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A política parlamentar no movimento socialista

Errico Malatesta

O Sufrágio Universal não é um instrumento de emancipação


social, mas um meio de submissão ao Capital
 

            Antes de examinar a influência que o parlamentarismo exerceu sobre o movimento


socialista, é interessante estudar o sufrágio universal enquanto princípio de vida política ou
enquanto instrumento de emancipação porque ao apresentar a consagração de um suposto
consenso popular ao parlamentarismo, foi o sufrágio universal que fez com que um certo
socialismo encontrasse a oportunidade, que ele a tenha ou não procurado, de se situar no
terreno parlamentar e, assim, de se corromper e de se aburguesar.

            Se entre as instituições políticas que regem ou podem reger a sociedade há uma que
parece ter se inspirado no princípio de justiça e igualdade, e que suscitou e suscita ainda vivas
esperanças entre os amigos do progresso é o sufrágio universal.

            Se acreditássemos no que dizem seus defensores, o sufrágio universal marcaria para
sempre o fim da era das revoluções e abriria a via às reformas pacíficas feitas no interesse de
todos e com o consentimento de todos. A legislação se colocaria à altura da civilização e,
sempre suscetível a modificações ele deveria sempre responder às necessidades e à vontade
de todos ou pelo menos, da maioria dos homens. A opressão e a exploração da grande massa
da humanidade por um pequeno número de governantes e de possuidores não mais teria razão
de existir; e se verdadeiramente a miséria da maioria não fosse uma lei inexorável da natureza
mas um fato social que a sociedade pudesse corrigir, ela desapareceria com todos os
sofrimentos e degradações que ela gera.

            E é preciso convir que poderia parecer à primeira vista que as coisas poderiam ser
sempre assim.

            Na sociedade atual tudo é regido por leis. Aqueles que fazem as leis são os deputados,
em última análise. Os deputados são nomeados pelos eleitores; são pois os eleitores ou, para
ser mais exato, a maioria dos eleitores que manda e dispõe de tudo. E como a maioria é feita
de trabalhadores, eles seriam, se fossem votar, os árbitros de seu próprio destino e da situação
geral.

            Mas os fatos, que são de uma eloqüência brutal, vão de encontro a este raciocínio, em
aparência tão simples e tão claro.

            Há países onde o sufrágio universal existe e funciona há muito tempo; há outros que
viram estabelecer, depois abolir, em seguida restabelecer, depois abolir, em seguida
restabelecer novamente, alternadamente, o sufrágio universal; e as condições morais e
materiais das massas permaneceram sempre as mesmas...

            Basta conhecer um pouco a História e a Estatística, ou de ter simplesmente viajado um


pouco, ou ainda ter lido apenas os jornais, de qualquer coloração que sejam, para notar que,
mesmo sem os entraves de um reio ou de um senado, mesmo completado por um
“referendum” e pela “iniciativa popular” (Suíça), o sufrágio universal nunca e em nenhum lugar
serviu para melhorar o destino dos trabalhadores.

            Tanto nas repúblicas quanto nas monarquias onde ele existe, as Câmaras são
compostas de proprietários, advogados e outros privilegiados, assim como nos países onde o
sufrágio é mais ou menos restrito às classes possuidoras e cultas. E nestes países como nos
outros, as leis que as Câmaras fazem, servem apenas para ratificar a exploração e defender os
exploradores.

            Numa palavra, dos golpes de Estado, estilo Napoleão, às hecatombes da burguesia; da
invasão covarde e sórdida de populações militarmente fracas aos fabricantes da fome dos
trabalhadores e ao assassinato dos famintos recalcitrantes; do banditismo dos conquistadores
em larga escala às arrogâncias mesquinhas e às crises de nervosismo bufões dos ministros do
tipo César, não há um único atentado à civilização, ao progresso, à humanidade, uma única
infâmia, grande ou pequena, que o sufrágio universal habilmente manipulado não tenha
absorvido, justificado, glorificado. Não existe uma única lágrima de mulher, um soluço de um
pobre que o voto inconsciente dos miseráveis não tenha achincalhado e tornado ainda mais
doloroso.

            De onde vem esta contradição entre os fatos e os resultados que a lógica deixava
prever? Talvez se trate de um fenômeno inexplicável de um tipo de milagre sociológico.

            Avancemos mais e talvez um raciocínio mais completo e conseqüentemente mais


verdadeiro nos demonstre que o sufrágio universal produziu somente o que ele devia
logicamente produzir.

            Na teoria, o sufrágio universal é o direito da maioria de impor sua vontade à minoria.

  Este pretenso direito é uma injustiça porque a personalidade, a liberdade e o bem-


estar de um único homem são tão dignos de respeito, tão sagrados quanto aqueles de toda a
humanidade.

Aliás, não há nenhuma razão para crer que a verdade, a justiça, o interesse comum
encontrem-se sempre do lado da maioria: os fatos provaram, ao contrário, que é geralmente o
inverso...

Se todos os homens exceto um estivessem satisfeitos de ser escravos e de se


submeter, sem necessidades naturais, a todos os tipos de sofrimentos, esse teria razão de se
revoltar e de exigir liberdade e bem-estar. Os votos, o número, não decidem nada, nenhum
direito se perde, nenhum direito se cria por eles.

 Uma sociedade igualitária deve estar fundada sobre o livre e unânime acordo de todos
os seus membros. Mesmo numa sociedade socialista na qual tivesse completamente
desaparecido a opressão e a exploração do homem e onde o princípio de solidariedade
regesse todas as relações humanas, é verdade que poderia acontecer, e aconteceria com toda
a certeza, que se produzissem casos onde o recurso ao voto seria necessário, ou pelo menos
cômodo. Esses casos se tornariam cada vez mais raros na medida em que a ciência da
sociedade descobrisse e tornasse evidentes as soluções que corresponderiam exatamente aos
diferentes problemas da vida coletiva. Mas enfim, haverá sempre casos em que diversas
soluções se apresentarão e onde será necessário de se limitar a um expediente mais ou menos
arbitrário, sem que seja possível ou julgado oportuno dividir-se em tantas frações quanto
existam soluções preferidas. O mais rápido, nesses casos, é que a minoria se adapte ao desejo
da maioria. Bem, votar-se-á então, provavelmente; mas num caso como desse tipo, o voto não
é um princípio, ele não é um direito nem um dever mas um pacto, uma convenção entre
associados!

   Mas isto interessa pouco para os problemas que estamos tratando pois, quaisquer
que sejam as objeções que se possa fazer aos direitos da maioria, não deixa de ser verdade
que o regime do sufrágio, tão mentiroso quanto todo o sistema parlamentar, não é em nada o
governo da maioria, nem mesmo da maioria dos eleitores. Ele é simplesmente um artifício que
permite ao governo de uma classe ou de um grupelho tomar as aparências de um governo
popular.
    Com efeito, cada eleitor só nomeia um deputado, ou um pequeno número de
deputados sobre várias centenas que compõem habitualmente uma Assembléia. É verdade
que, mesmo quando os eleitores vêem seu próprio candidato ser eleito, sua vontade, que
durante as eleições já não contava praticamente nada, seria representada por um único
deputado, que, ele próprio, tem um papel mínimo na Câmara. A Câmara, tomada em seu
conjunto, não representa de modo algum a maioria dos eleitores. Cada um dos deputados é
eleito de um certo número de leitores mas o corpo eleitoral, enquanto totalidade, não é
representado.

      Assim, ocorre que fatos que concernem, por exemplo, tal localidade ou tal
corporação devem ser julgados por uma assembléia de pessoas estranhas a essa localidade
ou a essa corporação, ignorantes ou indiferentes em relação a seus interesses e onde um
único, ou um pequeno número, pode, com maior ou menor razão, representar um mandato
recebido dos próprios interessados. A Sicília será governada por uma assembléia onde os
sicilianos representam uma ínfima minoria; as leis sobre as minas ou sobre a navegação serão
feitas por pessoas que não são mineiros ou marinheiros; e assim em tudo: qualquer problema
será resolvido por quem não o conhece absolutamente; qualquer interesse será regulado por
todos, exceto pelos interessados...

     Além do mais, mesmo que se deixe de lado o problema da mulher (que tem os
mesmos direitos e interesses que a população masculina), mesmo que não se leve em conta
esse fato: para que os deputados sejam eleitos pela maioria de eleitores de seu colégio
eleitoral, só poderia ter, em cada circunscrição, apenas dois deputados a se dividir os votos;
ainda assim, a maioria, que definitivamente faz as leis e dispõe dos destinos de um país, só
representa, com toda a evidência, uma pequena parte da população. A Câmara só representa
uma parte dos eleitores e as leis nunca são aprovadas por unanimidade pelos deputados.

      Se considerarmos também os canais por onde passa um projeto antes de se tornar
lei, as concessões e as transações às quais são levados os deputados para poder chegar a um
acordo; se fizermos um balanço das mil e uma considerações de partido e de clientela
estrangeira ao que deve fazer objeto de uma lei e que não têm também uma influência
determinante sobre o voto dos deputados, não será nada difícil compreender que a lei, uma vez
elaborada, não representa mais os interesses nem a vontade nem as idéias de ninguém. E isto
sem falar nos novos obstáculos que são os votos dos senadores e a aprovação do rei ou do
presidente que complicam a um grau mais ou menos grande todas as constituições que
existem.

       Enquanto os deputados, distantes do povo, desinteressados de suas


necessidades, impotentes em satisfazê-las mesmo que quisessem, acabam se ocupando
apenas da consolidação e do crescimento de seu próprio poder, da obtenção constante de
novos subsídios e, finalmente, da liberação de toda dependência para com o povo, termo
“fatal”, como diz Proudhon, de todo o poder emanado do povo.

       Tais são necessariamente as conseqüências do parlamentarismo que decorrem da


própria natureza de seu funcionamento; e, supondo, além do mais, que o voto dos eleitores
seja um voto livre e esclarecido.

         Que dizer das condições reais nas quais o sufrágio universal é exercido numa
sociedade onde a maioria da população, atormentada pela miséria e embrutecida pela
ignorância e pela superstição vê sua existência depender de uma pequena minoria que detém
a riqueza e o poder?

         Em regra geral, o eleitor pobre não é e não pode ser capaz de votar de modo
consciente e livre, votar como quiser.

                   Sem instrução prévia e sem possibilidade de se instruir, reduzido a crer cegamente
no que lhe conta um jornal, e isso se ele sabe ler e se tem tempo para fazê-lo, ignorando tudo
das coisas e dos homens com os quais ele não está diretamente em contato, como pode ele, o
proletário, saber quais as coisas podem ser pedidas a um Parlamento, quais homens podem
pedir por ele? Pode ele fazer uma idéia clara do que é o parlamento?

          É certo que os camponeses e os operários, mesmo os menos esclarecidos,


sabem mais do que os doutores em economia política quando se trata de seus interesses
diretos, das coisas que eles vêem e tocam, de se seu trabalho, de sua casa, de sua vida
quotidiana. Eles podem facilmente ter uma opinião sobre as questões que lhes concernem,
quando elas são apresentadas de modo simples e natural. Eles saberiam dizer sim ou não se
querem que os patrões, sem sair de suas cadeiras, retirem deles a melhor parte do fruto de seu
trabalho. Eles saberiam dizer se querem ou não ser soldados. Saberiam como empregar a
riqueza de sua comuna ou de sua nação se eles possuíssem todas as informações necessárias
sobre os produtos disponíveis, sobre a capacidade de produção e sobre as necessidades de
todos os seus concidadãos. Saberiam como ensinar uma profissão aos filhos... E tudo aquilo
que não soubessem ou não compreendessem, logo aprenderiam se tivessem que se ocupar
eles próprios de tudo isso, para responder a uma necessidade prática.

            Mas se os problemas que lhes apresentam não os concernem, ou se são


complicados por interesses que lhes são estranhos a tal ponto que eles não possam mais
reconhecê-los; se as coisas mais simples são obscurecidas por uma terminologia técnica que
faz da política uma ciência oculta; se eles não têm o tempo de se informar e de refletir, e se
não se sentem motivados a fazer porque sabem muito bem que não cabe a eles decidir e que
há os que pensam por eles, nesse caso então seu voto será inconsciente, como é geralmente o
caso. E ainda que o eleitor pudesse adquirir a consciência de seu dever, poderia ser ele
independente e votar como quisesse?

            Sua vida e a de seus filhos dependem da boa vontade de um patrão que pode
leva-los a morrer de fome se este lhe recusa trabalho. Os patrões e os funcionários do governo
dos partidos fortes possuem mil e um meios de se vingar, de modo aberto ou jesuítico, de
quem não votou como eles desejavam. E, além do mais, mil e uma promessas, bajulações e
favores podem, a qualquer momento perturbar o desassistido, colocando em conflito sua
consciência de homem livre e a afeição e deveres que sabe ter em relação à sua própria
família uma vida um pouco menos miserável ou pelo menos, um alívio momentâneo aos
terríveis sofrimentos de todos os dias?

            Diz-se que o voto é secreto; mas que importância tem isso se o patrão, o
governo ou os partidos podem enviar às urnas aqueles que eles dominam, sob a vigilância de
seus agentes, e se podem, de mil maneiras, assegurar-se do modo como eles votam, ou
simplesmente lhes fazer crer que eles têm meios para averiguar? Qual importância pode ter o
segredo se o simples fato de querer que ele seja respeitado já é, para o patrão, uma prova de
hostilidade, um motivo para ser despedido da fábrica ou da fazenda? E é ainda pior quando um
patrão tem todos aqueles que estão sob sua dependência por solidariamente responsáveis da
vitória de um deputado, ameaçando a fábrica e outras represálias, como foi freqüentemente o
caso, infelizmente e particularmente nas grandes usinas metalúrgicas onde se pode dizer ao
operário que tal deputado pode obter trabalho através do governo. O medo da fome é tão
corruptor... Os operários chegam mesmo a vigiar uns aos outros e a dedurar, com medo que o
candidato do patrão não seja eleito...

            As massas proletárias podem se insurgir e arriscar tudo na esperança de uma


vitória imediata; mas elas não arriscam seu trabalho, ou seja, seu pão e sua tranqüilidade,
quando se trata de uma luta que só lhe oferece uma promessa, cem vezes desmentida, de
melhoria lenta e distante, e que deixa sempre aquele que luta, seja ele vencedor ou vencido, à
mercê do patrão.

            É o que se explica os plebiscitos que aclamam um governo mesmo às vésperas


do dia em que uma insurreição os derrubará.

                      Não, o eleitor pobre não é consciente nem livre; e não poderia ser de outra
forma...
                      Se a miséria não embrutecesse as pessoas, se as necessidades econômicas e a
preocupação com o dia seguinte não tornasse o homem submisso e medroso, se, numa
palavra, a massa tivesse consciência de seus próprios direitos e a firme vontade de fazê-los
valer, ela não necessitaria de ir buscar homens mais ou menos capazes e honestos para
encarregá-los de suas próprias reivindicações, e rapidamente estaria emancipada. Os
trabalhadores se recusariam a trabalhar para os patrões, os contribuintes se recusariam a
pagar os impostos, os conscritos não fariam o serviço militar, e eis que, de um só golpe, seriam
destruídos a propriedade individual e o Estado político, que são as duas correntes que
esmagam e marginalizam a espécie humana. Toda ilusão em relação ao sufrágio universal,
enquanto meio de emancipação, tendo sido assim destruída pelo raciocínio e pelos fatos, faz
com que as classes privilegiadas, que inicialmente se mostraram amedrontadas e reticentes,
compreendam pouco a pouco a utilidade que elas podem retirar do sufrágio universal e o
aceitem como uma arma preciosa do governo.

            Quando o povo não pode mais ser mantido na submissão pela simples força
bruta e quando as mentiras dos padres já não lhe bastam a fazer aceitar a miséria como um lei
decretada por Deus; quando ele não situa mais suas esperanças no paraíso e quando não tem
mais medo do policial, nesse momento então não lhe resta outro meio para mantê-lo em
escravidão senão o de fazê-lo crer que o patrão é ele; que as instituições sociais são sua
própria obra e que elas podem mudar se assim ele o desejar. E a burguesia faz prova genial de
talento político ao conceder ao povo o sufrágio, que nada mais seria do que o direito de se
escolher seus próprios patrões, se fosse exercido em condições de ignorância e escravidão
econômica quase feudal que são as do povo, nada mais é do que uma indigna comédia onde
chralatães vulgares fazem comércio de sua própria consciência e das lágrimas do próximo.

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