiar, que coloca as
mulheres na margem, convertendo as histórias das mulheres em
histórias duplamente silenciadas: silenciadas pela condição de
subalternidade no seio da diferença imposta pela colonialidade
Abstract
Through a reading of the poetry of Ana Paula
Tavares, I will argue that the power/knowledge
binary, based on 19th and 20th century colonialism,
has been reappropriated, subverted, multiplied
and cannibalized, revealing other identities.
This process thus initiates a postcolonial time of
possible access and appreciation of other knowled-
ges, other powers, expressed originally in other
languages, sounds and writings, and nowadays
transmitted through the Portuguese language.
Keywords: Power. Knowledge. Poetry.
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Hasse Pais Brandão.
Resumo
O trabalho propõe uma reflexão sobre algumas das
características do gesto testemunhal enfatizando
as aporias que o marcam. Partindo da idéia de que
o testemunho de certo modo só existe sob o signo
de seu colapso e de sua impossibilidade, o texto
enfatiza os dilemas nascidos da confluência entre
a tarefa individual da narrativa do trauma e de
sua componente coletiva. Nas “catástrofes histó-
ricas”, como nos genocídios ou nas perseguições
violentas em massa de determinadas parcelas da
população, a memória do trauma é sempre uma
busca de compromisso entre o trabalho de memória
individual e outro construído pela sociedade. O
testemunho é analisado como parte de uma com-
plexa “política da memória”.
Palavras-chave: Testemunho. Memória do
trauma. Trauma. Política da memória. Ditadura
no Brasil.
“Parler, écrire, est, pour le déporté qui revient, un besoin aussi im-
médiat et aussi fort que son besoin de calcium, de sucre, de soleil, de
viande, de sommeil, de silence. Il n’est pas vrai qu’il peut se taire et
oublier. Il faut d’abord qu’il se souvienne. Il faut qu’il explique, qu’il
raconte, qu’il domine ce monde dont il fut la victime.”
(Georges Perec)1
Estas palavras de Perec nos lançam sem mais no coração
da cena do testemunho. Antes de mais nada vemos aqui a neces-
sidade absoluta do testemunho. Ele se apresenta como condição
de sobrevivência. O próprio Primo Levi expressou este fato no
prefácio de É isto um homem. Vale à pena voltarmos a estas pa-
lavras de Levi porque ele acrescenta a esta idéia de necessidade
de testemunhar outro dado fundamental, a saber, a sua implícita
dialogicidade. Citemos as palavras de Levi: “A necessidade de
contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou
entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso ime-
diato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades
elementares” (LEVI, 1988, p. 7 et seq.). Seguindo estas palavras,
podemos caracterizar, portanto, o testemunho como uma ati-
vidade elementar, no sentido de que dela depende a sobrevida
daquele que volta do Lager (campo de concentração) ou de outra
situação radical de violência que implica esta necessidade, ou
seja, que desencadeia esta carência absoluta de narrar. Levi nesta
passagem coloca as expressões “aos outros” e “os outros” entre
aspas. Este destaque indica tanto o sentimento de que entre o
sobrevivente e “os outros” existia uma barreira, uma carapaça,
que isolava aquele da vivência com seus demais companhei-
ros de humanidade, como também a conseqüente dificuldade
prevista desta cena narrativa. Sabemos que dentre os sonhos
obsessivos dos sobreviventes consta em primeiro lugar aquele
em que eles se viam narrando suas histórias, após retornar ao
lar. Mas o próprio Levi também narrou uma versão reveladora
deste sonho, que ficou conhecida, na qual as pessoas ao ouvirem
sua narrativa se retiravam do recinto deixando-o a sós com as
suas palavras. A outridade do sobrevivente é vista aí como in-
superável. A narrativa teria, portanto, dentre os motivos que a
tornavam elementar e absolutamente necessária, este desafio de
estabelecer uma ponte com “os outros”, de conseguir resgatar o
sobrevivente do sítio da outridade, de romper com os muros do
Lager. A narrativa seria a picareta que poderia ajudar a derrubar
este muro. A circulação das imagens do campo de concentração,
que se inscreveram como uma queimadura na memória do so-
brevivente, na medida em que são aos poucos traduzidas, Über-
Setzte, transpostas, para “os outros”, permite que o sobrevivente
inicie seu trabalho de religamento ao mundo, de reconstrução
1
Georges Perec escre-
vendo acerca da obra de
da sua casa. Narrar o trauma, portanto, tem em primeiro lugar
Robert Antelme; citado este sentido primário de desejo de renascer.
em Levi (2005, p. 15).
7
Refiro-me aqui a um et reminiscentia Aristóteles notou que a memória, devido ao seu
importante filão na arte
contemporânea no qual
caráter de arquivo de imagens, pertence à mesma parte da alma
encontramos artistas que que a imaginação (De memoria et reminiscentia 450a24): ela é um
praticam uma nova “arte
da memória”. Entre os conjunto de imagens mentais das impressões sensuais, com um
artistas que trabalham
de modo programático o
adicional temporal; trata-se de um conjunto de imagens de coisas
tema da memória pode- do passado. Aristóteles também escreveu com relação ao nosso
mos destacar Rosangela
Rennó, Anselm Kiefer, pensamento de um modo geral: “a alma nunca pensa sem uma
Joseph Beuys, o cartu-
nista Art Spiegelman imagem mental” (ARISTÓTELES, De anima 432a17; cf. YATES,
(autor de Maus e de In the 1974, p. 32) “... mesmo quando pensamos de modo especulativo,
Shadow of no Towers), os
cineastas Alain Resnais devemos ter uma imagem mental com a qual pensamos” (ARIS-
(autor de Nouit et Brou-
illard e de Hiroshima mon TÓTELES, De anima 432a9). Esta idéia é importante de ser desta-
Amour), Claude Lanz-
mann (autor de Shoah),
cada ao tratarmos do testemunho, porque assim como falamos
Chris Marker (autor de de narrativa testemunhal, também deve-se pensar em uma arte
La Jetée) e Win Wenders,
o artista Jochen Gerz (au- testemunhal, ou seja, em práticas imagéticas do testemunho.7
tor de anti-monumentos,
como seu “Monumento
Por agora nos contentemos em acentuar o elemento
contra o fascismo”, em eminentemente político no qual se desdobram os discursos
Hamburgo ou o “Memo-
rial contra o racismo”, de testemunhais. O próprio conceito de testemunho pode ser tra-
Saarbrücken), Christian
Boltanski (autor, entre
çado ao longo do século XX na sua relação com o pensamento
outras obras centrais, político. Jean Norton Cru, o primeiro a introduzir o conceito no
de “The Missing Hou-
se”, em Berlim), Horst campo da historiografia, tinha como objetivo fazer uma crítica
Hoheisel (também autor
de anti-monumentos,
da primeira guerra mundial e dos discursos oficiais, belicistas,
como de uma proposta que enalteciam as figuras dos heróis guerreiros. Sua resposta
de se explodir o portal
de Brandenburgo como foi propor que a historiografia se abrisse para os testemunhos
memorial para lembrar
a Shoah, autor de “Os dos soldados. Seu livro Témoins, de 1929, deve ser visto como a
portões dos alemães”, e primeira tentativa sistemática de se pensar o testemunho mo-
co-autor, ao lado de An-
freas Knitz, da exposição derno.8 Já Walter Benjamin com a sua concepção do historiador
“Vogel Frei – Passaro
Livre”, realizada na Pi- como um chiffonier, também abriu a historiografia para o discurso
nacoteca de São Paulo em
2003). Podemos lembrar
testemunhal, apesar de ter utilizado pouco este conceito. Mas
também de outros ar- uma frase famosa das suas teses “Sobre o conceito da história”,
tistas que se dedicaram
especificamente em al- não deixa dúvidas quanto à sua fortíssima proposta de leitura
gumas de suas obras ao
tema da representação da
da história na sua face testemunhal. Refiro-me à frase: “nunca
Shoah, como Naomi Tere- existiu um documento da cultura que não fosse ao mesmo tempo
sa Salomon (lembremos
de sua exposição Asser- um [documento] da barbárie”. É interessante ler a tradução do
vate – Exibits, Auschwitz,
Buchenwald, Yad Vashem
próprio Benjamin dessa famosa passagem: “Tout cela [l’héritage
no Schirn Kunsthalle de culturel] ne témoigne [pas] de la culture sans témoigner, en
Frankfurt em 1995) e de
Zbigniew Libera (autor même temps, de la barbarie”. Já na América Latina, sobretudo
da polêmica obra “Lego
Concentration Camp
desde os anos 1960, o conceito de testemunho adquiriu uma
Set”, de 1996). Na Argen- centralidade enorme no contexto da resistência às ditaduras que
tina vemos também um
boom da memória deslan- assolaram o continente.
chado pelo trabalho de
luto da última ditadura, Hélène Piralien escreve seu referido livro de ensaios sobre o
que deixou como legado genocídio dos armênios de 1915-16 sob o signo de uma escritura
mórbido mais de 30.000
desaparecidos. Entre es- contra o negacionismo. Como se sabe, aquele genocídio que atingiu
tes artistas eu destacaria
dois fotógrafos: Marcelo cerca de 1.200.000 armênios do então Império Otomano, de uma
Brodsky e Helen Zout. população total de cerca de 1.800.0000, até hoje é negado pelo
Com relação ao papel
governo da Turquia. Ainda em 2005 um congresso sobre este
8
o negacionismo, como
uma prática tradicional tão excepcional. O apagamento dos locais e marcas das atroci-
dos autores de crimes e
sobretudo dos autores dades corresponde àquilo que no imaginário posterior também
coletivos de crimes con-
tra a humanidade, e, do
tende a se afirmar: não foi verdade. A resistência quando se trata
outro lado, a tendência de se enfrentar o real parece estar do lado do negacionismo. Este
do sobrevivente e da
vítima a querer se “es-
sentimento comum mora no próprio sobrevivente e o tortura,
quecer” do seu passado gerando uma visão cindida da realidade. Piralian nota que o
traumático, podemos
distinguir ainda uma testemunho visa a integração do passado traumático. Esta inte-
tercei ra moda l idade gração só pode ser conquistada contra o negacionismo. Não por
de resistência ao real
que seria a marca de acaso se conta que Hitler em um discurso a seus chefes militares
nossa atual sociedade
caracterizada pela pre-
em 22 de agosto de 1939, às vésperas da invasão da Polônia, teria
sença traumatizante da dito “Quem se lembra hoje do extermínio dos armênios [durante
violência. Em Freud a
teoria da defesa diante a Primeira Guerra Mundial]?” Sua intenção era clara: apenas o
da “vivência da dor” lado heróico da guerra seria lembrado, a impunidade estaria
contém, neste sentido,
ensinamentos precio- garantida. A negação antecedeu o próprio ato, ou seja, a tentativa
sos. O mesmo vale para
seu conceito de Verleug-
de extermínio dos judeus europeus. A memória da barbárie tem,
nung, recusa da realida- portanto, também este momento iluminista: preservar contra o
de. Vale lembrar de uma
passagem do dicionário negacionismo, como que em uma admoestação, as imagens de
de Laplanche/ Pontalis sangue do passado.9
ao tratar deste último
termo: “Na medida em Catherine Coquio em um interessante livro sobre o geno-
que a recusa incide na
realidade exterior, Freud
cídio dos Tutsis (2004) no Ruanda de 1994, aborda justamente
vê nela, em oposição ao os conflitos entre os rituais oficiais de memória e as tentativas
recalcamento, o primei-
ro momento da psicose:
individuais da população sobrevivente de enfrentar este luto
enquanto o neurótico quase impossível de 1.300.000 mortos assassinados com facões ao
começa por recalcar as
exigências do id, o psicó- longo de apenas três meses. Ela descreve uma situação na qual
tico começa por recusar enquanto o Estado tendeu para um rápido “trabalho de memó-
a realidade” (LAPLAN-
CHE; PONTALIS, 1988, ria”, mais parecido a um trabalho de esquecimento, boa parte
p. 562 et seq.). da população sofria diante da ausência de interlocutores para
Niterói, n. 24, p. 101-117, 1. sem. 2008 111
Gragoatá Márcio Seligmann-Silva
11
É interessante con-
frontar esta let ra de restabelecimento da verdade, o desejo de reencontrar um parente
Chico Buarque com o
poema de Paul Celan
arbitrariamente raptado, torturado e assassinado e o peso ter-
“Nächtlich Geschürzt” rível da realidade do esquecimento imposto pelas autoridades
(“De noite arrepanha-
dos”, na tradução de
que, ao final, desaguou em um novo assassinato, ou seja, o da
João Barrento). Celan própria Zuzu. É-lhe negado o direito de enterrar seu filho. Sua
tem uma poética deri-
vada em grande parte luta pela verdade se confunde com a luta pelo corpo do filho.
de sua experiência de Os desaparecimentos do corpo e da justiça se misturam em sua
sobrevivente das atro-
cidades do nazismo, história. Este caso revela ao mesmo tempo as práticas homicidas
sendo que ele perdera
seus pais em campos
do Estado terrorista de 1964 e a tentativa de se representar esta
de concentração. A di- arbitrariedade. Zuzu para fazer seu luto precisava, antes de mais
ferença entre as poéti-
cas destes dois poetas é nada, saber a história de seu filho, ver seu cadáver, enterrá-lo,
clara: Buarque cria um fazer com que a justiça se cumprisse. Angélica enfatiza o aspecto
poema com uma tem-
poralidade estendida e repetitivo da memória do mal, que vive de observar uma au-
não concentrada e espa-
cializada, como Celan.
sência que não pode ser sanada a não ser com a restituição do
Em Buarque os espaços corpo. Na música, a repetição do verso “Quem é esta mulher”, a
privado e público se en-
contram em um drama volta repetitiva do advérbio temporal “sempre” e a imagem de
político, já em Celan a um sino que sempre dobra da mesma forma, representam esta
poesia tende para uma
mise en abyme que nos característica da memória do mal como constante e reiterativa.
faz oscilar entre a refe-
rência histórica e a força
A cena desenhada é a da mãe que quer enterrar seu filho, dar
de suas imagens poéti- uma moradia e paz para seu corpo – requisito essencial para
cas. Mas o confronto é
interessante, na medida que ela mesma recupere a sua paz. Esta mulher, visada pela
em que colocamos lado pergunta repetida quatro vezes, é tanto Zuzu, como as outras
a lado duas potentes ar-
tes da memória poéticas mães de desaparecidos e, no limite, a sociedade brasileira órfã
de duas barbáries do
século XX (sem querer,
de seus filhos desaparecidos (abandonados em valas comuns
evidentemente, medi- ou jogados nas profundezas dos mares). A mãe na música quer
las ou compa rá-las).
Ambos os poetas bus-
“lembrar o tormento” que fez seu filho suspirar: a narração dos
cam criar pelas palavras fatos, a restituição da verdade é uma etapa essencial no trabalho
um espaço para os seus
“desaparecidos”, ambos de luto assim como nos processos de transição de regimes au-
podem ser incluídos na toritários para democráticos. No fim, na última “estrofe”, a mãe
literatura do trauma que
se desenvolveu no sécu- quer cantar por seu menino, que não pode cantar. Ela mesma
lo XX em função de suas
inúmeras catástrofes (cf.
se torna testemunha desta história que encerra em si o silêncio,
SELIGMANN-SILVA, o apagamento da verdade. Assim como a própria música de
2005a): “De noite, ar-
repanhados/ os lábios Chico Buarque traz em si esta história perfurada, que não cessa
das flores,/ cruzados e de voltar porque a justiça e o trabalho de memória ainda não
entrelaçados/ os fustes
dos abetos,/ encanecido foram feitos.11
o musgo, estremecida a
pedra,/ desperta para o
vôo infinito/ as gralhas
sobre o glaciar:// estas
são as paragens onde/
descansam aqueles que
surpreendemos:// eles
não irão nomear a hora,/
nem contar os flocos,/
nem seguir as águas
até ao açude.// Estão
separados no mundo,/
cada um com a sua noi-
te,/ cada um com a sua
morte,/ rudes, de cabe-
ça descoberta, cobertos
de geada/ de pertos
e longes.// Pagam a
culpa que animou a sua
origem,/ pagam-na com
Resumo
Será possível repensar no espaço da história literá-
ria, que já em si, pela estrutura própria do cânone,
se articula a partir de jogos de forças e instâncias
de poder, introduzindo conceitualmente o oco de
representação do subalterno, para questionar,
assim, a determinante do poder – e do biopoder
– sobre as representações literárias? O gesto
problematizador, limitando-se a alguns estudos
de caso (os romances Os sertões de Euclides da
Cunha e A menina morta de Cornélio Penna),
mas com o intuito mais amplo de pensar em novos
moldes para uma historiografia literária antago-
nista, tenta responder à questão, detendo-se sobre
as tentativas engajadas que já foram feitas para
incorporar na crítica o homo sacer, o excluído.
É evidente que, em inúmeros casos, as intenções
de resgate se embateram em impasses trágicos
de inviabilidade da representação, a não ser por
uma “escuta” de uma voz sincopada de rastos
resistentes amalgamados nos textos. Assume-se,
nessa perspectiva, ainda, o critério da relação entre
história e história natural que talvez possa deixar
emergir, em suas tensões, alguns restos das rela-
*
O presente texto ções de poder implicadas pela representação.
retoma uma comu-
nicação apresentada Palavras-chave: Subalternidade. História literá-
no simpósio temáti- ria. Corpos grafemáticos. Os sertões. A menina
co (Re)configurações
literárias dos espaços morta.
nacionais/regionais,
no âmbito do X Con-
gresso da ABRALIC
no Rio de Janeiro em
2006, depois nunca
publicado.
“– A questão é de saber
se uma palavra pode significar tantas coisas
– Não, a questão é de saber
quem manda.”
(Francisco Alvim, “Conversa de Alice
com Humpty Dumpty”)
Qual o sentido de introduzir o conceito de poder, que
pertence mais a uma esfera própria dos estudos culturais, na
reconfiguração de uma historiografia literária? Ou é mais uma
distorção que em tempos de esgotamento de grandes narrativas
procura reativar nostalgicamente tensões discursivas que se
desfibraram ao longo dos anos? Ou ainda se trata de mais uma
dobra crítica dentro da qual se esconde uma disjunção opositiva:
ou seja, a de como a literatura é poder, no sentido em que o pró-
prio cânone literário se institui com uma função sacralizadora,
insitucionalizante das representações e discrimina, antes de
tudo, o que é e não é literatura, hierarquizando-a em gêneros e
subgêneros? Portanto, introduzindo o conceito de poder, se cria
uma espécie de jogo de forças em que a pertinência das rela-
ções críticas acabaria por ser suprida por uma limitada disputa
sobre a primazia da crítica cultural sobre a crítica literária ou
vice-versa?
A impressão que se tem é que, mais uma vez, na realida-
de e no contexto literário em questão – sem querer introduzir
qualquer reducionismo sociológico – pelo menos nessa circuns-
tância, uma reflexão pautada a partir de uma conceitualização
de poder tem raízes profundas, configurando uma espécie de
“diferença” Brasil – como aprendemos de grandes aulas como
as de Antonio Candido ou de Roberto Schwarz, contaminando
as projeções literárias, ou melhor, tornando-as oportunamente
históricas e impuras, o que permitiu estudá-las a partir de um
determinado ângulo agudo sócio-histórico.
E, na verdade, não foram poucas as abordagens com pen-
dor historicista que se debruçaram sobre o corpus – em todos os
sentidos – da história literária brasileira. Isso se dá, também por
questões de referenciais históricos específicos, como no caso do
autoritarismo, que tenta colocar a preocupação com as forças
explícitas ou ocultas do poder sobre a representação. No projeto
que, desse ponto de vista, marca uma diferença para todo o con-
texto sócio-cultural do autoritarismo que lhe serve de referência,
pode-se destacar Os pobres na literatura brasileira, por exemplo, em
que há um intuito de inscrever a classe em um projeto de uma
contra-historiografia literária. É como se, de acordo com Gramsci
(na leitura recanonizadora de Edward Said, 2002), não só onde
há história há classe, mas, em situação de engajamento, pode-se
pensar em uma “estética radical” (SCHWARZ, 1983, p. 8) que con-
vertesse o conceito em outro: onde há história literária também
há classe. O que parece de imediato compreensível, pelo fato de
Abstract
Can we rethink the space of literary history, which
structures itself, as a canon, in terms of force and
power, introducing the concept of the subaltern’s
empty representation in order to question power
and bio-power influence on literature? Such a
problematic act, limited to some case studies (no-
vels as Euclides’ Os sertões and Cornélio Penna’s
Menina morta) – although with the wider aim
to re-think new edges for an antagonist literary
historiography –, approaches the complex critical
question, deepening the engaged attempts carried
out in order to critically incorporate the “homo
sacer”, the excluded. It is clear that, in many
cases, the intent of redemption have clashed with
the tragic impasses of the unviablility of repre-
sentation, except for the effort to “listen” to the
syncopate voice of resistance that remains in a
text. At the same time, it is important to assume,
from such a perspective, the relationship between
history and natural history, a link that, in spite of
its internal tensions, may facilitate the emergence
of residuals of power relations involved in any
representation.
Keywords: Subalternity. Literary history.
‘Graphematic’ bodies. Os sertões. A menina
morta.
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. O romance de Cornélio Penna. 2. ed. rev. Belo Hori-
zonte: Ed. UFMG, 2005.
Resumo
O pós-colonialismo de expressão em língua por-
tuguesa tem sido assumido como elemento hege-
mónico, no pensamento e diálogo entre as várias
ex-colónias portuguesas em África. Contudo, no
meu entender, é urgente retomar epistemologi-
camente a questão pós-colonial, equacionando-a,
de um modo contextualizado, aos loci culturais,
idiossincráticos, históricos e sociais do objecto de
trabalho. No presente artigo, pretendo desafiar a
anterior hegemonia, ao propor que existe, indubi-
tavelmente, um pós-colonialismo moçambicano,
ainda que de língua portuguesa. Este esforço de
romper muros, de compilar e analisar narrativas,
memórias e manifestações de um caminhar pós-
colonial moçambicano pode ser comprovado com
os romances de João Paulo Borges Coelho, nomea-
damente, As visitas do Dr Valdez, Crónica da
Rua 513.2 e, mais recentemente, com Campo de
trânsito. Resta-nos, então, partindo de uma leitu-
ra e análise contextualizadas, reflectir sobre que
trilhos, margens, memórias e rostos emergiram
de um Moçambique que caminhou ao encontro
da sua nação, tão como sonhada e almejada pelo
poeta José Craveirinha.
Palavras-chave: Memória. Narrativa. Pós-
colonialismos. História e ficção.
em África que está por fazer. E ela passa por uma discussão
profunda do papel do indivíduo africano, porque já falámos
demasiado do colectivo, do passado, de origens. É altura de
falarmos de presentes, de condições, e de indivíduos, no sen-
tido de desdramatizar aquilo que se fala em todo o mundo:
da África-museu, da África-passado, em que cada africano
anda com uma estrutura de ligações genealógicas atrás. Isso
é completamente absurdo. (KHAN, 2007, p. 1)
Na tessitura da composição das realidades fenomenológica
e ontológica dos seus personagens, projeta-se a preocupação
do escritor em plasmar uma subjectividade própria, que não se
deixa dominar ou comandar pela arquitectura histórica do seu
próprio lugar de enunciação e de um certo modo de pensar o
exercício literário. De facto, é neste sentido que a subjectivida-
de na escrita dos romances de JPBC reflecte as palavras da sua
“voz própria” como homem-escritor e cidadão, já que como ele
afirma
eu vou escrever, eu vou falar com a minha própria voz, […]
motivações que têm a ver, também, com o facto pessoal de eu
ter chegado à conclusão que não me exprimia só pela História.
[…], pessoalmente, eu convenço-me que uma parte emocional
e estética tem de funcionar sem ser domada, há uma parte
irracional, até, que tem de funcionar sem ser domada. (KHAN,
2007, p. 1)
Compartilhando dessa percepção sobre o papel da subjec-
tividade como húmus necessário para a disciplina literária, José
Júnior salienta que
a verdade não é única e o sujeito está sempre submetido pela
linguagem, qualquer que seja o discurso que essa mesma
linguagem venha a articular. Além disso, a ficcionalidade
concede ao discurso uma liberdade selvagem e ameaçadora a
todo o sistema de sentido que zela por sua própria “verdade”.
(SOUSA JÚNIOR, 2000, p. 29)
É neste caminho de coincidências teóricas sobre como a
literatura abre, através de uma liberdade íntima, espaço para
novos sentidos, que Marta Pragana Dantas sublinha que a vo-
cação literária é um meio de se “deslocar os regimes de sentido”
(DANTAS, 2000, p. 3), ao desafiar os silêncios e murmúrios das
normas sociais, mas, acima de tudo, da hegemonia da narrativa
histórica proposta por uma meta-narrativa da História nacional
de um país.
Por conseguinte, nesta caminhada perpassada pelo desejo
literário de libertação da subjectividade, surge o gesto urgente
de desafiar a narrativa do colectivo histórico colocando-a em
tensão com um individualismo histórico. O locus de invenção
dos romances de JPBC se reflete no acto de esculpir a realidade
histórica de um país com as suas águas subterrâneas, com as
vidas e trajectórias daqueles indivíduos, que deixaram sombras,
Niterói, n. 24, p. 131-144, 1. sem. 2008 133
Gragoatá Sheila Kahn
Abstract
Postcolonialism of Portuguese expression and
language has been approached as an hegemonic
element in the thoughts and ideas between the
various former Portuguese colonies in Africa.
However, we must be careful, when thinking
about the post-colonial condition in an epistemo-
logical way, to equate, in a contextualized way,
the cultural loci, the idiosyncratic aspects, and
the historical and social conditions of the object
of study. I intend to defy previous hegemony with
this present work, proposing instead that there is,
undoubtedly, a Mozambican post-colonialism,
even if it is expressed in the Portuguese language.
My attempt to break boundaries, to compile and
analyse narratives, memories and manifestations
of negotiating a Mozambican post-coloniality can
8
Kahn (2007, p. 7). be captured through the Mozambican author João
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Resumo
Este artigo levanta a questão do papel das línguas
africanas na formação do português brasileiro.
Mostra como trabalhos recentes sobre o portu-
guês falado, na África, como segunda língua, e
a comparação de várias das suas características
morfossintáticas, com a sintaxe das línguas ban-
tu, sustentam empiricamente a tese da influência
destas sobre o desenvolvimento do português do
Brasil, uma vez que ele apresenta estas mesmas
características. Argumenta que estas análises
fornecem pistas para estudar o desenvolvimento
histórico do português na África e no Brasil,
usando textos escritos nessa língua por africanos.
Enfim, traz alguns argumentos contra a hipótese
da deriva.
Palavras-chave: Formação do português bra-
sileiro. Português africano. Contato lingüístico.
Deriva lingüística. Línguas crioulas
das das línguas africanas, que vieram para o Brasil com seus
povos escravizados e subjugados, ou das línguas dos povos
ameríndios, que aqui já se encontravam quando vieram os
colonizadores europeus. Tampouco são o resultado de pro-
cessos de simplificação ou outras modificações espontâneas
causadas pelo contato, durante o processo de transmissão não
tradicional da língua. (NARO; SCHERRE, 2007, p. 17)
Em vários outros trechos do livro, encontramos fortemente
reiterada a rejeição das teses crioulistas e a afirmação da herança
lusitana:
O uso do termo ‘crioulização’ no Brasil é um equívoco, uma vez
que não é possível haver associação do processo com qualquer
grupo de substrato particular que pudesse ter influenciado de
forma consistente a língua que estava em processo de evolu-
ção... Ainda não conseguimos identificar nenhuma caracterís-
tica do português do Brasil que não tenha um ancestral claro
em Portugal. (NARO; SCHERRE, 2007, p. 67-68)
Discutiremos mais em detalhe a proposta de Naro e
Scherre na Seção II.4. Note-se desde já que, contrariamente à de
Coelho, a análise que eles apresentam é baseada no pressupos-
to de incompatibilidade definitiva entre a existência de efeitos
lingüísticos do contato e a presença de traços atribuíveis à de-
riva própria à língua. Como ressaltamos acima, a reconciliação
entre esses dois efeitos só é possível num quadro que integra de
alguma maneira a ação de processos universais de linguagem,
seja qual for sua formulação exata. Esse ponto será crucial no
desenvolvimento de novas propostas, como veremos agora.
II. Novos caminhos e novas buscas
Na literatura das últimas décadas, as abordagens polari-
zadas das análises apresentadas acima vêm deixando lugar a
teorias que procuram integrar as diversas forças envolvidas no
processo de mudança devido ao contato, e reconhece um conti-
nuum entre os efeitos mais catastróficos – os pidgins e crioulos –
e as conseqüências menos gritantes – a constituição de vertentes
diferenciadas das línguas. Nas palavras de Inverno,
The broadening of pidgin and creole linguistics to contact
linguistics results form the general agreement today that the
origin and synchronic structure of pidgins and creoles can
only be fully understood from the perspective of a wider
theory of language contact. (2005, p. 51)
No Brasil encontramos a mesma tendência em considerar
que o fenômeno crucial é a transmissão lingüística irregular (cf.
LUCCHESI, 1999, 2003), que produz diferenças de grau mais do
que natureza em função dos contextos sócio-culturais em que
a aquisição se dá. Pagotto, retomando Tarallo, resume assim o
ponto em que nós estamos:
Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008 149
Gragoatá Charlotte Galves
1. O português na África
As descrições do português falado em Angola e Moçambi-
que (cf. CHAVAGNE 2005; INVERNO, 2005; GONÇALVES, 2004;
LABAN, 1999) apontam todas para uma grande semelhança nas
particularidades morfossintáticas do português africano (dora-
vante PA) e do PB. Isso inclui as propriedades listadas abaixo,
todas presentes nos diversos dialetos do português brasileiro,
embora com freqüências distintas para algumas delas:2
2
Seria muito longo men-
cionar todas as refe-
rências dos trabalhos • concordância nominal e verbal em número variável;
correspondentes sobre
o PB, e injusto citar só • confusão nas formas de 2a e 3a pessoa (seu/teu, te/
alguns. Só me referirei
aos trabalhos relativos você);
aos fenômenos ma is
especificamente discu- • uso do pronome tônico em posição objeto;
tidos.
3
Esses fenômenos se • colocação pré-verbal dos pronomes clíticos, inclusive em
encont ram todos em primeira posição absoluta;
Helvécia (cf. BAXTER;
LUCCHESI, 1997, p. 78).
Seg u ndo os autores,
• uso do pronome dativo ‘lhe’ em lugar do pronome acu-
trata-se de uma comu- sativo ‘o’;
nidade descendente de
iorubás e geges, portan- • uso da preposição ‘em’ em lugar de ‘a’ para o lugar para
to não bantus. Do ponto
de vista da hipótese da onde se vai;
interferência da língua
materna sobre a língua • mudança de regência de certos verbos (em particular
2, a semelhança com a
fala dos locutores mo- perda das preposições);
çambicanos tem várias
explicações possíveis: • uso de ‘dele’ em lugar de ‘seu’
existência de “falares
afro-brasileiros de base • posição pós-nominal do possessivo (sem efeito de foca-
bantu” (cf. PESSOA DE
CASTRO, 2008), ou in-
lização)
fluência de processos
similares em outros ra-
mos da macro-família Algumas outras características do PA foram documentadas
niger-congo. Neste caso
de novo, se torna impe- no PB, mas aparecem muito mais restritas a certas regiões, e em
rativo um estudo com-
parativo das línguas certos casos a comunidades isoladas de origem africana.3 Nessa
envolvidas. categoria, encontramos por exemplo:
150 Niterói, n. 24, p. 145-164, 1. sem. 2008
O papel das línguas africanas na formação do português brasileiro: (mais) pistas para uma nova agenda de pesquisa
14. que diga qual seja o macota que lhe foi buscar no dito
Congo (p.130)
É preciso notar, além disso, que vários dados, por serem in-
terpretados à luz do PB, são analisados inadequadamente, como
nas seguintes frases (NARO; SCHERRE, 2007, p. 92), em que se
atribui um sujeito aos verbos ‘esquecer’ e ‘lembrar’ quando são
correntemente usados no PE de maneira impessoal (‘lembra-me
que’, ‘esqueceu-me que’), construção claramente evidenciada pelo
exemplo 20, uma vez que o sintagma que precede o verbo não
é nominal mas preposicional.
Abstract
This paper addresses the question of the role of
African languages in the evolution of Portuguese
in Brazil. It shows how recent work on Portugue-
se spoken as second language in Africa, and its
comparison with the syntax of Bantu languages,
gives empirical evidence that supports the thesis
of the influence of these languages on Brazilian
Portuguese, since this language displays the same
characteristics. It argues that these analyses pro-
vide leads to study the historical development of
Portuguese in Brazil and in Africa, using texts
written in this language by Africans. Finally, it
raises arguments against the hypothesis of lin-
guistic drift to explain the evolution of Brazilian
Portuguese.
Keywords: Brazilian Portuguese formation.
African Portuguese. Linguistic contact. Linguis-
tic drift. Creole languages.
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16
Cf. Rougé (2008).
Resumo
No mundo atual, marcado por uma transformação
radical das coisas, afloram crises, talvez sem prece-
dentes, para todas as áreas de atividade, mexendo
com a cultura, com a estética, com os valores
éticos, com as noções de espaço e tempo, com as re-
lações entre o público e o privado, trazendo sérias
questões políticas e complexos problemas para o
próprio pensamento. Este ensaio pretende mostrar
como o discurso ficcional contemporâneo vem
tematizando e discutindo sua própria estranheza,
tentando uma reconciliação entre linguagem e re-
alidade, no esforço incansável para um confronto
do ser humano com um “outro” que é ele mesmo,
deixando claro que, muitas vezes, a ficção torna-se
necessária para que o real exista.
Palavras-chave: Filosofia. Ficção. Crise. Iden-
tidade. Utopia.
Abstract
In today’s world, in which we can see a radical
transformation of things, nearly unprecedented
crises emerge and affect all areas of activity, chal-
lenging culture, aesthetics, ethical values, notions
of space and time, and the relations between public
and private, as well as bringing serious political
issues and complex problems to the very realm of
thought. This essay aims at showing how contem-
porary fictional speech thematizes and discusses
its own perplexity, attempting a reconciliation
between language and reality in a relentless effort
towards the confrontation of the human being
with an “other” who is himself and, in this way,
often making clear that fiction becomes necessary
for the existence of the real.
Keywords: Philosophy. Fiction. Crisis. Identity.
Utopia.
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Resumo
Análise da ficção contemporânea, buscando
compreender as transformações da literatura no
contexto das alterações sociais e culturais que
marcam os tempos da chamada pós-modernidade.
Identificação de vertente literária de tematização
do sufocamento da subjetividade no cenário
hostil da exclusão social. Busca de diálogo entre
escrita literária do Brasil e da África do Sul em
fins do século, a partir de duas obras específicas:
O quieto animal da esquina, de João Gilberto
Noll, e A vida e a época de Michael K., de J.M.
Coetzee.
Palavras-chave: Ficção contemporânea. Pós-
modernidade. Noll. Coetzee.
Abstract
Analysis of contemporary fiction, in an attempt
to explicit the transformations of literature in
the context of social and cultural changes which
characterize post-modernity. Identification of
literary trends of thematization of the erasure
of subjectivity in the hostile scenery of social
exclusion. Search for a dialogue between literary
writing in Brazil and in South Africa in the late
20th century, based on two specific works: João
Gilberto Noll’s O quieto animal da esquina and
J.M.Coetzee’s Life & times of Michael K.
Keywords: Contemporary fiction. Post-moder-
nity. Noll. Coetzee.
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190 Niterói, n. 24, p. 179-190, 1. sem. 2008
Os velhos “marionetes”:
Quincas Berro D’Água, versões e
construção de identidade
Lúcia Bettencourt
Resumo
Neste artigo, o exame do conto “A morte e a
morte de Quincas Berro D’Água”, extraído de Os
velhos marinheiros (1961) revela que, em sua
elaboração, Jorge Amado aproveitou-se de perso-
nagens correntes na dramaturgia popular, e recor-
rentes em sua obra. Estas personagens, oriundas
da tradição européia da “comedia dell’arte”, na
ficção de Amado se mesclam à arte popular re-
gional, de forte influência africana. Com isso, o
conto pode receber uma nova leitura que deixa de
privilegiar o caráter fantástico da narrativa para
ressaltar o seu aspecto dramático, subvertendo a
compreensão do cidadão brasileiro, Quincas, que
adquire expressividade através da manifestação
artística popular, já que o próprio protagonista
ganha traços de marionete. Na cena final, os cabos
das velas do saveiro balançam vazios após o desa-
parecimento do boneco que animavam, deixando
em seu lugar a possibilidade de diferentes versões
que o construam.
Palavras-chave: Marionetes. Dramaturgia po-
pular. Jorge Amado. Quincas Berro D’Água.
Abstract
In this article, the examination of the short story
“A morte e a morte de Quincas Berro D’Água”,
published in: Os velhos marinheiros (1961), re-
veals that, in elaborating this fiction, Jorge Amado
has used characters present in popular Brazilian
dramaturgy. These characters are recurrent in
other novels by the same author. They are based
on models taken from the traditional European
dramaturgy known as “comedia dell’arte”, and
Amado mixes them with regional popular art
that show a very strong African influence. In this
way, the short story may be read under a new
light that, instead of privileging the fantastic,
prefers to illuminate the dramatic qualities of the
text , allowing for the subversion of the figure
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Resumo
As personagens negras são francamente mino-
ritárias na narrativa brasileira contemporânea,
conforme uma ampla pesquisa demonstrou. O
artigo analisa algumas exceções a esta regra,
identificando diferentes modos de representação
literária das relações raciais numa sociedade mar-
cada pela discriminação.
Palavras-chave: Literatura brasileira contempo-
rânea. Relações raciais. Preconceito.
Literatura e estatística
Os estudos literários são, em geral, avessos aos métodos
quantitativos, que parecem inconciliáveis com o caráter único
de cada obra. Tal singularidade, porém, não é privilégio da li-
teratura: é algo comum aos diversos fenômenos sociais. Ainda
assim, o tratamento estatístico permite iluminar regularidades
e proporciona dados mais rigorosos, evitando o impressionismo
que, facilmente contestável por um impressionismo em direção
contrária, impede que se estabeleçam bases sólidas para a dis-
cussão. Se alguém diz que os negros estão ausentes do romance
brasileiro contemporâneo, outra pessoa pode enumerar dezenas
de exemplos que contradizem a afirmação. Mas verificar que 80%
das personagens são brancas mostra um viés que, no mínimo,
merece investigação.
O esforço de pesquisa sobre o romance brasileiro dos úl-
timos anos, do qual retiramos os dados referentes às persona-
gens negras, envolveu a leitura cuidadosa de todos os romances
constantes do corpus, seguida do preenchimento de fichas para
as personagens mais importantes e, muitas vezes, de discussão
em grupo dos casos em que havia alguma dúvida. Uma vez que,
em geral, não se podia contar com uma descrição em regra, à la
século XIX, das personagens do livro, eram buscados os indícios
presentes no texto. Assim, a pesquisa buscou compatibilizar o
método quantitativo com aquilo que o historiador italiano Carlo
Ginzburg (1989) chamou de “paradigma indiciário” nas ciências
humanas – a busca de indícios das características que queríamos
analisar.
É importante ressaltar que os problemas da representação
literária indicados pela pesquisa não insinuam, absolutamente,
qualquer restrição do tipo quem pode falar sobre quem, nem buscam
estabelecer que um determinado recorte temático é mais “corre-
to” do que outro. A pesquisa não comunga de nenhuma noção
ingênua da mimese literária – que a literatura deva ser o retrato
fiel do mundo circundante ou algo semelhante. O problema que
se aponta não é o de uma imitação imperfeita do mundo, mas
a invisibilização de grupos sociais inteiros e o silenciamento de
inúmeras perspectivas sociais, como a dos negros. A proposta,
então, é entender o que o romance brasileiro recente – aquele que
passa pelo filtro das grandes editoras, atinge um público mais
amplo e influencia novas gerações de escritores – está escolhendo
como foco de seu interesse, o que está deixando de fora e, enfim,
como está trabalhando as questões raciais.
Os números apresentados aqui são relativos a um corpus
de 258 romances, que correspondem à totalidade das primeiras
edições de romances de autores brasileiros publicadas pelas três
editoras mais prestigiosas do País, de acordo com levantamento
realizado junto a acadêmicos, críticos e ficcionistas: Companhia
Abstract:
Black characters are a frank minority in Brazilian
contemporary narrative, as extensive research has
demonstrated. This article analyses some excep-
tions to this rule, identifying different ways that
literature represents racial relations in a society
marked by discrimination.
Keywords: Brazilian contemporary literature.
Racial relations. Prejudice.
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Niterói, n. 24, p. 203-219, 1. sem. 2008 217
Gragoatá Regina Dalcastagnè
Resumo
O artigo tem por objetivo discutir o tecido de cita-
ções, elaborado por John Maxwell Coetzee, entre
A vida dos animais (1999), Elizabeth Costello
(2003) e o texto de Kafka, “Um relatório para uma
academia”, extraído de Um médico rural (1919).
Como entender essa rede textual que se espraia
de modo agudo e delicado? Ao manter muito
enlaçadas as marcas da autoria, da autobiografia,
*
Até agora i nédito,
esse artigo tem como da ficção, do ensaio e da vida, o texto de Coetzee
origem o texto “Exercício indica tanto a porosidade quanto a complexidade
de leitura: Coetzee em
Kafka”, escrito para a do ato de escrever. Com essa capacidade de ra-
aula de 3 de maio de
2007, que ministrei no
mificação, sublinha as fronteiras tênues entre o
primeiro semestre de real e o mundo do “como se” que a literatura cria
2007, no curso “Uma e, também, aponta para candentes problemas de
cultura em crise: consti-
tuição e percalços do nossa época. Estas questões - que conectam os
horizonte moderno”, na
Pós-graduação em Le-
jogos de linguagem do processo ficcional do autor
tras da Universidade à representação na linguagem literária atual - é o
Federal Flum i nen se.
Posteriormente, foi re- que se pretende examinar.
escrito e apresentado
como conferência, sob o Palavras-chave: Coetzee. Kafka. Diálogo. Ficção.
título de “A literatura, a África do Sul. Mundo.
vida dos animais e o ma-
caco de Kafka”, no VIII
Seminário Internacional:
Crítica Literária, na PUC-
RJ, em 19 de setembro de
2007, em mesa plenária
composta por Flora Süs-
sekind, Ana Cristina
Chiara e eu mesma. O
presente artigo reescre-
ve, com transformações
e acréscimos, os dois
textos anteriores, tam-
bém inéditos até o mo-
mento. Entregue para
publicação na Gragoatá
24, UFF.
Abstract
This article intends to discuss the web of texts
created by J.M.Coetzee to entangle three literary
texts: his two novels The lives of animals (1999)
and Elizabeth Costello (2003), and Kafka’s “A
Report to an Academy”, taken from A Country
Doctor [Ein Landarzt] (1919). How are we to
understand this textual network that spreads itself
in a sharp and delicate way? While inteweaving
the marks of authorship, autobiography, and fic-
tion, Coetzee’s text indicates both the porosity
and complexity of the act of writing. With this
capacity of branching, Coetzee’s texts highlight
the thin bordes between reality and the world of
“might have been” that literature creates. This
essay aims at examining these issues, which con-
nect the games of language to the representation
of today’s literary language.
Keywords: Coetzee. Kafka. Dialogue. Fiction.
South Africa. World.
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o Brasil.”
(Pe. Antônio Vieira)
Brasil e Angola possuem muitos elementos em comum nos seus processos de forma-
ção histórica. É conhecida a relação que se formou com os projetos de expansão ibérica do
século XVI rumo à América, aproximando os dois países a partir de um contexto econô-
mico que levava as capitanias sul-americanas, o Brasil especificamente, a se interligarem
num espaço complementar ao de Angola através do abastecimento de escravos africanos
na colônia portuguesa. Dessa maneira o africano incorpora-se à paisagem americana.
Tanto o Brasil quanto Angola foram colônias (des)ajustadas ao mundo econômico
desde uma perspectiva periférica, complementando e apoiando, através da exportação
de suas riquezas (materiais e humanas), o império português. Os escravos africanos pro-
venientes, em grande número, do território angolano, se estabeleceram como a principal
mão-de-obra da América portuguesa. Esta estrutura do sistema colonial configurou o
primeiro fluxo de migração forçada de angolanos ao Brasil. Esta força de trabalho iria mar-
car profundamente a história e a cultura brasileiras, conectando estes dois continentes.
O Brasil foi colônia portuguesa até 1822 e Angola até 1975, quando o país africano
conquistou sua independência política, depois de passar por uma sangrenta guerra.
O MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), de inclinação comunista, foi
criado ainda na década de cinqüenta como uma articulação em torno do processo anti-
colonialista. Mesmo após 1975, Angola seguiu numa violenta guerra civil, exacerbada
pela competição entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria. O MPLA
e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), identificada com os
Estados Unidos, destruíram o país em décadas de luta intensa. Isto estimulou, a partir
dos anos oitenta, um processo de emigração de Angola, que buscava refúgio especial-
mente em Moçambique, Portugal e Brasil. Em 1992, houve eleições em Angola, nas quais o
MPLA saiu vitorioso. Em 1993, foi assinado um acordo de paz entre o MPLA e a UNITA,
reduzindo o fluxo emigratório de Angola, mas, na segunda metade da década, a guerra
civil recomeçou e, conseqüentemente, a imigração de angolanos no Brasil retomou seu
crescimento.
histórias. E aqui vai um pedido: você teria alguma parábola para contar
para a gente sobre tudo isso que a gente conversou aqui hoje?
JEA: Há uma história que eu gosto muito e tem um pouco a ver
com essa idéia de muitas vezes os estrangeiros terem a idéia de
que vão à África salvar os africanos. E está cheia de organiza-
ções não-governamentais estrangeiras que entram no país com
a idéia que “nós sabemos, nós é que sabemos, nós é que vamos
ensinar a essa gente como é que é” e com experiências horríveis.
Por exemplo, na ajuda, até na ajuda, pessoas bem intencionadas,
por exemplo, levam trigo para oferecer à população, esquecendo
que os camponeses estão a produzir milho, massambala, que são
produtos locais, e que estão a fazer concorrência direta a estes
camponeses que de repente empobrecem ainda mais porque têm
uma concorrência desleal de gente que está a dar. Enquanto eles
querem vender, as pessoas estão a dar trigo, que ainda por cima
não é um produto local. Então há uma história muito engraçada
que é a história de um macaco e do peixe.
O macaco está a passar por um rio, junto a um rio, um ribeiri-
nho, e vê um peixe e o macaco diz: “olhe o pobre animal, caiu à
água, está se afogando, está a se afogar esse animal. Deixe-me
salvar esse animal”. Então o macaco mergulha na água, com
coragem e tal, agarra o peixe, tira o peixe para fora da água e o
peixe, coitado, começa a estrebuchar e o macaco diz: “Oh! Vejam
como esse pobre animal está feliz porque eu o salvei”. Aí o peixe
dá mais uns saltinhos, e com falta de ar, morre. E diz o macaco:
“coitado, já não foi a tempo, mas ainda tentei salvá-lo”.
BETHANIA MARIANI
Doutora pela UNICAMP, é professora do Departamento de Ciências da
Linguagem da UFF e pesquisadora do CNPq. Desenvolve estudos sobre a
história das idéias lingüísticas no Brasil e sobre o modo como os portugueses
empreenderam o processo de colonização lingüística em diferentes regiões
do planeta. Publicou pela Editora Pontes, em 2004, o livro Colonização lingüís-
tica: línguas, política e religião no Brasil (séculos XVI a XVIII) e nos Estados
Unidos da América (século XVIII).
CHARLOTTE GALVES
É professora do Departamento de Lingüística da Unicamp. É doutora em
LUCIA BETTENCOURT
Formada em Português-Literaturas pela UFRJ, e mestre em Literatura pela
Universidade de Yale, cursa agora o Doutorado na UFF. Possui alguns tra-
balhos acadêmicos publicados, tais como “Em breve cárcel de Sylvia Molloy
e a leitura aprisionada” in: América Hispânica (11-12 –Ano VII:Jan-Dez-1994);
“Cartas brasileiras: visão e revisão dos índios” in: Índios no Brasil. Org. GRU-
PIONI, L. D. B. MEC, 1994 e “Banquete, literatura e civilização” in: Cadernos
de Letras da UFF (11 - 1996). Prêmio Osman Lins de Contos, com o texto
“A cicatriz de Olímpia”, Recife, 2005. Prêmio SESC Categoria Contos, com
seu livro A secretária de Borges, publicado pela Record, 2006. Prêmio Josué
Guimarães, pelos contos “Manhã”, “A caixa” e “A mãe de Proust”, Jornada
Literária de Passo Fundo, 2007.
LUCIA HELENA
Doutorou-se em 1983 pela UFRJ, na área de Teoria da literatura. Fez pós-
doutorado em 1989, em Literatura Comparada, nos Estados Unidos, na
Brown University. Ministra cursos em universidades norte-americanas e
vem atuando como conferencista nos Estados Unidos e na Europa. Integrou
durante muito tempo a cadeira de Teoria da Literatura na UFRJ. Hoje é
professora Titular da UFF e pesquisadora 1-A do CNPq. Dentre suas publi-
cações destacam-se Totens e tabus da modernidade brasileira, 1985 (com prêmio
nacional), Uma literatura antropofágica,1982; Escrita e poder, 1985; A cosmo-agonia
de Augusto dos Anjos, 1984; Modernismo brasileiro e vanguarda, 1996; Nem musa,
nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector , 2ª. Ed 2006; e A solidão
tropical: a modernidade do Brasil e de Alencar, 2006. No prelo, tem o livro Ficções
do desassossego: o romance e a consciência trágica, a sair em 2009. Organizou,
para a editora Contra Capa, os volumes: Nação-invenção: ensaios sobre o nacional
em tempos de globalização, 2004; Literatura e poder, 2006 e Literatura, intelectuais
e a crise da cultura, 2007.
MAURÍCIO DE BRAGANÇA
Graduado em História e Cinema, Mestre em Comunicação, Imagem e In-
formação e Doutor em Letras (Literatura Comparada) pela Universidade
Federal Fluminense. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutoramento
no programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal Flumi-
nense financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
REGINA DALCASTAGNÈ
Professora de literatura da Universidade de Brasília e pesquisadora do CNPq.
Coordena o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea e
edita a revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. É autora, entre
outros livros, de A garganta das coisas: movimento(s) de Avalovara, de Osman
Lins e de Entre fronteiras e cercado de armadilhas: problemas de representação
na narrativa brasileira contemporânea.
REGINA ZILBERMAN
Licenciou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
e doutorou-se em Romanística pela Universidade de Heidelberg. Com
pós-doutorado na Brown University, recebeu, da Universidade Federal de
Santa Maria, o título de Doutor Honoris Causa. É professora colaboradora da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora da Faculdade Porto-
Alegrense. Entre suas publicações recentes, contam-se Fim do livro, fim dos
leitores?, O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose, Como e por que
ler literatura infantil brasileira, Literatura e pedagogia: ponto & contraponto.
SHEILA KHAN
Pós-Doutoranda nas Universidades de Manchester e Coimbra, com projecto
de investigação coordenado pelas Professoras Hilary Owen (Un. Manchester)
e Paula Meneses (CES, Un. Coimbra). É Investigadora Associada no CICS na
Universidade do Minho. Dentre suas publicações, destacam-se os artigos: Are
we all post-colonial? A Socio-Literary Reading of Crónica do Tempo’, Paulo
de Medeiros (ed.), Postcolonial Theory and Lusophone Literatures. Universiteit
Utrecht, Utrecht Portuguese Studies Series, pp. 79-97, 2007; Velhas Margens,
Novos Centros em ‘Ventos do Apocalipse’ de Paulina Chiziane’. Revista Teia
Literária, PUC/RJ, Brasil, 119-131, 2007; Identidades sem chão. Imigrantes
Afro-Moçambicanos: Narrativas de Vida e Identidade, e Percepções de um
Portugal pós-colonial’. Luso-Brazilian Review, 43:2. University of Wisconsin:
1-26, 2006.
SILVIANO SANTIAGO
É ensaísta, romancista e professor. Lecionou em importantes universida-
des no Brasil. (Universidade Federal Fluminense e a PUC-Rio), nos Estados
Unidos (New Mexico, Stanford, Texas, Indiana) e na França (Université de
Paris – III). Publicou recentemente O falso mentiroso (romance) e Histórias mal
contadas (contos). Seus ensaios recentes foram reunidos em O cosmopolitismo
do pobre e Ora (direis) puxar conversa. Co-editou Carlos & Mário (correspondên-
cia) e foi responsável pela antologia Intérpretes do Brasil (3 volumes). Heranças
(romance) acaba de chegar às livrarias.
Próximos números
Número 24
Tema: Brasil e África: trajetórias, rostos e destino
Organizadores: Laura Padilha e Lucia Helena
Prazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2008
Ementa: Literatura, política e ideologia no cenário do neoliberalismo. Nação e narração na
estrutura pós-colonial contemporânea do Brasil e da África. O Brasil e a África
em suas literaturas e linguagens: paradoxos, identidades, dilemas e problemas.
O discurso e a construção da subjetividade e das formas estéticas. Literatura e
outras artes. As perspectivas da crítica e a questão da teoria no Brasil e na África.
Línguas em contato e política lingüística. Reflexão, história, antropologia e filosofia
na cultura brasileira e africana contemporânea. Literatura, crise e utopias.
Número 25
Tema: Transdisciplinaridades
Organizadores: Claudia Roncarati e Vera Lucia Soares
Prazo para entrega dos originais: 30 de junho de 2008
Ementa: Relações entre perspectiva teórica e abordagem prática na investigação lingüística
e na literária. Implicações e conflitos entre princípios analíticos e metodologias
de pesquisa. Inter e transdisciplinaridade – contribuições e problemas na pós-
modernidade.
Número 26
Tema: Metáfora – o cotidiano e o inaugural
Organizadores: Solange Coelho Vereza e Lívia de Freitas Reis
Prazo para entrega dos originais: 15 de janeiro de 2009
Ementa: A metáfora no discurso cotidiano e na produção literária. O rotineiro e o insólito
nos processos de metaforização. A trajetória da abstratização dos sentidos – recortes
sincrônicos e diacrônicos. Fatores motivadores da linguagem metafórica. Fronteiras
conceituais e analíticas: literalidade e figuratividade. Metáfora e alegoria.
Book: author’s surname and first name, title of book (italics), place of
publication, publisher and date (eg.: ELLIS, Rod. Understanding se-
cond language acquisition. Oxford : Oxford University Press, 1994).
Article: author’s surname and first name, title of article, name of journal
(italics), volume,number and date (eg.: HINKEL, Eli. Native and
nonnative speakers’ pragmatic interpretations of English texts.
TESOL Quarterly, v. 28, no. 2, p. 353-376, 1994).