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GISLÂNIA DE FREITAS SILVA

MÔNICA DIAS MARTINS


RESENHAS / BOOK REVIEWS

Novo olhar sobre as


nacionalidades nas Américas
REFERÊNCIA: DOYLE, D. H.; PAMPLONA, M. A.
(org.) Nacionalismo no novo mundo: a formação
dos Estados-nação no século XIX. Rio de Janeiro:
Record, 2008. 462 p.

O estudo das nações nas Américas centrismo, fixar as especificidades dos


baseado em sólida discussão concei- processos nacionais americanos e ofe-
tual tem sido insistente e simploria- recer novos subsídios para a compre-
mente postergado, apesar de Benedict ensão teórica do nacionalismo. A co-
Anderson ter aberto possibilidades in- letânea reúne trabalhos apresentados
terpretativas renovadoras no tocante em encontros internacionais e interli-
às manifestações nacionais de tendên- gados pelo diálogo profícuo, no qual
cia republicana. Como ironiza este cada um empresta cores e vida aos
autor, sempre queremos acreditar que demais, conferindo movimento e uni-
tudo de importante para a humanida- dade à obra.
de surgiu na Europa. Os organizadores partem da ideia
Finalmente, em “Nacionalismo no segundo a qual as Américas desafi-
novo mundo”, Marco Antonio Pamplo- am o paradigma clássico de nação (as-
na (Pontifícia Universidade Católica do cendência comum, passado compar-
Rio de Janeiro) e Don H. Doyle (Uni- tilhado, tradições culturais homogê-
versidade da Carolina do Sul) fogem neas) por suas comunidades multiét-
da rotina empobrecedora: trata-se de nicas, seu fluxo constante e diversifi-
uma tentativa de, escapando do euro- cado de imigrantes e suas idealiza-

Gislânia de Freitas Silva: Socióloga formada pela


Universidade Estadual do Ceará.

Mônica Dias Martins: Professora do Mestrado


Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade da
Universidade Estadual do Ceará.

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ções nacionalistas em sociedades es- tando caráter essencialmente “domés-


cravocratas. O Novo Mundo não vi- tico” (p.49).
venciou, com a mesma intensidade de Três promissores artigos examinam
outros continentes, conflitos “domés- a guerra de libertação nas treze colô-
ticos” ou “externos” alongados e per- nias britânicas. T. H. Breen (Universi-
sistentes. Aqui, as comunidades na- dade Northwestern) discute os laços
cionais, antigas colônias, repousaram entre o nacionalismo e o pensamento
suas autoidentificações em queixas político, rejeitando estudos que se de-
objetivas às metrópoles, mas, descon- bruçam sobre ideias abstratas de ge-
fortando os defensores do “etnonaci- nealogias políticas deixando ao largo
onalismo”, os autores salientam que a autoidentificação ou se prendendo
os “patriotas” pretendiam “ser euro- obsessivamente a esta. Para Breen, há
peus” e não brandiam suas origens mais a ganhar verificando a conjuntu-
étnicas como razão da luta. Anderson ra específica do nacionalismo e como
já sublinhara que nem mesmo a lín- esse interagiu com ideias políticas em
gua foi motivo de disputas, pois era a ambientes cultural, espacial e tempo-
mesma do colonizador. ralmente diversos. O nacionalismo não
“O nacionalismo importa”, ensaio cria pensamento político, mas traba-
de Craig Calhoun (Universidade de lha com os recursos culturais existen-
Nova York), enriquece sobremaneira a tes e empresta intensidade a ideias não
reflexão teórica sobre as nacionalida- necessariamente novas; à medida que
des. Na premissa do autor, o naciona- muda o contexto histórico, muda tam-
lismo é uma “formação discursiva” que bém o discurso nacional (p.93). Duran-
configura o mundo moderno (p.37). As te a Revolução americana, assevera
nações não existem “realmente” an- Breen, o “capitalismo de imprensa” foi
tes de existirem em termos discursi- vital para a participação popular na
vos: o nacionalismo organiza o senti- construção da nacionalidade.
do que as pessoas possuem do seu As conexões entre a identidade bri-
lugar no mundo e, portanto, deve ser tânica e as identidades provinciais no
apreendido em suas formas mais ba- período revolucionário são averigua-
nais. Após criticar grandes equívocos das por Jack P. Greene (Universidade
da concepção europeia de nação, Ca- John Hopkins). Conforme sublinhara
lhoun afirma que, nas Américas, o Calhoun, os Estados europeus se fir-
nacionalismo emerge tanto do inter- maram paralelamente à expansão de
câmbio interamericano como das re- seus impérios ultramarinos. Ampara-
lações com a Europa, jamais manifes- do em volumosa correspondência dos

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líderes da resistência colonial, Greene dade cultural; Quebec, antiga “Nova


mostra que as distintas e arraigadas França”, cuja população se manteve
identidades dos Estados fundadores da relativamente homogênea, continua a
Federação influenciaram intensamen- desafiar a unidade nacional mediante
te, e ao longo de décadas, as formula- forte movimento emancipacionista.
ções políticas norte-americanas bem Segundo Buckner, “ainda não está cla-
como a natureza do governo nacional ro se a nação quebequense permane-
(p.115). Susan-Mary Grant (Universida- cerá como parte de um Canadá multi-
de de Newcastle-upon-Tyne) completa cultural” (p.161).
o quadro interpretativo com um cui- As migrações também animam os
dadoso exame da Guerra de Secessão ensaios que enfocam a formação na-
e do seu papel na configuração de “um cional na Argentina. Enquanto Jorge
nacionalismo americano robusto e Myers (Universidad Nacional de Quil-
abrangente” (p. 129). A autora ressalta mes) discorre sobre a importância da
que o debate sobre o significado do primeira geração de literatos e seu
conflito bélico para a nacionalidade projeto de nacionalização da cultura,
americana foi abafado na produção centrado na consolidação de uma lín-
acadêmica, só merecendo atenção nos gua “argentina”, Jeane Delaney (Saint
aspectos puramente militares. De Olaf College) ressalta a ascensão de um
modo a suprir tal lacuna na história discurso nacionalista que, sob o im-
dos Estados Unidos, Grant explora as pacto do fluxo de imigrantes, predo-
cartas de soldados, além das obras li- minantemente italianos ao final do
terárias de Mark Twain e Walt Whit- século XIX, dissemina a ideia de “raza
man, revelando as percepções contra- argentina” unificada. Defensores de
ditórias acerca da “causa nacional”. um nacionalismo cultural inspirado
O complexo caso do nacionalismo nas correntes etnonacionalistas euro-
canadense, forjado por lealdades con- peias, os “novos românticos” valori-
flitantes em relação à França e ao Rei- zaram a concepção dita “primordialis-
no Unido, é o tema de Phillip Buckner ta” de nação (p. 216), em contraposi-
(Universidade de New Brunswick). As- ção aos intelectuais da Geração de
sim como seus vizinhos do sul, o Ca- 1837, com sua perspectiva de “nação-
nadá acolheu imigrantes europeus mundo” (p.201) e seus louvores ao
com predomínio daqueles de naciona- cosmopolitismo “inerente” à identida-
lidade francesa. Sob domínio britâni- de argentina.
co, a comunidade franco-canadense Em seu estudo do caso colombia-
lutou pela preservação da sua identi- no, Hayley Froysland (Universidade

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South Bend de Indiana) retrata o perí- te contradição: o surgimento de uma


odo denominado La regeneración nação mesmo sendo o sentimento
(1884-1900). A “regeneração” da raça nacionalista pouco difundido (p.275).
e da nação requeria não apenas um O autor apresenta elementos do que
governo forte e reformas políticas, mas considera ser o “nacionalismo criou-
o aprimoramento “moral” das classes lo” no México para, em seguida, deli-
baixas da sociedade (p. 242). Na Co- near o quadro sociocultural das aspi-
lômbia, a elite branca e católica se rações campesinas no contexto da in-
autoimaginava “digna, piedosa e ima- surreição. Mas resvala para uma des-
culada”, tomando para si a responsa- classificação dos “insurretos popula-
bilidade de orientar os mestizos, “po- res” (“messiânicos”, “milenaristas”,
bres, doentes e degenerados”, e incor- “ingênuos”), mostrando apego à per-
porá-los à comunidade nacional. Ob- cepção conservadora da formação
serva o autor que essas relações, im- social latino-americana. Faria bem a
pregnadas de paternalismo e justifica- Young uma atualização na teoria po-
das pela crença nas desigualdades “na- lítica e antropológica.
turais”, serviram para reproduzir a or- Os ensaios de Wilma Peres Costa
dem social hierárquica e manter a co- (Universidade de Campinas) e de Hen-
esão nacional até a irrupção da guerra drik Kraay (Universidade de Calgary)
civil, em 1946. versam sobre a nacionalidade brasilei-
Eric Van Young (Universidade da ra. Costa sublinha o papel das narrati-
Califórnia) aborda a independência na vas de viajantes estrangeiros, em par-
“Nova Espanha” tentando contraditar ticular de Saint-Hilaire, sobretudo no
Benedict Anderson. Entretanto, reve- tocante à configuração de uma ima-
la amparos teóricos confusos e incon- gem do Brasil que propiciasse seu re-
sistentes. O Estado-nação, por exem- conhecimento como membro do sis-
plo, é conceituado como “grande tri- tema internacional de Estados (p.324).
bo inventada” (p.265), sem explicar o Já Kraay pondera acerca dos rituais cí-
que isso significa. No plano empíri- vicos no Primeiro Reinado e sua con-
co, Young identifica dois movimen- tribuição para a identidade brasileira.
tos distintos: o “projeto nacionalista” Tendo como principal fonte de pesqui-
da elite letrada e o que seria uma “vi- sa jornais da época, os autores argu-
são de mundo” das camadas popula- mentam que a imprensa e as festas
res, compostas majoritariamente por cívicas interagiram para modelar a
indígenas. Sua pretensão é traçar uma compreensão do Brasil nação (p.330).
linha explicativa para uma inexisten- O relato da experiência no qual a

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grande população indígena e mestiça destacam a diferença de pontos de vista


da Bolívia atuou como construtora da e de atitudes das elites, assim como
nacionalidade constitui o ponto alto do seus reflexos na trajetória das duas
ensaio de Heather Thiessen-Reiley nações. Enquanto os brasileiros enca-
(Western State College do Colorado). ravam o trabalho escravo como um
A autora enfatiza as iniciativas do Pre- “mal necessário” e temporário, a soci-
sidente Manuel Isidoro Belzú (1848- edade sulista o considerava permanen-
1855) para “forjar uma nação de todos te e menos desumano do que o assa-
os bolivianos”, sobreposta a etnias e lariamento capitalista.
classe sociais. Além de cunhar moe- Gerstle examina as concepções de
das e desenvolver símbolos heráldicos, raça e nação que circulavam em Cuba,
como a bandeira, o hino e o brasão, México e Estados Unidos no período
que inspirassem orgulho nacional e de 1880 a 1940. Seu objetivo é, a partir
identificação com o futuro da pátria, do jogo de forças entre a potência
Belzú recorreu a elementos da tradi- emergente e seus vizinhos, apreender
ção, criando “laços com os múltiplos as tentativas de repúdio dos naciona-
passados da Bolívia” (p.359). Obvia- listas cubanos e mexicanos à preleção
mente, seu projeto de soberania po- imperialista assentada em argumentos
pular sofreria contundente resistência raciais. A política de imigração nos
da elite crioula. EUA, a celebração da mestiçagem no
A coexistência da escravidão com México e a “isenção do conceito de
o esforço de disseminação do senti- raça” em Cuba (p.432) exemplificariam
mento comunitário nacional, tema as idealizações em vista de uma naci-
dos mais complexos e inexplorados, onalidade homogênea.
constituíram o objeto de interesse de “Nacionalismo no novo mundo”
Bárbara Weinstein (Universidade de põe em evidência o século XIX, fase
Maryland) e Gary Gerstle (Universida- extremamente rica em termos do sur-
de de Maryland), que desenvolveram gimento de um imaginário anticolo-
abordagens comparativas. Para Weins- nial. Doutrinas e anseios internacio-
tein, “mais do que processos parale- nalistas e nacionalistas se mesclavam
los com lógicas inteiramente separa- nos círculos intelectuais. Na introdu-
das, os discursos sobre a nação e so- ção, os organizadores consideram “o
bre a escravidão participavam da ela- nacionalismo americano parte de um
boração um do outro” (p.397). Ao ana- grande desdobramento transatlântico”
lisar a ideologia escravagista no Bra- e diversos ensaios apontam para os
sil e nos Estados Unidos, as autoras nexos entre a internacionalidade e os

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processos nacionais. Inquietações si-


milares norteiam os estudos desenvol-
vidos no âmbito do Observatório das
Nacionalidades. Sustentamos que a
nação se organiza para integrar a co-
munidade global e sua existência re-
quer certo grau de dependência a um
pacto estabelecido pelos Estados naci-
onais e por uma ampla gama de ato-
res internacionais.
As páginas deste empreendimento
liderado por Don Doyle e Marco Pam-
plona ajudam a pensar em um dos
maiores desafios aos que lidam com a
formação das comunidades nacionais:
o papel dos “de baixo”, para usar pala-
vras de Hobsbawm, no processo. Dis-
criminações (sejam elas de raça, gê-
nero, religião, etc.) desafiam a unida-
de sugerida pelas nações, mas a pro-
messa de direitos embutida nesta en-
tidade complexa que legitima o Esta-
do moderno constitui poderoso estí-
mulo à coesão nacional. Esta coletâ-
nea enriquece a compreensão das
Américas e certamente alimentará o
debate teórico entre os que evitam ofe-
recer explicações simplórias sobre as
nacionalidades.

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