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Realizacao editorial COORDERNACAO CONSELHO EDITORIAL Ana Paula de Freitas Adriana C. Omena dos Santos Aparecido José Cirillo PREPARACAO DE TEXTO Cesaria Alice Macedo REVISAO DE PROVAS Gazy Andraus Edinan J. Silva Glayson Arcanjo Lidia Maria Meirelles PROJETO GRAFICO E CAPA Leda Maria de Barros Guimaraes Eduardo Warpechowski Luciana Arslan Mourao Edinan J. Silva Mara Riibia Marques Miguel Rodrigues de Sousa Netto Raquel M. Salimeno de SA Renato Palumbo Déria ‘Todos os direitos reservados. E proibida a reprodugao parcial ou integral sem a permissio dos autores. Dados Internacionais de Catalogagdo na Publicagao (CIP) Maria Salete de Freitas Pinheiro - CRB6 - 1262 N241t Nas trilhas do acompanhamento terapéutico / Ana Paula de Freitas (organizadora) ; Ana Paula Cordeiro Scagliarini, Denise Decarlos, Mariana de Silvério Arantes (colaboradoras). - Uberlandia : Com. poser, 2015. 150 p. ISBN: 978-85-8324.039-6 1. Acompanhamento terapéutico. 2. Psicodrama. 3. Psicoses, 1. Freitas, Ana Paula de. Il, Scagliarini, Ana Paula Cordeiro. II) Decarlos, Denise. IV. Arantes, Mariana de Silvério. : CDU: 615.85 mado da cidade, nas paisagens psicogeogrificas © emociongi que percorremos com o Outro na ambiguidade da Diferenga ¢ da Repeticao. 0 que queremos todos parece ser 0 rompimento com a es. tagnagdo, com a espetacularizagao da sociedade, com a conser. va cultural, com a territorializagdes, com as dobras do Dentro, Queremos as intervengdes no possivel de nosso dia a dia; a avio efetiva em nossos cotidianos: no aqui e no agora de um tempo enlouquecidamente louco. Queremos microrrevolugies, Queremos transgressées da ordem instituida. Queremos rom. pimentos de fronteiras rigidas, Eo at caleidosedpio: 0 movimento que gera mudanga, Mudanga que gera abertura. Abertura que gera ampliagio. Ampliagio que quebra formulas criadas antes. Produgao de hovas pereepcées. Desvios, rupturas, corpografias e incorpora- ses. Das pedras, contas coloridas, pedagos de plastico, fios de tecidos, desertos. Respiragio, pensamento, dor, sorriso, con- fronto. Conhecimento, leituras, agdes. Produgao de um Outro. Corpo caleidoseépio composto de intensidades e afetos, Seria interessante entiio ram mutuamente e que, alé 8 cidades também ficam i acques, 2010, p. 114) considerar que corpo ¢ cidade se configw 'm dos corpos ficarem inseritos nas eidades, inscritas e configuram os noss0s corpos 120 puas cidades possiveis: arua COMO espago de intervenco no Acompanhamento Terapéutico ‘MaRIANA DE SILVERIO ARANTES ste texto apresenta duas histérias que configuram a rua Ee espago terapéutico, Numa alusio a histéria de Ali- ce no pais das maravilhas, batizo a primeira personagem com 9 nome da protagonista dessa trama (nome usado por Ana Paula Scagliarini em texto sobre essa mesma paciente — vide cap. 1). Alice tem 50 anos de idade e foi Co creas com. esquizofrenia. Nosso segundo personage & 0 Chapeleiro, wm homem de 61 anos de idade com diagnéstico de depressio ¢ Personalidade dependente. As historias transversalizam 0 tema da Deriva: o sair pela cidade com pouco destino ou sem henhum destino preestabelecido. Nesse momento, cons " Paciente como o tinico determinante dos marcadores. B dele o considero 0 ; se nas suas experién- ™apa psicogeografico construido com base nas . ompanhante Cias, Em ambos os casos, existe o embate entre acomp: dos constantemen- terapéutico e acompanhado, atravessa " aaa a encia, descrita pela * éncia maciga. Essa transfe ' wipe no Aeonrantnt ospital-Dia A suticos do Hi Equipe de Acompanhantes Terapéuticos do 121 casa (1997), acontece com frequéncia nos 2508 erOnieos em, asa (1997), vp paciente leva 0 at a ua Tuta, muitas Ve7es, exausiyg qu jo do vineulo. la manuteng! . “ acigamente, de um lado Alice me pede ‘Transferindo mé para ir embora; de outro, dos furiosos em minha secret combinados, age infantilmente dando birra quando proponho saidas pela cidade. O pais de Alice no seria o pafs das mara. vilhas se nao fosse pela loucura: 0 que 0 torna maravilhoso, o Chapeleiro me liga e deixa recq. aria quando nao o atendo, destaz Mas —convém frisar—, maravilhoso aqui nao se refere a algo deslumbrante, magnifico, belo e diferente. Vamos recordar a lendéria historia de Lewis Carrol (1964): durante uma brincadeira, Alice entra pelo buraco do Coelho ¢ cai no Pais das Maravilhas. B foi sem querer. (Talvez, quisesse.) Nesse lugar, ela experimenta o poder de ser grande fe ser pequena; e seu tamanho servird para alguma coisa, de acordo com o momento. Ela chega a questionar ao gato se ali naquele lugar todos sfo loucos; afinal, depara-se com bebés que se tornam poreos, lagartas falantes, gato risonho, lagarta monossilabica que fuma cachimbo de agua, Chapeleiro ma- Iuco, Esse iiltimo — pobre coitado — vive num mundo cinza, condenado a tomar o cha das seis na companhia da Lebre de Margo, uma maldigao do tempo da qual o Chapeleiro depende ea qual se entrega __ Por queo Pais das Maravilhas? Porque proporciona a De- riva —nele, cada um constréi seus mapas psicogeogréficos, conto ituags me sejam as situagdes que os surpreendem; porque ° pais de minha Alice —a cliente — 6 como o da Alice do filme louco, estranho, intimando-a a ser ora grande, ora peques* 122 porque dou esses nomes ficticios aos meus clientes, como o cliente Chapeleiro: melancélico, triste e maltrapilho, tomado pela maldig&o da repetigao e do medo do novo — como no li- vro —, & espera de que fagam por ele o que ele nao consegue: enfrentar 0 que viré depois das seis horas da tarde, Nessa histéria, Chapeleiro e Alice nunca se cruzaram, ex- ceto por mim, que ouso colocé-los em anélise; e isso é — sim —uma grande ousadia; porém, minha intengao é nobre: quem sabe consigamos visualizar aqui os pequenos detalhes que os tornam diferentes um do outro e parecidos com os persona- gens de Carrol (1964). Antes de seguirmos o relato dos casos, vou falar um pouco sobre 0 movimento Internacional Situacionista (IS). “A ideia de deriva e psicogeografia nasce nesse movimento, Internacio- nal Situacionista, cujas reflexdes giram em torno da necessi- dade de pensar e viver na cidade como uma construgao cole- tiva, e no como monopélio dos urbanistas e planejadores em geral” (Jacques, 2003, p. 21). A cidade situacionista se refere a construgao de situagées por cada individuo que nela circula, & “construgéo de ambiéncias momentaneas da vida, e sua trans- formagao em uma qualidade passional superior”. A psicogeo- grafia foi definida como o estudo dos efeitos exatos do meio geogrtfico, conscientemente pla- nejado ou nao, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos individuos, Ela seria entio uma geografia afetiva, subjetiva, que buscava eartografar as diferentes ambiéncis psiquicas provoradas ba sicamente pelas deambulagées urbanas que eram as derivas situacio- nistas. (p. 22). A uz de Jacques, entende-se a deriva como um modo de 123 cidade através da passagem répidg 4, Pe. Alesse enti, cexperimentar @ i estre por ambiéneias variadas, apropriando-se agsiny espago urbano, que miltiplo ¢ subjetivo, gE Possive), mapear a afetividade ao fazer esse andar. Voltemos aos casos! Alice teve sua primeira crise iden, fcada por volta dos 17 anos de idade. De famtlia abasiagy domina as regras de etiqueta, entende 0 que é chigue ga, esta na moda, o que é glamoroso — e 0 que nao 0 é. Bem, cla entende disso para os outros, ndo para ela, pois no consegys aplicar a moda, a etiqueta para ela mesma. Entende de gosios, dos melhores sabores, dos pratos mais finos, dos lugares mais clegantes, mas ela mesma ndo vive isso. Com muito custo con, cordou sair comigo ¢ com sua outra at. Quando saimos, deixou café na roupa e se lambuzou de chocolate, mas sabe escolher 9 melhor café, 0 melhor doce, 0 melhor croissant. Nao se liga em moda para si mesma, ndo combina roupas, nao usa bijuterias, nao penteia os cabelos — sai as vezes vestindo a roupa com que passou o dia todo, carregando no perfume franeés trazido da Europa pela irma mais velha. Isso basta para Alice! Ali- 4s, seu vinculo com essa irma é especial, intenso, a ponto de entristecé-la e transbordé-la de raiva e inveja quando a irma viaja. Dentro dela — estou certa —, as emogées sio cindidas e ambiguas: sente raiva e saudade, inveja e carinho pelas pes- Soas que a rodeiam; mas néo consegue distinguir ou dar nome a essas emogies © Chapeleiro mora hé seis anos na cidade de Uberlandia Mc), séo as de quem acabou de chegar por ali. Seu maior medo 6 “Tuvar a porta. Esta deprimido e diagnosticado pelo psiqui- 124 mas suas atitudes perante a cidade — parecem-me — tra com transtomo de personalidade dependente, Repete imi. meras vezes due quem 0 deixou desse jeito foram seu pai e a ex-esposa. Delega toda culpa pelos seus medos e seu fracasso dizendo que seu pai néo o deixava fazer nada quando nao lhe dava autonomia, nao o deixava. escolher, batia aos dois, crianga, sem dizer por que e nunca o reconheceu por nada, Na verdade, segundo ele, pai e filho nunca conversaram, nunca houve did. Jogo, em nenhuma circunstancia Para fugir do convivio com o pai — que seria muito frio e fechado —, casou-se e, de certa forma, deu a ex-esposa todo espago para exercer essa autoridade fria e perversa, I légico que ele se beneficiou desse vinculo, pois ela mandava em tudo, mas fazia tudo também, A ele estava delegada a fungdo de trabalhar para trazer dinheiro a familia; a ela, fazer compras, escolher a escola dos filhos, comprar roupas (para ele e para ela), pagar contas, levar e buscar, escolher para ele, querer ou nao querer para ele. Ele se separou e se deparou, pela primeira vez, com ele mesmo e com 0 mundo. Mas dessa vez 0 mundo nao veio em forma de pai nem de mulher autoritéria; veio na simples for- ma de mundo, que se apresenta nas sutilezas da cidade e no frenesi na vida em sociedade. Talvez fosse até mais facil se subjugar ao pai ou a ex-esposa do que enfrentar a cidade, que traz em cada esquina uma surpresa diferente, B, por ser ela, a cidade, imprevisivel, o fazia sentir quase sempre 4 deriva ao circular pelo espago urbano. Circulo com ambos por Uberlandia. Geograficamente, é a mesma cidade para ambos os casos; mas, psicogeograficamen- te, sfio duas cidades diferentes, nas quais tenho 0 privilegio de 125 sar experimento as duns psicoKeORrafias qe se orp, circul a minha psicogeografia em cada nova Situagio, Cady coma mais pereebo a importancia da vivencia situacionista da ig, de para o AT. Frayze-Pereira (1987) diferencia, No texto “Crise cidade: por uma poética do AT”, os termos flneur chofey, Flaneur é quem “caminha sem rumo pelas ruas, a meio can, iho do filésofo e do artista, que se alimenta da estética do ofs, nero, da sedugfio do transitério e do encantamento do chogue, do espetacular movimento das multiddes anénimas” (p, 28) Ele tem um olhar que transfigura a cidade em paisagem, Q chofeur 6 aquele que protagoniza a nova tendéncia do século XX: a rodovia. O caos do tréfego o leva a simples sobrevivéncia eA tentativa de manter a dignidade em meio a esse espaco ca- ético: corre, trabalha, busca provimentos materiais, num cielo que nao tem fim. fo homem do carro, do énibus, do transito; aquele que tem de operar a favor das maquinas, Se forem cabiveis em Alice e Chapeleiro essas duas defini- ges, entao ela seria o flaneur e ele, o chofeur. Sempre que sai ‘mos, Alice vai em ritmo lento e contemplativo, presta atengio s nuances, as mudangas que o chofeur jamais perceberia por viver em ritmo frenético. Hla sabe quando as vitrines mudam, quando novos espagos so inaugurados; sabe reconhecer a no- vidade de uma maneira leve e contemplativa. Nao trombamos com as pessoas nas ruas. Elas trombam conosco. Nosso ritmo, juntas, é lento e descompromissado, exceto pelo foco do proje- to terapéutico com ela: sair de casa e andar pela cidade. Em contrapartida, o Chapeleiro se parece com o chofeur porque Scompanha — ou melhor, tenta acompanhar — o tréfego da cidade. Seu caminhar é rapido e objetivo, tenso, ansioso. Den- 126 tro do Onibus, quase nao consegue esperar a parada, Nas ruas, quase voa para chegar ao destino. Tudo 0 que faz 6 como se fosse para ontem. Na verdade, seu medo de enfrentar o mundo 6 tamanho, que em rarissimas vezes ele consegue se entregar a0 movimento situacionista das experiéncias, Nesse andar pela cidade, construimos redes sociais impor- tantes em pontos estratégicos que ampliam o AT. Com Alice, transitamos por esse mundo das cafeterias, das lojas e dos shoppings. Em cada ponto, especialmente naqueles onde mais circulamos, ocorre 0 contato com pessoas que a reconhecem como alguém que sempre volta: um atendente, um gargom, um operador de caixa, Além disso, nas oficinas na clinica Trilhas, circulamos pelas clinicas: onde Alice faz vinculo com ou- tro paciente também esquizofrénico, com a secretdria, com as outras acompanhantes terapéuticas, Na clinica onde seu psi- quiatra a atende, ela se vincula a secretéria, com quem troca elogios por conta das roupas e dos acessérios, do cafezinho, nesse tiltimo espago também que ela troca experiéncias e so- nhos importantes com seu psiquiatra. Coloca-o em lugar pri- vilegiado de afeto: gosta muito dele, troca sonhos ¢ realizagbes com ele. Sai da consulta revigorada e cheia de projetos. O Chapeleiro também constréi suas redes: na farmécia, é chamado pelo nome, e os atendentes sabem informar se ele esta bem, mal, agitado, tranquilo. .. Ao tomar o énibus, 0 co- brador 4 sabe onde ele tem de descer. No mercado, o operador de caixa o cumprimenta pelo nome, e Chapeleiro expressa cer- to susto ao perceber que as pessoas o reconhecem. Na clinica do psiquiatra, também ja é conhecido: do médico — que o res- Peita muito —e das secretdrias. Porém, sua circulagéo por es- 197 sas odes 6 mareada pela timidez de Chapeleiro: frenétiog dentro, por causa da extrema ansiedade, e fechado por foxy Sorri timidamente como quem quer esconder os dentes, desyig o olhar como um erianga que se envergonha, talvez por nig saber ainda quem & E provavel que Alice nunca deixe o louco Pais das Maravi. Thas, convivendo com suas lebres e gatos risonhos, em paz, mag com algum conflito, porque desse pais ela nio sairé. Quanto ao nosso Chapeleiro, & possivel que tente abandonar a mal- digdo do ché das seis, a maldigdo do medo de sair de casa, da timidez que o toma e 0 condena a viver sempre como chofeur em situagio oposta contemplagéio. Entre probabilidade e a possibilidade, os dois encontraram esse jeito de circular, essa forma de ser transeunte pela cidade, essa maneira impar, em cada caso, de viver as experiéncias subjetivas que constroem a cada segundo suas psicogeografias. 128 "Deus € um grito na rua" 0 espago urbano e sua poténcia como possibilidade terapéutica ANA PAULA CorDEtRo ScAGLIARINT EK texto, produzido originalmente para 18 Congresso Brasileiro de Psicodrama, realizado em Brasilia, 2012, visa discutir a potencialidade terapéutica do cendtio urba- no na contemporaneidade, Para isso, estrutura-se com base em relatos de casos elinicos atendidos na modalidade Acom: panhamento Terapéutico (AT). 0 AT é uma intervengio em satide mental que preconiza a nfo segregagiio da loucura em espagos confinados. Tem como caracteristica principal um contexto que ultrapassa as paredes do consultério ou da ins- tituig: » para ampliar a circulagio e conexiio do cliente com os elementos do espago urbano tendo como referéncia a ética da hospitalidade, do acolhimento ao diferente (ao Outro). Moreno (1974), nos protocolos das psicoses, relata a utili zagio de toda a comunidade como egos auxiliares da loueura, com varias cenas de atendimentos acontecendo na rua ou na casa do cliente. Pretende-se fazer uma conexao do contexto social usado por Moreno no tratamento das psicoses com 0 es- 129

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