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Longe de ser somente um processo histórico e social, a supressão do feminino

criou uma espécie de sombra no inconsciente coletivo feminino, ou seja, a Deusa


ferida no âmago da estrutura feminina manifesta-se através do fenômeno do
feminino sombrio. No contexto individual, a perpetuação desta parte
desconhecida, machucada ou reprimida, dá-se através da transgeracionalidade.
Ou seja, de padrões psicológicos negativos e até destrutivos, que irão atrair
situações e pessoas energeticamente compatíveis, criando e recriando
problemas não assumidos, que são transferidos inconscientemente nas famílias
de uma geração de mulheres para a geração seguinte.
A escritora Clarice Lispector certa vez disse que "a mulher não tá sabendo, mas
ela tá cumprindo uma coragem. A coragem da mulher é a de não se conhecendo,
no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem". A mulher paga
um altíssimo "preço emocional" por causa desse prosseguir, sem buscar a raiz de
seus medos, sem curar seus traumas e bloqueios e, muitas vezes, a mulher limita
setores importantes da vida em função, justamente, das limitações do seu
próprio "eu", como, por exemplo, os setores profissional e amoroso.
A mulher comum, ao longo do século passado, iniciou um importante processo de
auto-percepção onde se viu reprimida no âmago da sua feminilidade,
inferiorizada no seu papel social e desconhecida na sua própria sexualidade.
E iniciou um processo de liberação. A principal atitude das mulheres foi a
chamada revolução sexual: queimaram sutiãs, vestiram calças, tomaram
anticoncepcional, foram trabalhar... e escravizaram a si mesmas, pelo motivo de
que em nenhum momento deixaram de ser mulheres, isto é, tentaram uma
liberdade de ser fazendo tudo o que os homens faziam (sexo livre, trabalhar fora,
independência), porém o interior das mulheres continuou carregando a sombra
da Deusa: as mulheres desenvolveram atributos importantes, porém não
curaram as feridas da alma feminina...
Como disse Clarice, a mulher prossegue sem se conhecer... pois todo aquele
movimento feminista não deu às mulheres a autonomia mais necessária de
todas, que é a libertação das pendências emocionais que fazem com que até a
mais bem sucedida das mulheres sofra por determinados "amores". São várias as
chagas da deusa ferida e cabe a cada mulher a tarefa de reconhecê-las e curá-
las. As deusas são atributos femininos riquíssimos de significado, porém, muitas
vezes, para que esses atributos fluam positivamente em nós, torna-se necessária
uma viagem interior, visitando as faces dessas deusas, reconhecendo quais
foram feridas em algum momento de nossa vida, quais não foram feridas mas
estão de certa forma "reverberando" alguma ferida familiar e ainda estão
vivendo um padrão negativo - a sombra, à espera de resgate e salvamento.

Um parceiro para alimentar a inhaca - E o que acaba acontecendo com


muitas mulheres desavisadas por aí afora? Uma espécie de cura ao contrário, a
mulher atrai um parceiro perfeito para toda a sua "inhaca interna", ele ativa e
alimenta suas sombras, seus medos, e suas deusas doentes são ativadas... e a
mulher começa a ser magoada e sofrer e não consegue entender por que sempre
isso, não reconhece que está alimentando um câncer emocional, muitas vezes
perdendo a noção de limite e tentando fazer aquilo dar certo, num verdadeiro
massacre interior...

Saber de suas sombras é o primeiro passo para sair do círculo vicioso...


reconhecer uma Atena ferida que tem medo de lidar com seus sentimentos e sua
sexualidade, e que vive só o racional da vida, muitas vezes escondendo-se atrás
de um papel profissional... reconhecer a chaga de uma Hera, que vive um
pretenso casamento perfeito, mas delega o poder pessoal ao marido e vive a
vida dele como se fosse a sua... até ser traída... e depois ainda recusa-se a
perder o papel de esposa, convivendo com as traições de Zeus... reconhecer uma
Deméter ferida, aquela que vive só para os filhos e que faz até do marido um
filho, depois ressente-se quando estes crescem e vão embora, aquela que nutre
toda a família, mas não busca sua auto-realização, sendo ela própria a maior
carente da relação.
E a chaga de Afrodite então nem se fala, a mulher que por necessidade de
"amor" e atenção aceita ser objeto sensual e sexual, vive muitas vezes o papel
de amante, mas gostaria mesmo de ser a esposa, de ter um homem que a
honrasse, e quando o tem, ainda acha que tem que garantir sua feminilidade
sendo a mais bonita e mais sensual a todo momento e a qualquer preço.
A sociedade alimenta muito esse papel de Afrodite, através de ditames de beleza
impostos, como a beleza padronizada por peitos e bundas esculturais (de
silicone), cabelos lisos, longos e perfeitos (de escova progressiva) e abdomes
secos (de lipoaspiração), sem falar que agora a mulher não se dá mais o direito
de envelhecer, enrugar e tornar-se uma anciã, e aí, dá-lhe reposição hormonal!
Será mesmo que tudo tem que ser firme até a hora da morte? E onde fica o
espaço e o direito à diversidade humana?
Enquanto a indústria da beleza forçada fatura milhões com toda essa insanidade,
será que a mulher que se submete a tudo isso, está realmente ganhando o que
espera? Tem amor de verdade? Tem segurança emocional? Satisfaz-se em
somente aparentar o que na verdade não é? E quem não tem grana pra manter
toda essa beleza plastificada? Vai viver insatisfeita, infeliz?
Olha, já vi gente fazendo empréstimo pra pagar silicone e lipoaspiração, mas por
dentro continuam inseguras, deprimidas e ainda por cima endividadas. E
continuaram compensando suas carências emocionais com comida, o que
significa que em pouco tempo o resultado de suas lipoaspirações foi por água
abaixo.
Mulheres... por favor, honrem-se de verdade! A primeira cirurgia deve ser a
plástica interior, ficar bonita por dentro, ficar poderosa por dentro, ficar firme por
dentro. Realmente, prosseguir sem se conhecer exige coragem, mas decidir
conhecer-se e mudar-se exige mais coragem ainda. Coragem para se reformular,
recomeçar, transformar, reeditar, de dentro pra fora - o que é muito diferente se
sair se "recapando" por aí.

Ainda bem que neste exato momento muitas mulheres estão tendo este yinsight,
de perceber que são muito mais do que julgavam ser, que não são apenas um
corpo a satisfazer padrões, ou uma profissional workaholic, ou uma esposa, ou
uma mãe, ou uma amante, ou uma vítima dos acontecimentos, e que o conjunto
das faces da Deusa só vai existir em equilíbrio se a cura de determinadas
sombras for realizada.
A mulher que buscar o reconhecimento das suas forças interiores e a integração
dos atributos das deusas provavelmente vai parar de culpar a vida ou seus
amores fracassados pela sua infelicidade. Ela vai resgatar seus pedacinhos de
mulher, vai aproveitar e reciclar o que deve ser valorizado e vai se dar conta do
que deve amadurecer e deixar morrer... como a Grande Mãe faz na sábia
natureza.
Consigo mesma, na alegria e na tristeza - E assim pode surgir um novo
modo de SER, de onde pode surgir um jeito de amar novo, descentralizado - o
que não significa superficial. Mas para ter um relacionamento genuinamente
novo, tem que primeiro poder: muitas mulheres nas suas condições atuais
devem se questionar a respeito: "Será que sou capaz de ter uma postura
diferente, um amadurecimento emocional, ou só estou carente e com medo de
ficar sozinha?"
E, dependendo da resposta, antes de quererem amar e ser amadas, devem
buscar primeiro o setor de capacitação. Não é papo de RH: é buscar a
capacitação para poder relacionar-se bem com o ser amado sem torná-lo eixo
condutor da sua própria vida, coisa que muita mulher acaba fazendo sem querer,
porque vive na sombra das deusas e projetando a suposta solução desse vazio
interior no companheiro. Esse jeito de amar descentralizado consiste em manter
o "gráfico da vida" equilibrado, dividido em fatias mais ou menos parelhas, sem
separar fatias grandes demais para algo ou alguém, evitando assim a desilusão.
Quando constatamos que realmente tudo que faz parte da vida é transitório e
que não podemos segurar nada nem ninguém pra sempre conosco, conseguimos
perceber que a única permanência da vida somos nós mesmos. E então
percebemos que este eu mesmo que nos acompanhará eternamente vive melhor
se aprender a crescer, a se autoconhecer, a curar suas feridas, a perdoar, se
perdoar e libertar-se de medos e limitações antigas...

A mulher deveria pensar que, se ela está destinada a conviver consigo mesma,
na alegria e na tristeza, o ideal é que ela faça isso com a maior consciência
possível, o melhor é que ela esteja inteira e não esperando ser completada por
uma metade que na verdade não lhe pertence. As pessoas não se pertencem,
elas podem apenas se aproximar muito e interagir, ser companheiras e amarem-
se, mas a individualidade do outro é um fato intransponível que deve ser aceito,
como aceitamos que precisamos de ar para respirar. Amar é lindo, mas quem
sabe amar de um jeito lindo?
Só quem está muito consciente, muito íntegro, muito amoroso e, desta forma,
ama.
A cura do feminino na vivência do amor envolve uma tomada de consciência de
que talvez aquilo que pensamos ser amor seja outra coisa qualquer que nos
acomoda e nos conforta em nossas limitações. Envolve também a constatação
de que para mudar nossa vida e o que não dá certo nela, só mudando a nós
mesmas, sanando feridas, colocando um ponto final nos sofrimentos antigos e
orgulhos feridos que não servem pra mais nada. Os relacionamentos amorosos
vão dar um salto quântico quando a mulher e o homem amadurecerem de
verdade, porque envelhecer não é sinônimo de crescer, carência não é sinônimo
de amor, e estar junto não é sinônimo de amar.
Ir em busca da sabedoria da Deusa é a caminhada ancestral da mulher rumo ao
amor por si mesma. Há muito ainda para ser plantado no solo fértil da Deusa e,
somente com a própria taça transbordante, a mulher poderá brindar o amor junto
com o homem.

Carla Lampert

Disponível em http://femininoessencial.blogspot.com/2010/01/mulher-e-sombra-
do-feminino-na-vivencia.html. acesso em 05 jun 2010.

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