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A FAMILIA DO PONTO DE VISTA PSICOLOGICO: LUGAR SEGURO PARA CRESCER? Rosa Maria Macedo Coordenadora do Nacleo de Familia e Comunidade da PUC-SP RESUMO Inicialmente, 0 texto apresenta uma discussao a respeito do con- Cito genéxico de familia no senso comum e no campo cient. Procura situar a familia na area da Terapia Faria, utlizando © roferencial sistémico com uma visdo construvstalconstrucio- rista e realizar uma andlise das transformagées quo a familia tem apresentaco a partir das mudangas contextuais. Usa como x0 norteador para esse fim universais como: ciclo vita, eth ‘dade, cultura, género ¢ nivel sécio-econémico. Conch ressal tando @ pecularidade dos padrées intoraconais da familia de cada um @ alertando o terapeuta para a nacessidade da cons- {tugao conjunta de altorativas dianto dos problemas que ela propria ndo conseguiu superar. CONCEITO DE FAMILIA — PSICOLOGIA — TERAPIA FAMILIAR, ABSTRACT ‘THE FAMILY FROM THE PSYCHOLOGICAL VIEW: A SAFE PLACE TO GROW? Initially, the text discusses the goneric of the family in the ‘ordinary sense and in the scientific field. it tries to situate the family in the area of Family Therapy, using systemic reference with a constructivisvconstructionist view and analyses the transformations in a family based upon changes in time and place. For this, universals such as the life cycle, ethnicity, ‘culture, gender, and socio-economic level are used as is guiding ‘xs, lt concludes by emphasizing te pecullarty to the family leractive standards of each one and alerts the therapist to the ‘need to build alternatives conjointy with the client for the problems she herself has not been able to overcome. Cad, Pesq., Séo Paulo, n.91, p.62-68, nov. 1994 ‘Quando no cotidiano se faz referéncia a familia, as Pessoas envolvidas na conversagdo compreendem ogo © que esté sendo referido. Isto é, hd um con- senso no que diz respeito ao conceito de familia, que implica a idéia de uma entidade composta de certos membros — pai, mae, filhos — com determinadas res- ponsabilidades — procriar e cuidar da prole. Em termos de estrutura e fungdo, entretanto, nota-se algo mais no imaginario coletivo: a atribuigéo familia de qualidades ideais que se reterem ao re- fagio seguro para onde se volta depois das batalhas do cotidiano — lugar de paz, amor e harmonia entre as pessoas, onde reina a camaradagem, a fratemni- dade. Na construgao das subjetividades, esse ideal de familia, mitficado através dos séculos, permanece for- temente presente hoje como aquilo que é desejavel Embora a experiéncia vivida no seu selo contradiga essa visio idealizada, ela se mantém como uma ex- pectativa, um modelo, um lugar seguro para crescer. Entre os especialistas do campo das ciéncias so- ciais e humanas, ha igualmente um consenso quanto ‘a conceituar a familia de forma genérica. Ela é vista ‘como unidade social cuja fungao 6 a socializagao das ccriangas por meio da educagao e da transmissao da cultura, portanto, um poderoso agente para manuten- 40 da continuidade cultural, isto &, um valor social Universal. Desse ponto de vista, 6 um dos organiza- dores da sociedade, na medida em que define os es: tilos de vida, dando substancia a acao. A permanén- cia desse modelo como valor qualifica e mapeia as relagdes sociais nas varias situagdes em que ocorre (Cameito, 1986). Assim, na sociedade em-geral, a familia é vista ‘como uma entidade que situa e legitima 0 individuo ‘em seu espaco social, tendo éssa funcao maior im- portancia quanto mais uma sociedade ¢ orientada para a familia, como a brasileira. Aqui, 0 modelo de familia que povoou até bem pouco tempo o imaginario dos cientistas sociais ¢ serviu de referencial para seu trabalho (familia patriarcal do Brasil Colénia) também 6 um mito, um grande arquétipo construido em nome das elites (Samara, 1991) Essa reflexo aponta para o cardter eminente- mente construido da realidade familiar, cujo conceito pode variar indefinidamente tanto em nivel do senso comum como dos especialistas, em fungéo do con- texto. Quando, porém, a questio for a familia como objeto de estudo e intervencao do psicdlogo, € ne- cesséria a explicitagao de referéncias conceituais, a fim de orientar o trabalho para que ele possa fazer parte do discurso dos especialistas que constituem essa comunidade cientifca, Sendo assim, uma definicgo genérica de familia @ dispensavel, na medida em que, como sujeitos da ‘experiéncia familiar, cada pessoa tem sua concepgéo Particular fortemente influenciada pela idealizacao. Quanto aos estudiosos do assunto, cada qual no seu campo de conhecimento atribui significados a familia, ou a define de acordo com as categorias operacionais condizentes com a sua perspectiva. A familia. Nesse sentido, pode haver tantas definigdes quantas categorias, bastando indicar com que critério foram escolhidas. Assim, familia tem sido definida en- quanto relagées biolégicas, de consangiiinidade, pa- drdes de residéncia, cédigos legais, depositaria da cultura, fungao socializadora, educativa e tantos ou- tros critérios prefixados de acordo com os objetivos de cada um, Mesmo que as construgdes tedricas dos especialistas no sejam totalmente compativeis com as concepgdes correntes de familia que eles proprios possuem, nao hé maiores dificuldades quando se dis- tingue 0 lugar de onde se esté falando. Grande problema pode ocorrer quando familia for tomada como uma realidade em si, independente do ‘sujeito que a concebe, como no paradigma positivista, © que teria como consequéncia imediata sua natura- lizagdo: familia 6 assim @ assim 6 como ela deve ser. Além da naturalizago que encara o fenémeno como expresso da verdade, outro problema pode ‘ocorrer quando diferentes modelos de discurso se cru- zam, como, por exemplo, quando familias € clinicos se encontram na terapia familiar. Ai, entdo, surge a necessidade das especifica- goes. A FAMILIA NA PSICOLOGIA A familia’ é, para a Psicologia, revestida de uma im- portancia capital, dado que é 0 primeiro ambiente no qual se desenvolve a personalidade nascente de cada novo ser humano. Assim, a familia ¢ vista como o pri- rmeiro espago psicossocial, protétipo das relagdes a serem estabelecidas como mundo. € a matriz da identidade pessoal e social, uma vez que nela se de- senvolve 0 sentimento de pertinéncia que vem com ‘© nome e fundamenta a identificagao social, bem ‘como 0 sentimento de independéncia e autonomia, aseado no proceso de diferenciagao, que permite a consciéncia de si mesmo como alguém diferente e separado do outro. O pertencer é constituido, por um lado, pela partcipago da crianga nos varios grupos familiares, a0 acomodar-se as regras, padres intera- cionais e compartlhar da cultura particular da familia, que se mantém através do tempo, como mitos, cren- ‘gas, habitos... (Minuchin, 1976), Jd 0 diferenciar-se 6 construldo, por um lado, pela cocupagao de diferentes posigdes no seu seio: 0 fiho também é lmao, sobrinho, afilhado, primo; por outro lado, pela partcipagao de grupos extrafamiliares: es- cola, clube, amigos, ¢ adquirindo toda a informagao sobre os diferentes grupos sociais, usos, costumes, através dos meios de comunicacao. Justamente por sua natureza, a Psicologia procu- ra definir @ familia diferenciando-a de outros grupos socials, pelo fato de os individuos que a compéem es- tarem ligados por fortes lagos de afeigao e lealdade, nfo sendo a afiiagdo passivel de demissao — nela 63 86 se entra através do nascimento, adogdo e casa- mento e s6 se sai pela morte (concretamente falando, Porque permanece na lembranga). Portanto 0 que caracteriza fundamentalmente a familia so as relagdes de afeto © compromisso © a durabiidade de sua permanéncia como membro. © propésito da familia seria prover um contexto que supra as necessidades primérias de seus mem- bros, referentes & sobrevivéncia — seguranga, alimen- tagao e um lar —, ao desenvolvimento — afetivo, cog- nitivo @ social —e ao sentimento de ser aceito, cul- dado e amado. Satistazer tais necessidades 6 fundamental para © desenvolvimento da personalidade e depende da capacidade da famflia para construir estrutura e rela- goes adequadas. Esta estrutura — que aqui se refere 40s membros que a compdem em termos de idade, sexo, ordem de nascimento e organizagtio — deve ter flexibiidade suficiente para atender as necessidades evolutivas de seus membros. Considera-se suticientemente boa a familia que prové um ambiente saudavel em termos do impacto das relagdes mae-crianca, pai-crianga, enim relagdes entre todos os que sao significativos, Dessa forma, a crianga terd na familia suficiente suporte e provimento afetivo (além, claro, do de subsisténcia), 0 que a toma um lugar seguro para crescer. Como objeto de estudo da Psicologia, a familia ‘até bem pouco tempo era vista como variavel inter- veniente nas pesquisas sobre relagdes entre pais e filhos, entre irmaos, entre 0 casal € suas conseqlén- cias para os demais membros (Macedo, 1993). A familia reterida geralmente a nuclear (pais, mae, filhos), sendo rarissimos os estudos que tém como objeto a familia extensa, sobretudo incluindo membros de geragdes anteriores (avés, por exemplo) a nao ser quando vivem na mesma casa da familia nuclear. E importante notar aqui a forga do ideal de familia de que jd se falou, pois, pelas préticas das re- lagées familiares, no Brasil, a convivéncia ou proximi- dade dos membros de diversas geragdes € muito grande, mas parece s6 chamar atengo nos casos em que as avés substituem as maes no cuidado da casa @ dos netos, como & muito comum nas familias che- fiadas por mulheres, uniparentais ou de baixa renda, no capitulo de cuidados altemativos da prole. Foi por influéncia da prética em Terapia Familiar que a Psicologia centrou seus interesses na familia como objeto, sendo hoje comum o estudo de padrdes, interacionais, sobretudo na Psicologia Clinica, que ul- timamente comega a oferecer uma produgéo acadé- mica regular nesse campo (Macedo, 1993). A ORIGEM DAS CONSTRUCOES SOBRE A FAMILIA MODERNA (© “sentimento de familia” (Ariés, 1973), t&o conhecido no século XX, resultou de uma transformagao da fa- milia que passou de realidade moral e social a reali- 64 dade afetiva ocorrida em fins do século XVIII e inicio do XIX, produto de uma revolugao qualitativa no ter- reno das representagdes mentais, ocorridas concomi: tantemente a outras importantes’ revolugdes sociais, econémicas e politicas da época. AA partir do século XVI, com 0 aparecimento do sentimento de infancia e com 0 advento da burguesia, delineia-se uma organizacao de familia nuclear, cen- trada na privacidade e na educagéo das criangas. Essa familia serviu de base para que “os tradiciona- listas do século XIX inventassem a conhecida familia patriarcal”, incluindo aqui Gilberto Freire, que descreve a tradicional familia patriarcal brasileira em Casa gran- de & senzala (Carneiro, 1986). Sao caracteristicas dessa familia: o amor conjugal € entre pais e filhos, a monogamia, a fidelidade, 0 cul- dado intenso da prole no sentido de protegé-la e edu- ‘cérla de acordo com os principios da moral, da higie- ne e dos bons costumes. Enfim, um lugar de refd- glo, de protegao, de lealdade e amor, respeito A au- toridade do pai, provedor @ responsavel pelo bem- estar da familia (Poster, 1979). Esse modelo, inicialmente restrito burguesia, passa a ser um ideal para a classe operdria apés 0 primeiro periodo da industrializago © se dissemina Como representago social da familia e modelo idea- lizado da mesma, DA FAMILIA GENERICA A FAMILIA DE CADA UM Consideradas de um lado as necessidades primérias do ser humano, em termos do seu desenvolvimento Psicolégico e, de outro, as caracteristicas da fungao da familia reconhecida como a unidade social respon- ‘svel pelo atendimento dessas necessidades, em ter- mos de prover um ambiente desejével para que esse desenvolvimento se dé, a questo que se apresenta &: como isso corre? Ou, dito de outra forma: se se pode falar gene- ricamente da familia em termos teéricos, quando ha intersecgao do dominio teérico com a pratica, seja em termos de intervengao ou pesquisa, é necessario con- siderar a familia de cada um, ou tipos especificos de familias, para tornar possivel essas tarefas. Entdo, de- ara-se com um sem-numero de dificuldades. Em pri- meiro lugar, é preciso saber a que familia se estd re- ferindo. Jé se viu que 0 conceito genérico de familia im- plica idealizagdes e normatizagoes que dao origem a mitos, crengas, expectativas que nao resistem ao olhar'mais rigoroso do especialista quando a toma ‘como objeto de sua pratica. A que familia referir-se? A familia nuclear: pai, mae, fihos? E avés, tios, ndo sao parte da familia, ‘como familia extensa? E as familias chefiadas por mu- lheres ou as constituidas pelo pai com os filhos (fa- milias uniparentais ou de pais singulares) como fi- cam? Como sao as familias de baixo poder aquisitivo Cad. Pesq. n.91, nov. 1993 onde a satistagao das necessidades de subsisténcia 6 dificil, as vezes impossivel? Pode-se falar numa familia brasileira? A Historia de vanguarda, segundo Samara (1991), j& mostrou que a familia’ patriarcal brasileira tipica’ é um mito, construido a partir de uma classe social reduzida, de uma reduzida regido brasileira. Além disso, dada a ‘enorme corrente imigratéria para o pais, como consi- derar as diferentes familias de origem japonesa, ita- liana, alema, polonesa e todas as demais? Nao se~ riam as familias atetadas de diferentes maneiras pelas crises econémicas, recessao, desemprego, falta de moradia, diferengas de classe e poder aquisitive? Se- ria a familia atual diferente da familia do pasado? Melhor ou pior? Supde-se que as grandes mudangas ocorridas nas ultimas décadas tenham influenciado diretamente a chamada familia tradicional no sentido da moder- nizagdo (Figueira, 1986). Entre elas so fundamentais as quest6es de género, envolvendo modificagdes na posigdio da mulher na sociedade e na familia, as re- lagdes de casamento, com a legalizacao do divércio, relagdes homossexuais, 0 comportamento reprodutivo que permite nao s6 0 controle da natalidade mas pos- sibilita a0 casal ter fithos se e quando quiser, a divi- ‘so do trabalho com a ocupagao do espaco profissio- nal pelas mulheres. Entretanto, 0 que mostram as pesquisas 6 a dificuldade do comportamento acompa- nhar a mudanga das idéias e da convivéncia do novo com 0 arcaico (Figueira, 1986). Todas essas questées apontam para a diversida- de da familia que vivida pelos sujeitos e reforgam a necessidade de se considerarem os arranjos fami- liares especificos ou a “familia & brasileira” no dizer de Samara (1991), que tem se dedicado a estudos das peculiaridades da familia nas diversas regides do pais no campo da pesquisa histérica A FAMILIA DA TERAPIA FAMILIAR Segundo uma viséio construtivista/construcionista, 0 processo de construgao da realidade se dé nas roti- ras de interagao e trocas sociais do cotidiano, no cur- so do ciclo vital de varias geragdes. Na pratica da intervencao terapéutica e/ou pre- ventiva é necessério levar em conta os construtos da familia, sua visdo de mundo e de si propria, que sero compartithadas no processo que implica a reconstru- ‘940 conjunta, terapeuta/familia, nao se esquecendo Que 0 terapeuta tem uma dupla visdo de si mesmo: como memibro de uma familia e como “expert’. (Reiss, 1981; Slusky, 1983) ‘A complexidade da tarefa ¢ maior quando as con- cepcées do especialista ndo se encaixam com 0 con- ceito das familias e as visdes de si mesmas que elas trazem para a terapia, embora possam até pertencer ‘ao mesmo segmento social, grupo econémico, étnico etc. A familia, © trabalho clinico com familias implica comparti- lar com elas seus constructos, compreendé-los, elu- Cidélos @ com elas co-construir visées altemativas, contextualizadas, promotoras de mudangas que sejam de moide a dissolver os problemas que fazem parte da histéria que contam Para tanto, 6 preciso que 0 terapeuta/pesquisador tenha uma visdo de mundo e uma postura estética ‘compativel com a diversidade, sem, no entanto, per- der de vista a unidade do fenémeno em construgao para néo cair em posiges nao éticas, indesejavels, como 0 absolutismo das ‘verdades" estabelecidas, 0 riilismo da impossibilidade de conhecer, o relativis- mo radical que prejudica qualquer didlogo e consenso por aceitar igualmente qualquer posigo sem compro- misso com nenhuma. A posigao ética desojavel é aquela em que, aceitando a multipicidade das inter- pretagées, assume-se uma postura flexivel frente as mudangas, na base da conversagao, da busca de consenso ou da negociagéo conscienciosa e respei- tosa das diferencas, para que haja oportunidade de surgimento do novo. ‘Assim, preconceitos, esteredtipos, idealizagées, também produto de construgées sociais da realidade, devem ser necessariamente reconhecidos como tais, para que 0 trabalho terapéutico e/ou de pesquisa se realize de maneira adequada e tenha resultados, como produgao de conhecimento, que possam ser va- lidados pela comunidade de pares. Isso ndo significa que 0 terapeutalpesquisador no possa ter um referencial tedrico que permita a de- finigao © operacionalizagao dos construtos fundamen- tais que orientam seu fazer, suas praticas, nas diver- sas atividades particulares em que se engaja. Espera-se, pois, que 0 especialista apresente alto grau de flexibiidade, abertura de visio e dominio da rea, além de clareza e responsabilidade pela posicao que assume, para poder participar do didlogo com a familia em consulta, por um lado, sem se perder ou ‘se deixar apanhar nas armadilhas do sistema terapéu- tico (familia mais terapeuta) e, por outro, com seus pares, explicitando com clareza os referenciais que permitam e direcionem as discussdes sobre as dife- engas de perspectiva. ‘Se 0 construtivismo/construcionismo como visao de mundo permite uma leitura da realidade que im- plica a unidade na diversidade, o referencial sistémico da subsidios para uma compreensao da estrutura da dindmica familiar, tendo como foco as relagées in- terpessoais Esse referencial, acrescido do desenvolvimento da Teoria da Comunicagao, dos Jogos e Tipos Légi- cos, além da compreensao da Cibemética, trou possivel a constituicao da familia como um dominio do conhecimento, um objeto de pesquisa e interven- go em si e ndo como pano de fundo, como apenas 6 lugar das ocorréncias e influéncias envolvendo pais, filhos, irmaos etc. Desse ponto de vista, a familia é um "sistema aberto em transformagao: quer dizer que est constantemente recebendo e emitindo inputs do © para o extrafamilar” (Minuchin, 1976. p.50). Isso sig- 65 nifica que se pode aplicar & familia todas as caracte- risticas dos sistemas, discriminadas a seguir ‘+ E um todo organizado cujas partes so interdepen- denies, isto é, na familia como sistema no se en- focam os individuos como tais, mas como “eus” re- lacionais interatuantes, constitutivos desse sistema familiar: cada um é filho, 0 irmao mais velho, mais ovo, pai, marido, mae. ‘+ Todo sistema @ formado de subsistemas que séo hholons, isto é, ao mesmo tempo que funcionam como parte de um sistema, possuem também as qualidades de sistemas, como por exemplo, o sub- sistema de irmaos, o parental, conjugal, subsistema masculino (pai e filhos) etc. * As relagées entre subsistemas so goveradas por regras e constituem padrées de interacao. Estes se- riam os modos resultantes das interagdes, tanto in- tra_como inter-sistemas, incluindo aqui 0 sistema social amplo (Minuchin e Fishman, 1976). *+ Portanto, as regras so formadas nas proprias re- lagdes, envolvendo todos os participantes; so re- correntes @ tendem & estabilidade, sendo mantidas por todo o sistema, * Como ha limites ou fronteiras entre os subsistemas, geralmente as regras para as relagdes através das, fronteiras so implicitas. * Como diz Minuchin (1976), as expectativas mituas entre os membros de uma familia so um dos maio- res freios a mudangas de padres comportamentais, , quando algum membro da familia quebra alguma regra jé estabelecida como padrao, ha reagées con- trarias no sistema, no sentido de resisténcia a mu- dangas. Da mesma forma, quando ocorrem situa- es dificeis, de desequilibrio, como uso de droga, Por exemplo, so comuns os apelos a lealdade fa- mmiliar ou cobrangas de ndo-cumprimento das expec- tativas quanto aos papéis desempenhados, como manobras para restaurar 0 equilibrio (situagaio co- nhecida, habitual). * A circularidade & uma caracteristica basica dos pa- drdes de interagao, isto é, tais padrées nao sao as, resultantes de sequéncias lineares de comporta- mento-causa/comportamento-efeito, mas sim de um onjunto de feedbacks recursivos, formando uma tela de relages em que as mesmas pessoas ocu- pam diferentes posiges nas relagdes com cada uma das outras, resultando padrdes transacionais diferentes, como as figuras de um caleidoscépio. Por exemplo, uma posigao de autoridade em rel 40 a um filho: nesta posigéo, ele deve ceder a mesma espécie de poder que provavelmente sente quanto interage com 0 itmao menor (Minuchit 1976) + Os sistemas tendem a estabilidade, enquanto, por outro lado, séo dotados de um grande potencial de mudanga. Estabilidade e mudanca dizem respeito a uma qualidade inerente dos sistemas, a auto-orga- nizagao, que, por sua vez, é expresso do alto po- tencial de flexibilidade, plasticidade e adaptabilidade que pode resultar em uma auto-renovagao criativa 66 do sistema. Ser estavel ndo significa ser estatico, pois 0 sistema flutua 0 tempo todo corrigindo os desvios através de mecanismos de feedbacks ne- gativos para manter a estabilidade dos padrées, ou ampliando os desvios, para criar novos padrées (Watzlawick, 1967). Esses dois tipos de mudanca 840 conhecidos respectivamente como mudanga de primeira e segunda ordens. + Estabelecer regras para limitar a hora de chegada de um adolescente em casa é uma mudanca de primeira ordem; dar a chave da casa e discutir prin- cipios de responsabilidade pessoal, quanto a sair de ou chegar em casa, 6 uma mudanga de segun- da ordem porque supée um salto qualitative em di- rego a autonomia do jovem. Todos esses principios sdo aplicdveis as relagdes na familia, sejam triangulagSes, aliangas, coalizao, re- {gras, tipos de comunicagao, mensagens, mandatos de iealdade, proximidade, distancia, repetigéo de mode- fos, enfim, toda a gama relacional MUDANGAS DA FAMILIA NUM MUNDO EM MUDANCAS ‘© modelo apresentado para a compreensdo da familia tem na mutualidade das inter-relag6es seu ponto-cha- ve. Em decorréncia, percebe-se imediatamente que a familia evolui junto com seus membros no decorrer do Ciclo de vida das geragdes sucessivas, assumindo Particularidades especificas em cada momento dessa evolugao, ‘Assim como a familia genérica muda e se adapta s circunsténcias historicas, caracteristicas sociais, econémicas injungdes de poder, também a familia de cada um est sujeita a todas as pressdes do con- texto em que se insere, além das pressoes intemas relativas ao desenvolvimento dos que a constituem. A mudanga de cada membro implica mudangas no sis- tema total Uma das perspectivas que orientam a compreen- ‘sd0 das relagdes familiares intra @ inter-sistemas, bem ‘como as possiveis agdes interventivas, 6 a de ciclo Vital. Suas raizes situam-se na Sociologia da Familia @ Psicologia do Desenvolvimento e tem a criagao dos fithos como elemento organizador da vida familar. ‘Seu valor consiste em oferecer um quadro de refe- réncia, ndo uma norma, baseado nas expectativas do cumprimento, pela familia, das tarefas evolutivas que asseguram 0 desenvolvimento “saudével’ de seus membros, nas diversas etapas da vida familiar Nesse proceso evolutivo, pode-se detectar uma série de pontos de transigao entre sucessivos esté- gios, responsdveis por um aumento de estresse que Permite falar em crises previsiveis, ¢ tornam a familia Mais suscetivel ao aparecimento de problemas que hem sempre ela consegue manejar. & fungdo do te- rapeuta ajudé-la a encontrar alternativas possiveis mediante a co-construgao de novas realidades. Cad. Pesq. n.91, nov. 1993 A dificuldade esté no fato de que os diversos membros da familia se encontram em pontos diferen- tes do ciclo de vida e cada virada desse caleidoscépio resulta numa mudanga na posigao de todos. Alguns Pontos de virada que tomam a familia mais vulneravel ‘so, por exemplo, 0 nascimento do primeiro filho, que transforma o casal em pais, seus pais em avés; 0 filho na adolescéncia que supde pais entrando na meia dade, tendo que tever seus valores quanto a sexo, profissao, projeto de vida; o casamento dos filhos, 0 nascimento dos netos, a aposentadoria, entre outros. Nao importa de que diregao venha o impulso de mo- dificagao, todos os subsistemas deve mudar quanto aos padrées interacionais, atitudes afetivas, dispensa de cuidados, autonomia, relagdes com a familia ex- tensa. Quando nao ha no sistema recursos suficientes, por uma série de razdes, para implementar as mu- dangas necessarias, aparecem os sintomas, O mem- bro com problema seria o porta-voz do sistema, sendo Possivel notar, em geral, uma igidificagao dos pa- does existentes, inadequados @ situagao, Nao se pode esquecer nesse processo evolutivo a influéncia de fatores “herdados’, isto 6, segredos, crengas, mitos, idiossincrasias familiares que vém de geragdes anteriores e que também sao passiveis de Provocar estresse, tendo efeitos altamente potenciali- zadores quando incidem em pontos de transigao, por si j@ estressantes. Acresconte-se a isso os fatores ex- ‘temos: crises sociais, desemprego, problemas ecor micos e doengas graves ou incapacitantes, morte pre- matura de um membro, catdstrofes da natureza como incéndios, terremotos, enchentes, que sao imprevisi- veis, porém iguaimente causadores ou potencializado- res de estresse. A literatura 6 rica em consideragdes sobre as ex- Pectativas ou tarefas evolutivas da familia, tendo como referéncia a familia de classe média, considerada, fre- qilentemente, como a continuidade natural da famflia patriarcal burguesa, centrada na criagao de filhos. Hoje, entretanto, com 0 aumento da expectativa de vida, a diminuigao da taxa de nascimentos, o tem- po dispendido pela familia com a criagao dos filhos, € significativamente menor, ou seja, enquanto no pas- sado essa tarefa ocupava toda a vida ativa dos adul- tos, atualmente pode ocupar menos da metade desse Periodo (Carter e McGoldrick, 1989). ‘As mudangas do papel da mulher na sociedade e na familia também geram grandes alteragdes no ci- clo vital da familia. Hoje, as funedes de esposa e mae que a envolviam prioritariamente deixaram de ser sua Prerrogativa exclusiva; hoje, a mulher procura firmar sua identidade pessoal além do reino do lar, buscan- do satistagéo na execugao de projetos pessoais que envolvam um trabalho profissional, uma carreira, Um dos casos mais freqiientes de familias de classe mé- dia alta com problemas sao as familias com dupla car- reira, pelas dificuldades @ confltos entre os papéis de ais, esposos e profissionais. Assim, as mulheres es- ao tendo filhos mais tarde, menos 'filhos ou mesmo optando por nao té-los. A familia ‘As separagées ocorrem com maior freqiéncia tan- to no inicio do casamento como na adolescéncia dos fihos, em geral a pedido das mulheres. Surgem entao ‘as familias unoparentais, freqlientemente chefiadas elas mes com os filhos, embora jé haja alguma in- cidéncia de pais que fazem questao de ficar com a guarda dos filhos. Em geral, as mulheres recasam menos que os homens aps uma separagao; no en- tanto, as etapas que antecedem um recasamento en- tre parceiros com filhos de casamento anterior e a propria adaptagdo a esse novo lar so problematicas especificas enquanto padres interacionais. © comportamento sexual dos jovens também tem se modificado @ com isso mudado as caracteristicas da chamada familia tradicional. Nao ha mais (pelo me- nos em termos de valor) o tabu da virgindade. A ati- Vidade sexual comeca mais cedo, ainda na adoles- céncia, ocorrendo muitas vezes gravidez e aborto, 0 que influi nos padres do casamento, tomando acei- tavel a convivéncia entre parceiros, sejam adolescen- tes, sejam adultos, desde que ele foi esvaziado de sua fungao procriativa. Cada vez mais as mulheres ocupam posigdes de chefia na vida profissional, bem como cargos politicos, © que muda também a configuracao familiar, com a introdugao de cuidados alterativos para a prole, maior responsabilidade dos pais frente as rotinas fa- miliares. Nos segmentos menos favorecidos da populacéo, ‘© nimero de familias chefiadas por mulheres 6 maior, observando-se nessa familia uma sobrecarga muito grande da mulher, tanto pela obrigatoriedade de pro- ver essa prole numerosa, como pela necessidade de abrigar maior numero de pessoas mais velhas sob ‘seus cuidados, bem como filhos jovens sem trabalho. Desemprego, ma nutrigao, maior nimero de filhos durante a adolescéncia, maior taxa de mortalidade in- fantil, maior instabilidade nas relagdes, abuso de dro- ‘gas, maior violéncia, estresse de moradia inadequada @ de dividas constantes, baixo poder aquisitivo, cons- tante falta de dinheiro e pouguissimas opgdes de lazer fazer com que 0 ciclo vital dessas familias seja uma seqdéncia de crises que nao raro ultrapassam os li: mites da capacidade adaptativa do sistema familiar. Além disso, problemas de discriminagéo, pouca oportunidade de educagao, ma assisténcia a satide & um ambiente que chega a ameacar a sobrevivéncia tomam essas familias sujeitos das agéncias publicas de assisténcia, casos em que muitas vezes 0 psic6- logo acredita nao ter 0 que fazer. Porém, se algumas necessidades evolutivas basicas foram atendidas, tais familias poderao se beneficiar de uma assisténcia psi colégica. A Terapia Familiar néo é panacéia mas pode aju- dar a conseguir um grau mais saudével de funciona- mento, nos limites das possibiidades da familia, € muito util, inclusive, para auxilid-la na relagéo com os meios assistenciais, a fim de receber adequadamente aquilo a que tem dreto, Sobretudo, a Terapia Famiiar 67 Pode ajudar a desenvolver mais 0 respeito por si mes- mo, diminuit 0 sentimento de desamparo, aumentar e apolar sua esperanca numa vida melhor. Enfim, entre as familias que vivem em diversos niveis de pobreza, certamente ha muitas que so dis- funcionais, multiproblematicas, no apenas pelo fato de serem pobres, mas pelas condigées ultra-estres- santes e ameacadoras de seu ambiente. Entretanto, 6 certo também que se encontra entre as familias de classe média (padréo) muitas que sao téo ou mais, multiprobleméticas e disfuncionais. Em decorréncia de tudo isso, a mais importante conclusdo @ que se pode chegar 6 que o terapeuta familiar precisa abandonar cada vez mais a idéia de uma famfia “normal” pela auséncia de problemas. Todas as familias t8m problemas mais ou menos sérios; todas as familias tm condicdes de enfrenta- mento das situagdes criticas da vida, maiores ou me- ores, porém, cada familia tom suas poculiaridades, ‘seus padrées interacionais especificos. A leitura sis- témica, de uma posi¢ao construtivista/construcionista, permite ao terapeuta familiar, como parte do sistema observante, construir com cada familia novas alterna- tivas possiveis, promovendo a mudanga da histéria que contam e que se baseia em como se véem e como véer 0 mundo REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ARIES, P. Histéria socal da crianga @ da familia. Plo de Janeiro: Zahar, 1973, CARNEIRO, M. J. A Desagradavel familia de Nelson Rodrigues. In: FIGUEIRA, S. Uma Nova familia? Pio de Janeiro: Zahar, 1086. CARTER, B., MCGOLORICK, M. (eds.). 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