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MARIA JANUARIA VILELA SANTOS — A Balaiada e a insurreiggo de escravos no Maranhao. Sao Paulo, Editora Atica, 1983. (Colegdo Ensaios, n° 101). 146 paginas A Balaiada — movimento revoluciondrio ocorrido no sertéo oriental maranhense nos Ultimos quatro anos do perfodo regencial (1838/41), que mobilizou ponderdvel massa das populagdes subal- ternas livres e que se alastrou pelo Piau/ e partes ocidentais do Ceard, Bahia e Pernambuco — jd suscitou varios tipos de andlises que procura- ram explicd-la 4 luz de perspectivas diversas. Assim, por exemplo, de acordo com o historiador Jodo Fran: cisco Lisboa, contemporaéneo do movimento, a Balaiada era uma revolugo popular cuja origem derivou da auséncia de liberdades po- Ifticas, dada a presenga de grupos conservadores no controle do poder politico provincial e do governo central. Para Caio Prado Jr; foi um movimento rebelde pouco articulado (das populagdes sertanejas contra a poderosa opresséio politica exercida pelos grandes senhores de terras), porque os grupos rebelados nao se encontravam organizados e defi dos politica e ideologicamente, como classes, na estrutura social in- clusiva. Finalmente, segundo Astolfo Serra, a Balaiada refletiu a rebel- dia “primitiva” das massas sertanejas “incultas’’ contra determinacdes de origem politica, que desafiavam as suas relagdes sociais internas, alterando-lhes 0 seu equilibrio psicolégico e, conseqiientemente, a nogo que aquelas populagdes possuiam de uma vida em liberdade. Com efeito, entre os muitos estudos sobre 0 movimento ba/aio hd, a uniformizé-los, a idéia de que aquela rebelido resultou da reagao das populagées rurais livres contra a opressiva exploragéo sobre elas exercida pelos grandes senhores de terras das regides onde o movimento ocorreu. Entretanto, poucos foram os autores que procuraram relacio- nar a Balaiada com a agudizacao das contradigdes da economia escra- vista, derivada sobretudo da pressdo inglesa sobre a produgao mercantil apoiada no brago escravo. E, por outro lado, embora a maioria das andlises sobre a Balaia- da tenda a privilegiar a agao das populagdes por ela mobilizadas, poucos foram os autores que procuraram articular aquele movimento com as insurreigées de escravos que ocorreram concomitantemente com aquela rebelido, visando apreender em que aspectos se aproximavam e se diferenciavam. £ verdade que Caio Prado Jr; em seu conhecido estudo Fvolu- 40 politica do Brasil e Outros estudos (publicado originalmente em 123 1933), apontou para a questo da ndo-articulacio dos ba/aios com os movimentos dos escravos como um fator que determinou, em certo sentido, 0 esmagamento relativamente facil de ambos os movimentos. Ou seja, procurou aquele historiador evidenciar que a Balaiada cons- tituiu um movimento auténomo das populagdes sertanejas livres, des- vinculado das rebelides de escravos que ocorriam, no mesmo momento, em varios pontos do Maranhio. Por qué essa desvinculagaio? A fim de apreender as similitudes e diferengas entre os dois movimentos, Maria Janudria Vilela Santos escreveu Tese de Doutora- mento sobre o tema, apresentada ao Departamento de Histéria da Universidade de So Paulo, e que agora aparece publicada em livro. Partindo da anélise histérica da formagao da sociedade e da economia escravistas do Maranhaéo — que resultou em um empreendi- mento de andlise inteligente —, a autora conseguiu demonstrar que ambos os movimentos somente serao apreendidos satisfatoriamente se percebidos como manifestac5es de reagdes das classes subalternas livres e dos escravos aos mecanismos opressores que eram especfficos da sociedade escravista. Por essa razo, pode a autora depreender que ambos os movimentos derivaram dos seguintes fatores principais: 1) das crises enfrentadas pela agro-exportagao maranhense; 2) das mudangas ocorridas na esfera politica, decorrentes da ampliactio do poder pol/tico local, determinadas pelo Ato Adicional; e 3) da con- tinuidade e reforgo do sistema de produgdo escravista, que aumenta- vam a pauperizagao das populagdes rurais livres ao negarem a estas oportunidades de sobrevivéncia através do trabalho. Em resumo, um elenco de fatores de ordem social, econdmica e polftica, atuando de forma combinada no interior da sociedade escravista, determinou o crescente empobrecimento material das populagSes rurais e exacerbou as violéncias praticadas contra os es- cravos, que reagiram a estas, intensificando os seus movimentos de fugas, saques e organizagao de quilombos. Portanto, conforme o indica a autora, a agudizagdo das con- tradigdes préprias da sociedade escravista foi o fator desencadeador da Balaiada e da insurreigao dos escravos. E, por outro lado, os fatores de mobilizag’o dos sertanejos e dos escravos para as suas lutas se caracterizaram pela manifestagao de atitudes diferenciadas desses agentes frente 4 agudizacao das crises, dado que estas os envolviam de modo diverso, em virtude das dife- rengas de suas situagdes de classe na sociedade inclusiva. Captando esse fator com rara acuidade, a autora péde detectar 124 que, dado isto, aqueles agentes desenvolviam concepcGes pol|(ticas e ideolégicas, bem como prdticas de lutas sociais diferentes, ou seja, com objetivos diversos. De um lado, os homens livres, mas continua mente pauperizados, lutavam por sua sobrevivéncia, sem propor modi- ficagdes substanciais nas relagdes de produgo dominantes; de outro, a populacao escrava procurava fugir a escravidao, regime que Ihe negava inclusive a condigaéo humana. Nesse quadro, os primeiros, “Esses milhares de pdrias sociais que viviam a margem da economia maranhense, indigentes mesmo, deviam a sua condi¢do de vida, entre outros responsdveis, 4 escravatu- ra." (p. 61). Quanto aos Ultimos, conforme observacio da autora, embora “‘lutando contra a escraviddo, 0 escravo nao chegava a lutar contra ela.” (p. 63). Por qué, entao, nao procuraram esses agentes aproximar-se em seus objetivos? Porque, conforme o aponta a autora. o préprio sistema escravis- ta alimentava, no campo ideolégico, uma ‘“‘tensdo latente entre as camadas pobres (e livres) e a escrava.” (p. 61), impedindo a aproxima- cao dos objetivos daqueles dois tipos de agentes na sua luta contra os excessos da pentiria (que incidiam diretamente sobre os homens livres) e da violéncia (praticada sobre o trabalhador escravo). Tal tensdo per- meava as relagdes entre esses dois grupos, diferenciando-os social- mente. Assim, por possufrem o estatuto de homens juridicamente livres numa sociedade escravista, os revoluciondrios balaios nfo po- deriam procurar, no escravo, um aliado para a sua |uta, embora este se apresentasse como um rebelado a época da Balaiada. Por outro lado, enquanto os homens livres procuravam extrair, nas suas lutas, condigdes materiais que Ihes assegurassem a sobrevivéncia sem profundas alteragSes na ordem escravista, os escravos negavam esta em sua totalidade, visto que tinham por objetivo a construgao de uma sociedade (quilombo) na qual inexistiria a escravidao. Esta observacdo permite que se admita ter sido a Balaiada um movimento revoluciondério dentro da ordem escravista. E mé ain- surreigio dos escravos contrastaria com a Balaiada, por constituir um movimento libertdrio tout court. Para ilustrar esta observagdo, pode-se recorrer a uma indagagao formulada com argucia pela autora: “Seria relevante para os negros comporem-se com os rebeldes livres?” (p. 91). E, admitindo que a Balaiada e as insurreicdes dos escravos constituiam movimentos paralelos e distintos ocorrendo em uma 125 mesma conjuntura, a autora, ao analisar os documentos baiaios, vi- sando estabelecer aquela distingao, observou que os mesmos, “embora permeados pelas reivindicagdes sociais, expectativas dos homens pobres, mesticos, caboclos e mesmo indios, no nos autorizam a reconhecer neles qualquer identificagéo dessa |uta com a do escravo.” (p. 90). Finalmente, comparando as singularidades ideoldgicas que caracterizaram ambos os movimentos, conclui a autora: “A insurreigéo dos escravos causou maior panico que a propria Balaiada, uma vez que ameacava as bases do sistema escravista. A populagdo livre, mesmo rebelada, era com relativa facilidade controlada, quer pela sua inte- gracSo na sociedade escravista, quer por mecanismos que possibili- tassem a ascensdo social, decorrentes da proposta de anistia e da pres- taco de servigos no combate aos negros rebelados.” (p. 107). © estudo de Maria Janudria Vilela Santos representa, sem duvida, uma contribuigdo importante para a revisio do movimento balaio, sobretudo porque coloca, no primeiro plano da cena histérica, as lutas escravas, que até ent&o a historiografia relegava a posicao secundéria. Embora bem realizado, contudo, o seu trabalho deixou de explicitar com maior rigor de detalhes a composi¢ao social dos diver- sos grupos livres envolvidos no conflito, sobretudo se for considerado que existiam diferenciacSes entre as categorias de produtores diretos nas plantagSes e nas fazendas de criago. Por outro lado, deixou de incluir, na sua pesquisa, os relatos de dois viajantes que estiveram no Maranhao & época da Balaiada (no caso, George Gardner e Daniel Kidder), nos quais se encontram interessantes observagdes sobre esse movimento, que reproduzem 0 pensamento dos grupos dominantes regionais e nacionais sobre a rebeli&o. Estas restricSes, todavia, néo sSo suficientes para comprome- ter um estudo como o empreendido pela autora, que pode ser incluldo entre as “revis6es” necessdrias que devem ser feitas sobre movimentos revolucionérios que marcaram o curso da historia brasileira e cujo exemplo estimula 0 avango da pesquisa histérica na comunidade aca- démica. JOSE DE RIBAMAR C, CALDEIRA Departamento de Sociologia e Antropologia Universidade Federal do Maranhao 126

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