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Dados de Catalogacio na Pablicaglo (CIP) Internacional (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) anni, Octavio, 1926- labirinto latino-americano / Octavio lanni.— Petropolis, RJ: Vozes, 1993, Bibliogratia, ISBN 85-326-0975-9 1. América Latina - Condigbes econdmicas 2. América Latina - Condigdes sociais 3. América Latina - Hist6ria 4 América Latina - Politiea e governo | Thule. | 93-1022 cpp-980 {Indices para eatdlogo sistemstico: 1. América Latina : Condigdes sociais 980 2. América Latina : Historia 980 Octavio Ianni O LABIRINTO LATINO-AMERICANO Passos ApS a VOZES, Petrépolis 1993 2.0 Declinio do Estado-Nacio, 87g 3. Nagao e Continente, 99 Notas, 112 IV - O LABIRINTO DAS IDEIAS, 115 1, Caminhos da Ocidentalizacao, 115 2. Desencontro de Palavras e Coisas, 122 3. Mescla de Fascinio e Espanto, 125 4. Ecletismo e Exotismo, 130 5. Perspectiva Muiltipla, 134 Notas, 139 Nota Bibliografica, 141 PREFACIO A América Latina continua a viajar em busca da ocidentalizagao, procurando tornar-se contemporanea do seu tempo. Mas essa é uma viagem acidentada, somando conquistas e frustragdes, originalidades e distorgdes. Umas vezes, é a América Latina que acerta e desacerta, desvia-se e encontra-se. Outras, é 0 Ocidente que se torna préximo e distante, familiar e estranho. Vista assim, em perspectiva ampla, a hist6ria da América Latina parece uma hist6ria de encontros malogrados, realizaces desen- contradas. B claro que cada sociedade apresenta uma hist6- ria peculiar. A época colonial, da conquista a independén- cia, foi muito diversa para cada uma. Os séculos XIX e XX podem ser vistos como amplos cendrios de tropelias oli- garquicas, ensaios liberais, experiéncias populistas, reinci- déncias ditatoriais, revoltas populares, revolucdes democraticas, experimentos socialistas, golpes contra-re- voluciondrios, estratégias modernizantes. A pluralidade étnica, regional, cultural, sécio-econdmica e politica esté desenhada no mapa de cada nagio, com as suas singulari- dades. Mas também diz respeito ao conjunto da América Latina, compreendendo o continente eas ilhas. Em alguma medida tudo isso ressoa nas idéiasgle Indo-América, Afro- América, Ibero-América, Latino-Atmérica e outras; da mes: ma maneira que nas idéias de bolivarismo, monroismo, integragéo, confederagao, mercado comum, Hemisfério Ocidental, Nuestra América, modernizagao, ocidentaliza~ Ao e outras. Em muitos casos, ou quase sempre, esté em causa a viagem em busca do Ocidente. Um Ocidente real e metaf6rico, que tem oscilado pela histéria afora em ter- mos de nacionalismo e cosmopolitismo, tirania e democra- cia, capitalismo e socialismo. Uma viagem que é sempre busca e negagao, reconhecimento e recriacao. Sao Paulo, janeiro de 1993 Octavio lanni I INTERPRETAGOES DA HISTORIA 1. Histéria e Imaginagio A formacao do pensamento latino-americano pode ser vista como a hist6ria da idéia de América Latina, ‘Uma idéia que se organiza, desenvolve, rompe e recria a0 longo dessa mesma histéria. Em um nivel bem geral, diz respeito a paulatina construcao de uma problemética pr6- pria, na qual espelham-se dimensdes sociais, econémicas, politicas e culturais, ou histéricas, de cada nagao. Uma problematica que diz respeito a esta ou aquela nagio, nesta ‘ou naquela época, mas que expressa algo, ou muito, da América Latina como um todo, compreendendo o conti- nente e as ilhas. A idéia de América Latina pode ser vista como um produto e um ingrediente da histéria desse pensamento, tomado assim, como um todo amplo, aberto em movimento. A idéia de América Latina sintetiza diversos temas, distintas perspectivas explicativas, diferentes vi- soes da historia. E uma sintese de multiplicidades e con- trapontos. E como se um conjunto de autores, escritos cientificos, filos6ficos e artisticos, temas e interpretagées, nucleassem um pensamento que nao sé expressa, mas também constitui a América Lating. Um pensamento que se compée de tendéncias e contro¥érsias polarizadas em torno de fundadores, seguidores e precursores. Em certo sentido, formam-se escolas, familias ou estilos de pensa- mento, compreendendo ortodoxias, dissidéncias e oposi- Ges. Masas diversidades e os antagonismos nao impedem que todos, ou a maioria, polarizem-se no processo de construgao da problematica latino-americana como idéia e historia. Essa historia obviamente compreende as produ- Ges de filésofos, cientistas sociais, escritores ¢ artistas latino-americanos; além de europeus, norte-americanos ¢ outros. Desde sempre, hé certa universalidade no processo de formagao, crise e recriagio da América Latina. As cor- rentes de pensamento, nacionais ¢ latino-americanas, mes- clam-se todo 0 tempo com as teorias, os temas e as modas. vigentes na Europa e Estados Unidos. Mas as preocupa- 6es basicas do pensamento latino-americano e estrangei- ro nem sempre s4o contemporaneas, florescendo fenecendo na mesma época. Ha freqiientes descompassos. E comum verificar-se que 0 que foi moda em Paris, Lon. dres ou Nova Iorque torna-se moda depois, de modo cagicato, aqui e ali, na América Latina. Mas ha sempre um amplo intercimbio, compreendendo conceitos ¢ temas, sem 0s quais nao se esclarece satisfatoriamente a forma pela qual a idéia de América Latina se organiza, desenvol- ve, rompe e recria. Uma das preocupagées centrais desse pensa- mento € compreender 0 que 6 a América Latina, como se constitui e expressa, organiza e transforma. Trata-se de compreender como se dé a sua evolugao, progresso, de- senvolvimento, modernizagao ou ocidentalizacao, envol- vendo o vaivém das crises, golpes, revolucées, contra-revolugdes. Simultaneamente, busca-se explicar quando se traga e destraga o seu perfil; como dialoga com a Europa e os Estados Unidos; em que se constituem as 10 suas singularidades; quando se da a sua producao cultural mais original. Aos poucos, revelam-se os modos pelos quais a América Latina se pensa’. Mas é também claro que a idéia de América Latina entra na constituigao da realidade latino-americana. Hé um permanente contraponto entre o pensamento e a realidade, de tal maneira que o processo de pensar, as vezes, é também um processo de constituir, organizar, romper ou redirecionar as produgées e atividades cultu- rais, politicas, econémicas e outras. Ao descobrir as dire- Ses possiveis da realidade social, o pensamento também constitui essas diregdes. A realidade nunca permanece inocente do seu conceito. E ébvio que a idéia de América Latina nao se forma de modo continuo, harménico, trangiiilo. Ao con- trdrio, avanca e recua. Algumas contribuigdes novas sao questionadas, rechagadas. Outras, mais antigas, reapare- cem como se fossem novas, revestidas de outra linguagem O jogo das forcas sociais e as controvérsias tedricas provo- cam freqiientes reorientagdes. Aos poucos constitui-se toda uma problemitica latino-americana. Os desenvolvi- mentos da histéria e do pensamento sedimentam-se em temas e interpretac6es. A despeito das diversidades nacio- nais e de linguagem, ressoam semelhancas e convergén- cias entre o que se faz e pensa em distintos paises. Ha €pocas em que varios, ou a maioria dos paises, parecem viver e pensar problemas muito semelhantes, expressos em produsoes filoséficas, cientificas, literarias, artisticas. E claro que ha muitas diversidades. Cada pais possui uma hist6ria, um jogo de forgas sociais, uma com- binagao peculiar de formas de vida e trabalho, compreen- dendo racas, regides, culturas, tradigdes, herdis, santos, monumentos, rufnas, Hé sempre muita singularidade em cada pais, época, conjuntura. Mas também ha semelhan- un gr cas, convergéncias e ressondncias. Pai emerge a idéia de América Latina, como histéria e im&ginagao. A idéia de América Latina esta particularmente desenvolvida em algumas interpretagdes notaveis da pro- blemitica latino-americana. As obras fundamentais, algu- mas classicas, podem ser tomadas como sinteses de aspectos decisivos dessa problematica. Nao ha uma, mas varias interpretagdes fundamentais. As vezes so comple- mentares, convergentes. Sob certos aspectos, so mesmo contraditérias. Mas tomadas em conjunto, podem formar um sistema encadeado, oferecer uma imagem miltipla e nuangada do que tem sido a América Latina. Edo que pode ser. Uma parte importante do pensamento e pratica na América Latina organiza-se com base em interpretagoes sintetizadas nestes conceitos; civilizagao e barbarie, insta~ bilidade politica crénica, sociedade civil débil, Estado for- te, raga césmica, Nossa América, lutas sociais, revolugao burguesa, revolugao socialista, questao nacional. Elas in- fluenciam partidos politicos, movimentos sociais, corren- tes de opiniao puiblica, governantes, técnicos, militares, membros de igrejas, intelectuais e outros, latino-america- no§, europeus, norte-americanos e demais. Alias, seria possivel indicar a filiagao liberal, conservadora, democratica, autoritaria, fascista, populista, socialista ou outra, presente nesta ou naquela. Também seria possivel indicar a filiagao evolucionista, positivista, funcionalista, dialética ou outra, presente aqui ou ali. Real- mente, essas interpretagées sao distintas, as vezes comple- mentares, as vezes divergentes. Mas é possivel reconhecer que elas registram alguns aspectos importantes da proble- matica latino-americana. Mostram como a América Latina se pensa e constitui. £ possivel, ainda, reconhecer que essas interpre- tagdes expressam tendéncias, escolas, ou melhor, estilos de ie. 2 pensamento. A despeito do prestigio diverso de umas e outras, todas esto difundidas e influentes nos diversos setores das sociedades latino-americanas. Também em ou- tros paises, dominantes ou ndo, correm teses, explicagdes ou impressdes que ressoam uma ou outra dessas interpre- tagdes. Ha conceitos relativos a elas que se tornaram patri- ménio comum, geral. Seja por seus posicionamentos teGricos (evolucionista, funcionalista etc.), seja pelo politi- co (liberal, democrata etc.) uns e outros adotam esta ou aquela linguagem. Acontece que, em cada interpretacdo, ha toda uma imagem dos fatos; uma explicagao da reali- dade; um estilo de pensar a sociedade, 0 jogo das forgas sociais, os movimentos da histéria Sim, as interpretagdes da América Latina, vistas assim, em perspectiva ampla, correspondem a estilos de pensamento. Expressam distintas visdes da sociedade, na- $40, historia. Sob certos aspectos, expressam diferentes vis6es do mundo social, no sentido de que alguns dos seus adeptos compreendem também outras realidades, coisas, situagées, idéias, a partir delas. Em certos casos, sio toma- das como referéncia constante e geral, tanto a nivel do pensamento como da prética. Para alguns, a hist6ria da América Latina articula-se fundamentalmente segundo o contraponto “civilizagao e barbérie”. Outros imaginam que a “instabilidade politica crénica” é inelutavel. Tam- bém hd os que compreendem a “barbarie” e a “instabilida- de” em termos de “lutas sociais”. E assim por diante. Nao é 0 caso, agora, de esclarecer onde pode estar a “verdade”, quais os fiapos de verdade ou equivoco dispersos nessas interpretagdes. Seria necessario trabalhar um pouco mais cada uma e todas para que o balango critico se mostrasse verossimil, convincente. Mas j4 € possivel intuir um pouco. A seqiiéncia das interpretagdes e a forga de cada uma, enquanto dilema, equivoco ou verdade, permitem descobrir os lados principais da problematica, ‘0s movimentos fundamentais dessa hist6ria. 13, 2. Civilizagao e Barbirie Se fosse possivel dizer qual é 0 tema mais fre- qiente e influente do pensamento latino-americano, mui- tos concordariam com o contraponto civilizagao e barbarie. Ai retinem-se intelectuais e politicos latino-ame- ricanos, europeus e norte-americanos. Uns pelo exotismo da f6rmula, outros pela verdade que imaginam que ela sintetiza. Mas pode-se falar naqueles que tomam esse con- traponto como um desafio a ser superado, como teria sido a intengao de Sarmiento quando publicou Facundo (Civili- zacién y Barbarie), em 1845. Desde os primeiros momentos da formagio dos estados nacionais no comeco do século XIX até a atualidade, jé nos fins do XX, a formula sinteti- zada por Sarmiento continua a ser freqiiente e influente. Mudamas linguagens, os ingredientes hist6ricos, as forgas sociais, os personagens, as conotacdes europeistas ou ame- ricanistas; mas prevalece o contraponto”. Uma sociedade nacional atravessada pela civili- zagao e a barbarie, compreendendo os desencontros entre cidade e campo, costa e serra, branco e mestico, trabalho e preguica, compostura européia e rusticidade gaticha, libe- ralismo e caudilhismo, direito ptiblico e violéncia privada, centralismo constitucional e federalismo oligarquico, essa ainda nao é uma sociedade nacional. Os localismos e pri- vatismos, vigentes em segmentos mais ou menos amplos dela, impedem a estruturacao da sociedade civil, a organi- zagao da representacao politica, 0 desenvolvimento das capacidades produtivas, o aperfeigoamento das institui- ses sociais, politicas, econdmicas ¢ culturais, a estrutura~ 80 do Estado nacional, A barbarie, em geral, é a do caudilho, cacique, coronel, gamonal. Ele impede ou distorce a generalizagio dos institutos juridico-politicos constitucionais, o livre flu- xo das mercadorias, gentes e idéias, a expansio das forcas 4 econémicas, a formalizagao das relagdes de produgao, a emergéncia da cidadania. As vezes, a idéia de barbarie esta acompanhada do preconceito racial, darwinismo social, quando se crimi- nalizam as reivindicagdes e os protestos de setores popu- lares do campo e cidade, envolvendo o indio, mestico, negro, mulato e branco, todos trabalhadores bragais. Bar- barie reforcada todo o tempo pela idéia de que o barbaro € aquele que pertence a outra casta, a outra classe, aos setores subalternos do campo e cidade. E mais barbaros, ainda, porque reivindicam, questionam, protestam, lutam. Sob varios aspectos, barbaro é 0 outro. Sao muitos, no passado e presente, que pensam © agem em termos de civilizagao e barbarie. Essa é uma formula bastante influente em meios intelectuais, politi- 0s, militares e outros, latino-americanos, europeus e nor- te-americanos. No entanto, poucos colocam-sé as relagées reci- Procas entre os dois pélos do dilema. Nao se interessam pelo contraponto escondido na oposigao. Contentam-se com a impressao de que se trata de dualismos, dualidades basicas ou estruturais. Como se fosse possivel 0 arcaico sem 0 moderno, a cidade sem 0 campo, a compostura constitucional na capital sem a violéncia aberta no campo, serra, pampa, sert4o. Como se fosse possivel a prosperida- de, conforme o ideario liberal, sem a exploracao do traba- Iho na industria e agricultura; o Estado de direito sem 0 monopélio da violéncia organizada e concentrada da so- ciedade. Aquele que imagina que barbaro é 0 outro, esque- ce que eu nao se basta por si, que o eu depende do outro; que o civilizado tem raizes no barbaro. O contraponto esta em quea civilizagao produz.a barbarie, ambas engendram- se reciprocamente, uma inexiste sem a outra. Ao menos até esta altura da historia. 15 A nacao latino-americgna caracteriza-se por uma instabilidade politica crénic&, reiterada, recorrente. Uma instabilidade freqiientemente acompanhada de vio- Iéncia e de alteragdes bruscas de diretrizes econdmicas, sociais e politicas. As vezes, também as diretrizes culturais modificam-se de forma drastica. A despeito dos principios constitucionais, da estrutura dos partidos politicos e dos compromissos internacionais, a instabilidade manifesta-se com mais ou menos forca, ao longo da histéria nacional. Hi paises cujas historias est’io marcadas por dezenas de golpes de Estado, revolugées e contra-revolugdes, bem como constituicdes, governos com mandatos interrompi- dos, ditadores civis e militares; proclamando a defesa da democracia, o combate a desordem, pobreza, desemprego, marginalidade; a vigéncia dos valores ocidentais e cris tos". Em geze!, essa instabilidade politica é considera- da congénita, inerente a cultura politica latino-americana. Alguns referem-se a persisténcia e ao predominio do pa- drao patrimonial de mando, propriedade, governo. Um patrimonialismo no qual o publico eo privado mesclam-se todo 0 tempo, segundo os interesses dos grupos dominan- tés. Os grupos dominantes seriam oligarquias que contro- lam 0 poder econdmico, politico, militar, religioso, cultural; ao menos na escala suficiente para terem 0s seus interesses garantidos. Nesse ambiente, os setores populares do campo € cidade dispdem de reduzidos espacos de agao e reivin- dicacao. Os padrées e valores oligarquicos permitem o favor, 0 clientelismo, a protecao, a benevoléncia. Muito se pode arranjar por esses meios. Mas nada se permite por intermédio do jogo politico formalmente organizado, em termos de sindicatos, partidos politicos, eleigdes, represen- tacdo, legalidade, legitimidade, negociagio em condicdes juridico-politicas de igualdade. 16 Na prética, tendea ser cada vez mais despropor- cional 0 volume das reivindicagdes dos setores populares ea capacidade de atendimento dos que mandam. As téc- nicas oligérquicas ou patrimoniais de clientelismo nao absorvem o volume ea gama das reivindicagées, protestos, revoltas. A auséncia de meios formalizados em constitui- $40 e cédigos, elaborados em moldes democraticos, ou a auséncia de uma cultura politica democratica sedimentada em valores e praticas, impedem a solugao pacifica das controvérsias entre setores populares e dominantes. Esse o contexto da instabilidade crénica, congé- nita, violenta, em geral acompanhada de alteracées brus- cas em diretrizes econdmicas, sociais, politicas e culturais. Acontece que toda interrupcao das regras do jogo politico implica em rearranjos no bloco de poder, em renegocia- Ges entre setores dominantes nacionais e estrangeiros. As press6es de setores populares do campo e cidade nunca se resolvem sem que os préprios grupos dominantes se rear- ticulem, recomponham as suas aliancas e os seus interes- ses. Ai entram também as altas hierarquias militares e da Igreja Catélica, além de intelectuais preparados para escre- ver 0 discurso do poder. Essa é uma historia longa e complicada. E ver- dade que a instabilidade politica é crénica, recorrente. Mesmo os paises que “amadureceram” mais cedo, como a Argentina, o Uruguaieo Chile, “voltaram’ a instabilidade, com outros ingredientes. Em 1989 Costa Rica luta brava- mente para preservar sua “excepcional” democracia. Ten- ta resistir as presses de setores internos ¢ norte-ame- ricanos interessados na contra-revolucao que combate 0 governo sandinista da Nicaragua. As longas décadas de “democracia unipartidaria” mexicana estdo atravessadas por irrupgées brutais, nas quais se sacrificam setores po- pulares rurais e urbanos. A maioria dos observadores reconhece que a “revolucao institucionalizada” chegou ao fim. Ww sa Simultaneamente, os egocion vao bem. De par- em-par coma instabilidade politicd recorrente, a economia prospera, a industrializacao substitutiva de importagoes caminha, as multinacionais realizam investimentos e asso- ciagdes com empresas nativas e governos nacionais. Uma historia de instabilidade politica congénita é também uma hist6ria de desenvolvimento e diversificacao da economia, com bons negécios. Vista assim, em perspectiva ampla, a instabilida~ de politica funciona. Isto é, prejudica a sedimentacao da cultura democritica, dificulta as reformas sociais, retarda o desenvolvimento cultural, mas nao impede a realizagio de bons lucros. Dafa hipétese de que a instabilidade é uma técnica politica recorrente, crénica, eficaz e conveniente. Permite 0 uso periédico da violéncia, institucionalizada ou nao. Bloqueia o ascenso popular e garante a continuidade dos negécios. Em nome da paz social, ordem e progresso ou seguranga e desenvolvimento. 3. Ocidente e Oriente - A sociedade civil € debil, pouco organizada, incapaz ou anarquica. Alega-se que as elites nao tém sido capazes de afirmar-se sobre 0 conjunto da sociedade, por amorfa. Mais freqiientemente, diz-se que as massas, 0s trabalhadores do campo e cidade, sio pouco organizados € responsdveis politicamente. Alega-se que 0 povo nao sabe votar. Os setores médios nao estariam isentos das mesmas limitagGes. As vezes, a explicagao sobre a debili- dade da sociedade civil menciona o indio, mestigo, negro e mulato, ou a mesticagem, por suas formas de vida e trabalho divergentes, diferentes das racionais, modernas, produtivas, que interessam & empresa, ao capital. Nesses casos, evidencia-se um racismo velado, ou mesmo explici to, tentando reforgar a explicagéo sobre as limitagées da 18, sociedade. Em geral, 6 0 povo que esté compreendido nessa idéia de sociedade. A partir de diferentes argumen- tos insiste-se na tese de que a sociedade 6 pouco capaz.¢, portanto, o Estado deve ser forte. Nessa interpretacao, a contrapartida da fragilidade ou incompeténcia da socieda- de civil é 0 Estado autoritario, abrangente, sob governo civil ou militar. Atribui-se a sociedade como um todo, ou ‘em seus grupos e classes sociais constituidos por trabalha- dores, a responsabilidade pela prevaléncia da antidemo- cracia’ A debilidade da sociedade civil manifesta-se sig- nificativamente nos partidos politicos. Devido a precarie- dade da cultura politica do povo, sua escassa vivéncia do jogo politico formal, tendo em conta a prevaléncia do publico sobre o privado, os partidos pouco representam, ‘enquanto instituigdes politicas intermediérias, por meio das quais articulam-se os cidadaos e © Estado. Os partidos, ao longo da histéria latino-america- na, seriam personalistas, caudilhescos, clientelisticos. Tan- to os antigos como os recentes, a direita, no centro e A esquerda. Seriam pouco estruturados, sujeitos a influéncia de personalidades fortes, coloridas, demagégicas, caris- miticas. Nos processos eleitorais e nos governos, nos po- deres executivo e legislativo, em geral predominam chefes, caudilhos, caciques, coronéis, gamonales ou oligar- cas; em lugar de programas, plataformas. O clientelismo, favoritismo, paternalismo, cartorialismo subsistem além do interesse ptiblico. Os partidos podem chamar-se libe- rais, conservadores, blancos, colorados, auténticos, orto- doxos, radicais, trabalhistas, justicialistas, nacionalistas e outras denominagées, mas tendem a ser oligarquicos, per- sonalistas, caudilhescos. Tanto assim que os membros dos partidos, ou eleitores, definem-se como battlistas, callistas, cardenistas, irigoyenistas, peronistas, getulistas, velas- quistas, muiozistas, gaitanistas e assim por diante. 19 Aos poucos, impée-se a jdéia do Estado forte como indispensavel & organizagao ‘ao desenvolvimento da sociedade. Diante das limitagdes desta, do povo, cida- dao, grupos, classes, movimentos sociais, partidos politi- cos, impée-se a urgéncia e vigéncia do Estado abrangente, forte, desenvolvimentista, industrializador, modernizan- te, dirigente. Como a analise da sociedade civil é insatisfa- téria, reifica-se o Estado. Em parte, essa questo tem sido colocada em termos gramscianos. A sociedade latino-americana seria de tipo oriental, pouco estruturada, portanto organizada desde cima por um Estado forte, impositivo. Ao passo que © tipo ocidental compreenderia uma sociedade articulada, forte, expressa em um Estado que a representa e sintetiza’. Cabe lembrar que o Estado herdado do colonia- lismo jé era impositivo, predominante. A administracio colonial j4 tinha criado as premissas do poder estatal abrangente. A longa tradicao de debilidade da sociedade civil coincide com a longa tradigo do Estado forte. O Estado forte, centralista, que se impée a todos, seria uma heranga antiga, remota, ibérica. Desde os tempos. coloniais ter-se-ia formado nos pafses da América Latina unfa tradicao, ou vocacao, patrimonial, que estaria subsis- tindo e renovando-se nos séculos XIX e XX. Todos seriam herdeiros do Estado absolutista ibérico, espanhol e portu- gués. As ordenagées filipinas, manuelinas, pombalinas e outras seriam um distante e remitente tecido escondido nas estruturas de mando e desmando que atravessam regimes, governos, formas de Estado. Colocam o século XX diante dos mistérios da Contra-Reforma, do despotismo. As raizes distantes, monérquicas, absolutistas, ibéricas, de remolas tradigées, continuariam a ser a principal fonte de legitimagao de governos, regimes, formas de Estado. A reiteragao de golpes e contragolpes, 0 conti- nuo desfazer das experiéncias democraticas, a periédica 20 revalorizacao da cultura politica autoritaria, a desqualifi- cacao dos movimentos sociais e partidos politicos de base popular, a resisténcia as reformas sociais, tudo isso teria algo a ver com a tradigao, o pretérito. £ como se o presente, os vivos, estivessem ex- piando castigos ou glorias antigos. Toda luta democratica, todo protesto popular, a longa histéria de lutas sociais populares de base agréria e urbana, tudo isso ficaria reco- berto por um destino tracado nos tempos antigos. Na América Latina, o peso da antiga tradigao distante, dos colonizadores e escravocratas, ressurge € revive nos dita- dores civis e militares que povoam o século XX. Um fata- lismo supra-hist6rico. 4, Raga Césmica Foi no século XX que surgiu a idéia de raca césmica. Comegava-se a conferir alguma dignidade a po- pulagao de trabalhadores do continente e das ilhas, com- posta de indios, mestigos, negros, mulatos, brancos de diversas procedéncias, hindus, chineses, japoneses e ou- tros. Foi principalmente a raiz da Revolugéo Mexicana, iniciada em 1910, que Vasconcelos elaborou a sua fantasia sobre a “missdo étnica”, a “quinta raga”, a “primeira raga sintese do globo”. Foi tao forte e decisiva a presenca do findio e mestigo no processo revolucionério que muitos tiveram que repensar 0 indio e o mestico. As forcas camponesas organizadas e lideradas por Zapata e Villa impressiona- ram decisivamente 0 pensamento social mexicano ¢ lati- no-americano. Em pouco tempo os preconceitos evolucionistas do darwinismo social e positivistas tiveram que ceder. Estava em curso a emergéncia da “raga césmi- ca”, da “democracia racial”, do “continente mestigo” e outras formulacées destinadas a dar conta da “nova” rea- 21 lidade social, politica e cultural. Injciava-se a dissociagao entre raca e cultura, ao mesmo teipo que se retomava a avaliagao da hist6ria social dos séculos de trabalho com- pulsério, das lutas sociais travadas por indios, negros ¢ outros, desde os primeiros momentos da colonizacao até © século XX. Essa foi uma época importante na histéria da formagao do povo latino-americano. Depois de séculos de trabalho principalmente escravo e economia primaria ex- portadora quando se formaram castas, no século XX come- saram a ser abalados os ideais e as priticas antigas. Os trabalhadores manifestavam-se em todos os lugares, em termos sociais, politicos e culturais. Os movimentos so- ciais, os partidos politicos e as lutas travadas no campo e cidade expressavam 0 modo pelo qual 0 povo se manifes- tava; procurava conquistar espacos. Estava em curso a metamoforse da populacao de trabalhadores em povo propriamente dito, compreendido como uma coletividade de cidadaos. Além de reafirmar-se como membro de gru- po racial e revelar-se membro de uma das classes sociais em processo de formado, tornava a manifestar-se como cidadania. Estava em marcha a formagao do povo. a A Revolugao Mexicana expressa e simboliza vé- rios problemas fundamentais das sociedades latino-ame- ricanas. Em geral, eles se relacionam com o vasto proceso hist6rico-social de formagao do pove. Um deles diz respei- to a terra, A posse e ao uso da terra. Muitos dos que se engajaram na Revolugao lutavam pela terra. Queriam re- conquistar a terra que havia sido sua, dos seus pais ou antepassados, terra expropriada por diferentes meios, em varias épocas, destacando-se ai as operagdes de deslinde ¢ demarcagao. Outro problema diz respeito a conquista de direitos politicos. Tratava-se de romper os lacos de favor e clientelismo, que predominavam nas relagées de traba- Iho e invadiam as condigdes de vida dos trabalhadores do campo e, muitas vezes, também da cidade. 22 Mas essa nao era uma problemitica exclusiva- mente mexicana. Era bastante geral na América Latina. ‘Tao geral que muitos movimentos sociais ruraisa refletem. As reformas e revolugses iniciadas, frustradas ou realiza- das na Guatemala, Bolivia, Chile, Peru, Cuba, Nicarégua e outros paises tém inclusive essas raizes. Em todos 0s casos, esté em andamento a metamorfose da populagao em povo. Arrigor, sao varios os processos sociais que estio em causa quando se trata das diversidades e desigualda- des raciais, regionais, sociais, culturais e outras. Sob certos aspectos, é deles que a idéia de raca césmica, democracia racial ou continente mestigo procura dar conta. Primeiro, a presenga de setores populares nas lutas sociais abala, ou mesmo nega, as teses tradicionais sobre a capacidade de reivindicagao e luta do trabalhador do campo e cidade. Segundo, as ideologias raciais herdadas de sécu- los de vigéncia de formas de trabalho compulsério jé nao convinham A sociedade de classes em formagao. Cabia conferir alguma dignidade ao trabalho bragal. E, para isso, era necessario e urgente conferir alguma dignidade ao préprio trabalhador, no campo e na cidade. Terceiro, a idéia de raga césmica, democracia racial ou continente mestigo, é contemporanea de alguns desenvolvimentos das ciéncias sociais, quando superam- Se 0s preconceitos envolvidos nas doutrinas evolucionista, positivista e do darwinismo social. Afinal, dissociam-se raga, por um lado, e cultura e formas sociais de vida e trabalho, por outro, Os europeus, norte-americanos ¢ lati- no-americanos estavam descobrindo que o mundo estava povoado por poucas racas, muitas mesclas e um sem nui- mero de culturas e formas sociais de vida e trabalho. Mas 0 problema racial permanece em aberto. As Poucas reformas sociais realizadas nao alteraram substan- cialmente a situacao. Subsistem varias formas de precon- 23, ceito racial, mescladas nas desigualdades entre as classes. Acontece que esse problema faz pagte da questo social. E a revolucao burguesa pouco reallzou nesse campo, se Pensamos no que poderia ter realizado. 5. Nossa América © pensamento latino-americano freqiientemen- fe se defronta com o conceito de Nossa América, formula do assim por Marti, Em varias conjunturas nacionais ¢ latino-americanas reaparecem os dilemas englobados por esse conceito. Desde as lutas pela independéncia de Cuba, Porto Rico e Sao Domingos, nos fins do século XIX ¢ comegos do XX, esse tema passoua ser freqiiente e influen. te em muitos lugares’, Nossa América faz. lembrar algumas preocupa- Ses que ja estavam no pensamento de Bolivar. Tratava.se de emancipar a América Latina, compreendendo o conti, nente e as ilhas, de toda dominacao européia e norte-ame~ ficana. Daf a proposta de liga, federacao, congresso, que fanto preocupou Bolivar e alguns outros libertadores, Des. de os primeiros momentos da formacao dos estados nacio. nais compreendia-se que a associagéo de nagées era um caminho fundamental para fazer face as pressdes dos in. teresses adversos aos dos povos latino-americanos, Depois, muito tempo depois, no século XX, Tor- rijos retoma o tema a partir das lutas do Panamé para libertar-se da influéncia dos Estados Unidos. Nessa cea, Sido fala na5* fronteira, Sim, o Canal do Panamé, adminis. trado pelos norte-americanos, corresponde a uma 5° fronteira, atravessando 0 pais e violando a soberania ne- cional. Em alguns paises, como no Panamd ¢ em Porto Rico, © problema da soberania coloca-se de forma particu, larmente aguda. Se pensamos na América Latina como um 24 todo, no entanto, a quinta fronteira é uma singular meté- fora, Sao varias as implicagées do conceito de Nossa América. Primeiro, esté em causa a emancipagao nacional, em face de interesses, pressdes ou administragées estran- geiros. Segundo, esta em causa a conveniéncia da alianga, liga, federagao, congresso ou integracao de nagées latino~ americanas, para que melhor possam defender-se os inte- esses nacionais, Em muitas conjunturas, no passado e no presen fe, algumas decisées basicas em paises latino-americanos Sto adotadas por injungao de interesses estrangeiros, prin. cipalmente norte-americanos. A importancia das relagdes “externas” em assuntos internos de paises da América Latina fica mais evidente quando lembramos a sucesso das politicas adotadas pelos Estados Unidos a partir da década dos 30: Boa Vizinhanga, Ponto IV, Alianga para o Progresso, Baixa Visibilidade, Relatério Rockefeller, Co. mité de Santa Fé, Relatorio Kissinger, Guerra de Baixa Intensidade e outras. Elas tém sido secundadas por multi- nacionais e instituigdes multilaterais, tais como a OEA,o BID, 0 TIAR, o Mercosul, 0 NAFTA, o FMI, 0 Banco Mun- dial. E claro que ha alteracoes, reorientagdes e até mesmo conflitos entre agéncias, empresas, governos. Mas também ha convergéncia e continuidade, que predominam. Nesse sentido € que quase todos os paises estio atravessados por uma espécie de quinta fronteira, como realidade e metafora. Em distintas Bradacées, algo seme- Ihante ao que se verifica no Panama e em Porto Rico parece ocorrer em outros pafses. A base militar, a multinacional, a indtistria cultural, a ajuda técnica e outros itens visiveis ¢ invisiveis ressoam a quinta fronteira. E quando ocorrem divergéncias maiores, ou uma nacdo busca outro modo de organizar a sociedade, a economia e o Estado, 0 governo a5 empresas norte-americanos entram em agdo. O que ja 25 ocorria no século passado continugu a verificar-se no sé&- culo XX: invases na Guatemala em 1954, na Reptiblica Dominicana em 1965, em Granada em 1983 e no Panama em 1989; além da contra-revolugao orquestrada contra © governo Allende no Chile em 1970-73 e na Nicaragua em 1979-89. Uma longa hist6ria de “monroismo”. A partir dos interesses dos paises dominantes e das multinacionais desenvolve-se todo um vasto movi- mento de integragao ¢ desintegragao pelo alto. As nogdes de economia de escala, divisao internacional do trabalho, interdependéncia, livre comércio, livre empresa, produti- vidade, racionalidade, lucro, desenvolvimento, progresso © outras logo passam a justificar operacdes bilaterais ¢ multilaterais para resolver problemas de paises definidos como atrasados, subdesenvolvidos, periféricos, arcaicos ou invidveis. af que se enraiza 0 conceito de Nossa América, ‘ou bolivarismo. A idéia latino-americana de integracao,ou confederacao, vem de uma longa hist6ria. Nasce com as lutas pela independéncia e ressurge em diversas épocas, em cada pajs. O que jé havia sido posto claramente duas vezes, por Bolivar e Marti, é retomado também por Betan- ceS, Hostos, Sandino, Ingenieros, Haya de la Torre, Marié- tegui, Guevara e outros. Naturalmente sao distintas as propostas de uns ¢ outros. Mas ha polarizacées evidentes, ‘no pensamento e pratica de movimentos sociais, partidos politicos, correntes de opiniao publica e outros setores das sociedades nacionais. Uns propdem a integracdo, ou confederagio, pelo alto. Pensam retomar alguns itens da revolugao bur- guesa tardia, realizada desde cima. Imaginam a possibili- dade do capitalismo nacional capaz de defender-se dos movimentos do capital em geral, governando 0 capitalis- mo mundial. Esquecem-se de que os projetos de Cardenas, Vargas e Perén foram derrotados. 26 Outros adotam as perspectivas abertas pelas lu- tas populares, pensando na emancipacao politica e econ6- mica. Fazem 0 balango critico das experiéncias populistas e reavaliam 0 que aconteceu no Chile de Allende e em Granada de Bishop. Avaliam as alternativas abertas pelas revolusées cubana e sandinista. Pensam em combinar a revolucao social com a nacional. 6. Revolucées A hist6ria da América Latina é uma histéria de lutas sociais. Af destacam-se primeiramente as castas e 0s setores de castas durante 0 periodo colonial e entrando pelo século XIX. Depois, a partir da independéncia e abo- ligdo do regime de trabalho compulsério, destacam-se as classes ¢ os setores de classes. Mas alguns valores e pa~ droes sécio-culturais caracteristicos das castas subsistem de permeio aos das classes, inclusive no século XX. Essa é uma das peculiaridades das lutas sociais que se travam neste século.® Os séculos de colonialismo e escravismo, com base na economia priméria exportadora, ou de enclave, produziram estruturas sociais complexas, bastante dife- renciadas e rigidas. Nessa formagao social mesclam-se desigualdades sociais, econémicas, politicas, culturais, ra- ciais e regionais. Durante esses séculos desenvolveram-se as castas, isto é, segmentos sociais marcados por barreiras rigidas, separando indio e mestico, negro e mulato, bran- cos de diferentes procedéncias nacionais e distribuidos em distintos niveis da estrutura social. Uns estavam obrigados a formas de trabalho compulsério, ou simplesmente escra- vo. Sao confinados a situacées de trabalho e vida corres- pondentes ao trabalho bragal. Em muitos casos, sio propriedade do branco, senhor. Este, quando proprietario, negociante, administrador ou governante, dipoe dos ou- 27 oe tros com larga margem de arbtrio, pistingue-se do subal- terno, agregado, colono, pedo, artebio, escravo ou outro, compreendido inclusive como indio, mestigo, negro, mu- lato e mesmo branco. Considera-se de outra categoria, condi¢ao social, econémica, politica, cultural e racial. Sen- te-se e age como conquistador. Depois do colonialismo e escravismo, desenvol- ve-se a sociedade de classes. Diversificam-se as atividades econémicas. A economia priméria exportadora comple- menta-se com a industrializacao substitutiva de importa- ses. Muitos trabalhadores do campo migram para as cidades, os centros industriais. Desenvolve-se a proletari- zacdo, simultaneamente a urbanizagio e a emergéncia da burguesia industrial. Associam-se capitais estrangeiros e nacionais, favorecidos por agéncias estatais. Expande-se 0 mercado de forga de trabalho. Surgem as associagdes, os sindicatos, os movimentos sociais operérios, partidos Também na agricu! proletsrizagao. E os mo- vimentos sociais rurais e partidos, de base camponesa, as vezes ampliam-se com esses novos contingentes. A crescente diversificagéo da estrutura social, dinamizada pela urbanizagao, industrializagao, divisio do trabalho social e outros processos estruturais, constitui a sociedade de classes. Uma sociedade atravessada por de- sigualdades sociais, econémicas, politicas, culturais, ra- ciais € regionais; na qual subsistem valores e padrées sécio-culturais de castas. Esse ambiente das lutas sociais ocorre em dife- Tentes épocas e em quase todos os paises latino-america- nos. Nesse ambiente, o jogo das forcas sociais, em geral, esté na base dos protestos ¢ revoltas, golpes e contragol- Pes, revolugGes e contra-revoluges. Em perspectiva hist- rica ampla, assim se desenham os movimentos da sociedade, os andamentos da histéria. a erecce a 28 Na América Latina, pode-se considerar que a revolucdo burguesa é tardia, induzida do exterior e reali- za-se pelo alto. Ela nao transforma amplamente a socieda- de, abrindo espacos politicos, sociais, econdmicos e culturais para os grupos e as clases subalternos do campo ecidade. Ao contrario, recria formas de organizacac social, trabalho e mando com ingredientes patrimoniais. Combi- na elementos oriundos da estrutura de castas na sociedade de classes”, Todos os paises latino-americanos jé tiveram a sua revolugao burguesa. Mas as experiéncias democraticas tém sido episédicas. Poucas vezes as conquistas democra- ticas se tornam efetivas. Habitualmente esto restritas a setores da sociedade, principalmente das cidades grandes. Fica a impressao de que as estruturas de gestao e mando se fortalecem com as herangas olig4rquicas e patrimoniais. Arevolucao burguesa produziu transformacées notaveis, segundo as condigées proprias de cada pais. Expandiu a formacao social capitalista. A economia prima- ria exportadora e a industrializacao substitutiva de impor- tacoes articularam-se e receberam inversées estrangeiras. Multiplicaram-se as associagdes de capitais nativos e es- trangeiros, em geral favorecidos por agéncias estatais. Cresceram 0 mercado interno, as migracées, a divisio do trabalho social, a proletarizacao, a acumulacao do capital, as desigualdades regionais, as classes sociais. Assim, em termos principalmente econémicos, é possivel dizer que a revolucdo burguesa foi realizada com éxito. Resultou em uma formacao social baseada em um tripé bastante eficaz: 0 setor produtivo nacional, o estrangeiro e o estatal, con- cretizando uma vigorosa alianga entre o grande capital financeiro e o Estado. £ 0 capital externo que comanda a modernizacao. Em termos sociais, politicos e culturais, no en- tanto, a revolucdo burguesa ocorrida na América Latina 29 2 1 pouco. Nesse sentido é que pode ser denominada iia, induzida do exterior e pelofilto. Nao responde as ‘reivindicaces da maioria do povo. Em geral, os trabalha- } dores sentem-se deslocados, submetidos, estranhos. A questo social muito mais se recria do que se resolve. As medidas adotadas pelos setores dominantes nao alteram <= as estruturas de apropriago e mando. As desigualdades > = sociais expressam também desigualdades raciais e regio- ‘S, _ nais, sintetizadas nas express6es: costa e serra, litorel ¢

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