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AJR Russell-Wood arr Escravos e libertos no Brasil Colonial Sumario PREFAGIO FARA REDKAO ORASAERA 9 Aceanecmentos 15 corir0 Africanos e europeus: historiografia e percepgbes da realidade 1 ‘Os caminhos da liberdade 51 como s Negros ¢ mulatos livres na economia da América portuguesa 83 [Negros e mulatos ivres na sociedade da Amética portuguesa 105 canruios A expressio das aspiragdes de individuos de ascendéncia africana 127 crime 6 individuo de ascendéncia africana na cultura da América portuguesa 143 erro? A outra escravidao: a mineragao de ouro ea “instituigao pe: cari 8 Comportamen coletivo: as irmandades 199 Comportamento doméstico: familia e parentesco 233 casino 10 Claro-escuro no Brasil colonial 283, 160: CONSIDERAGGESRETROSPECTWVAS, ATUAS E PROSPECTS 293) noms 361 27 Prefacio para a Edicao Brasileira A niciativa da Editora Civilizagdo Brasileira de publicar a edigio brasi- leira de Slavery and Freedom i Colonial Brazil € muito bem-vinda. No decorrer dos tiltimos 35 anos, fui apenas mais um dos muitos his toriadores de varias nacionalidades que todo ano visitam o Beasil para pesquisar o passado deste pais fascinante, Sempre me senti emociona- do com o calor da recepgio, a gentileza ¢ a hospitalidade, o estimulo € 08 conselhos sébios dos especialistas brasileiros ¢ a ajuda cortés de ar- quivistas e bibliotecérios. Na preparagio deste livro, beneficiei-me muito da ajuda e do estimu- lo dos diretores ¢ funcionstios de arquivos estaduais e municipais, princi palmente nos estados da Bahia e de Minas Gerais, e dos direvores € funciondrios da Biblioteca Nacional e do Arquivo Nacional. Também pre- iso reconhecer os herds uvadios mas tio indispenséveis para todos 05 pesquisadores: os continuos, cujo suprimento constante de cafezinhos tem papel muito importante na vida cotidiana de todo pesquisador. E te- rho ainda uma grande divida de gratidio com os funcionéios de arqui- vos particulares em Salvador, como o da Basilica de Nossa Senhora da Conceigio da Praia ¢ os das numerosas Ordens Terceiras, principalmente oda Ordem Terceira de Nossa Senhora do Rosétio, no Pelourinho. A Santa Casa da Misericérdia da Bahia guarda um tesouro de documentos sobre a histéria social, econémica, politica, médica e artistica de Salvador, € 0 potencial de seu arquivo ainda esta para ser totalmente explorado pelos historiadores que estudam os individuos de origem e ascendéncia afi nas. A riqueza desses arquivos forneceu-me a documentacio priméria que forma o alicerce das idéias e hipéteses apresentadas neste livro. Quando a Em suas crénicas, 05 visitantes europeus do Brasil descreveram com minticias 0 que percebiam como dois aspectos diametralmente opostos da soctedade da coldnia mais rica de Portugal. © primeiro era a severida- de da escravidio negra. Os europeus nao eram estranhos & instituigio da escravarura mas, pelo simples peso de seu ntimero e das arerradoras con- digbes fisicas, 0s escravos negros causavam perplexidade, nojo e compai- xo nos europeus que visitavam a América portuguesa. As observacées feitas pelo engenheiro francés Francois Froger-no Rio de Janeiro e pelo inglés William Dampier em Salvador, na dtima década do século XVII, seriam expressas em termos mais fortes por Amédée Frangois Frézier, engenheito de Lufs XIV. Confrontado com uma populagio que estimou como de 95% de individuos de ascendéncia africana, Frézier des- creveu a capital do Brasil em 1714 como uma “Nova Guiné”. Condenou integralmente as lojas cheias de escravos nus de ambos os s¢x0s, expostos a venda como se fossem animais e tratados como meras bestas de carga pot seus novos donos. Frézier perguntou-se como os pornugueses conse- guiam conciliar esta manifesta barbaridade com o catolicismo, que pro- fessavam com tanta ostentagio. Um século depois, ais comentirios seriam repetidos pelo mineralogista inglés John Mawe ¢ pelo gedlogo alemao WL, von Eschwege (este tltimo residente no Brasil entre 1808 ¢ 1821), {que Visitaram, ambos, a capitania interiorana de periodo colonial, o visitante britinico James Henderson tratou da dura realidade fisica da “instituigéo peculiar” como se manifestava no Rio de Jeneiro, capital do Brasil ¢ local de residéncia da corte real portuguesa. ( segundo aspecto era o estilo de vida permissivo ¢ luxuoso da aristo- cracia de fazendeiros. Em fins do século XVI e, com certeza, no decorrer do século XVIII, tendéncias semelhantes se manifestariam entre os mem- bros de um grupo amorfo, no baseado na propriedade de terras e associa- do primariamente as florescentes areas urbanas, Exibiam algumas das caracteristicas —e partithavam algumas das ambigées de um setor da socie- dade que, em perfodo diferente e numa regio muito distante do Bras seria descrito por um historiador como “pseudonobreza” ("pseudo- sentry") A disparidade, no Brasil, entre a situagio dos ricos e as condi- ses de vida do escravo seria resummida por Frézier num tinico objeto: ou seia, 0 palanquim, ou cadeirinha, que os portugueses tinham trazido da {India e de regides mais ortentais para o Brasil e no qual os cidadiios mais importantes eram transportados por escravos pelas ruas, Esta ostentagéo. também se manifestava na hospitalidade, to prédiga que chegava a bei rar o excesso. Geragées de visitantes e moradores estrangeiros no Bras testemunharam o calor das boas-vindas que recebiam nos solares urbanos (ou mansdes das principais cidades, nas luxuriantes plantagdes de agicar do Recéncavo Baiano ou da Varzea de Pernambuco, nas rudes capstanias de Sio Paulo € Minas Gerais ¢ mesmo nas capicanias mais pobres do ser- tio. Em 1584, 0 jesufta Ferndo Cardim, cujas viagens se estenderam de Pernambuco a Sao Vicente, referiu-se & opuléncia da hospitalidade & as ‘mesas de banquete que rangiam sob o peso de grande variedade de p «de caga, aves ¢ frutos do mar. Nao surpreende que a riqueza de tal cardé- Pio, associada aos outros encantamentos da América portuguesa, tenha levado 0 valoroso jesufta a referir-se a0 Brasil como-um pedacinho do Paraiso Terrestre.> Separado de Cardim por cerca de dois séculos e meio, ‘o.mglés John Mawe passou dois anos e meio no Brasil antes de partir, em 1810. Primeito estrangeiro a receber permissio real de visitar as regiGes neitas, sua estada no desolado e remoto interior de Minas Gerais fo1 ito amenizada nao s6 pela espontaneidade da recepcio como pela “pro- fusto de excelentes viandas, servidas em bela louga Wedgwood”. Um con- tempordneo, Henry Koster, que falava portugués ¢ estava bem qualificado fazer comparagées com base em extensas viagens pela Europa oci- coral, deu seu testemunho em termos no menos bri antes. Tendo che- «do 20 Brasil em 1809 por razbes de satide, durante os seis anos seguintes ‘jana muito e for provavelmente o primeiro inglés. observar 0 sertio ¢ 20 05 costumes dos sertanejos, cuja generosidade e hospitalidade defendeu.t Seria esperar demats de simples mortais querer que os viajantes permane- ‘cessem imunes a tantas lisonjas e confortos materiais. Em alguns casos, a agudeza de sua percepsio pode ter-se embacado e a veracidade de sua narrativa, posta em dtivida, Os misstonérios protestantes Daniel P. Kidder J.C, Pletcher seriam objeto da eritica de um compatriota, que acusou ‘estes honrados senhores de calar suas critcas aos aspectos menos elogisveis, do Brasil em meados do século XIX para nao pér em risco a hospitalida- de 8 qual se ninham acostumado.’ Mas, apesar dos vinhos e jantares a eles ofere jantes ficaram cegos ao impacto desmoralizante da tamanha dependéncia dos escravos por parte da populacio branca. Dampier notara que todos, com excegio dos mais humildes, possufam um escravo, e Froger obser- vou que a dependéncia que os brancos tinham de seus escravos era tio completa que este era um dos principais fatores a contribuir para a disso- Seria féeil descartar tais ds, nem todos os via- lugio moral ¢ fisica dos portugueses no Bra comentarios como expressbes hiperbdlicas de viajantes cujos preconce {05 nacionais ou religiosos os levavam a maldizer os portugueses, nao fos: se 0 fato de os proprios brasilesros pensantes partilharem varias dessas mesmas preocupagdes. Os governadores ¢ vice-reis do perfodo colonial ado por wa terra nem dar ‘mas sim comprar um escra- XIX por nada Iho da aristocracia escravocrata, patriarcal e gragas & Virgem pela travessia bem-suced vo." Esta opinido seria express com mais vigor no sécul ‘mais nada menos que 0 profundamente enravzada de fazendeiros de Pernambuco que era Joaquim Nabuco. Seu livro Abolicioztismo (1883) era 0 ert de coeur de um patriota que via na escravidao o epitome de tudo o que era mau, debilitado ou vici0so no apenas no Império mas também na antiga era colonial. Ne- rnhuma instituigio ov setor da sociedade fora poupado do mau efeito des- te “sopro de destrurgio”, ¢ a aboligio desta que, “apesar de hereditaria, é averdadeira mancha de Caim” era pré-requisito essencial para a constru- ‘lo do alicerce da futura grandeza.” Anarrativa dos viajantes e a bola de fogo do abolicionismo nao foram 6s Gnicos fatores que contribufram para a tio freqiiente e simplista redu fo da sociedade do Brasil colonial a um relacionamento escravo-senhor. Era componente fundamental do ethos colonial a pereepgio da distingio entre senhor e escravo e dos privilégios, pretrogativas, obrigagées mituas €e restrigSes impostas aos membros de cada grupo pela lei e, de forma mais importante, pelos coscumes sociais prevalecentes. De forma ainda mais penetrante, 05 colonos estavam conscientes daqueles graus varisvers de pigmentagio que existiam entre as polaridades de branco e negro e que distinguiam um mulato de um pardo e de um preto. Muito antes da des- coberta da Terra de Vera Cruz, os portugueses metropolitanos tinham accitado a escravatura como institui¢do € papel de individuos de ascen- éncia africana (mas de forms alguma com exclusio de individuos de ou- tras religides e ragas) como escravos. Os colonos do Brasil, do mesmo modo, accitaram a escravarura como instituigo e continuaram a ver a Africa subszariana como fonte para suprir suas necessidades de mao-de- obra, Mas munca nem em lugar algum os brancos da América portuguesa esqueceriam @ ameaga potencial 4 vida e integridade fisiea a que estar ‘vam sujeitos em razéo de sua minoria numérica. Nunca estavam livres do receio, que beirava 0 medo patotégico e podia com toda a facilidade se ‘tansformar em histeria de massa, de que um levante negro acontecesse € destruisse 0 que viam come civilizacio na América portuguesa, Esta para- ria ¢ 0 medo constante de conspiragao podiarn resultar em espasmos de repressio intensa e draconiana dos negros pelos brancos. £ bastante ir- nico que ado tena sido um branco, mas sim © governador mulato de Angola, naseido nailha da Madeira, Jodo Fernandes Vieira, quem, em 1659, «em referéncia aos indios melhor exprimiu os sentimentos dos colonos brancos ao dizer que “nesta obediéncia e temor consiste a conservagic do reino”® Nao menos importante para a formagdo da imagem da escravatura na América portuguesa tem sido a historiogafia, tanto nacional quanto cextranacional, relative & escravidiio es relagées raciais na col6nia. A tra- digho historiografica ressaltou a impossibilidade de estudar a escravidio ente como instiruigio, isolada do contexto mais geral das relagSes entre pessoas de origem caucasGide, negréide e americana nativa. Embacada por este componente racial, neste aspecto a experiencia americana representa ‘mais uma variante que a norma. O papel dos individuos de ascendéncia africana no Brasil, fossem escravos ou libertos, foi de consumado interes- se para os comentadores, tanto leigos quanto eclesifsticos. Durante a era colonial, colonos ¢ missiondrios ficaram igualmente incomodados com aspectos da escravatura como instituigéo. No século XVI, os jesuitas ‘Manoel da Nébrega, Anténio Pires e Ferndo Cardim fizeram reservas 20s aspectos morais da escravidio. O século seguinte testemunharia as dit do jesufta Ant6nio Vieira (1608-97), que, em seus inflamados sermbes, compararia 0 softimento do escravo numa fazenda de agticar com o de Cristo na cruz.? Mas s6 no século XVIII o clima da opinigo da colénia Vita a tornarse mais critico, nao s6 quanto & crueldade inerente & escra- vidio mas também quanto a instituiglo propriamente dita. Até entéo os comentadores aceitavam tacitamente a inevitabilidade da instiruigio como ‘mal necessdrio para a promogio da fortuna econ6mica do Brasil. O jesui- ta Jorge Benci, nascido em Rimini e professor de teologia escolistica em Saivador de 1684 a 1687, descreveu os maus-tratos infligidos a escravos negros em seu Economia cristd dos senbores no governo dos escravos (Roma, 1705). Benei enfatizou a responsabilidade dos donos para com seus eseravos em termos de fornecer-thes abrigo, alimento, roupa ea com- preensio fundamental das doutrinas do eatolicismo, Scu patricio e colega sesufta Giovanni Antonio Andreoni (mais conhecido pelo pseudénimo de André Joao Antonil), que foi para o Brasil em 1681 e lé viveu até sua morte ‘em 1716, expds 0s horrores da escraviddo em seu Cultura e opuléncia do Brasil por suas drogas e minas, publicado em Lisboa em 1711. Este livro foi vitima de vigorosa campanha de supressdo das autoridades portugue- sas, temerosas de que seu detalhamento da economia brasileira fosse ex- plicito demais para cait nas maos de estrangeiros, Antonil ndo se restringiu 1 enfatizar as obrigagées dos fazendeios para com seus escravos, mas concentrou-se numa érea de preocupacio critica no relacionamento se hor-escravo: ou seja, 0 papel do feitor. Antonil defendia que os proprieté- tios deveriam definir com preciso o grau de autoridade delegado 20s feitores e que estes tlkimos deviam ser responséveis por qualquer abuso . 2a da mesma autoridade. Antonil via como essencial, para a contengio de {eitores excessivamente zelosos ou sadicos, o mecanismo da apelacéo, pelo qual um escravo poderia ter acesso directo a0 proprietério.!® ‘Tats comentarios no eram pretrogativa exclusiva dos membros da Companhia de Jesus. Uma viagem a Minas Gerais forneceu a Nuno Mar- ‘Ques Pereira o pretexto para um tratado moralista (Lisboa, 1728) intirulado Compéndio narrativo do peregrino da América. Em’cada parada de sua Viagem, 0 “peregrino” aproveitou a oportunidade para interpretar mo- ralmente e explicar o mandamento mais apropriado & situagao de seu anfitriio, Nao surpreende que, dada a elevada incidéncia de escravos ne- Bros nas regides mineiras, as condig6es de vida dos escravos merecessem © oprébrio do “peregrina”. As excessivas punigGes impostas 20s escravos Preocuparam o lisboeta dr. Manuel Ribeiro Rocha, que praticava 0 oficio as leis em Salvador. Sua obra, cujo titulo era Ethiope resgatado, empe- nhado, sustentado, corregido, instruédo, eliberado (Lisboa, 1758), ia bem ‘lm das predecessoras ao listar as agress6es e defender abertamentea subs- ‘utuigio da escravidio negra no Brasil pela mdo-de-obra com contrato de servidio. Apenas seis anos depois da publicago de Ethiope resgatado, a ¢erensa tradicional de que os negros tinham nascido para servir aos bran- €05 seria questionada num panfleto anénimo intitulado Nova e curiosa relagao de hum abuzo emandado."* Esta oposigio aos princfpios fundamentais sobre os quais se baseavam io $6 0 comércio como a instituigio da escravatura na América portu= guesa representava as diferengas inconciliaveis entre uma minoria escla~ recida a matoria de luso-brasileiros quanto A questio da escravizacio de Pessoas de origem africana, seu transporte para o Novo Mundo ¢ a insti- ‘tuigéo da escravatura no Brasil. Seria mcorreto retratara opinigo da maioria como baseads em hipocrisia, interesse pessoal ou incapacidade de formar conceitos. Na virada do século XIX, ninguém menos que José Joaquim a Cunha de Azeredo Coutinho (1743-1821) exprimiu seu apoio a escra- Vatura como instituigéo e justificou o comércio portugués de esctavos diante de seus eriticos.' Nascido em Campos dos Goitacazes, no Rio de Janeiro, Azeredo Coutinho assumiu a administracio das présperas pro- priedades agucareiras da familia, viajou extensamente e obteve dois diplomas na Universidade de Coimbra. Posteriormente, como bispo de Pernambuco, serviv como governador interino da capitania, mas sua rea- lizagéo mais signficativa fot a fundagéo do Seminario de Nossa Senhora ‘da Graga, em 1800, em Olinda. Incorporando muitas reformas pombalinas enfatizando as cincias, 0 semindrio eriticava a disseminagio da filoso- fia do tluminismo na colénia. Azeredo Coutinho foi chamado de volta a Portugal para ocupar, em répida sucessio, as sedes episcopais de Miranda ¢ Braganga, Elvas e Beja. Em 1818, dom Joao VI nomeou Azeredo Coutinho Inguisidor-geral do Santo Oficio. A honra final que Ihe foi conferida em sua notavel carreira foi ter sido eleito, pela provincia do Rio de Janeiro, seu representante nas Cortes Constituintes de 1821. Entre 0 ‘muitos estudos perspicazes saidos da pena deste escritor prolifico estava sua Andlise sobre a pstica do comércio do resgate dos escravos da costa da Africa, Depois de ter sua publicagio rejcitada pela Academia das Ciéncias de Lisboa, esta obra veio a luz pela primeira ver numa edigio francesa publicada em Londres em 1798, ¢ s6 uma década depois sairia em portu- gués, Por experigncia prépria, Azeredo Coutinho ¢: muito bem as agress6es fisicas inseparaveis da instituigdo da escravatura. Com certa ‘engenhosidade, propés leis que garantiam aos eseravos alimentagio, abrigo e descanso adequados ¢ 0 direito de praticar 0 catolicismo e de casar-sc, ¢ concediam protegio legal contra excessos nas punig6es. Mas Azeredo Coutinho era realista demais para dar aos escravos direitos legais que pudessem perturbar 0 status quo. Recusou-se a sancionar a admissi do testemunho de escravos como prova contra seus donos e a provisio tos a inquéritos (devassas). Embora nio fosse que tornaria os donos suy cego aos excessos ¢ advogasse certas reformas, Azeredo Coutinho defen- dia com firmeza a instituigdo da escravatura. Adotando uma postura mo- ral e religiosa, ressaltou a longevidade da instituig0; do ponto de vista comercial e politico, considerava a instituigo da escravatura imperativa para a sobrevivencia e a preservacao da ordem social. Tal opiniéo néo morreu coma independéncia do Brasil nem com a aboligSo da eseravatu- ra no pais em 1888. Ainda em 1880 o historiador portugués Oliveira Martins faria a pergunta retérica: seria um crime eseravizar © negro € transporté-lo para as Américas? Sua resposta era negativa.!? O final do século XIX testermunhou o despertar do interesse de espe- cialistas, dentro e fora do Brasil, pela extensio e pela natureza da cor buigdo dos individuos de ascendéncia africana a América portuguesa. O Pioneiro foi o pesquisador baiano Raymundo Nina Rodrigues (1862-1906), excessivamente influenciado pelos estudos pseudocientificos de Lom- broso e Ferri. Nina Rodrigues era contemporaneo do estudioso ¢ abo- icionista mulato Manuel Querino (1851-1923), também baiano, que se concentrou igualmente na histéria, na religido, nos costumes ¢ no fol- lore dos africanos no Brasil. Membro fundador do Instituto Geogr co e Histérico da Bahia, Querino buscava atingir dots objetivos prinexpats. O primeiro era tornar os negros conscientes da contribuigdo vital de seus Predecessores no Brasil; o segundo era lembrar aos brasileiros brancos sua divida duradoura para com a Africa e seus povos. Limitadas em sua abordagem conceitual, as obras de Manuel Querino suportaram melhor a prova do tempo que os estudos mais “cientificos” de Nina Rodrigues, © 08 estudos de Querino sobre a arte, os artistas, 0s artesfos e a cultura popular (especialmente em seus aspectos culinérios) ainda sio valiosos ara os especialistas." Tanto Nina Rodrigues quanto Manuel Querino foram bastante respeitados, mas s6 na década de 1930 0s estudos sobre osafricanos no Brasil ganharam impeto. Quanto a isso os estudiosos bra- sileitos reagiam a estimulos também experimentados por seus colegas de outros pontos das Américas, O impulso geral desta pesquisa acadé- mica foi o exame critico da crenga ha muito sustentada de que os negros unham sido trazidos da Africa e mergulhados na ordem do Novo Mun- do mas nio conseguiram exercer influéncia sobre a formagio social dos ovos que os incorporaram nem contribuir para ela. Em 1935, 0 famoso especialista cubano Fernando Ortiz exigiu estudos cientificos da “con. tribuigso do negro para acivilizagéo americana, tanto na economia quan- tona psicologia, tanto na vida social quanto na politica, tanto na religiio quanto na arte”."* © ano anterior assistira 8 publicagio de Rebel Destiny, de J. Melville e Frances $, Herskovits, um estudo dos vestigios religiosos centre os saramacanos ¢ 0 impacto destes sobre a formacao social dos Povos que os incorporaram, Fernando Ortiz ocupava-se de estudos da contribuigio africana a sociedade e arte de Cuba e das Indias Ocidentais 0 dr. Price Mars concentrava-se nos africanos do Haiti. O ano de 1933 restemunhou a publicagio de dois estudos lingbfsticos dos componentes, africanos no portugués do Brasil: O elemento afro-negro ma lingua por tuguesa, de Jacques Raimundo, ¢ A influéncia africana no portugués do Brasil, de Renato Mendonca." Quanto ao Brasil, o acontecimento mais importante foi a organiza~ 40, por iniciativa do socislogo Gilberto Freyre, do Primeiro Congresso Afro-Brasileiro no Recife, em 1934. A gama de artigos apresentados reve- lava no s6 a diversidade de pontos de vista como também o crescimento, entre os estudiosos, da consciéncia de um tépico que fora havia muito inteiramente ignorado ou tratado de maneira estereotipada: a escravidio ‘em Alagoas ¢ na Paraiba; as doengas mentais dos negros de Pernambucos ‘a situago contemporinea dos negros; a procedéncia ¢ ambientes anteriores ’ rravessia para.as Américas; o impacto da tuberculose sobre negros e bran- cos; dieta e nutrigéo durante o periodo colonial; a escravidao na época dos flamengos. Gilberto Freyre contribuiu com.um trabalho sobre a deformacio corporal dos negros fugidos, em larga medida baseado em aniincios de jornais, no qual defendia que tais deformagées nao eram he- reditérias nem transmissiveis, mas apenas o resultado de fatores ocups- cionais. Opinio semelhante, baseada numa andlise do comércio inglés de escravos, foi defendida por Jovelino M. de Camargo Jr. Comum aos cer- cade quarenta artigos apresentados nas tr8scategorias, hist6ria, antropo- logia e folelore, er evidente de reabilitar 0 negro no Br: Esra aicude s intes fot abordada por Arthur Ramos no preficio do segundo volume dos artigos publicados, no qual observa- va que a meta declarada do Congresso fora garantir ao negro do Brasil a defesa cientifica ¢ humana que nao podia mais ser retardada, No cumpri- ‘mento deste objerivo, dois temas gerais vieram a predominar: primeiro, 0 reconhecimento da contribuigio positiva dos individuos de ascendéncia africana & hist6ria do Brasil em termos outros além dos puramente bra- sais ou fisicos; segundo, a insisténcia para que os brasileiros modificassem sua atitude herdada quanto 8 mistura racial como fator de desenvolvimento da nagio, Até entio, tal atitude tinha se concentrado nos filhos das unides centre brancos ¢ amerindios, com a exclusio, na pritica, dos filhos de unides entre brancos e negros. Vérios autores defendiam que os mulatos deviam receber 0 crédito de uma contribuigo nao menos positiva que a do ‘mestigo para a formagio do Brasil. E indicativo desta visio mais afirmativa do mulato ter sido ele designedo, por um autor, como o verdadeiro brasi- leiro. Um segundo Congresso Afro-Brasileiro foi realizado em Salvador, em 1937, pelo esforco incansdvel de Edison Carneiro." Este entusiasmo recente com as coisas negras ¢ a exaltacio do mulato nao seriam partilhados uni- versalmente. Alguns observadores no estavam convencidos, enquanto ou- tos eram céticos ou até abertamente hostis. Mas no havia como negar 0 fmpeto da pesquisa académica ea gnese de uma reavaliagio da contribui- fo africana & sociedade brasileira e do Novo Mundo. Um dos principais defensores desta reavaliagio foi Arthur Ramos (1903-49), seguidor de Nina Rodrigues, que fez com sucesso a transis Para a “nova hist6ria” dos negros no Brasil. Embora seus ensaios anter res [O negro brasileiro, Ethnographia, religiosa, e psychanalyse, 19343 O folklore negro do Brasil, 1935] tratassem especificamente da América lus6fona, a publicagéo de As culturas negras 0 Novo Mundo (1937), de Ramos, foi uma das primeiras tentativas de tratar 0 individuo de ascen- déncia africana de um ponto de vista americano global, Formado em medicina ¢ especializado em psi nica, Ramos levou a seus estu- dos nao s6 uma abordagem interdisciplinar como também a consciéncia aguda dos avancos académicos ocorridos em aurtos pontos das Américas, Ramos aplicou ao Brasil alguns principios e técnicas — em especial a én- fase nos valores sociais —do socidlogo e historiador austro-hiingaro Karl Mannheim, Sua obra caracteriza-se por ser intensamente nacional e, a0 ‘mesmo tempo, pan-americana em seu ponto de vista. Sua missio como estudioso foi penetrar no mito da inferioridade racial atribufda a pessoas de origem negréide e conferir aos negtos o respeito e o reconhecimento metecidos por suas realizagdes, Ramos insistia em que jf era hora de a experiéneia negra nas Américas receber o mesmo esctutinio académico Intenso e se tornar 0 tema de produgio académica tio Volumosa quanto a dedicada aos povos indigenas americanos. Exprimiu a esperanca de que 0s estudiosos do fendmeno conhecido como aculturacio, que até entio se tinham concentrado no encontro entre americanos nativos ¢ europeus za no Novo Mundo, estendessem seu interesse a0 estudo do impacto dos in- dividuos de ascendéncia africana sobre as culturas ¢ sociedades presentes nas colénias fundadas por europeus nas Américas. Ramos via 0 individuo de ascendéncia africana no s6 como componente integral ¢ i do processo brasileiro de construcéo da nagio, mas como contribuinte es- sencial da diversidade de culturas implantada no Novo Mundo por euro- peus que, eles também, representavam todo o espectro de diferencas de ‘tenga, costumes, sistemas de valores, rligiées, tradigées politicas¢ id mas, Apesar de suas préprias convicgdes quanto a importancia da reabili- tacio histérica dos negros, Ramos via com apreensio a aceitacao irrestrita € acritica desta tarefa, No final da década de 1930, os estudos sobre o negro ficaram em voga no Brasil, levando Ramos a proferit palavras de cautela sobre dois aspectos: primeiro, medo de que este entusiasmo sem freios fosse apenas uma moda passageira; segundo, o temor de que a con- centragdo no que se paderia descrever, em geral, como aspectos foleléri- cos da exper tasse em énfase no puramente pitoresco, a onto de negligenciar a contribuigdo como um todo. Os estudos de Ra- mos foram bem accitos por especialistas no Brasil e nos Estados Unidos, ‘mas dois fatores militaram contra o reconhecimento mais amplo pela co- ‘munidade internacional. Exceto pela traducio de Richard Pattee da obra de Ramos, The Negro 1 Brazil, sua volumosa produg&o néo estava ao al- cance do paiblico angl6fono."* De maneira mais significativa, o surgimento de Gilberto Freyre ina eclipsar Ramos tanto na arena nacional quanto na internacional, A publicagio em 1933 de Casa-grande e senzala, de Freyre, for um ‘marco hist6rico, cultural, académico ¢ literdrio nao $6 para o Brasil como para o estudo da contribuigio negra nas Américas. Seguiu-se, em 1936, Sobrados ¢ mucamibos. Juntos, provocaram louvores de um critico norte- americano, que declarou serem “dois dos livros mais profundos sobre a evolugio do Brasil jamais publicados*. Os dois volumes testemunhavam a formacio de Freyre no colégio de Baylor e, de forma mais eritica, na Universidade de Columbia, com Franz Boas, 0 proveito das viagens a In- glaterra, Franca, Espanha e Portugal e 0 conhecimento enciclopédico de Freyre da literatura nfo s6 sobre o Brasil como as mais recentes teorias as sociol6gicas em particular e, em geral, das ciéncias sociais. O tema global de Freyre era que a situagdo atrasada do negro no Brasil se devia as con- digdes econémicas e sociais, nao @ fatores raciais. Ao selecionar o latifan- dio ¢ 0 relacionamento senhor-escravo como duas constantes da vida brasileira do século XVI ao XIX, Freyre buscou diagnosticar os proble- ‘mas ¢ identificar os mates do Brasil. Uma forca determinante fundamen- tal do desenvolvimento do Brasil seria a miscigenagdo, Era considerada ‘to bisica para o bem-estar nacional que, caso se tivesse d a miscigenagio seria prejui ria extremamente dificil superar esta barreira ¢ encontrar qualquer vislumbre de esperanca pata 0 futuro do pais. Aeadémicosda linhagem de Alberto Térres, Paulo Prado e Francisco José de Oliveira Vianna j4 tinkam avaliado a miscigenagio como forga negativa. Freyre adotou uma postura diametralmente oposta. Ao colocar 2 miscigenagio no contexto mais amplo das forgas evolutivas sociais econémicas, foi capaz de demonstrar que, na verdade, a miscigenagio fora um fator positivo, Casa-grande representou uma reavaliagao da colonizagao portuguesa, especialmente vis-d-vis a colonrzacio anglo-saxénica da América do Nor. te. Freyre aventou que a forca da lei portuguesa, acoplada as Forgas Onipresentes do catolicismo, levou os porrugueses a buscarem uma fors mais benigna de escravidio do que a existente em outros pontos das ‘Américas. Além disso, 0s portugueses, devido a seus contatos com outras Fagas € povos, teriam desenvolvido certa flexibilidade em suas atitudes, No Br: Fesultou numa miseigena $0 répida em data precoce da histSria da col6nia. Nao s6 0s portugueses s relacionaram com individuos de outros grupos raciais como adotaram, para com elas, atiuudes que no davam espago a condescendéncia ou 20 desprezo que, alegadamente, caracterizavam os ingleses na América do Norte, Assim, prosseguia Freyre, 03 portugueses praticaram a verdadeira democracia racial nas Américas. Um corolério inescapével foi que tal at- ‘mosfera era muito propicia ao avango da contribui¢do africana, Mais tar- de Freyre desenvolveria esse conceito geral do Brasil em sua teoria do \usotropicalismo, fruto em parte de extensas viagens pelo mundo luséfono em 1951 ¢ 1952. Além de suas conotagdes hist6ricas, esta teoria exibia , aauséneia de barreiras institucion: matizes moras fisicos, nacionalistase politicos. No Brasil, a contribuigao de Freyre excedeu em muito a rea ional. Unilateralmente, buscou reforgar a auto-estima dos brasileiros em face de seu passado, seu presente e seu futuro. Nas palavras de seu adm tador Frank Tannenbaum, Freyre “conseguiu mudar a imagem que o Bra- sil faz de si mesmo”. Com grau considerdvel de verdade, 0 socidlogo norte-americano Es “gemuino heréi da cultura". Em duas décadas, Casa-grande teve oito edi- ges em portugués ¢ viria a ser amplamente traduzido.”® Um antigo edmirador norte-americano de Freyre foi Perey Alvin Martin, de Stanford. Ao comentar a publicaco do primeiro volume dos artigos do Congresso Afro-Brasileiro de Recife, Martin observow que o livro transcendia 08 “limites da histéria e até da antropologia” e que “o st. Freyre indicou caminho para 0 avanco definitivo da investigagio de um problema infinitamente mais complexo do que perceberam os estudiosos anteriores”.2! Em 28 de dezembro de 1936, em seu discurso presidencial ‘na sucursal da costa do Pacifico da American Historical Association, Martin concentrou-se “naqueles fatores sociais e étnicos que deram ao Brasil um lugar sem igual na evolugio da Ibero-América” e diferenciou a América Portuguesa da América espanhola. A influéncia de Freyre estava claramente Visivel nas referéncias de Martin & caracteristica de “plasticidade” dos por- ‘ugueses, tanto para com 0 meio ambiente quanto nas atitudes diante da gente de outras ragns, “a capacidade maravilhosa de adaptat-se onde a maioria dos europeus fracassou” e a criagSo portuguesa da “primeira so- ciedade moderna nos trépicos”. Martin louvou o negro do Brasil por suas ‘caracteristicas do mais alto por seu “belo fisico ¢ pigmentacio {que] Ihe permitiram trabalhar alegremente sob um sol fervente”, pela habilidade no trabalho com o metal eo talento nas lides pastoris. Martin observou que os escravos da América portuguesa eram mais felizes que na Africa, adapraram-se rapidamente e que 0 “destino do escravo era menos intoleravel que os filantropos nos fizeram acreditar”. Como historiador que chegara aos estudos latino-americanos depois de adquirir fama na his- {6ria européia, Martin via em Gilberto Freyre um daqueles poucos indi duos que exerceriam influéncia formadora sobre 0 curso da civilizacio. Em 1938, outro académico norte-americano, Lewis Hanke, observou que Gilberto Freyre se tornara figura cultuada no Brasil e nome citado tanto nos aposentos presidenciais de Gettlio Vargas quanto nas calgadas da ave. nnida Rio Branco, no Rio de Janeiro. Esta opiniio seria repetida em 1942 + Manoel Cardoso, que se referiu ao reconhecimento de Freyre como lider intelectual no Brasil, na América Latina e nos Estados Unidos. Cardo. $0 prosseguiu dizendo que Freyze no era um simples historiador social, ‘mas que sua profunda influéncia sobre a vida intelectual do Brasil o firmara ‘como “um dos eriticos mais penetrantes da civilizagao brasileira”, 22 Em 1936, Percy Alvin Martin escrevera que “em muitos aspectos o estudo do negro brasileiro ainda esté em sua infincia”. Apenas sete anos depois, Richard Pattee péde observar, com alguma justificativa, que “é bastante evidente que o negro em outras republicas americanas est rralmente, se pondo de pé”, Isto era bem verdade, nio s6 no que diz res. Peito histéria das pessoas de ascendéncia africana quanto no que diz espeito a América Latina. Em 1939, Herbert E. Bolton recomendou a ‘uma platéia em Washington D. C. que os preconceitos e prejulgamentos fossem postos de lado: os que até entéo tinham se voitado para Grécia, Roma ou Londres como pontos de referéncia culturais deveriam levar em

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