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CIRO GOMES ROBERTO MANGABEIRA UNGER O PROXIMO PASSO Uma alternativa pratica ao neoliberalismo TOPROOKS: Copyright © Ciro Gomes, 1996 Roberto Mangabeira Unger Composigio e folios Art Line Produgiies Grificas Lab Revisto Christine Aju Capa Victor Burton CIP Brasil. Catalogngao-na-fonte Sindical Nacional dos Editores de Livros, RJ Gomes, Cito GOL3p © préxime passo: uma alternativa pritica a9 neoliberalisine / Ciro Gomes, Roberto Mangabeira Unger. — Rio de Janeiro: Topbooks, 1996 Convtém dados bibliogeiieas 1. Brasil — Politica econdmiea. 2 Liberalisino. 3, Desenvolvimento econdimico. Unger, Roberto Mangabeira, Ul, Titulo. CDD 338.981 95.0131 CDU 338.984(81) Todos ox diteitos reservados pola TOPBOOKS EDITORA EF DISTRIBUIDORA DE LIVROS LTDA, Tinprereo no Bros Sumario Prefacio Uma alternativa imaginada © discurso politico dominante (O argumento e sta idéin-forga © camino politivy dificil A estabilizagao consolidada A estabilizagao interrompida ‘A divida piblica interna, as privatizagaes € 0 saneamento da situagio parrimonial do Estado © refinanciamento do Estado © a verdadeira reforma tributéria As conseqiiéncias priticas da desesperanga O neoliberalismo substitufdo Atarefa © neoliberalismo ¢ 0 nacional-populisimo, Diretrizes da proposta A clevagiio da poupanga pablica e privada A parceria entre o Estado € os produtores privados B 27 38 41 a 55 R 4 16 84 88 96 Sakivio igno, O problema da e: agi revisto Abertura sem submissio O dualismo superado Os dois fururos da alternativa ao neolibe- ralismo: nas na nova economia Vinyguandas © reragu mundial: a questio programsitica decisiv A primeira vertente da politica antidualist: redistribuigio da riqu em gente € heranga social A soguni vertente da politica antidualist: alianga entre a vanguarda ¢ a retaguarda © formas inrermedisrias entre o privado © 0 paiblico fa, investimento A democracia acelerada Pontos de partida para repensar 0 Estado © a politica no Brasil © presidencialismo sem impasses Partidos de verdade A politica ibertada do dinheiro ‘A profissionalizagio da buroceacia © 2 acele ragio da politica A democratizagao dla comunicagio A conscientizagio e « militincia dos direitos Sobre os autores Ciro Ferreira Gomes Roberto Mangabeira Unger loz 110 113 123 135 140 144 146 148, 151 152 153 156 158 Prefacio Este pequeno livro vem a prelo num momento de perplexidade — no Brasil € em toda a parte. O esgotamento do na cional-populismo no terceitro mundo, o colapso do comunismo no segundo mundo © até mesmo a postura politicamente de- fensiva e institucionalmente conservadora da social-democracia no primeiro mundo deixaram drfiios de idéias os que acreditam estar a democratizagio das sociedades con- temporaneas ainda a meio caminho. No Brasil, como em muitos pafses em desen- volvimento, uma crise de confianga das clites transformou uma encruzilhada numa debandada. Renderam-se, ¢ querem render 6 Brasil, ao idedrio ora dominante nos pat- ses mais ricos. Aderiram ao neoliberalis- mo, a ideologia atual das metrdpoles, desculparam-se repetindo a toda a hora, porém sem conseqiiéncia pratica, que pos- suem uma consciéncia social e que querem humanizar o pais. Abandonaram, como romantica, a tentativa de construir uma civilizagdio propria no Brasil. Rejeitaram a concepgao de que a histéria humana deve continuar a ser uma histéria de grandes alternativas, tanto no plano das institui- ges quanto no plano dos ideais, Pois o que vale uma diferenga de cultura se The falta a encarnagio numa vida institucional propria? Intervimos neste quadro para ajudar a provocar a discussdo que falta ao pais. Pro- pomos um caminho especifico, que se con- trapde ao discurso neoliberal. Damo-lhe contornos definidos para melhor suscitar a polémica, Nao acalentamos, porém, ilu- shes sobre a necessidade deste ou daquele pormenor da proposta. Para cada solugio localizada que abragamos existem alterna- tivas plausiveis orientadas na mesma dire- cao. Ea diregao o que importa. A mudanga das citcunstncias, 0 avango do entendi- mento € as revelagdes do debate hao de renovar os pormenores da proposta, rejei- tando alguns ¢ aprimorando outros Pertencemos a partidos politicos dife- rentes — um de nés, a0 PSDB; 0 outro, a0 PDT. Imaginamos set 0 papel de uma pro- pos termedidrio entre o debate das idéias e o a como essa situar-se num ampo in- embate dos partidos. Nem s6 por partidos politicos se afirma o potencial transforma dor da politica. F também, correntes de opinitio ou partidos latentes. Geram parte da matéria-prima com que se constréi um futuro mais livre e mais consciente. Os adeptos de um idesrio, crescendo em ni- mero, espalham-se pelos partidos estabele cidos € pelas organizagdes da sociedade civil e sua influéncia se faz sentir, pouco a pouco, em muitas cabegas. Querendo fo- mentar um debate, queremos, também, trabalhar pelo surgimento de uma corrente de opiniio, Foi assim, no Brasil, com os que se opuseram a escravatura € ao impé- tio. Assim ha de ser hoje, no Brasil, com os que se opdem ao neoliberalismo. Tal movi- mento de pessoas ¢ idéias nao bastaria para mudar o curso da histéria brasileira. Sem ele, contudo, nada se fard. Além de pertencermos a partidos dife- rentes, temos caras diferentes no pais. Um de nés tem sido criticado por alguns como vitima da ambigao; 0 outro, como vitima do devaneio. Ambos, porém, sabemos que © importante € a dialética en:te a li penosa dos fatos ¢ a imaginagao disciplina- da do possivel. E facil ser realista quando se aceita tudo. E facil ser visionario quan- do nfo se enfrenta nada. Aceitar pouco € enfrentar muito € 0 caminho ¢ asolugao. 2 Uma Alternativa Imaginada O discurso politico dominante Todo © Brasil reclama a falta de pro- posta e de alternativa. Com 0 colapso dos regimes comunistas, 0 descrédito dos esquerdismos tradicionais ¢, sobretudo, a exaustao da nossa antiga estratégia de crescimento econémico, sobrou para o o da adesio ao modelo de organizagao © que parece ser um nico caminho: econémica ¢ social representado pelos ses mais ricos. Nesta obra de estreita- mento de horizontes, a inflagao foi parcei- ra da histéria: torturado pela inflagao, 0 povo brasileiro nao tinha cabega nem ocasiiio para tratar dos caminhos possiveis do desenvolvimento econémico e da re- 3 construgdo institucional. A conjuntura tem sido tudo para nés; a estrutura, nada. A época dos projetos nacionalistas e do viés estatizante, seguiu-se 0 discurso do adesismo desencantado, travestido de realismo maduro. Nestas condigSes, ge- neralizou no pais um s6 discurso politi- co: um discut 0 que afirma a incapacida- de do Estado para as atividades produti- vas ¢ estratégicas enquanto reclama a atuagio social de um Estado eficaz contra 08 extremos de desigualdade no nosso pais. © primeiro-muny “tudo pelo social”. O Estado, segundo esta visto, deve ser apenas um zelador das regras do mercado ¢ um agente de assis- téncia social. Foi assim que todos viraram mo imitativo eo proponentes da economia de mercado € defensores da social-democracia, tanto na esquerda quanto na direita da nossa po- litica. As politicas sociais compensatérias, destinadas a moderarem as desigualdades, seriam, junto com 0 zelo pela vigéncia das normas de concorréncia privada, as tare- 4 fas supremas do Estado. © Estado, segun- do 0 refrao ouvido a toda hora, deve tomar-se menor para fazer melhor aquilo que s6 ele pode fazer. Conservadores ¢ progressistas, direitistas e esquerdistas, distinguem-se hoje no Brasil mais pelo grau de radicalismo nas reivindicagdes redistribuidoras do que por roteiros con- cretos de desenvolvimento nacional. Divisdes iluséri s ¢ superficiais orna- mentam esta nova unanimidade em vez de rompé-la, Como arremedos de projeto temos dentro do governo, de um lado, 0 neoliberalismo compungido e, de outro lado, a defesa de quebras da ortodoxia neoliberal em favor de concessbes a seg- mentos do grande empresariado. Nao adianta proclamar triunfos ideolégicos na revisio constitucional ¢ na propaganda da capacidade do Estado de poupar ¢ inves- privatizagdes. Importa recuperar a tir. Governo ruim para 0 Brasil perpetua a dependéncia da estabilidade monetéria sobre duas bases frageis e insustentaveis: 0 cambio sobrevalotizado e os juros escor- 15 chantes. Cala sobre qualquer estratégia nacional de desenvolvimento econdmico. Aceita como fatalidade hist6rica irresist vel as regras do jogo da nova ordem eco- némica internacional, conformando-se com as exigéncias da hegemonia norte- americana. Presidente tuim para o Brasil exerce 0 poder presidencial como instru- mento de acertos entre politicos € empre- sfrios. Prima pela cordialidade. Foge aos 5, porque 0 aceita, ssiste, impotente, a esta conflitos. Trai o pa A esquerda abdicago nacional. Sem rejeitar co samente seu discurso tradicional, também nao acredita mais nele. Sua pregagao anda a reboque da militancia dos empre- gados das estatais ¢ dos sindicatos da grande indistria privada. Defe ide as esta- tais, indiscriminadamente, sem propor uma estratégia especifica de crescimento a que elas pudessem servir, E insiste nesta defesa, quer por compromisso com os in- teresses corporativos dos quadros das em- presas puiblicas, quer por nostalgia por um ideario perempto que Ihe parece 0 tinico 16 baluarte remanescente de resisténcia ao neoliberalismo. Descartada a defesa ceri- monial das estatais, s6 a estridéncia no protesto, frustrado, contra as desigualda- des distingue a esquerda das outras facgSes da politica brasileira. Por isso mesmo, nem sequer consegue dar voz aos ressenti- mentos mudos e desorientados da peque na classe média. O pais quer oposigao. Precisa de oposig4o. Nao confia na oposi- go que tem. Ha consenso no discurso politico bra- © consenso est errado. Seus sileiro. Mas equivocos ficam patentes na sua incapa- cidade de resolver os problemas do pais em trés setores cruciais: a consolidagao da estabilidade monetétia, a moderagio das desiguldades sociais ¢ a formulagio de um novo projeto de desenvolvimento nacional. Nao se completa a obra anti-infla- ciondria em sanear a situagiio patrimo- nial do Estado e elevar a receita puiblica Nao se fazem nem uma coisa nem outra sem compreender como avangos arrojados re nas privatizagées ¢ na tributa 0, aparen- temente regressiva, do consumo podem, logo em seguida, servir para financiar e fortalecer um Estado estrategista ¢ redis- tribuidor. Nao se conseguem des artar os expedientes do plano real — 0 cambio sobrevalorizado e os juros altissimos — tao titeis como expedientes tempordrios quanto ruinosos como solugées duradou- ras, sem limpar as contas € elevar as recei- tas do Estado brasileiro. O consenso, argu- mentaremos, deixou-nos despreparados Para as opgdes ¢ os conflitos que a conso- lidagao da estabilidade monetitia exige Por isso, deixa-nos sob a sombra da volta, a qualquer momento, da inflagdo desen- freada. ‘A mesma incapacidade de fazer 0 que promete caracteriza a politica social deste discurso hegemdnico. Todos lamentam que o Brasil ostente as d sigualdades mais terriveis do mundo. Todos em querer humanizar o pais. Porém, o caminho vis- lumbrado pelo discurso politico dominan- te — © das politicas sociais compensats- 18 rias - jamais bastard para alcangar o re- sultado almejado. ‘Temos uma economia ¢ uma sociedade divididas em dois. Enquanto parte do pais esté cada vez mais integrada na economia ena cultura dos pafses ricos igiia de acesso ao capital, outra parte continua am aos mercados € a tecnologia. Por causa desta estrutura dualista, 0 pafs cria desi- gualdade ao mesmo tempo que produz riqueza. As transferéncias do primeiro Brasil — do Brasi do ¢ favorecido — capitalizado, organiza- iam de ser ara o segundo Bra: —o Brasil marginalizado — te gigantescas para resolverem os problemas da maioria que continua aprisionada neste. Tais transferéncias nunca ocorre- ‘ria. As forgas que comandam o primeito Brasil jamais 0 riam na dimensao necess permitiriam, nem 0 poderiam permitir sob pena de se desorganiz: gada do pais Qualquer forma realista de moderagio a economia avan- das desigualdades exige, em condigdes como as nossas, a revistio do modelo eco- 19 ndmico — as instituigdes econdmicas e as relagdes entre Estado e produtores — nao apenas politicas destinadas a compensa- rem os efeitos de um padrao de cresci- mento que € excludente e desigualizador. Como elemento acessério desta revisio de modelo, as politicas sociais sao necessa- rias. Como maneira de dispensar tal revi- so, as politicas sociais sio um embuste Precisamos de uma alternativa produtivis- ta que integre a maioria dos brasileiros aos centros dindmicos da nossa economia, nao de uma formula caridosa que oferega aos excluidos as migalhas caidas da mesa dos abastados. E fécil ser defensor da de- mocracia social quando a democracia so- cial é impos vel de realizar. O “tudo pelo social” do discurso politico dominante nao € programa; € alibi Se 0 discurso dominante na politica brasileira € incapaz de nos guiar na conso- lid moderagao das desigualdades sociais, 6 ao da estabilidade monetéria ou na igualmente intitil 8 demarcagio de uma hova trajetdria desenvolvimentista para o 20 pats. Como programa para o desenvolvi- mento, o discurso hegeménico sofre de dois defeitos insanaveis. O primeiro defeito é que, no sabendo como refinanciar o Estado nem como diminuir as desigualdades, nao sabe, tam- bém, como conduzit o desenvolvimento. Pois o estrangulamento financeiro do Estado e 0 actimulo da divida social repre- sentam inibigées farais a um desenvolvi- il, avolumam-se os pontos de estrangula- > aparato fundamental de mentismo sustentavel. Hoje, no Bi mento no ne energia, transporte e comunicagao. E irrealista supor que, mesmo que radicaliza- das as privatizagGes, possa o capital priva- do, nacional ou estrangeiro, suprir as necessidades de investimento no instru- mental basico do nosso sistema produtivo. Por outro lado, um Estado quebrado nao pode também investir, em grande escala, na qualificagao do nosso povo e na gene- ralizagao das praticas mais avangadas de produgao. Restrito a préticas compensat- rias, que nem tem sequer como financiar a adequadamente, nao tem, também, como evitar, no futuro, que a massa miseravel do pais recorra a qualquer promessa de salvagio, interrompendo, pela politica plebiscitaria dos demagogos, os planos autoritarios dos tecnocratas. © segundo defeito do discurso domi- nante como biti sola de uma nova etapa de desenvolvimento nacional fica claro a luz de uma constatagao histérica simples. Nunca houve na histsria modema, com a excegao parcial da Gri-Bretanha ¢ dos Es- tados Unidos (se é que se pode compreen- der a industrializagao inglesa sem o prote- cionismo contra a indtistria téxtil da {ndia € as guerras contra os concortentes comer ciais da Inglaterra ou a industrializagao norte-americana sem o protecionismo contra quase tudo), nenhum pafs que se haja desenvolvido sem uma associagao in- tima e duradoura entre o Estado ¢ os pro- dutores privados. A agdo estratégica e pro- dutiva do Es em muito o horizonte das responsabilida- ado comumente ultrapassou des estritamente sociais e compensatérias. 2 As na s sim foi com a Alemanha e 0 Japio gunda metade do século XIX. Assim € hoje com as novas economias do nor- deste asidtico — Coréia do Sul, Taiwan e, sobretudo, as zonas adiantadas da propria China continental. Entre os paises con- temporfneos, as excegdes aduzidas, como uudeste as jAtico — © Chile ou 0s paises do Malisia, Indonésia ¢ Tailandia — nao se sustentam como exemplos para o Brasil. Os casos do sudeste asitico sfio de paises cujos regimes autoritatios, havendo supri- mido por longo tempo o conflito social, patrocinaram a formagaio de vanguardas exportadoras sem vinculos estreitos com o resto da economia nacional. O Chile, com uma economia agraria € extrativa, ¢ com um passado de lutas sociais igualiza- dor: que tanto os governos anteriores & ditadu- , € um situagio singular: um pais em ra quanto 0 proprio regime ditatorial se dedicaram ao investimento social ¢ em que o Estado usou seus recursos € poderes para fomentar uma lavoura moderna e exportadora dentro de uma economia 2B relativamente simples. Ademais, 0 Chile deve muito do éxito relative que obteve a trés desvios do modelo neoliberal. Pri- meiro, afora Cuba, nenhum pais da Amé- rica Latina impés controles tio amplos sobre o capital estrangeiro quanto 0 Chile. Com isso, procurou e conseguiu ganhar margem de manobra para fortalecer o sis- tema de poupanga e investimento inter- nos. Segundo, mantendo o cobre em méos do Estado, assegurou recursos para uma politica econémica mais flexivel. Terceiro, usou os poderes do Estado para reorganizar a produgio e a exportagao agririas. Salvas estas excecdes — poucas, parciais e imper- tinentes — o neoliberalismo nao encontra respaldo na experiéncia prétis volvimento. E devaneio do colonialismo do desen- econémico e cultural, nao projeto realista. A tinica estratégia de crescimento eco- némico implicita no discurso dominante é a esperanga de que a integragao crescente do pais na economia mundial baste, junto com a ago social do Estado, para assegurar © desenvolvimento. A verdade — como 4 argumentaremos — é que sé asseguraria 0 crescimento de uma vanguarda produtiva excludente da maioria dos brasileiros e confinada a setores em que j4 desfrutamos. de grandes vantagens comparativas. Todas as incapacidades do discurso politico hegeménico no Brasil rém dupla fonte. A primeira fonte € a falta de uma imaginagao institucional construtiva. A premissa decisiva daquele discurso é a impossibilidade das inovagdes institucio- nais conseqiientes. Por forga d sa, identificam-se a democracia represen- tativa, a economia de mercado e a socie- a premis- dade civil pluralista e aberta com as insti- tuigdes politicas, econdmicas ¢ sociais dos paises mais présperos do mundo. Para jus- icar esta rentincia 4 construgao institu- cional, os propagandistas do discurso ascendente subestimam até mesmo as variag6es institucionais entre os paises que querem copiar. Do esgotamento tanto do nosso antigo modelo de industrializa- ao quanto das aspiragSes revolucionarias do esquerdismo, inferem a falsa conclusio 25 de que s6 nos resta imitar o que seria — mas néo é — um padrdo tinico de organi- mundo Para nos rebelarmos contra a injustiga € 0 zago econdmica no prime atraso no Brasil temos, também, de nos. rebelar contra a falta de imaginagdo Se a falta de uma imaginagao institu- cional construtiva é a primeira causa dos descaminhos do discurso politico domi- nante, a segunda é seu vinculo com o blo- queio social da politica brasileira: o efeito inibidor que a oligarquia econémica do pais exerce sobre a classe média. Desde os tempos da velha Republica, nunca se afir- mou com tanta desfagatez como no Brasil de hoje 0 controle do Estado brasileiro pela plutocracia brasileira. A politica do governo central perde-se numa lista in- findavel de favorecimentos: a banqueitos aqui, a empresdrios da agricultura ali, a multinacionais da indistria automobilist ca acolé. As ambigiiidades calculadas do discurso hegeménico — neoliberal ¢ pseu- dosocial — langam uma cortina de fumaga atras da qual possa o Estado brasileiro 26 adaptar-se as novas regras da ordem eco- némica mundial sem incomodar os endi- nheirados. E apresentam esta cumplici- dade de maneira aceitavel a classe média — como sempre, patridtica, inconformada e insegura. Os grandes avangos do pats tem ocorrido nos momentos em que esta classe, que continua a ter nas maos o des- tino da politica nacional, percebe nao poder realizar seus objetivos — econdmi- cos, politicos ¢ morais — sem romper com a plutocracia inepta ¢ predatéria que man- da e desmanda no pais. Coloca-se na lide- ranga de um movimento nacional e popu- lar. Assim foi com a rebelido contra a escravatura € 0 império ¢, depois, contra 0s arranjos politicos ¢ as estruturas sociais da velha Reptblica. Hoje, tal ruptura haveria de tomar a forma do reptidio ao neoliberalismo pseudosocial Este breve texto é um libelo contra 0 agachamento das elites brasileiras, umn libelo animado pela indignagiio mas sobre- tudo pela esperanga. Aqui propomos uma alternativa, Falta ainda o caminho politico 27 ¢ partidério para a execugio desta alterna- tiva e continuard a faltar até que se afirme no pais a consciéncia de sua necessidade. O argumento e sua idéia-forca A idéia-forga que anima a nossa pro- posta é a convicgiio de que hé uma alter- nativa vidvel ao neoliberalismo. Esta alternativa nio se caracteriza, como se quer fazer aparentar no pats, pela simples devogtio a politicas de assisténcia social. Caracteriza-se pela recuperagio da capa dade do Estado de poupar de investir; pela parceria estratégica entre um Estado forte porém democratizado ¢ as empresas privadas; pelo compromisso com a liqu dagiio do dualismo (Brasil organizado, Brasil marginalizado) e pela construgio de instituigdes que acelerem a politica trans: formadora e organizem a sociedade civil. A economia politica que advogamos — construgio de uma economia democrati- zada de mercado, com tragos préprios — meio, nao fim: meio para a consolidagao 28 de instituigées que representem uma for- ma brasileira do experimentalismo demo- cratico © nos permitam desenvolver no nosso pais a nossa civilizagao. O Brasil nao precisa nem deve ser a cara do pri- meiro mundo existente. Se copiarmos as instituigdes ¢ as politicas dos paises ja ricos, acabaremos mais pobres, mais desi- guais e sobretudo mais medfocres do que eles. Nao thes imitaremos 0 exemplo, imitando-lhes os habitos ¢ os arranjos, Duas esperangas dito vida e significado a0 experimentalismo democratico. A pri- meira esperanga do democrata é que hi campo em que as condigdes do avango material da sociedade se cruzam com as condigdes da libertagio do individuo: sua libertagao das hierarquias e divisdes so- ciais rigidas e subjugadoras. Nao precisa mos acreditar, como acreditavam os libe- rais e os socialistas do século XIX, que hé convergéncia natural entre o enriqueci- mento da sociedade ¢ a libertagao do individuo; apenas prec sibilidade de reconcilié-los. A razfio pro- amos Crer Na pos- 2» funda da afinidade entre estes dois bens que ambos se assentam na difusio da capacidade de reimaginar as relages entre as pessoas ¢ de realizar na pritica 0 que se imaginou. A segunda esperanga do democrata é que sempre ha como cami- nhat na dirego marcada por esta primeira esperanga de maneira que atenda aos interesses praticos da maioria trabalhado- ra — os homens e as mulheres comuns de um pais. Hé formas de satisfazer tais inte- resses que so excludentes e inibidoras, dividindo fragdes da maioria trabalhadora e mantendo instituigdes existentes. Ha outras que sao solidaristas ¢ transformado- ras, buscando aliangas populares mais amplas e reconstruindo instituigdes. A inovagao institucional é 0 meio maior para a realizado destas duas espe- rangas, Hoje, no mundo, o debate ideols- gico muda de tema. O conflito entre esta- tismo ¢ privatismo morre enquanto come- ¢a a surgit um conflito entre as formas institucionais alternativas do pluralismo politico, econdmico e social: isto é, da 30 democtacia representativa, da economia de mercado e da sociedade civil livre. As instituigGes estabelecidas nas democracias ricas do Atlantico norte ndo so a varian- te tinica ou derradeira do pluralismo como quer a doutrina neoliberal, nova forma do velho casamento entre o interesse dos ricos ¢ 0 desencanto dos cultos. Nao bas- executar a obra do experimenta- tam pa lismo democratico no Brasil. Este peque- no livro propée um caminho diferente Sobretudo, propde uma discussio. Nesta primeira parte do livro, antecipa- mos a diregtio geral da nossa proposta para que 6 leiror possa entender cada passo da andlise & luz da intengio que a motiva. Na segunda parte, sobre a obra inaca- bada da estabilizagao, sustentamos que a politica anti-inflacionéria nao se completa sem uma grande reorganizagao das finan- as puiblicas. Entre as diferentes maneiras de executar esta reorganizagao algumas deixarao o Estado desaparelhado para con- duzir um projeto democratizante de desen- volvimento, enquanto outras nos coloca- u ro no caminho desta construgao. Estas precisam sanear a situagio patrimonial do Estado e aumentar em muito a receita piblica. A melhor maneira de resolver o problema patrimonial é promover algumas privatizages espetaculares. Podemos ¢ devemos fazé-lo, porém, sem aceitarmos a idéia do aba sabilidades produtivas; tanto assim que s ptiblicas enquanto privatizamos outras. A melhor ndono pelo Estado de respon- podemos criar novas empre maneira de aumentar ripida e radicalmen- te a receita publica é generalizar a tributa- ¢%0 indireta do consumo por um imposto sobre o valor agregado com aliquota alta, O efeito igualizador de um aumento da capacidade de investimento piblico mais do que compensaré 0 efeito regressive da tributagao indireta. Tanto o neoliberalis- mo supostamente humanizado quanto 0 seu adversaitio remanescente — 0 corpora- tivismo nacionalista e ressentido — sao igualmente incapazes de desempenharem a tarefa de concluir a estabilizagao pels mesmas razdes por que so incapazes de 2 formularem uma estratégia de crescimento e um projeto de democratizagao. Na terceira parte, tragamos as grandes linhas de uma alternativa desenvolvimen- tista e democratizante ao que, por falta de alternativa, ameaga virar 0 minimo deno- minador comum da politica brasileira: 0 neoliberalismo misturado com protestos — ocos — de preocupagao pelo social Cinco diretrizes norteiam esta alternativa. A primeira diretriz ¢ a prioridade dada & elevagao da poupanga, tanto publica quanto privada, ¢ aos instrumentos insti- tucionais, inclusive previdenciarios, que encaminhem a poupanga ao investimento produtivo em vez de abandoné-la ao ganho financeiro estéril. A segunda dire- triz é a criagdo de parceria entre o Estado € as empresas, que reinvente, de maneira mais descentralizada ¢ experimentalista, as formas de coordenagao estratégica entre Estado e empresa tio bem sucedidas nos paises do nordeste asidtico. A tercei ra diretriz € usar o investimento social, o empenho do Estado e 0 direito do traba- 3 tho para conseguir aumento duradouro da participagio relativa do salério na renda nacional ¢ repudiar a idéia da fatalidade econémica do salétio aviltado. A quarta dirctrie € investimento macigo em educa- ¢a0 publica e nas condigdes praticas de manutengao da escola, combinado com uma reorientagio radical do contetido do ensino brasileiro. ianga e do jovem na A quinta diretriz € promover uma integra- g&io da economia brasileira na economia mundial que, consolidada a estabilizagao, trabalhe com a taxa cambial mais baixa possivel, para conter © consumo e premiar a produgio, ainda que preservando a pos- sibilidade de estimular uma valorizagio conjuntural do cimbio; oferega estimulos compensatérios 4 importagao das altas tecnologias; utilize seletivamente as tari- fas alfandegarias a servigo da nossa estra- tégia produtiva e comercial; ¢ nos aproxi- me, econémica e politicamente, dos outros grandes paises marginalizados — China, Russia e fndia — com que com- partilhamos o interesse em diversificar as, regras da nova ordem, Uma alternativa norteada por tais diretrizes requer ¢ facul- ta uma grande alianga nacional. Cria as condigdes para opgdes nacio tal fundamento, nao se viabilizariam. Na quarta parte, argumentamos que esta grande alternativa consenstial ao neo- is que, sem liberalismo pode ter duas seqtielas diferen- tes: uma, relativamente conservadora; a outra, arrojada, transformadora e demo- cratizante, porque dirigida contra o dualis- mo —a divisio do Brasil em dois mundos. Esbogamos as grandes linhas de uma polt- tica antidualista, que sitva como segunda etapa da alternativa, desenvolvimentis democratizante, ao neoliberalismo. Esta politica antidualista tem duas grandes vertentes. A primeira vertente € gradativa diminuigao da influéncia que exerce sobre o destino de cada brasileiro a transmissio hereditéria da propriedade das oportunidades de educagio e trabalho. Numa sociedade justa, aberta e criadora, todos devem desfrutar uma heranga social minima que dé contetido pratico ao prin- 38 cfpio de igualdade de oportunidades em ver de poucos herdarem dos pais. A tribu- tagdo progressiva do consumo pessoal e das herangas ¢ doagées ha de ajudar a financiar uma conta bésica, de garantias € recursos minimos, a disposi¢aéo de cada brasileiro. A segunda vertente do projeto antidualista é a ampliagio das formas de parceria descentralizada entre Estado e empresa, j4 iniciadas na primeira etapa da alternativa. Fundos ¢ setvigos, que con- tem com o apoio do Estado porém gozem de ampla autonomia, podem trabalhar com pequenas e média dando-as a compartilharem recursos fi- nanceiros, comerciais e tecnolégicos. Di- empresas, aju- versificam-se, passo a paso, as formas de crédito © propriedade. Assim se vai for- mando uma economia democratizada de lismo mercado que substitua, de vez, o du econémico ¢ generalize entre todas as classes e regides do pais o extraordinario potencial inovador da nossa economia. A nossa esquerda tem permanecido cimpli- ce com o dualismo, acenando com os 36 acertos corporatives e a protegao estatal para o Brasil organizado ¢ com o assisten- cialismo para o Brasil marginalizado. Na quinta parte, mostramos que 0 avango do desenvolvimentismo democra- tizante e antidualista exige inovagdes na maneira de organizar a democracia politi- ca, Nao ha reforma igualizadora sem mobi- lizagao politica, nem ha politica de con- tetido estrutural que nio seja politica de alta energia popular. Advogamos a reforma lo do presidencialismo brasileiro para doi dos meios necessarios a resolugao de impasses entre 0s poderes do Estado; a for- jo de uma burocracia profissionaliza- da, bem remunerada, recrutada de forma competitiva, protegida contra o clientelis mo politico e, por tudo isso, capaz de atrair muitos dos melhores talentos do pais — agente essencial de um Estado capaz e par- ceira insubstituivel de uma cidadania mobilizada; a mudanga do regime eleitoral para fortalecer os partidos, até mesmo pelo expediente extremo do sistema de “listas fechadas"; 0 enfraquecimento do vinculo 37 entre dinheito ¢ eleigao pelo financiamen- to pablico parcial das campanhas eleitorais ¢ pela transparéncia das contribuigdes pri- vadias que forem permitidas; a democratiza- do dos meios de comunicagao ¢ a diversi: ficagao das formas de propriedade neles € de acesso a eles; e, sobretudo, o desenvol- vimento de instrumentos processuais e for- mas de assisténcia juridica popular que levem os brasileiros comuns a consciéncia © a reivindicagao dos dircitos. Sem fortale- cermos esta capacidade reivindicatéria, ja- mais desestabilizaremos na base as formas inclusive ra- de dominagio e exclusiio — ciais ¢ sextuais — que continuam a frustrar nossas aspiragGes democratizantes e nos impedem de desenvolvermos na pratica a civilizagdo pressentida nas nossas fantasias coletivas. O caminho politico dificil Um paradoxo politico ¢ partidatio d culta 6 caminho da alternativa transfor- madora. O pafs continua a procura de lideres, partidos e movimentos que ofere- 38 gam alternativa clara ao figurine mexica- no diluido que atualmente experimenta- mos. Nao ha, porém, base partidéria dis- ponivel para esta operagao necessaria e desejada. Na nossa realidade, a eleigao presidencial permite ganhar poder para uma proposta alternativa sem ter, ainda, base politica e partidaria consolidada. Constréi-se a base a partir do poder e da proposta. Foi esta a oportunidade que Collor, eleito sem base partidéria, apto- veitou, perverteu e desperdigou. A opor- tunidade, entretanto, persiste. Hoje, o PSDB, paralisado pela sua condigao de partido governista que nao governa, ameaga ser langado no caminho tradicional dos nossos partidos reformis- tas, j4 trilhado, desastrosamente, pelo PMDB: o roteiro da rendigdo ao pequeno realismo das elites, a formula dos acertos com os grandes empresirios ¢ banqueiros, conluios ornamentados por protestos de preocupagiio social. Enquanto isso, os par- tidos de esquerda, a comegar pelo PT, jo- garam sua sorte na defesa dos residuos da 39 antiga economia politica dos anos 50 ¢ na solidariedade com os interesses corporat vos dos trabalhadores, ptiblicos e priva- dos, mais privilegiados do pats A auséncia de um instrumento parti- dério aparente para a tarefa programética necesséria nao € problema apenas para os politicos que se disponham a enfrentar os limites da estrutura brasilei E problema para o Brasil. © Brasil todo ha de resolvé- lo. Nao pode resolvé-lo, porém, sem ver, cam outros olhos, onde estamos eo que podemos vir a ser. Por isso, escrevemos este pequeno livro. 40 A Estabilizagao Consolidada A estabilizagao interrompida A primeira etapa da luta contra a inflagio foi técnica. A segunda é politica. Por isso, ainda nao aconteceu, € nao aconteceré sem uma mudanga de rumos na mancira de governar ¢ entender 0 Brasil. Hoje, a estabilizagdo continua a depender do cambio sobrevalorizado e dos juros escorchantes. Nao se tomaram as iniciativas que permititiam tornar a esta- bilidade monetéria independente destes Oo resultado € que continuamos sob a amea- instrumentos onerosos € insustentavei ga da volta da inflagdo desenfreada. ‘A superinflagao era o mal maior. Nas condigoes politicas existentes no pats so- a braram a manutengao da taxa cambial ¢ a politica dos juros altos como meios para assegurar a primeira etapa da estabiliza- cio. Sempre se reconheceu, porém — e, como administrador do plano real durante seus primeiros meses, um de nés se cansou de repeti-lo — que, como expedientes efémeros e custosos, tinham e tém os dias contados. Sua eficdcia ameaca diminuir enquanto seus prejutzos, fatalmente, aumentam. Teriam e tém de dar lugar, logo que possfvel, a um refinanciamento, amplo do Estado como verdadeito esteio da estabilizagzio. Nunca se imaginou que pudessem perdurar, ou que viessem a subs- tituir a reorganizacao das finangas publi- cas. O actimulo do déficit na conta cor- tente € 0 agravamento da recessiio evi- denciam-lhes os limites. A ortodoxia eco- némica o reconhece ao apregoar a neces- sidade do “ajuste fiscal” como condi necessaria 4 consolidagao da estabili monetéria. O problema, porém, é que nao ha uma dnica maneira de fazer o ajuste Hé muitas. Cada uma antecipa uma visi 10 2 Jiferente do papel do Estado num novo srojeto de desenvolvimento nacional e 2xige um conjunto prdprio de aliangas ¢ compromissos. O ajuste fiscal ortodoxo deixaria o pais sem um Estado capaz de presidir a um srojeto de desenvolvimentismo democra- izante. Procurando uma elevagio modes- ada receita publica e um aperto rigoroso da despesa publica, tornaria o Estado po- sre ¢ impotente: um Estado incapaz de realizar os investimentos vultosos em gente e em infraestrutura produtiva de que, desesperadamente, precisamos. Contra este ajuste fiscal o pais acabaria por se rebelar ainda que o Congreso, pot fraqueza ou desorientagio, 0 viesse a acei- tar, Porque o pais resiste a tal ajuste orto- doxo, mas nao consegue vislumbrar, ou impor as elites, ajuste alternativo, pro- tela-se perigosamente a vida dos expedi- entes — titeis na época, prejudiciais agora — com que se iniciou a estabilizagio, Os obstculos politicos, quer a um sanea- mento financeito ortodoxo ¢ empobrece- 4B dor do Estado, quer a uma proposta alter- nativa como a nossa, so grandes. Nao justificam, porém, a ilustio de que o inves- timento estrangeiro nos salvaré, dispen- sando-nos da necessidade de oferecermos a.um Estado forte um financiamento séli- do, de elevarmos o nivel da poupanga pri- vada ¢ publica e de dirigirmos esta pou- panga para o investimento produtivo por novos instrumentos institucionais Toda a experiéncia contemporanea dos paises em desenvolvimento confirma 0 desacerto da confi nga no capital estrangeiro como tabua de salvagao. Se fio criarmos um Estado seguro em suas finangas, 0 capital estrangeito nao viré, ow no continuara vindo, na forma e na dimensao que nos convém. Estamos seguindo 0 caminho, ja desastrosamente percorrido pelo México, de abertura a capital destinado, em grande parte, as bol- sas de valores e aos tftulos piiblicos. Este caminho tem légica prépria, que progres- sivamente estreita a autonomia deciséria do Estado enquanto destréi algumas das 44 bases de um projeto rebelde de desen- volvimento nacional. A entrada do capi- tal leva o governo a aumentar 0 estoque de titulos piiblicos para compensar 0 efeito inflacionario do afluxo de recursos. Os juros astronémicos, que ajudaram a atrair 0 capital, multiplicam-no da noite para o dia, Um pequeno investimento transforma-se numa grande exigibilidade. © medo da crise que seria provocada pela fuga repentina do capital ja multiplicado 4a cores de inevitabilidade a politica de juros sensacionais. E como se fosse um zstelionato que praticamos contra nés mesmos para a alegria dos investidores estrangeiros ¢ dos seus s6cios nacionais. Se concluirmos com éxito a obra da zstabilizagao, s6 precisaremos do capital estrangeiro como fonte subsididria de ecursos. Ainda bem, jé que 0 estudo empitico demonstra que, em todo o nundo, o nivel de investimento em cada sais continua estreitamente dependente fo seu nivel de poupanga interna: nesta spoca de capital supostamente internacio- 45 nalizado, a grande maioria do capital fica em cz Enquanto isso, a economia brasileira sangra, 0 povo brasileiro sofre e os felizar- dos com dinheiro nos instrumentos finan- ceiros festejam. As concessdes casuisticas e antipopulares a parcelas do grande empre- sariado aparecem como alivio seletivo do regime do cambio alto e dos juros altés mos. A Fiesp contra o FMI — eis o peri- metro do debate num pais cujos politicos i alegam servir 8 democracia social. Con- quista-se a benevoléncia das classes pro- prietarias por uma politica de juros pagos pela rolagem da divida interna que absor- ve trés meses dos doze de receita priblica e permite aos aquinhoados desfrutarem, sob a estabilidade monetaria, a mesma multi- plicagao dos pies de que gozavam sob a inflagao. A reorganizagao das finangas piblicas de que o Brasil necessita tem, como qual- quer ajuste fiscal, dois aspectos: um aspec- to de patriménio — limpar as contas do Estado — ¢ um aspecto de fluxo — asse- 46 gurar a receita necessaria as tarefas sociais, e desenvolvimentistas do Estado. Nem uma nem outra podem ser corretamente concebidas sem tomarmos posigiio sobre a trajetdria do nosso desenvolvimento futu- ro. E as duas s6 podem ser encaminhadas ao mesmo tempo. Nao adianta limparmos as contas ptblicas sem havermos langado as bas finangas publicas; 0 acerto logo s teria. Nem convém reorganizarmos as s de um regime sustentavel de e subver- finangas publicas para termos o resultado do esforgo ameagado, no bergo, pelas con- seqiiéncias de um descalabro vindo do pasado. A divida publica interna, as privatizagdes e 0 saneamento da situagdo patrimonial do Estado A chave para a compreensio do pro- blema patrimonial do Estado brasileiro € que uma divida publica relativamente modesta se torna intoleravelmente onero- sa — para o Estado e para 0 povo — por 47 causa do nivel dos juros que por ela se pagam e da exigiiidade dos seus prazos. Cinco de doze meses de receita do gover- no central estiio comprometidos no paga- mento das dividas externa e interna: dois meses para a externa, € trés meses para a interna. Pelos 98 bilhdes de reais da divida interna (um numero que, em outubro de 1995, se encontrava em rdpida ascenséo) estd o governo despendendo mais do que despende para servir a divida externa de 130 bilhoes de délares. Enquanto, porém, © servigo da divida externa inclui o com- ponente da amortizagao gradativa, o servi- co da divida interna é um jugo permanen- te, vergando o Estado aos interesses finan- ceiros e assegurando ganhos financeiros mirabolantes aos espertos ¢ endinheirados. Limpar meiro lugar, livrar-nos do peso da divida s contas piblicas é, em pri- interna, reduzindo-a radicalmente. Todas as outras iniciativas patrimoniais conve- nientes — como a recusa de salvar os bancos estaduais falidos ¢ o redimensiona- mento das obrigagdes previdencirias para 48 com castas corporativas privilegiadas ou sao secundarias ou resultam da refor na da divida interna, Em outra etapa, conso- lidada a estabilizagao e reorganizadas as finangas publicas, podemos reestabelecer uma dévida piiblica interna como instru- mento normal de politica monetiria e de nvestimento piiblico. Promovida uma ampla reorganizagao da situagio patrimo- rial e financeira do Estado, teremos, tam- xém, como exigir que o servigo da divida externa se limite ao que for compativel som as exigéncias do nosso projeto de Jesenvolvimento nacional. Reduzir quanto? Nao ha formula aprio- ista. Reduzir até o ponto em que os juros Ja divida interna — a base maior de todo » sistema de juros no pais — alcancem o rivel internacional comum dos juros eais. Terfamos de realizar a operagao A luz le trés consideragées. A primeira é que, yuma circunst ncia como a nossa, com tma heranga de inconfiabilidade finan- eira do Estado e expectativa de juros ais altos, a redugio tem de ser substan- 49 cial: quase certamente mais da metade da divida existente. A segunda consideragio é que a relagdo entre o residuo da divida e © pagamento de juros altos pela sua rola- gem é descontinua: alcangado certo pata- mar, de definigao imprevisivel, reduzem- 2 consi- se 0s juros rapidamente. A tercei deragio é que, passado certo perfodo necessatio A mudanga, tanto das expecta- tivas quanto das praticas, sobretudo pela elevagao da receita publica, aleangada pelos meios que adiante referimos, a divi- da interna poderé voltar a crescer, e a desempenhar suas fungdes normais, sem ocasionar a agiotagem generalizada do regime atual Comumente se diz que bastaria a um Presidente forte convocar alguns grandes operadores ¢ investidores para deles exigir a aceitagio dos titulos priblicos com juros mais baixos ¢ prazos mais longos. Nunca ocorreu assim a reforma da divida publica, nem no Brasil nem em qualquer outro pats acaba por falar mais alto do que a suscet a dependéncia econémica do Estado 50 bilidade politica dos empresérios. Seja como for, as solugées sfio compativeis. A melhor maneira de exercer pressio politi- ca é demonstrar capacidade para amorti- zat a divida piblica. Tanto melhor sera para nés se o ini io de uma amorti: sustentavel jé facultar uma grande red do dos juros e um alongamento substan- sial dos prazos. © caminho mais rapido para 0 paga- nento da divida interna é a privatizaga seletiva ¢ desideologizada, de algumas grandes empresas ptiblicas. Nao ha yenhuma pureza ideolégica, seja liberal bu antiliberal, internacionalizante ou racionalista, que valha o desacerto das sontas priblicas. Consertar a situagio satrimonial do Estado € requisito para 0, jualquer projeto nacional conseqiiente. Somo o vulto absoluto da divida interna relativamente pequeno, algumas pouc orivatizagdes bastariam para reduzir subs- ancialmente a conta Temos de vender algumas grandes smpresas piiblicas nao por amor a ideolo- tia liberal mas para termos o direito de s endossarmos, ¢ as condigdes priticas para realizarmos, qualquer ideologia, inclusive uma que, como a nossa, se oponha ao liberalismo e ao neoliberalismo. A primei- ra empresa na lista pode ser a Telebrés por uma razio pratica simples: renderé mais dinheiro, tanto diretamente quanto pelo efeito indireto sobre o valor das outras do que ur empresas privatizadas. (Mai terco da capitalizagio das bolsas de valo- res no Brasil esta atualmente representado pelos papéis da Telebras e das suas subs didrias.) Dir-se- serem de valor “estraté- gico” a Telebras ¢ outros alvos possiveis 0, como se se pudesse falar da privatizaga em setores estratégicos quando nenhuma forga politica atuante no pais apresenta uma estratégia concreta de desenvolvi- mento nacional. Nao ha, porém, nada mais estratégico, neste momento da nossa histdria, do que libertar o Estado da dependéncia financeira e acabar a festan- ga das contas bancérias migicas que esta dependéncia faculta Tanto nao € ideolégica, antinacional 82 ou antipopular esta maneira de encarar o papel da privatizagao que ela se alia, na nossa proposta, a dois outros compromis- sos inaceitiveis ao idedrio neoliberal: a criagdo de novas empresas piblicas eo uso da politica das privatizagSes para criar novos paradigmas de uma economia democratizada de mercado. Enquanto algumas grandes empresas ptiblicas devem, por razdes pragmiticas ¢ circuns- tanciais, serem privatizadas, outras devem t criadas, inclusive no setor das teleco- municagées, dentro do programa desen- volvimentista e democratizante que esbo- garemos. Este programa repudia a idéia, definidora do neoliberalismo, de que o Estado deva abandonar atividades produ- tivas e estratégicas, e contentar-se com politicas sociais compensatérias. ‘Ao mesmo tempo, podem as privatiza- ges também servirem a exemplificar as regras de uma nova economia privada que seja de fat competitiva ¢ meritocratica, As grandes empresas piiblicas devem, 20 serem vendidas, serem, também, dividi- 53 das. O controle acionério deve ser frag- mentado e a geréncia profissional assegu: rada para que continuem a ser 0 que as grandes empresas priblicas tém sido no Brasil: um canal de ascensio pelo mérito para os jovens de classe média num meio social ainda dominado pelo capitalismo nepotista. A estes dois compromissos, que desi- deologizam as privatizagées, acrescenta-se uma salvaguarda essencial: 0 cuidado para evitar que as privatizagées sirvam de opor- tunidade para grupos privados se assenho- rearem de um dos grandes alvos ocultos da sua cobiga: os fundos de pensao das empre- sas piblicas. Montando, no total, a cerca de 50 bilhdes de reais, estes fundos devem ser resguardados na sua integridade para pela de investimentos produtivos que adiante propomos. Haver poderem, depois, serem aproveitados politi ja Como aprovei- téclos sem dano para os assegurados, desde que respeitado o principio essencial da diversificagao do risco no investimento. 84 O refinanciamento do Estado ¢ a verdadeira reforma tributaria Resolver o problema do patriménio do Estado sé faz sentido como parte de um esforgo para resolver 6 problema duradou- ro da relagao entre receita e despesa Assegurar receita adequada é 0 requisito essencial tanto da consolidacao da estabi- lidade monetéria quanto da execugao de qualquer estratégia de desenvolvimento nacional. O ponto de partida para o raciocinio é que precisamos elevar substancialmente a receita publica ao mesmo tempo que racionalizamos a despesa. Qualquer cami- nho de desenvolvimento que seja ao mesmo tempo vidvel e democratizante exigira grandes investimentos piiblicos em gente e em infraestrutura produtiva, sus- tentados durante muito tempo e financia- dos sem apelo aos macetes da finanga inflaciondria. Das muitas ilusdes que com- péem o ideério neoliberal, a mais danosa € supor que 0 dnus tributario seja grande ¢ que devamos reduzi-lo ao redimensionar- 55 mos o Estado. O que se pode dizer € que ele & mal distribuido e mal cobrado. H4, porém, um dilema a resolver. De um lado, um pais como 0 nosso precisa ter um nivel de tributagdo relativamente mais alto do que o nivel estabelecido em paises mais ricos ¢ mais igualitarios. (Compare, por exemplo, nivel brasileiro de 26% em média com o nivel francés de 46%). Por outro lado, porém, um pais como o Brasil parece nao tolerar uma carga tributaria tao alta quanto a de pajses mais desenvolvidos porque, precisando de poupanga e investimento privados para criar uma vigorosa economia de mercado, nao pode sufocé-los sob uma enxurrada de obrigages tributarias. Este dilema tem solugao: focalizar a tributagao sobre o consumo. Voltada para 0 consumo, a tri- butagiio pode crescer como estimulo, niio ameaga, 4 poupanga e ao investimento. A tributago do consumo tanto pode ser indireta (sobre transagées) como dire- ta (sobre pessoas). Quando € direta, pode também ser progressiva: tributa-se, em 56 escala crescente, a diferenga entre a renda € a poupanga ou o investimento de cada contribuinte, isentando-se o contribuinte que ganha ¢ consome pouco. E até possi- vel imaginar que, nos niveis mais altos, a aliquota de um imposto pessoal sobre o consumo seja, digamos, de 200% — o abastado paga ao Estado dois reais por cada real que consuma. A curto prazo, porém, a énfase na tri- butagio direta e progressiva do consumo individual nao € nem politicamente vid- vel nem socialmente necessaria. Basta tri- butar, de forma generalizada e indireta, 0 consumo. © instrumento mais neutro, menos distorsivo das decisées econdmi- zas € 0 imposto sobre o valor agregado. Propomos institui-lo na sua forma mais abrangente — ainda longe da forma par- I em que vem sendo, aos poucos, ado- ado no Brasil. Nesta forma, incide sobre 1 diferenga entre o prego dos insumos ¢ 0 srego do produto em cada etapa da produ- sho e da circulagao. Em cada uma destas stapas, 0 agente econdmico, transformado 87 em verdadeiro delegado fiscal do Estado, abate da quantia cobrada ¢ recolhida 0 valor do que foi cobrado ¢ recolhido nas etapas anteriores, A conseqiiéncia é fazer com que 0 efcito econémico do tributo incida sobre a etapa final de venda para 0 consumo. O governo federal dividiria com 698 estados ¢ os municipios o produto deste imposto segundo critétios que logo mais descrevemos. Assoc ese m 0 governo federal e os estados na cobranga do tribu- to: compartilhariam 0 investimento no instrumental humano e tecnolégico da arrecadago para que os melhores padroes de vigilancia se universalizassem no pats. Se, como propomos, este tributo for cobrado com uma aliquota alta, como 30%, representando parte substancial do prego, haverd, de uma s6 pancada, uma subida do nivel geral de pregos dos bens de consumo e servigos. Esta subida sera, porém, compensada pela diminuigao pro- porcional de outros impostos, inclusive do imposto sobre a renda da pessoa sica (que funciona no Brasil sobretudo como 58 ttibuto sobre os salérios da classe média). Também a compensaria a elevagio da receita ptiblica, facultando um aumento do investimento social do Estado. Os estudiosos concordam — e a experiéncia comparada 0 comprova — que esta eleva- cdo singular do nivel geral de pregos nao exerce efeito inflaciondrio quando faz parte de um novo equilibrio entre receita ¢ despesa piblicas. Pelo contrario, pode contribuir decisivamente & consolidagao da estabilidade monetéria. Livre de todas as restrigdes comprome- tedoras, o imposto atingiria tanto os servi- 0s quanto os bens, Nao hé dificuldade maior em fazé-lo incidir sobre os servigos financeiros. A tinica excegio a légica geral do imposto que advogamos agravaria 0 tributo em vez de atenud-lo: um trata- mento especial dos bancos que leve em conta a hipertrofia do setor financeiro no Brasil ¢ o desvirtuamento das suas fun- ces, estimulado pelo antigo regime infla- ciondrio. Propomos seguir o exemplo de Israel em tratar ndo apenas a prestagao de 59 servigos financeiros mas 0 valor total dos 108 ¢ dos materiais empregados como base do imposto. Para evitar que este tratamento mais severo prejudique a competitividade internacional dos bancos bras financeiras subsidistias, beneficiadas por um regime fiscal mais brando, as opera- leiros, atribuir-se-iam a empresas Ges internacionais dos nossos bancos A rigor, se estabelecéssemos o imposto sobre o valor agregado desta forma abran- gente, com alfquota alta, de 30% ou mais, reduzirfamos radicalmente nossa depen- dénc do sistema tributério complexo, ineficiente ¢ injusto a que ainda recorre- mos, Sozinho, o imposto generalizado sobre o valor agregado inanciaria grande parte da despesa publica, consolidando a estabilizagao e lastreando os investimen- tos ptiblicos. A técnica prudente seria combinar © imposto sobre o valor agrega- do com a manutengao de certos tributos existentes ou a introdugao de certos tribu- tos novos. Entre os tributos a desempe- nharem, nesta primeira etapa, um papel “0 acesssrio ao imposto generalizado sobre o valor agregado estariam aqueles que, além de produzirem receita significativa, prefi- gurariam os dois tipos de tributos diretos e atribuimos maior rele- igualizadores a que vo nas etapas subseqtientes de uma refor- ma democratizante: 0 imposto direto sobre 0 consumo, incidindo em escala progressiva sobre a diferenga entre os ren- dimentos totais e a poupanga de cada contribuinte, ¢ 08 impostos patrimoniais, sobretudo aqueles que incidem sobre as doagdes e herangas. Detalhamo-nos no quarto capitulo. Para entender 0 potencial arrecadador de um imposto verdadeiramente geral sobre 6 valor agregado, vale a pena come- gar pensando por analogia ao efeito de tal tributo nos Estados Unidos. E que, apesar da grande diferenga quantitativa entre a nossa economia e a americana, algumas das circunstancias bisicas dos Estados Unidos na tributagio indireta do consu- mo seriam semelhantes As nossas, justa- dos, como mente pot serem os Estados Ur 6 € 0 Brasil, um pats com uma taxa baixa de poupanga. Como o Brasil, insistem num regime tributério que, pretendendo ser progressista, gera relativamente pouca receita impede, por isso, uma redistri- buigao efetiva de ocorrer. A diferenga é que as contas piiblicas norte-americanas stio mais pormenorizadas e os efeitos pro- vaveis da instituigdio de um imposto gene- ralizado sobre o valor agregado tém sido If estudados em profundidade. © produto interno bruto dos Estados Unidos supera 6 trilhdes de délares. O valor de todos os on arrecadado por todos os trés niveis da federacao, € 1,75 trilhao (dados de 1994), excetuando-se as contribuigdes previden- tributos, somando: cidrias do “social security”, que elevariam esta quantia a 2,26 trilhdes. Como se alcangaria resultado semelhante sob um regime tributario organizado em torno de um imposto generalizado sobre o valor agregado? Estima-se em 4,14 trilhdes de délares o valor total do consumo pessoal, analisado, com seguranga, em cada um a dos seus componentes. Como o imposto generalizado sobre valor agregado nada mais é que a tributagao do total do consu- mo pessoal, um IVA, com aliquota de 30%, produziria, em tais condigdes, 1,23 trilhdo. A esta cifra, somemos, em primei- ro lugar, os 0,2 trilhao representados pelo equivalente do nosso imposto predial urbano e territorial rural que, nos Estados Unidos como io Brasil, representa, em a de um tributo sobre © patriménio. Final- mente, somemos 0,3 trilhiio, que atribui- nivel municipal, a forma fragmentér riamos, conservadoramente (para reforgar a analogia com o Brasil), ao produto de um imposto direto e progressive sobre sto é, sobre a dife- consumo pessoal — renga entre a renda ¢ a poupanga de cada contribuinte. Esta cifra € apenas a metade dos 0,6 trilhdo que atualmente produz o tributo que tal im-posto substituiria, 0 imposto sobre a renda da pessoa fisica. A soma destas trés quantias — as receitas do imposto sobre o valor agregado, do impos- to predial dos municipios ¢ do imposto 63 direto sobre 0 consumo pessoal, avaliado em metade do atual imposto sobre a renda da pessoa fisica — produziria nos Estados Unidos 1,73 trilhao de délares, quase o mesmo que a atual receita tributétia, dis- pensados todos os outros € numerosos tri- butos cobrados em todos os trés niveis da federagiio. Nao ha por que acreditar que no Brasil, dadas as proporgdes semelhan- tes de receita, poupanga ¢ consumo, seria muito diferente, desde que 0 aparato de vigilancia e cobranga da Receita brasileira fosse devidamente aparelhado e o gover- no demonstrassse vontade politica de identificar ¢ punir os evasores. Também no Brasil, um imposto gene- ralizado sobre o valor agregado logo se transformaria no esteio da receita pibli- ca. Bastaria combind-lo com alguns outros tributos para superarmos em muito © que atualmente arrecadamos em todos 0s niveis da federagao. Se projetarmos para o exercicio de 1995 um PIB de 5% superior ao PIB apurado em 1994, tere- mos 0 valor de 557,580 bilhaes de reais. 64 Obtém-se a base do imposto generalizado sobre 0 valor agregado — o total do con- sumo pessoal no pais — subtraindo do valor do PIB o valor total da poupanga, niblica e privada, somando ou subtraindo 9 saldo da conta corrente, ¢ subtraindo a sarte da despesa publica corrente gasta 2m materiais. (A despesa publica na conta de capital é poupanga publica, anquanto que a despesa publica corrente 2m pessoal se transforma em poupanga ou consumo dos indivéduos.) Esta quantia seguramente excederia hoje 400 bilhdes Ie reais; 30% seriam, portanto, mais de (20 bilhoes de reais. Calcula otal da arrecadagio de todos os trés riveis da federagao hoje em pouco mais Je 150 bilhdes de reais, dos quais 83,660 rilhdes de reais sao arrecadados pela eo valor Jniao. Se acrescentarmos a estes 120 silhdes de reais um imposto seletivo obre os produtos de luxo ou téxicos incluindo automéveis particulates, cigar- 08, bebidas, cosméticos, armas ¢ muni- Jes), 0 atual imposto sobre a proprieda- 65 de territorial urbana e rural, um imposto direto e progressivo sobre © consumo pes- soal (rendendo, na etapa inicial e proba- téria, pelo menos metade do que rende o atual imposto de renda sobre a pessoa fisi- ca) e, ainda, um comego de tributagao séria das herangas e doagées, chegarfamos a uma quantia muito superior aos 150 bil- hoes de reais atualmente arrecadados. En- tretanto, conseguirfamos este resultado por um sistema radicalmente simplifica- do, que eliminaria o grande nimero de gravames atuais sobre a produgao, tais como PIS/Cofins, o imposto de renda sobre a pessoa juridica € o imposto sobre os produtos industrializados. Ha, entao, duas indagagées a fazer. Como se devem repartir entre a unio, os estados e os municfpios as receitas e os encargos? Como se devem distribuir entre estados ou municipios mais ricos ¢ mais pobres estes dinheiros? Como resposta primeira indagagao, propomos assegurar aos estados e aos municipios pelo menos os 12,5% do PIB que atualmente rece- 66 em. Esta porcentagem seria garantida ela soma dos tributos locais com as tansferéncias da Uniao suficientes para tingir este resultado. Alcangada esta aeta, todo 0 acréscimo da arrecadagio aberia 4 Uniao, pois a Uniao seria a pri- vel pela politica de inves- reira respons mentos sociais ¢ produtivos que descre- emos em seguida. Na distribuigao das vansferéncias federais entre estados ou iunicfpios ricos e pobres, haveriam de ¢ em conta dois critérios contra- gstos: a contribuigdo relativa de cada stado ou municipio ao valor arrecadado 10 caso do imposto sobre o valor agrega- >, por exemplo, 0 critério mais relevan- » pode ser a distribuigéo geografica da ilha de pessoal) ¢ a distribuigao pela i2o inversa da renda per capita multi- icada pela populagao. Se o primeiro cri- rio beneficia os estados ou municfpios cos, 0 segundo resguarda os pobres. O ivel de beneficiamento dos estados ou unicipios mais pobres deve ser o bas- inte para permitir que cofinanciem 0 investimentos produtivos sem terem de recorrer a isengdes ou incentives espe- ciais. Podem, assim, contrabalangar as desvantagens inerentes a iniciativas cempresariais em regides atrasadas. ‘As respostas que propomos a estas duas ordens de indagagdes podem ser contro- versas. io, porém, transparentes. Exporiam as claras a distribuigao dos recursos piblicos no Brasil. Obrigariam a renegociagao periddica do pacto federati- vo. E beneficio, nao custo, da proposta. Os reformistas protestam, no Brasil como em todo o mundo, que um sistema tributario, como 0 que propomos, que valorizasse a tributagio indireta do con- sumo seria injusto e regressivo. En- ganam-se. A grande e desconhecida li¢to dos estudos tributérios comparados que, nas condigdes reais das sociedades con- temporineas, a redistribuicao da renda e da riqueza se faz muito mais pelo lado da despesa publica do que pelo lado da tri- butagiio progressiva. © vulto da receita acaba por importar mais do gue o perfil 68 a sua arrecadagao. Daf porque a mais esigual de todas as democracias ociden- ais ticas — os Estados Unidos — seja ustamente aquela que ostente, na forma, sta. E uc a despesa priblica, arrimada na tribu- » indireta do consumo, € muito "sistema tributdtio mais progre: a renos desestabilizadora dos incentivos € 0s atranjos econdmicos do que um nivel ortespondente de tributagiio direta, so- rretudo quando o tributo direto incide obre a renda. Por isso, tolera-se um dnus ributdtio mais alto quando a tributagao ndireta do consumo financia grande arte dele Temos de pensar dialeticamente tanto obre a tributagao quanto sobre a privati- agao. Privatizemos algumas grandes mpresas ptiblicas para reduzir dramatica- nente a divida interna e ter no futuro os acios de alavancar o investimento pibli- ©, inclusive o investimento na criagdo de ovas empresas ptiblicas. Abandonemos, 1or hora, a ilusio da tributagao progressi- a e redistribuidora por amor a compro- 69

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