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TEXTOS Psicanalise, hoje e amanha Matia Laurinda Ribeito de Souza Qual é, neste final de século, o lugar da icandlise? Que articulagées sao possiveis entre 0 seu desenvolvimento, 0 seu declinio, € as transformagoes hist6ricas e culturais de nossa época? Comecemos pela clinica - lugar onde se entretecem_ ressignificam os diferentes tempos da vida: presente - passado - futuro. Marcelo arcelo tem sete anos. H4 quatro, nés nos encontramos regularmente. As vezes conseguimos conversar, brincar, criar. As vezes, ele se isola num jogo masturbat6rio do qual € impossivel retiré-lo. Em muitos desses mo- mentos, eu me isolo numa sonoléncia insuportavel. Neste dia do qual quero falar, ele entra na sala, pega uma folha de papel e um lépis, escreve algumas palavras e me mostra a folha. Fico tentando “decifrat” 0 au que ele quis escrever, “desvendar” o significado das letras, *juntar” isso com a hist6ria dele - da qual uma parte (que é a nossa prdpria hist6ria) eu imagino conhecer... Vou me angustiando e ele nao faz mais nada - insiste em me mostrar o papel... Algum tem- po se passou - para mim foi muito... até que me dou conta de algo fundamental e posso, no mesmo ins- tante, dizer-Ihe - agora nao mais olhando para 0 pa- pel, mas para ele: Marcelo, vocé esti escrevendo! Ele sorri, tem uma expressio de jibilo e, agora, solta a folha e se tranquiliza. Laurinda Rbeiro de Souza & psicanalisa, membro do pariamenta de Pleansiea do ineito Sodas Sapien. Este exto Ircslmerte apresertado na Semana ds Pslcloga oa PUCSPI25, Pereurso n* 19 - 2/1997 TEXTOS Que se passou? Por que me vi 5 voltas com uma tentativa de de- ciframento e de compreensio - como se alguma teoria tivesse que ser interposta na situacdo para que eu mio 0 reconhecesse como sujei- toc onde eu, entio, no 0 via; olha- va para a folha escrita? Podemos pensar no uso da teo- tia como obliterante, como expres- da resisténcia do analista... Mas, talvez, o mais significativo aqui te- nha a ver com o meu impedimento em reconhecé-lo... Algo que se es- truturou no campo transferencial como eco de uma hist6ria anterior de nao-reconhecimento. Esta crian- ca tinha vindo para atendimento por sar de ser manha € estar claro - € disse-me sorrindo: “Vou acender a luz para a Laurinda nao ficar no escuro!” Em que escuro eu ficava? Da sua auséncia? Dos enigmas que este tratamento produziu em mim? De um desejo de investigar as questes que ficavam sem respos ta - questdes sobre o autismo, sobre a psicose, sobre as possibi- lidades de intervengao da psica nlise... “Luz” para construir a posteriori um saber que nao se sabe - forma de tornar viva e pre- sente a psicandlise e o meu lugar de analista. Foi com isso que ele me deixou. Historia impactante que acrescenta enigmas sobre a sua pregnancia, sobre as inscrigdes psiquicas € sobre a repeticao na transferéncia. ‘uma suspeita de autismo - nao fala- va e funcionava através do corpo ‘materno. Quando, um ano depois desta sessito, ele interrompeu o tratamen- to, fez, na tltima sesso, um reen- contro com a sua histéria na andli- se - reproduziu, com uma seqiién- cia surpreendente, os jogos e brin- quedos que mais 0 ocuparam no trabalho, olhou € mexeu nos obje- tos da sala que com mais freqiién- cia tiraya do lugar... Guardamos tudo na caixa € ele se despediu. Estava indo embora e retornou. Acendeu a luz da minha sala - ape- Uma semana depois, converso com a mae desta crianca, Comento com ela 0 epis6dio da luz e digo- Ihe - nao sem certa surpresa para ‘mim mesma - que isso tinha a ver com ela. Ela se emociona, retoma varias situacoes em que o menino brinca de acender e apagar a luz e fala, entio, de uma situagio que nunca havia retomado: 0 pai deste menino, seu marido, havia mon do de leucemia, quando ele tinha 6 meses, O diagnéstico havia sito fei- to quando ela estava grivida. De- pois do nascimento cle Marcelo, 0 matido teve uma melhora surpreen- 22 dente - desapareceram varios sin- tomas fisicos e ele passou os dias brincando com o filho pequeno. A mae ficou desesperada. Um més depois de sua morte, ela estava sozinha com o bebé em casa, noite. Chovia muito € as luzes se apagaram. Ela tomou o bebé no colo, abragou-se a ele, chorou mui- to, entrou em pinico € rezou alto para que Deus fizesse a luz vol- tar. Historia impactante sem dvi da, que nao deixa de acrescentar enigmas sobre a sua pregnanci sobre as inscrigdes psiquicas e so- bre sua repeticao na transferén- cia Ney Ney est sentado em sua cama na UTI infantil de um hospital pui- blico. Toma a caixa de papelao que contém seus brinquedos, a maior parte deles trazidos pela equipe que trata dele. Escolhe uma carteira e arruma nela o di- nheiro que também ganhara du- rante estes sete meses dle intern: cdo. Olha-me e diz. que esti arru- mando suas coisas para quando for viajar. Vejo que ele se prepara para sair da UTI ¢, de fato, nessa mesma semana, ele, agora mais resistente para os riscos de infec- ‘40, € transferido para a pediatria de onde, algum tempo depois, vai para casa. Ele chegara ao hospital em estado muito grave. Fora atrope- lado por um caminhao, estava com 0 abdome aberto e com dificulda- de respirat6ria. Fui chamada dois dias depois de sua internagio porque os médicos se surpreen- deram com sua rigidez corporal ¢ com seus olhos arregalados ¢ as sustados - hi dois dias nao dor- mia. Quando chego perto do seu leito, ele est4 cercado pela equi- pe. Eu também me assusto, pen- so que esperam de mim um mila- Bre, © que eu nao sei o que Fazer Aproximo-me, pego a mao do me- nino que esta dura e fria e apre- sento a ele as pessoas que 0 ce cam, Explico-lhe por que esta ali € o que Ihe aconteceu... Digo-Ihe que todos esto preocupados por- que ele nao dorme; que eu imagi- no que esteja com medo, e tendo que tomar conta de tudo que Ihe acontece. Mas todos esto ali para cuidar dele e, portanto, ele podia descansar... Logo depois ele ador- mece. De fato, as palavras tém um efeito milagroso - verdade que nunca deixa de nos surpreen- der continuamente em nosso percurso como analistas. Algum tempo depois, estou atendendo este menino, que continua na UTI; uma erianga a0 lado de seu leito chora deses- mbora a enfermeira -la. Eu € ele olha- mos mudos para a situacao - 0 que me fez.ficar ali, quieta, ao lado dele, olhando a cena? Quando a crianga diminui a agi- tagao, ele me olha e diz: “Sabe, eu também fiquei muito assus- tado quando cheguei aqui!” E entao conversamos sobre sua chegada e sua permanéncia na UTIL O que me fez ficar quieta, a0 seu lado, penso eu, foi a for- ca da transferéncia que me sus- tentou no lugar de analista, Em- bora nto houvesse nenhuma p: rede que me impedisse de ir so- correr a outra crianga, nao era dlis- So que se tratava; 0 que se pa sou era algo que tinha € nao ti- nha a ver com a cena ao lado Situagées clinicas diferentes settings diferentes... O que eles nos evidenciam € que a psicandlise hoje, como na sua origem, nao se define pela uniformidade do ser ting. Seus pilares sto a existéncia do inconsciente - suas manifesta- ‘ges nos sonhos, sintomas, atos falhos, nas repeticées - 0 reconhe- cimento da sexualidade infantil, da repressio, da resisténcia, da transferéncia ¢ da possibilidade de cura pela palavral A preocupacao como futuro Num texto de 1926 -“A Ques tao da Andlise Leiga” - Freud afir- ma: a psicandlise se desenvolveu pouco a pouco, lutando longo tempo para construir cada pega, e a modificamos continuamente no estrito contato com a observacao: até que, por fim, ganhou uma for- ma que parece servir aos nossos propésitos... Nao posso garantir que essa forma seja a definitiva Interessa-me refletir sobre o futuro ou morte dos psicanalistas, pensando aqui nos dispositivos clinicos € sociais em que se desenyolve a sua acio. Eem 1925, ele termina sua “Autobio- ‘grafia” dizendo: “A palavra psicand- lise acabou adquirindo varios sen- tidos. Originariamente dava so- mente o nome a um método tera- péutico especial, mas, agora, pas- sou a ser também o nome de uma ciéncia, a ciéncia do Inconscien- te. Esta ciéncia nao é, em geral, paz de resolver certos proble- ‘mas sozinha, mas parece destina daa oferecer contribuicoes impor- tantissimas aos mais diversos cam- pos do saber. (..) Assim, pois, voltando um olhar retrospective sobre a obra de minha vida, pos- so dizer que fui o iniciador de muitas coisas ¢ o instigador de muitas outras, das quais dispora 23 © futuro. Nao posso, porém, pre- dizer se isso ser4 muito ou pou- co.” E dez anos depois acrescen- tou um pardgrafo final: “Tenho direito de formular a esperanca de ter aberto o caminho para um im- portante progresso em nosso co- nhecimento”. E, no post “Nao ha diivida de que a psicand- lise sobrevivera, pois tem de- monstrado capacidade para viver e desenvolver-se como um campo do saber e como terapia.”* Preocupaczio com 0 futuro? Sem diivida esta € uma questo para Freud, No “Futuro de uma Ilusio” ele nos diz: *O homem, em geral, vive como que ingenu- amente 0 seu presente, sem po- der dar o devido valor a0 con- tetido de sua época; € preciso ganhar distancia, isto € que 0 presente se transforme em pas- sado, para que se possa ter um ponto de partida para julgar o futuro (...) Quanto menos se co- nhece do passado e do presente tanto menos seguro seri fazer urna avaliagao do futuro”.’ Esta € também a questo que ‘nos toca neste momento. Neste sentido, e tomando como referén- cia a indicagio dada por Freud , parece-me pertinente retomar al- guns aspectos do momento his- t6rico em que surgiu a psicandli- see analisar algumas vicissitucles do seu desenvolvimento para que pos- samos, talvez, supor algo sobre o seu futuro. Virias questoes me nortearam neste ponto de partida: ha lugar, hoje, para o conhecimento pré- prio do campo psicanalitico? Qual a especificidade desse saber, vis- to que ele se infiltrou em outras Areas, como a psicologia, a psiqui- atria, a medicina, a arte, a litera- tura, o cinema... Que uso fizeram essas reas deste saber? Interes- -me, também, que deslindemos uma outra vertente do tema - nao is a pergunta sobre o futuro ou morte da psicandlise mas sim so bre futuro ou morte dos psica- TEXTOS nalistas, pensando aqui nos dis- positivos clinicos ¢ sociais em que se desenvolve a suia ago - institui- ‘des de formacio, instituigdes assis- tenciais, consult6rios privados... So- bre cada um deles haveria muito a ser analisado. Em geral estas perguntas sur- gem num contexto ligado a andli- se das transformagoes hist6ricas deste final de século e a certas ca- racteristicas que, embora no sen- do historiadores, podemos detec- tar: abolicao de fronteiras territo- tiais (vejam que esta é uma das questOes que levantei com relacao ao saber proprio da psicanilise quando se di a sua apropriagao por outros tertit6rios), guerras vio- Tentas pela manutengao de uma especificidade étnica, religiosa cultural; fome, miséria e desem- prego atingindo uma grande par- cela da populacao mundial. Na Franca, no dia primeiro de maio de 1996 - Dia do Trabalho - houve uma manifestagao significativa endossando as propostas de Le Pen, representante da extrema di- reita no pais, que defende a ex- pulstio dos estrangeiros, jé que cles tirariam as possibilidades de emprego dos franceses. Em $a0 Paulo estima-se um indice de 15% de desempregados... sem falar das chacinas ¢ outras formas de extre- ma violéncia. Do outro lado da moeda, como dois polos radicais, ha 4reas de intenso desenvolvi- mento e alta concentracao de ren- da, No campo das ciéncias, uma especializacio cada vez maior, 0 predominio da linguagem informa- tizada, a rapidez das comunica- des, a tentativa de acirramento continuo do consumo... Talvez a caracteristica mais marcante des- te final de século e que mais an- gusta tenha trazido a0 homem tenha a ver com a velocidade do tempo. Rapidez que se desfaz, por uma precariedade que Ihe é ineren- te - um modelo logo sendo substi tuido por outro, uma tecnologia cada vez mais avancada que torna sucata 0 antes construido - a pré- pria vida correndo o isco de ser assim entendida; a0 lado de esta- listicas que comprovam a longevi- dade cada vez maior do ser huma- no, uma idéia subjetiva de que 0 tempo passa muito rapido e de que © homem rapidamente se depara com a morte, Vi, hd um certo tempo, uma fai- xa de propaganda que me surpre- endeu: “A vida é reciclavel: doe seus olhos”, Mensagem contun- dente © angustiante ~ nao pude deixar de pensar no projeto do lixo reciclavel, na parcializacao do compo, na velocidade da perda da subjetividade - Vive-se/morre-se/ retiram-se os olhos... Vive-se/mor- re-se/retiram-se os olhos... isto podendo ser repetido indefinia: mente, como numa linha de mon- tagem automatizada, Ou esta outra, presente nos outdoors da cidade: “Um dia todos 08 compos serdo iguais. Aproveite enquanto o seu € diferente”. Na imagem um rapaz, no sei se me- lancélico ou assustado, e uma série de oss0s € caveiras avisando-nos que este sera logo 0 nosso destino, € que portanto € preciso aproveitar © pouco tempo que nos resta. De- morei para poder me dar conta do que se pretendia vender com esta propaganda, ja que a mensagem de precariedade e de morte me atingiu com mais intensidade. Freud ja ha- via destacado que para 0 doloroso enigma da morte nao ha nenhum balsamo € nem é possivel que ele venha a ser descoberto... Diante dessa inevitabilidade e dessa sub- mers no desamparo, a sobrevi- véncia narcisica tem sido insisten- temente buscada, ‘Mas, vejam vocés, eu havia in- troduzido a questio sobre os tem- pos de origem da psicanilise, e me rapidamente remetida para 0 momento atual. Paradoxo da tem- poralidade quando pensada a par- tir da ressignificacao, ou eco de varias falas de Freud que nos sur- preendem pela atualidade de sua 24 anilise? Selecionei algumas delas: “Parece estabelecido que nao nos sentimos bem dentro de nossa cultura atual; porém é dificil for- mar um juizo sobre épocas anteri- ores para saber se os seres huma- nos se sentiram mais felizes, em que medida, e se suas condigoes de cultura tiveram parte nisso (...) Como tiltimo trago de uma eultu- ra, porém sem duivida nao o me- nos importante, apreciaremos 0 ‘modo como se organizaram os vin Viens rapidamente remetida para o momento atual: paradoxos da temporalidade.., culos reciprocos entre os seres humanos; os vinculos sociais que eles estabeleceram como vizinhos, como dispensadores de ajuda, como objeto sexual de outra pes: soa, como membros de uma fami lia ou de um Estado. A convivén- cia humana s6 se torna possivel quando aglutina uma maioria mais forte € coesa que os indivi- duos isolados (...). Mas o ser hu- mano tem também uma boa dose de agressividade. Em conseqiién- cia disto, 0 outro nao é para ele somente um possivel auxiliar € objeto sexual, mas também uma tentacao para satisfazer nele sua agressio, explorar sua forga de trabalho sem o ressarcir, usé-lo sexualinente sem seu consenti- mento, despojé-lo de seu patrimé- nio, humilhd-lo, infligirlhe dor, manipulé-lo e assassina-lo, Em cir- cunstncias propicias, essa forca se exteriotiza e desmascara os seres humanos como bestas selvagens que nem sequer respeitam os mem- bros de sua propria espécie. (..) Na cultura de nossos dias, aquele que se esforca por manter e fazer valer 05 principios éticos poe-se em des- vantagem diante daqueles que os ignoram" Ou, entio, esta citagao que Freud toma de um de seus contem- pordneos: “Tudo se faz. depressa em estado de agitaclo: a noite se aproveita para viajar, o dia para os negocios; mesmo as viagens de I zer silo causas de fadiga para o sis tema nervoso... lutas politicas, reli- giosas, sociais... impdem ao espiri- to um esforgo cada vez maior, rou- bando tempo ao sono e ao descan- so. A vida nas grandes cidades tor- nou-se cada vez mais refinada e ‘mos pensar que, independentemen- te do momento cultural, o homem enquanto sujeito est4 sempre atra- vessado por um mal-estar que Ihe € inevitavel? A isso Freud nos respon- de de forma afirmativa. Umia breve andlise sobre a mo- demidade pode nos ajudar a situar melhor essa questio. Para Michael Léwy poucos conceitos sio tio am- biguos e polissémicos quanto este “Entretanto, 0 dicionario nos da uma indicac2o interessante: moder- no € 0 que “se beneficia dos pro- gressos recentes da técnica € da ci- Encia”, O conceito de modemidade estaria portanto estreitamente liga do ao de progresso, isto é, 8 valori- zacio positiva da novidade. Desde © século XVIII, o progresso por ex- celéncia € aquele que se manifesta na novidade industrial, técnica cientifica - assim como nas transfor- maces sociais, politicas e cultura correspondentes: urbanizagao, ra- cionalizagao, democratizagio, secu- larizacao, ete." 7 experiéncia contemporanea nos faz testemunhas dos efeitos desse progresso. A idéia de sujeito criativo fica secundarizada, submetida a um processo de destituigao e de esvaziamento, desagradavel... nas producdes cul- turais e na literatura se incitam os valores mais cruéis ¢ 0 desprezo pelos principios éticos e por todos 08 ideais”,? ‘Como vocés véem, essas fal ressoam em nés de uma forma mui- to familiar. Sera, entdo, que pode- A idéia de sujeito presente nes- sa concepgao € a do suieito criativo - “os individuos so chamados a se tomar “sistemas autopoéticos”, em continua recriacao e a proceder sem trégua para a reorganizacao coleti- va da desordem do mundo ¢ de sua propria vid Lowy la que um dos erf- ticos mais radicais desse conceito de modernidade € Walter Benjamin, ara quem 0 progresso esté marca~ do por catdstrofes - a exploragio mortifera da Natureza, 0 aperfeicoa- mento das tecnologias de guerra que provocam massacres continuos € inracionalidade fascista, Max We- ber aponta também para as contra- digdes e os limites da modemida- de, mostrando que a busca de cal culabilidade e de eficicia acarreta a burocratizagto, a alienacio, a coi- sificacao das atividades humanas, © desencanto com o mundo." Segundo Jacques Le Rider", Viena, bergo onde Freud construiu a Psicandlise, foi paleo, a partir da segunda metade do século XIX de uma série de mudangas politicas, culturais € sociais que conduziram a0 periodo da chamada “moderni dade vienense”. De 1890 a 1910, estendendo-se até 1938, Viena trans- formou-se numa influéncia tentan- do ultrapassar © conservadorismo que a afastava de outras grandes capitais européias, como Paris, Lon- dres, Berlim... Os pensadores triacos se voltaram para a anilise da interioridade, cultivando o indi- vidual a subjetividade. Viena do fim do século tem também um inte- resse na p6s-modernidade, por aquilo que desenvolveu como en- foque ctitico & propria idéia de mo- dernidade - a critica ao progresso guiado pelo racionalismo cientifico a demtincia da crise de identidade do homem moderno - € neste senti- do, se aproxima do momento que vivemos, A experiéncia contemporaine, p6s-moderna, nos faz. testemunhas dos efeitos desse progresso, idéia de sujeito como um ser criati vo fica talvez secundarizada, em fungao da pregnancia de um mal- estar mais intenso; a idéia de sujei- to encontra-se submetida a um pro- cesso de destituicao, de esvaziamen- to. Uma crise de identidade que leva © sujeito a se refugiar na ilusio da primeira saida encontrada - os re- EXT@S médios miraculosos, as religides, © consumismo, as terapias rpidas - ou 4 buscar uma valorizacio na tradicio, retomando a cultura dos pequenos agrupamentos. Toma-se assim mais conservaclor do que eriativo. O mmais provavel ¢ que as flutuacées histéricas levem a psicandlise a retornar periodicamente ao isolamento. A psicandlise, que se desenvol- veu como campo de conhecimento ho seio da modernidade, tem se- gundo alguns autores acompanh do em seu apogeu e em seu decli- nio 0 destino da prépria moderni- dade. Nos Estados Unidos, seu de- clinio se torna visivel a partir da década de 60, na Franga, a partir a década de 80, € no Brasil, a partir da década de 90, Otto Kemberg, psicanalista que ocupa lugar de destaque na psica- nlise americana, numa entrevista a revista Percurso realizada em mar- go de 1995", descreve a crise da psicandlise nos Estados Unidos como um efeito produzido desde a década de 60 com a incorporagio da psiquiatria pela medicina e pelo desenvolvimento de outras priticas terapéuticas de resolugio mais ime- diata, Fle ressalta também que nos paises onde a psicanilise tem se preocupado com suas aplicacées sociais © com suas relagdes com 0 meio ambiente, tem tido mais forca cdo que em paises onde vem se man- tendo mais fechada. Nao podemos nos esquecer de que nos Estados Unidos houve um desenvolvimen- to macico da Psicologia do Ego, com todas as criticas feitas por Lacan a esse desvio, j4 que ele descaracteri- za 0 que € mais proprio da psicani- lise e remete a um tratamento orto- pédico € adaptativo, Outra vertente para pensarmos © destino da psicanalise € o de sua institucionalizacao. Quando Freud retoma, em “Hist6ria do Movimen- to Psicanalitico”, a origem da Asso- ciao Psicanalftica de Viena - com- posta por um grupo de discipulos ‘que se reunia sistematicamente em sua casa, desde 1902, com 0 propé sito de aprender, exercer e difundir a psicanilise - destaca dois maus pressigios que terminaram por afas- Uilo desse grupo: 1, ndo conseguiu criar entre seus membros uma harmonia amis- osa que deveria reinar entre ho- mens empenhados numa mesma € dificil tarefa; 2, ndo pode evitar as disputas pela prioridade a que levaram tais condigoes de trabalho. Ese em Varios textos ele desta: ca, no que se refere A questio da formacao, a troca possivel e dese} vel a ser feita nas associagoes psi- canaliticas, nao deixa de visumbrar 08 riscos das desavengas, da buro- cratizacao, rigidez e autoritarismo dessas instituicdes, sendo ele pro- prio, algumas vezes, 0 pomo da dis- rdia de varias lutas fratricidas. Quando em 1910 se constituiu, por proposta de Ferenczi, a Associacao Psicanalitica Internacional, e Freud indicou Jung para a presidén: deu-se imediatamente, um mal-es- tar entre o grupo de Viena eo grupo de Zurique. Apenas quatro meses de- pois, Freud escrevia a Jung lastiman- do a prematuricdade deste paso. © movimento institucional ex- pandiu-se e no deixou de apresen- lar as contradigdes ja presentes na sua origem - sendo atravessado por varios tiscos: 0 desejo de saber transformando-se em desejo de po- der, ¢ 0 desejo de pocler em abuso 26 de poder; o desejo de conhecer em Ansia de se fazer conhecer, 0 desejo de criacao € invencao em valoriza- 80 defensiva da reprodugio do ‘mesmo - tentativa va de encontrar certezas num oficio onde a indeter- minacao € as incertezas estao sem- pre presentes, No entanto, estas transformacoes nao tém mio tinica; em certos momentos e em determi- nadas condicoes, talvez seja possi- vel inverté-las. Outra questo a ser analisada € a da incorporacdo ou substituigao da psicandlise pela medicina e pela psiquiatria, A psicandlise nasceu marcando uma ruptura com 0 saber médico da época ¢ Freud deixou cla- ro que ela se constituiu como campo proprio - “De forma alguma conside: ramos desejavel que a psicanilise sej fagocitada pela medicina e termine Por encontrar seu depésito definiti- Yo no manual de psiquiatria dentro do capitulo “Terapia”, junto a proce- dimentos como a sugestio hipnética € @ auto-sugestio... Merece um me- Ihor destino € confiamos que 0 teri." Aqui, suas expectativas nao se confirmaram, No entanto, parece- me muito pertinente a afirmagio de Jean-Paul Valabrega a esse respeito: “E possivel que, em sua forma (rela- tivamente) “pura” - 0 ouro puro, se. gundo a metifora freudiana - 0 exer- icio da psicandlise desaparega, sefa por decteto de um poder legal, seja através da integracio em algum sis- tema de assisténcia médico-social ali- as, tis exemplos jf existe efetiva- ‘mente em certos paises. Alguns che- gam. pensar que essa evolucao é inevitivel. No entanto, como o in- consciente no pode ser suprimido Por um governo, nem anexado a ‘uma nomenclatura, o mais provaivel € que as flutuagées da histéria le- vem a psicandlise a retomar perio- dicamente & situacio marginal, 20 isolamento, & quase-clandestinida- de das suas origens. © que niio se- tia, forcosamente, prejudicial ao seu futuro, mas antes a faria renascer, também periodicamente, da sua de- griddagao e dos seus vestigios."" Ocsvaziamento dos consult6rios -as butiques € 0s botecos Retomarei, agora, aquilo que, numa imagem pouco benevolente, anunciei como a morte dos psica- nalistas. O que se passa com nossa pritica? A queixa dos consult6rios vazios nao pode deixar de se fazer ouvir. Dificil nao ver também o au- mento considerdvel de softimento psiquico, Nesta andlise, ha que consi- derar, por um lado aspectos estru- turais € econémicos - a crise gra- dativamente crescente do lugar do profissional liberal no mercado de trabalho (situagao que atinge tam- bém a outras dreas) e sua incor- poracao em grupos institucionali- zados altamente competitivos Na psicandlise, essa incorporagao re- vela-se nao tanto por clinicas de tratamento, como, por exemplo na medicina, mas antes, por institui- c6es de formagao. Isto gera uma certa “especializagao" do mercado uma ponta que se dirige a uma clientela elitizada e rica, e outra que se ditige aos menos privilegia- dos e pobres - temos as butiques © 0 botecos.'* A insereao nas ins- tituigdes publicas - lugar possivel de atuacdo € que teve seu flores- cimento no final da década de 80, com a implantacao de novas p ticas de atendimento em Satide Mental - esta também em crise - aliés como todo 0 servigo pabli- co, com rarissimas excecdes. O Projeto PAS, no municipio de Sao Paulo, esta tendo conseqiéncias altamente destrutivas e negativas, tanto para o psiquismo dos pro- fissionais quanto para o reconhe- cimento possivel de uma hist6ria que vinha sendo construfda com muito investimento a partir dos anos setenta. Isto sem considerar- mos a arbitrariedade juridica de sua implantacao. Aos que ainda nao iniciaram sua pritica clinica ou estio no ini cio dela, resta &s vezes, 0 caminho da postergagao - a manutengao pro- longada dos cursos de formagio € especializacto - 0 estudo tedrico vindo velar as dificuldades com a pritica clinica - lugar radicalmente necessirio para se construir a fun- (co analitica. Outro aspecto da diminuigao na procura pela clinica psicanali- tica talvez tenha a ver com a cons- truco € com a pritica da propria psicandlise. A clinica inicial era a das neuroses; foi a partir da clini- ca com as histéricas que Freud de- senvolveu seu campo de saber Hoje, percebe-se uma mudan nessa demanda - hd um aumento das problemdticas narcisicas, das psicoses, dos sofrimentos corpo- rais, das depress6es crénicas - softimentos que remetem a um excesso pulsional que necessita da presenca de um outro que tor- ne possivel sua inscri¢3o e que requerem, muitas vezes, a criacao de uma modalidade diferente de trabalho. Embora Freud tenha teo- rizado sobre as psicoses, ele sem- pre afirmou a impossibilidade te- rapéutica da psicandlise nesse campo, jf que, segundo ele, nao era possivel a transferéncia. No entanto, tanto no campo das ps coses como de outras manifesta- es do sofrimento psiquico, mui- to ha a ser desenvolvido; €, a contrério do que Freud afirmava com relagao as psicoses, o analis- ta tem, fundamentalmente, como eixo do trabalho clinico, as indi- cagdes dadas pela transferéncia. Como nos diz Mannoni: “Foi ne- cessirio quase um quarto de sé- culo para que os analistas aceitas- sem a idéia (defendida por um Ferenczi) de que a pretensa ausén- cia de transferéncia do psicético cobria apenas, na realidade, a re- jeigao do analista (ou do médico) de penetrar no mundo do outro, seu paciente."'6 Sea situagao atual levou a uma busca desesperada de protecio, 0 futuro da psicandlise estar na possibilidade de marear a sua di- ferenca contrapondo-se as ilusOes 27 de cura e salvagao. Num mundo onde o narcisismo sofreu tamanha expansao, um campo ficou vazio - ‘© campo da palavra dirigida a um outro € 0 reencontro desta pala- vra dentro de nés como parte da- quilo que nos constitui - campo que, com todas as resisténcias, ainda, a meu ver, 0 lugar por €x- celéncia da psicandlis Notas 5. Feud, “A Questo da Araisetegs71925), (reas Compas, wok XX, Argenting, Amero, 1988, 198, Freud "Abiola (1925), op. 6. 5 Freud opt 66 8 Pre, op. tp. 6. 5. re "Outro deus tao” (1827 vo I, op. 5 6. SFr "0 nal sta na Culu(1950, opt, 7, WE 4898, Freud, *A Moral Sexual Gian {ideo Nervosene Modeoo" GB08), op. vl Xi p65. Mite Loy,“ Scola de Rankfut 3 Modem ‘de’, Newt Fstudee CRBRAP ot 32, St Pal, 192, p11 9. eaques Le Rien A Madeidade Vienense ¢as ‘redo, R), Ceo Bre, 193, 10 Mice Lowy. op. cp. 119 125, 1 ueques Leader, pc 12. Ott F Kerner, “Perspectivas Anis da Pica lise, Percaso tt 148P, 199, p 108. S-Freud,"A Questo da Andie Leg" (920, op. ip. 232 14, Jeu al Valabwega, A Formagao do Picasa, SSP, Marine Foes 1968p 15, Expresses ullzdas poe) AGullhon Albugue independents no esta “Peale dos Contos Polson ou Confit Protscnas da Pecan Ise in Picandler €Socteda elo Hoon, 16, Mase! Manon sorta como Re Ry, ors (Campus, 1982.1

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