Você está na página 1de 15
JONATHAN ISRAEL ase O Iluminismo Radical e as origens intelectuais da Democracia Moderna A Revo.ugAo Das Luzes JONATHAN IsRAEL TRADUGAO DE DANTRI. MOREIRA MIRANDA 1 Edigio 201 Sumario © desta tradugao: Edipro Edigées Profissionais Ltda. - CNPJ n° 47.640.982/0001-40 Editores: Jair Lot Vieira e Maira Lot Vieira Micales Coordenagio editorial: Fernanda Godoy Tarcinalli Revisdo: Beatriz Rodrigues de Lima Diagramagao e Arte: Heloise Gomes Basso Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP) (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Israel, Jonathan, 1949- A revolugo das luzes : 0 Tuminismo Radical ¢ as origens intelectuais da demo- cracia moderna / Jonathan Israel ; traducao de Daniel Moreira Miranda, ~ Sao Paulo : EDIPRO, 2013. ‘Titulo original: A revolution of the mind : Radical Enlightenment and the intellec- tual origins of modern democracy Bibliografia. ISBN 978-85-7283-850-4 1. Ciéncia politica - Europa ~ Histéria - Século XVIII 2. Democracia ~ Histéria ~ Século XVIII 3. Iluminismo I. Titulo, 13-07618 CDD-321.8 Indices para catdlogo sistematico: BR 1, Huminismo Radical e as origens intelectuais da é 4. democracia moderna : Ciéncia politica 321.8 edipka Fe edigdes profissionais Itda, Sao Paulo: Fone (11) 3107-4788 - Fax (11) 3107-0061 Bauru: Fone (14) 3234-4121 - Fax (14) 3234-4122 ‘wwwedipro.com.br 15 45 93 121 147 187 207 223 245 CAPITULO IV A critica iluminista da guerra ea busca pela “paz perpétua” Apenas com mais respeito pelos outros pode haver menos guer- fis; e, além disso, qual outra grande necessidade, perguntavam os pensadores radicais, tem a humanidade? O que mais é tao contrario i felicidade geral, ao progresso da razao e para a civilizacao huma- em geral, interpelou d’Holbach, que as guerras extremamente estrutivas, incessantemente travadas em todos os lugares pelos rincipes, ocupando-se de disputas que nao tém nada a ver com ss interesses daqueles que eles consideram seus stiditos?*” E se nao ouivesse um fundo igualmente vasto de uma grosseira credulidade, jicerto, ignorancia e preconceito entre os homens, que até agora io conseguiram resolver nada, de que outra forma seria possivel ip milhdes de homens sempre concordassem em participar de con- ing prejudiciais ao bem comum — /utilité générale -, e que estio almente desconectados de seus préprios interesses pessoais?** O 0 tipo de guerra considerada legitima por Diderot em sua ulti- © mais militante fase radical, na Histoire philosophique, eram as Was de libertacao previstas por ele, as quais ocorrem quando os s oprimidos do mundo se levantam contra os monarcas, aris- itas, comerciantes e sacerdotes que, em sua opiniao, os explora- incansavelmente” HOLBACH, 1776, v. 3, p. 240; D'HOLBACH, 1994, p. 341-2. |, p. 396; D’HOLBACH, 1998, p. 34-5. JKLAUS apud PAPPAS, 1974, p. 242-5 122 | 4 REVOLUGAO DAS LUZES B claro que todo o Tluminismo denunciou as guerras eo milita- rismo do século XVIIL. Entao, por que, alguém poderia perguntar, distinguir entre radical e moderado a este respeito? A resposta é que, na Europa e na América do século XVIM, existiam formas e intensi- dades de sentimento antiguerra muito diferentes. Em alguns pensa- arevolta contra as guerras da época era profunda e sistematica, e esta divergéncia estava diretamente ligada & postura mais ampla de cada pensador filosdfico. Grande parte da aversio as pretensdes publicas do Tluminismo Moderado ~ as infun- didas nos escritos de Herder, por exemplo, um dos criticos alemaes de Voltaire ¢ acima de tudo de Kant ~ surgiu a partir do desgosto com Frederico, o Grande; e sua corte do ressentimento contra um monarca que se gabava de seu esclarecimento € alardeava a razao e a rejeigao a supersticao, mas que, na verdade, mais do que qualquer outro de seus contemporaneos, mergulhou a Europa de modo quase incessan te em guerras e derramamento de sangue. Herder julgava isso uma hipocrisia terrivel ¢ cinica, além de traigao. Na verdade, segundo ele, © tipo errado de Tluminismo poderia ser ainda mais pernicioso do que o obscurantismo ea simples barbarie. “A vestimenta universal da filogofia e do amor pela humanidade? escreveu cle, “pode ser utilizada para disfargar o tipo de perseguigao — violacées da verdadeira liberda de pessoal de homens € paises, de cidadaos e povos — que apenas un) Cesare Borgia poderia imaginar’”” dores, em outros muito menos; O impacto do Iluminismo foi téo universal, em um determina do nivel, nas cortes europeias que até mesmo um rei guerteiro (io comemorado e largamente elogiado como Frederico sofreu algui constrangimento coma explosao crescente das criticas iluministas suas guerras, como ficamos sabendo por seus comentarios sarcdstt cos nas cartas trocadas com Voltaire. Em carta escrita para Voltaire no Palacio de Charlottenburg, em Berlim, maio de 1770, quande compunha sua resposta a0 Essai sur les Préjugés de @Holbach, ele v6 200 HERDER, 2004, p89 A, cRETICA ILUMINISTA DA GUERRA BA BUSCA PELA “Faz PERPETUA” | 123 queixou de que a imperatriz russa, Catarina, evidentemente, tinha uma dispensa especial de Diderot, “comprada com dinheiro vivo” - uma alusao 4 pensdo que ela havia fixado, proporcionando-lhe se- em troca da aquisicio de seus livros € ensaios iniciar uma vasta guerra ele se sentia impedido guranga financeira, depois de sua morte — que a “permitia” de agressio contra os turcos. Enquanto isso, por esses censeurs philosophiques*! e, nao estando disposto a come- ter o crime de /ésa-philosophie ou submeter-se @ Texcommunication encyclopédique,*” sentiu-se obrigado a manter a paz.** Um ano depois, ele voltou ao tema, certamente em tom de zombaria, mas ainda, de certa forma, provando que as farpas antimilitaristas dos enciclopedistas haviam marcado a pele até mesmo desse soldado calejado: Messrs les enciclopédistes™ haviam repreendido com tanto vigor “os algozes mercendrios que transformaram a Europa em um. teatro de sangue e carnificina’, ele escreveu de Potsdam, “que no fu- 295, turo tomarei mais cuidado para evitar suas censuras’. O sarcasmo de Frederico foi dirigido a Diderot e @Holbach, nao para Voltaire. De fato, na mesma carta, ele expressa confianga de que a sua réplica a PHolbach iria provocar a aprovacio de Voltaire, pois continha muito da “moderagao” tao estimada pelo fildsofo de Fer- ey? Pela percep¢ao de Voltaire, de Frederico e da corrente principal oderada, os exércitos permanentes, a guerra ¢ a cultura do milita- jsmo da corte eram simplesmente parte integrante le principes e aristocratas; para cles, a “paz perpétua’ era um sonho t6pico inventado por homens ingénuos e desprovidos de pragmatis- 02” Certamente, Voltaire preocupava-se com as consequentes car- de um mundo | Criticos filoséficos. (N.T.) 2 Excomunhio enciclopédica. (N.T.) )} FREDERICO apud VOLTAIRE, 1968-1977, v. 37, P. Fa Os senhores enciclopedistas. (N.T.) Wy VOLTAIRBapud VOLTAIRE, 1828-1834, v. 38, p. 403-28 (especialmente p. 403, 405, 428). 124 | A REVOLUGAO DAS LUzES nificinas mais que Frederico e, nao raro, fez observagées incisivas so- bre o papel da vaidade da realeza na fomentagao das guerras da época. Hi reflexos de tal critica no comentario de Paine, quando este diz que Voltaire era “tanto o adulador quanto o satirista do despotismo”* Mas a filosofia de Voltaire desencorajava qualquer comentario além da queixa irénica e silenciosa. Ele sabia muito bem que nem os reis, nem suas cortes, os principais jogadores em seu Iluminismo, desis- tiriam da guerra ou ouviriam qualquer pessoa que lhes pedisse isso. A unica “paz perpétua” que pode ser obtida pelos homens, afirma Voltaire, em seu ensaio De la paix perpétuelle (1769), é a “tolerancia’, os ganhos que decorrem da contengao do fanatismo e do enfraque- cendo da crenga na autoridade religiosa. A paz mais geral “imagina- da” pelo Abbé de Saint-Pierre, 0 primeiro utopista francés do inicio do século XVIII a exortar pela busca de um fim para as guerras, foi decla- rada por ele como “uma quimera que nao poderia mais existir entre os principes, da mesma forma que elefantes e rinocerontes, ou lobos e ces nao podem conviver em um mesmo espaco’” Voltaire, um fi- Idsofo sempre bem preparado para elogiar efusivamente Catarina, a Grande, ou por ela ter iniciado uma guerra flagrantemente ofensiva contra os turcos em 1769-1770 — uma agressio direta que, ele espe- rava, esmagaria o Império Otomano completamente e precipitaria o renascimento da Grécia ~, ou para comemorar as ambigGes expansio nistas dela com os termos mais retumbantes possiveis, nao foi capay. de encontrar nenhum ponto negativo nas 25 paginas de seu ensaio contra os monareas ~ na verdade, ele apenas denuncia a intolerancia e o dogmatismo religioso. Para ele, cercear 0 “fanatismo” € 0 unico caminho que a humanidade tem para se aproximar da “paz perpétua’. Rousseau, também, comprometido com suas imaculadas vil tudes “viris” e com o sentimento nacional, rejeita a “paz perpétua’, camo um sonho impossivel. Immanuel Kant, ao contrario, em seu wa PAINE, 1985, p, 93-4. 9) VOUIATU apud VOLTAIRE, 1828-1834, v. 38, p. 403. A.CRITICA ILUMINISTA DA GUERRA EA BUSCA PELA “PAZ PERPETUA” | 125 tratado A Paz Perpétua (1795), afirma que o sonho da “paz perpé- tua” nao é “uma quimera’, mas, na verdade, 0 objetivo supremo do progresso humano; um objetivo realizavel, no entanto, somente pela transicao do governo arbitrario e despético - a quem ele, semelhan- te aos iluministas radicais, culpava pelo militarismo e pelas guerras de seu tempo ~ para o “republicanismo” legislativo.® Kant, todavia, também consegue preservar a autoridade executiva dos principes por meio da introdugao, como vimos, de uma concep¢ao de “republi- canismo” que confina a consulta coletiva ao processo legislativo, dei- xando intacta a autoridade executiva da monarquia.*" Desse modo, ele nao abre qualquer via politica pela qual o progresso do homem em diregao 4 “paz perpétua” possa ser acelerado. Contra essa posigao mediana e contra a subserviéncia ainda maior de Voltaire aos princi- pes e suas cortes, os pensadores radicais equipararam o despotismo € 0 governo arbitrario 4 propria monarquia, e o republicanismo a re- voga¢ao ou castracao da monarquia, substituindo-a pela democracia representativa, tanto na esfera legislativa como na executiva. O Iluminismo Moderado, entao, e 0 Rousseauismo nao tinham ‘qualquer estratégia politica que pudesse produzir as mudaneas estru- turais capazes de transformar a ordem existente, de modo a diminuir probabilidade da guerra. Kant absteve-se deliberadamente de abra- ‘ara democracia como um principio e, mesmo em seus escritos mais usados da década de 1790, continuamente reafirmaa legitimidade da \toridade principesca, alegando que os stditos nao possuem “direi- s” defensaveis contra a vontade dos soberanos. A tinica forma justi- icivel de se alcancar um governo “republicano’, ele insiste, seria pela ciativa do principe, ou pelo debate e da legislagao sancionada por principe esclarecido. Sempre que os principes negarem a superio- lade moral dos principios republicanos, nao haverd na legislacio, acordo com Kant, nenhum direito compensatério de resisténcia ou KANT, 1796, p. 75; LOUDEN, 2007, p. 101-6. KANT, 1796, p. 17-9; HAAKONSSEN apud GOLDIE; WOKLER, 2000, p. 24M 126 | AREVOLUGAO DAS LUZES fundamento légico para uma revolucao justificada do tipo proclama- da por Diderot, Raynal e pela boutique @Holbachique. Qs iluministas escoceses abstiveram-se igualmente de fazer qualquer critica ampla a respeito da guerra, dos exércitos perma- nentes e do codigo aristocratico militar (assim como sobre império e esctavidao). “A Guerra é justamente evitada’, concorda Ferguson, “e a paz entre os homens é admitida como um objeto supremo de con- sideracao e desejo: no entanto, nao devemos recomendar, como um item de sabedoria, que as nages descontinuem a sua politica militar e negligenciem os preparativos para sua propria defesa”” A manu: tencao das defesas e de uma forga militar poderosa, ele argumenta, é“muitas vezes a salvaguarda mais certa da paz e, unida a uma es crupulosa atengao para abster-se de ofensas ou provocagées desne cessdrias, [é] tudo 0 que a nado mais pacffica pode fazer para evitar o males da guerra’. Ferguson nao tolerava o crescimento inexoravel de exércitos e marinhas, tao caracteristicos do século XVII, ape nas pelo proprio bem deles. No entanto, seu sistema geral e tendén cia para aceitar os escaldes hierarquicos e 0 status quo levaram-no a acomodar 0 crescimento dos exércitos e a guerra como parte (li ordem natural das coisas, bem como a exaltar as qualidades moraiy que ele acreditava serem induzidas pela guerra. “A guerra pode se! necessaria, embora nao seja desejavel por si mesma’, escreveu cle Além disso, declarou ser insensato “considerar 0 tempo de guer's necesséria entre as nagGes como um perfodo de miséria, ou o tempu de paz como, claro, uma época de felicidade’.** “E pela vontade da providéncia’, asseverou Ferguson, “que os hae mens podem, por vezes, manter a causa de seu pais contra os set! inimigos e, ao fazé-lo, as virtudes da natureza humana sao a sua fell cidade, pois elas colherao 0s frutos da paz”. Aqui vemos, mais Wilt vez, 0 grande abismo entre o Iluminismo Radical e 0 mainstream 302 FERGUSON, 1978, v. 303 Ibid., p. 502. A GRITICA ILUMINISTA DA GUERRA # A BUSCA PELA “paz PERPETUA” | 127 moderado. Se aqueles que defendem a Providéncia divina e a legi- timidade da ordem existente estivessem justificados, entdo a guerra seria uma parte integrante da natureza divinamente ordenada das coisas. Para o Iluminismo Radical, por outro lado, os enormes con- flitos, como a Guerra de Sucessao Austriaca (1740-1748) e a Guerra dos Sete Anos (1756-1763) — nas quais dezenas de milhares de sol- dados foram mortos ou mutilados, todos lutando em todo o mundo por motivos conhecidos por quase ninguém e que nao tinham re- jacdo com os verdadeiros interesses da populagio ou dos soldados de suas familias -, eram terriveis, inaceitaveis ¢ potencialmente evitaveis. Essas guerras, travadas puramente no interesse dos mo- farcas, cortesdes, faccdes aristocraticas, financistas e comerciantes, am consideradas parte inerente da tirania, uma injustiga abomi- Nivel, destrutiva e irracional causada diretamente pelo sistema de itoridade, nobreza e cortes principescas. A sua critica estava fo- ada em nada menos que o uso extensivo de mercendrios de Hesse la coroa britanica durante a guerra para reprimir os rebeldes na América do Norte. Muitos deles nunca mais voltaram 4 Alemanha, {Ao sabiam falar inglés e no sabiam qualquer coisa sobre a luta pela Para d@'Holbach, “todo erro é prejudicial; foi através do engano ie a raga humana se tornou infeliz’°’ Mas as guerras do sécu- XVIII representavam o erro, e nado apenas 0 erro, mas a miséria, THOLBACH, 1770b, v. 1, p. 6. 128 | A REVOLUGAO DAS LUZES talmente alheias a eles mesmos. “Que inconcebivel concentragao de massacres”, exclamou Joel Barlow, originada de um “governo obs- curo e desigual, dos poderes magicos possuidos por alguns homens de cegar os olhos da comunidade e levar o povo 4 destruigéo por aqueles que sio chamados de pais e de amigos?! Barlow afirmou que nada era mais claro do que a supersti¢ao ser um “defeito da natureza humana que, de modo algum, esta confinada apenas aos assuntos relacionados com a religiao. A superstigao po- litica é quase tao forte quanto a religiosa e quase tao utilizada como instrumento de tirania’*” Nas monarquias, a “superstigao politica” in- duz os homens a “derramar seu sangue por uma determinada familia, ou por um ramo especifico da familia que, por acaso, tenha nascido primeiro, ou por ultimo’, ou por uma linha de uma dinastia real que tenha aderido a um credo em vez de outro. “Com seu respeito supers- ticioso pelos reis’, Priestley repreendeu Edmund Burke, em 1790, “e ° espirito da cavalaria, somente atraentes a uma era de extrema barbarie ja banida pela civilizagdo, vocé parece pensar que fomos abandonados por tudo que é grandioso e digno’** Para o totalmente republicano Paine, se a aristocracia e o poder da igreja sdo ruins, a monarquia € “a fraude-mestra, que abriga todas as outras. Ao admitir a participacao em sua pilhagem, faz amigos, mas quando ela deixar de fazer isso, ela deixar de ser 0 idolo dos cortesdes” e, por esse motivo, ela é obrigada a provocar continuamente novos conflitos2” A partir da perspectiva radical, era légico por a culpa da mal- digéo contemporanea da guerra e do militarismo na “superstigao enraizada em estruturas culturais, sociais e teologicas fundamentais que, em favor do interesse geral, precisavam ser urgentemente elimi- nadas. Mas a montanha de “erros” que causava tais estragos — com posta de preconceitos nacionais, zelo religioso e, acima de tudo, a 306 BARLOW, 1792-1794, v. 1, p. 66. 307 Ibid, v. 1, p. 74. 308 PRIESTLEY, 1791, p. 29. 309 PAINE, 1985, p. 204, A ORETIGA ILUMINISTA DA GUERRA B A BUSCA PELA “PAZ PERDETUA” | 129 veneracao popular pela aristocracia, monarquia e autoridade eclesi- astica - nao seria facilmente derrubada, é claro. O conceito de gloria que naquela época e na maioria das sociedades ainda estava ligado ao estatuto do oficialato, aos sucessos nas batalhas, 4s conquistas e a bravura militar “é evidentemente um vestigio”, sugeriu @'Holbach, “da perspectiva selvagem prevalente entre todos os povos antes de se tornarem civilizados: até agora, no entanto, quase nenhuma na- ao esta totalmente livre de um preconceito tdo prejudicial para a paz do mundo”. De fato, a ética do nobre era parte integrante da tirania monarquica e da corte, Para d’Holbach, a tese de que /a vraie politique*4 “nada mais é que a arte de tornar os homens felizes” im- plicava que tudo na organizagao estatal e militar que nao fosse dire- cionado para tal fim poderia agora ser justificadamente rotulado de “tirania” e condenado categoricamente., Nao sé 0 governo arbitrario, mas também a expansao colonial e a ambigao, bem como os regimes mercantilistas para tomar 0 comércio alheio por meio da opressdo ou da violéncia poderiam agora ser incluidos nessa rubrica, uma vez que, sob os novos critérios, nunca seriam moralmente justificados. Segundo Diderot, d’Holbach e seus discipulos, os tipos de “supers- tigéo” responsaveis pela promog¢ao da guerra estendiam-se muito além da intolerancia religiosa e da venera¢ao aos escalées hierdrqui- cos ¢ a monarquia. Assim, Condorcet menospreza nao s6 0 respect superstitieux*? dos Ingleses para aquilo que os philosophes radicais consideravam os defeitos gritantes de sua Constituicdo e sistema ju- ridico, mas também os préjugés commerciaux* deles, isto é, a atitude mercantilista agressiva revelada por seus porta-vozes em relacdo as hacées estrangeiras.** Apesar de nao serem pacifistas, os philosophes radicais viam com horror as guerras travadas apenas para obter espdlio, prestigio e ter- 10 D’'HOLBACH, 1776, v. 2, p. 6. LA verdadeira politica. (N-1.) 12. Veneragio supersticiosa. (N:T.) 13. Preconceitos comerciais. (N.T.) 1 CONDORCET, 1795, p. 267. 430 | AREVOLUGAO DAS LUZES ritério em vez daquelas travadas para expulsar tiranos ou repelir a agressio injustificada. Sempre que um povo esta em guerra por mo- tivos justificados, para repelir um agressor ou afastar a opressio, eles devem, por interesse proprio, comprometer-se escrupulosamente com, e a partir de considerages de justiga, para evitar atitudes in- justas, Os homens em guerra nao devem usar forga excessiva, nem maltratar os prisioneiros, prejudicar os nao combatentes, perpetrar atrocidades ou de qualquer forma oprimir ou humilhar os derrota- dos e, por fim, n’o devem despojar povos inteiros de suas terras e bens. Mas a maioria das guerras nao foi iniciada justificadamente. Os escritores radicais denunciaram governantes hereditarios em busca de gloria como a principal ameaca aos seus prdprios stiditos, bem como aos seus vizinhos. Ao precisarem de exércitos permanentes para sustentar seu poder despdtico internamente € nutrir suas cor- tes, até mesmo os governantes dos povos mais civilizados mostraram poucos sinais de ja estarem curados “da loucura da guerra’, a educa- ¢4o e o meio cortés em que vivem os incentivam a tomar atitudes le- sivas “a felicidade da sociedade para a qual a paz sempre sera o bene- ficio supremo”? Os grandes monarcas sao induzidos a abragar a paz somente apés a exaustao de seus exércitos e erarios e a consequente impossibilidade de perseverar com as guerras injustas € intiteis com as quais eles se comprometeram de forma tao negligente. A propensao da monarquia para exibir seus exércitos e valor mili- tar era continuamente incentivada pelo cédigo de gloria aristocratico da cultura cortesi — um cédigo que exaltava 0 combate, o duelo e a indiferenga as feridas, 4 morte e especialmente a0 volumoso massacre dos subordinados -, o qual era desprezado ao maximo por Diderot e seus colegas.*"* Nao é de se estranhar que para as pessoas criadas em meio a essa arrogante prepoténcia, a perpetragao de gigantescas carni- ficinas e a destruicao por todos os lados nao tinham nenhuma impor- tancia. Para Barlow, que considerava toda a monarquia inerentemente 315 D'HOLBACH, 1772, p. 164; D'HOLBACH, 1994, p. 341, Mo DIDEROT, 1782, v. 1, p. A CRITICA ILUMINISTA DA GUERRA E A BUSCA PELA “paz PERPETCA” | aaa tiranica, as tiranias, “qualquer que seja a denominacao do governo sob © qual sao exercidas, so todas tiranias aristocraticas” e, com? tal, elas nao tém alternativa sendo “sustentar a guerra, nao apenas como uma ocorréncia da fatalidade, justificavel pela defensiva, mas como algo feito por escolha, como sendo o alimento mais nutritivo dess tipo de governo que necesita de classes privilegiadas e de um exército: pois, nao é uma grande figura de linguagem dizer que a nobreza da Europa sempre se alimentou do sangue humano” A nobreza, Barlow admitiu, “teve origem na guerra’ e vive por causa da guerra. Caso 0s homens acabassem com as guerras e assumissem apenas as atividades tran- quilas da agricultura e da industria, “as classes com titulos de nobreza perderiam suas distinges, se misturariam a sociedade e se tornariam criaturas aceitaveis’” Toda guerra que nao esta baseada na autodefesa carece de justifi- cago. Essa crenga, por sua vez, teve amplas implicagées para as altas cultura e educagao. Jé que os homens naturalmente imitam tudo o que éelogiado e reverenciado durante a sua infancia, asseverou dHolbach, ento floresce uma longa tradi¢éo de tornar heroicos os conquistado- res mais arrogantes do passado sem o minimo escrutinio eritico, um preconceito profundamente enraizado, operando diretamente contra a esséncia das doutrinas da nova moralidade social e politic@ do Iu- minismo. O militarismo espartano, rotineiramente exaltado nas esco- las como sublime, nao era nada, na realidade, além de uma ferocidade selvagem e sangrenta. Alexandre, o Grande, era universalmente lou- vado como um heréi supremo, mas para Maréchal le plus gr and per- turbateur du genre humain; era um conquistador compulsivo, cuja “temeridade criminosa” assolou o império persa. Ele morreu, actes- centou d'Holbach, sem legar 4 humanidade nem o mais leve indicio de sabedoria, esclarecimento ou virtude, qualidades sem a5 quais a 317 BARLOW, 1792-1794, v. 1, p. 61. 318. O maior diruptor da humanidade. (N.T.) MW 1g2. | A REVOLUGAO DAS LUZES verdadeira honra ou gléria nao existem.*” Nada corrompe mais os coragées dos povos e principes da mesma forma, argumentou ele, que a reveréncia irracional incutida nos “jovens aos grandes homens, guerreiros ¢ conquistadores da antiguidade que, em sua maioria, nao sabiam nada sobre os verdadeiros principios da moralidade’*° “A conquista cria tiranos’, proclama d’Holbach, “ela nunca fez um povo se tornar feliz”* Grandes lideres que dominam grandes regides e subjugam povos, néo importando como sejam vangloria- dos por elogiadores interesseiros, na realidade, apenas saqueiam, matam, mutilam e tornam os homens miseraveis. Na cegueira de tais conquistadores em relagdo 4 “verdadeira moralidade’, os pro- fessores deveriam ensinar que ha algo distintamente infantil. A ce- gueira moral natural e a crueldade do ignorante, sendo como as de uma crianga, s6 podem ser corrigidas através da orientagao daqueles que possuem mais experiéncia e compreensao. Os pensadores ma- terialistas concordavam com a tese de Hobbes de que o impio nao ¢ intrinsecamente diferente da pessoa virtuosa, mas sim uma pessoa imatura, uma espécie de crianca crescida, um ignorante no sentido mais profundo, alguém que carece de uma compreensao adequada da realidade social e fisica.” A comparagao com as criangas, além disso, nos ajuda a perceber que a realeza é especialmente corrupta, ja que os principes infantes praticamente nunca tiveram seus desejos infantis e birras naturais disciplinados por aqueles ao seu redor. E por isso que, sem duvida nenhuma, conjeturou d’Holbach, os tro- nos sao tantas vezes ocupados pelos mais cruéis tiranos, como Nero, Caligula e Tibério. As reptblicas, conforme proposto por alguns tratados antimonar. quicos anteriores (incluindo o Tractatus Theologico-Politicus, 1670, de 319. D'HOLBACH, 1776, v. 1, p. 162, 208; D'HOLBACH, 1776, v. 3, p. 167n, 320 Ibid., v. 2, p. 18; D'HOLBACH, 1998, p. 62; MARECHAL, 1788, p. 28. 321 D'HOLBACH, 1776, v. 2, p. 20; DHOLBACH, 1994, p. 348-9. 322 D'HOLBACH, 1772, p. 247: D'HOLBACH, 1994, p. 34. A CRITICA ILUMINISTA DA GUERRA E A BUSCA PELA “PAZ PERPETUA” | 133 Espinosa), sio, por natureza, mais propensas a coexistirem pacifica- mente que as monarquias, ja estas sio intrinsecamente mais propen- sas a participarem de disputas de sucessao, brigas sobre precedéncia e conflitos relativos a algum territério disputado, Diderot, Helvétius e d'Holbach, assim como Rousseau, permaneceram nessa linha de ra- ciocinio. Kant, também, endossou a visio de que as republicas sao essencialmente pacificas, enquanto o governo “arbitrario e despdtico” tende a ser propicio para a guerra.** Embora Kant concordasse com grande parte da andlise radical e sobre a necessidade de finalmente serem abolidos os “exércitos permanentes’, ele afirmava, ao mesmo tempo, que nao devemos “confundir (como é feito com frequéncia) uma constituigéo republicana com a democracia’ Ele considera a democracia “necessariamente despética’, pois “quando todos estio se esforcando para ser o chefe, isso torna o sistema representativo impossivel’** Para os pensadores radicais, somente a republica de- mocratica representativa se opde ao despotismo e promove a paz. Eles deduziram que as democracias representativas nao iriam tra- var guerras umas com as outras por causa do principio politico fun- damental deles, j4 claramente exposto por Espinosa, o qual afirmava que nenhum homem renuncia espontaneamente a sua independéncia natural e consente a se submeter aos desejos dos outros, exceto na esperanca de ganhar um bem maior do que aquele que ja é desfrutado ao viver apenas de acordo com seus préprios desejos. A autoridade da ociedade tem como fundamento “as vantagens que ela garante aos cus membros’, escreveu Antoine-Marie Cerisier (1749-1828), tedri- ‘0 jornalista e politico franco-holandés, autor do ‘Tableau de histoire énérale des Provinces-Unies,* um trabalho composto em varios vo- mes e publicado em Utrecht entre 1777 e 1784. “Por que as rept- jicas nio estéo mergulhadas em guerras’, perguntou Paine, “senao I) KANT, 1796, p. 4, 20, 59. Ibid., p. 17-9. Painel da Historia Geral das Provincias Unidas. (NT) i) CERISTER, 1783, v. 6, p. 181-4, 134 | A REVOLUGAO DAs LUZES pela natureza do seu governo que nao admite interesses distintos dos da nacao”?” Isso é 0 que o argumento parecia carregar e tornar a paz perpétua algo distintamente plausivel e até mesmo realista, em vez de ser apenas um sonho utdpico inconcebivel . Ao negar que reis e clérigos fossem responsdveis pelas guerras en- tre os Estados europeus, os defensores da ordem existente, rejeitavam com revolta a imputacao de que os interesses dos principes, nobres e clérigos eram o alimento da “rivalidade e ddio entre as nagdes que a cada momento provoca novas guerras”. Rejeitavam também 0 con- ceito de que o real interesse dos povos é obliterar esses preconceitos nocivos, respeitar os direitos de todos, e concourir au bien universel.* Os exemplos de Esparta e da Roma republicana eram avisos valiosos, informando que nao s6 as monarquias, mas também as republicas reverenciaram, no passado, a gloria, a guerra, o militarismo e a con- quista. Isso talvez tenha proporcionado uma réplica eficaz 4 corrente moderada. Frederico, 0 Grande, repreendendo d@’Holbach de forma raivosa, obseryou que nem a reptblica holandesa, nem a veneziana abstiveram-se das guerras. Nao foi a republica romana, insistiu Frede- rico, o mais belicoso e expansionista de todos os estados?*? Quanto & Inglaterra, geralmente considerada uma “republica” coroada desde a Revolucao de 1688, nao era ela ainda mais orgulhosa e mais be- licosa do que qualquer outra poténcia do século XVIII? Por aca- so, a Gra-Bretanha, objetou Frederico (que nio era angléfilo), nao acossou e induziu Luis XV a Guerra dos Sete Anos sem 0 menor escrupulo, iniciando uma campanha de conquista global e aquisi- cao territorial no Canada, India, Africa e Caribe que, por pura agres- sividade, arrogancia, ambicgao e ganancia, desprestigiou tudo aquilo que ja havia sido forjado pelos reis?*" 327 PAINE, 1985, p. 145. 328 D'HOLBACH, 1770a, p. 7 329 FREDERICK, 1770, p. 40; RAYNAL, 1782, v. 2, p. 207. 330 FREDERICK, 1770, p. 35-7, 41-2; PAINE, 1985, p. 262-3. ; RAYNAL, 1782, v. 1, p. 83. Apoiar o bem seniversal. (N.T.) A CRITICA ILUMINISTA DA GUERRA F A BUSCA PELA “PAZ PERPETUA” | 135 A dificuldade com esses contra-argumentos era a recusa dos philosophes radicais em reconhecer como verdadeiras “reptiblicas”, aquelas que tinham carter aristocratico, como Veneza e Génova, ou oligdrquico como as Provincias Unidas (dos Paises Baixos) ou aquelas baseadas em uma combinagao de aristocracia e monarquia limitada como a Gra-Bretanha. “A historia da Roma antiga’, afirma Barlow, “do comego ao fim, com todos os seus reis, cénsules e im- peradores, nao fornece um tinico exemplo, apds a conquista dos Sa- beus, do que pode ser chamado de guerra ofensiva popular; quero dizer, uma guerra que teria sido realizada pelas pessoas do povo, caso tivessem desfrutado de um governo livre, organizado de ma- neira que Ihes permitisse deliberar antes de agir, e estivessem sujei- tas a nada mais que a vontade nacional para poderem executar seus planos’*: Os pensadores radicais estavam pontuando as vantagens, nao do modelo antigo de republicas ou do estilo britanico de monar- quia mista, mas especificamente das reptiblicas democraticas com base na representagao. O outro principal contra-argumento era que o sistema existente de exércitos e marinhas permanentes e os esforgos calculados para equilibrar o poder dos rivais era, na verdade, 0 mais forte meio de prevengao de guerras, “Isso”, comentou Barlow “é 0 que os povos da Europa sao forgados a acreditar”. Ele declarou que a formula é uma falacia total e habilmente a inverteu, culpando o “sistema militar pre- sente” como a causa das guerras dos tempos modernos, e os exérci- tos permanentes como o “melhor, ou tinico, meio de promover as guerras’.** Em relagio a guerra moderna e suas consequéncias devas- tadoras, asseverou Barlow em 1792 com ironia feroz, havia agora mais e mais “hereges no mundo (o Sr, Burke os chama de ateus) inclinados a descrer que os homens sao feitos expressamente com a finalidade de cortar as gargantas uns dos outros; e a afirmar que a maior honra 331 BARLOW, 1792-1794, v. 1, p. 66. 332 Ibid., v. 1, p. 63. 136 -| A REVOLUGKO Das LUZEs obtenivel por um homem nao é vender-se a outro homem para todaa vida por um determinado prego diario, nem manter-se em prontidao, noite e dia, para matar individuos ou nages, em casa ou no exterior, sem jamais perguntar a causa’. Tal conduta “nao é nenhum elogio ao discernimento ou 4 humanidade de um homeny; perceberam esses incrédulos que nao conseguiam “entender por que os aristocratas nao poderiam, assim como as outras pessoas, informar-se sobre o discer- nimento e a humanidade’* Dentre os principais pensadores moderados repreendidos por nome nas grandes controvérsias intelectuais da época, nenhum outro foi tao criticado por escritores radicais como Burke, um parlamentar anglo-irlandés que se associou desde bem cedo as causas progressis- tas, incluindo 0 apoio para a Revolugao Americana e a campanha parlamentar britanica para corrigir a ma administracao, na India, da Companhia das Indias. No entanto, ele decepcionou e irritou muitos dos radicais ao deslocar-se para 0 campo antidemocratico, a partir de 1787, quando ele apoiou publicamente a Gra-Bretanha e a Pris- sia na repressio do movimento holandés democratico, apresentando 0 interesse nacional como seu principio fundamental; e, posterior- mente, ao surgir como um dos principais pensadores conservadores da Gra Bretanha, assim como a sua subsequente perseveranca na luta contra os principios democraticos e igualitarios (recusando-se até mesmo a condenar a escravidao dos negros até bem tarde em sua vida). Mirabeau, Paine, Cerisier, Cloots, Wollstonecraft e Barlow estavam incluidos entre seus opositores publicos, enquanto Joseph Priestley, mais polidamente, lamentou nao poder mais incluir Burke “entre os amigos daquilo que eu julgo ser a causa da liberdade, civil ou religiosa, depois de ter, num agradayel relacionamento ocasional de muitos anos, respeitado-o nesse honroso contexto”*" Os escritores radicais alegavam que a tranquilidade dos stiditos parecia inteiramente indesejavel para os reis e, ento, estes inventa- 333 BARLOW, 1792-1794, v. 1, p. 61-2. 334 PRIESTLEY, 1791, p. A CRETICA ILUMINISTA DA GUERRA E A BUSCA PELA “PAZ PERPETUA” | 137 vam mil pretextos para acabar com ela.** O resultado é uma misé- re continuelle,* a partir da qual homens e mulheres nao usufruem a abundancia natural em torno deles, terras populosas séo devastadas e as sociedades desorganizadas. Mas sera que os povos estio fadados a dizimar uns aos outros para sempre, seguindo discussdes que nada tém a ver com os verdadeiros interesses da maioria? Certamente, 0 Iluminismo pode curar males desse tipo. Quais sAo os motivos reais, perguntou @’Holbach (seguido por Kant), para que as nagdes sempre se comportem como rivais e adversdrias umas das outras? “Existe algo mais contrario 4 equidade, 4 humanidade e a razdo do que fomentar os édios hereditarios entre os povos, absurdos e irracionais, os quais dividem perpetuamente os infelizes habitantes da terra?”*” Nem as elites militares, nem os exércitos, nem a propria guerra seria possivel, argumentaram os fildsofos radicais, se a sociedade se tornasse mais “esclarecida”. A cura oferecida ~ demolir a reveréncia “supersticiosa” das pessoas pelos escaldes hierdrquicos — era ineren- te e derivava diretamente da filosofia deles. O sistema de d’Holbach, protestaram os adversdrios, nao passa de Espinosa regurgitado e simplificado. Isso era verdade. Mas, mesmo assim, d’Holbach, bem como Diderot em seus ultimos escritos, também ultrapassaram (ou aperfeicoaram) Espinosa em um ponto fundamental - 0 compro- misso com a ideia de que a igualdade dos homens em uma socieda- de justa leva diretamente ao principio de que as mesmas leis morais e normas legais, conforme aplicadas dentro de uma sociedade, tam- bém se aplicam entre as nagées e sociedades para que a humanida- de, em sua totalidade, constitua La Société universelle. As guerras eram consideradas por eles nao apenas altamente prejudiciais, mas atribuiveis 4 falta de um bom senso sobre a equidade entre os povos. Eles sustentavam que a falta de esclarecimento e de verdadeiros va- 335 D’HOLBACH, 1994, p, 341-2. 336 Miséria continua. (N.T.) 337 Ibid., p. 346. i 138 | 4 REVOLUGAO Das LUZES lores morais eram a razdo fundamental por que as nagées lutavam incessantemente em guerras fratricidas, oprimindo e destruindo o outro; assim como a falta de equidade e respeito pelos outros é a razao pela qual, dentro de cada sociedade, “os poderosos oprimem os fracos e desejam desfrutar, em detrimento dos outros’, os direitos dos cidadaos que a justi¢a concede a todos os homens igualmente.** Era uma légica que, se realizada, significaria o fim da monarquia e da aristocracia, Frederico, desdenhando a exortagao radical para que ele condenasse a guerra e se tornasse le bienfaiteur de tous les peuples,” contra-atacou com forga em seus dois tratados de 1770, criticando o autor do Systéme de la nature por seu desprezo descarado pelos reis e repudiando veementemente suas reclamagées sobre as alegadas bar- barie, destrutividade e superfluidade das guerras da época.” O de- signio mal escondido de seu oponente, acusou Frederico, era minar a monarquia e introduzir a soberania popular. E é por essa razio que o Essai sur les préjugés fala tao altivamente contra os “grandes exérci- tos, que poderiam impedir 0 propésito [de seu autor]”* Principes e exércitos permanentes sdo os acusados. Mesmo assim, opds Frederi- co, “se em algum momento as concep¢ées grosseiras de nosso filésofo puderem ser realizadas”, a consequente eliminagao da monarquia e do principio hereditario em favor da soberania popular deixariam todos os governos “incessantemente expostos a guerras internas, que sao mil vezes mais perigosas do que os conflitos estrangeiros”* O que éa “paz’, perguntou Diderot certa vez em meio a suas con- tribuicées para a Histoire philosophique? A humanidade anseia pela “paz” no sentido de auséncia de guerra. Mas, como pode haver paz quando a violéncia interna governa praticamente todas as socie- 338 D'HOLBACH, 1998, p. 389-91; D’HOLBACH, 1776, v. 1, p. 91; D'HOLBACH, 1776, ¥.3, p. 136, 339 O benjeitor de todos os povos. (N.T.) 340 FREDERICK apucd FREDERICK; HOLCROET, 1789, p. 170-1, 174. 341 Ibid., p. 171 342 Ibid., p. 171-2. ACRITICA ILUMINISTA DA GUERRA EA BUSCA PELA “paz PERPETUA” | 139 dades conhecidas, sob a forma de tirania, opressao, intolerancia e perseguicao?™ Todas estas formas est4o apoiadas na ignorancia e na superstigao que sao a causa basica do conflito interminavel e do sofri- mento interno das sociedades, e também dos conflitos entre os povos. Para Diderot, como também para d’Holbach e Helvétius, o desdém pela vulnerabilidade, miséria, pobreza e fraqueza dos outros é um ul- traje moral, um crime contra a humanidade e um defeito que princi- pes e grandes aristocratas esto particularmente propensos a cometer, uma vez que eles se veem como pertencentes a uma espécie diferente dos outros homens e, portanto, “estéo pouco dispostos a tratar os ou- tros com humanidade”* A devastacao do Palatinado em 1673 por Luis XIV, durante a guerra franco-holandesa de 1672-1677, acusou d@Holbach, revela que esse monarca, “tio vangloriado por poetas, era apenas um barbaro selvagem tao cruel como Atila, o Huno”** Frede- rico ficou indignado. Como esse autor se atreve a falar de modo tio irreverente de um monarca tao glorioso; Diderot, por sua vez, em suas anotacées privadas no tratado do rei, fez uma refutagao arrasadora de tal reprimenda. A resposta de Frederico era um absurdo, ele insistiu, acrescentando que ele nao gostaria de ter sido “a besta feroz” (isto é, Luis XTV) que ordenou a cruel pilhagem do Palatinado.** Se as nagdes pegassem em armas, sustentou d’Holbach, apenas para sua propria defesa, para garantir sua propria seguranca, por conta de seus verdadeiros interesses — em outras palavras, apenas por razées legitimas - nao existiria, em consequéncia, quase nenhuma guerra. Paine e Barlow (mas também Kant) reafirmaram a tese de d@Holbach como um propésito que nao era mais apenas tedrico, mas que, como eles acreditavam na sequéncia de 1789, “parece algo prag- matico; assim, a maneira de prevenir as guerras nao é apenas pela mudanga do sistema militar e diplomatico vigentes, pois ele, assim 443 STRUGNELL apud STRUGNELL; FRANCE, 1985, p. 38. 444 D’HOLBACH, 1776, v. 1, p. 93-4; D'HOLBACH, 1998, p. 34-6. 445 D’HOLBACH, 1776, v. 2, p. 115n. 446 DIDEROT, 1937, p. 2-3. 140 | h REVOLUGAO DAS LUZES como a Igreja’, escreveu Barlow, “é parte integrante e necessiria do governo em seu modo contemporaneo, e da sociedade como orga- nizada atualmente: mas ocorre que o principio de governo deve ser completamente mudado, e a consequéncia disso sera uma renovacio tao completa da sociedade, a ponto de banir os exércitos permanen- tes, derrubar o sistema militar e excluir a possibilidade de guerra’?* Acabar com 0s monarcas ¢ nobres, evidentemente, nao seria por si 86 suficiente para assegurar a paz internacional. Mesmo sem a monar- quia, muitas na¢Ges tém cultivado preferéncias bélicas e sobre-enfatiza- do o valor da bravura e da disciplina militar. As leis das antigas Creta e Esparta, nota d'Holbach, tinham como certo que a paz é inadequada para os homens, e muitos regimes modernos “parecem ter preserva- do a mesma atitude” Seria de supor, a partir da forma como a maioria dos homens pensa, que os povos sao colocados na terra somente para odiar, atormentar e destruir os outros. Entre as formas mais destru- tivas de “supersticao” ainda difundida, eles declararam, estavam as animosidades nacionais como o antagonismo popular, que na época, envenenavam notoriamente as relagdes entre britanicos e franceses. Uma das formas de depreciar 0 chauvinismo popular era rejeité-lo por ser parte integrante da bagagem monarquica. “Ja que a guerra é 0 sistema de governo do velho edificio”, disse Paine, “a animosidade reciproca mantida pelas nag6es, nada mais é do que aquilo que é ins- tigado pela politica dos governos, para manter 0 espirito do sistema’. Os reis, em outras palavras, eram acusados de aticar deliberadamente as antipatias nacionais para poderem promover o governo opressivo e o militarismo. “O homem nao € 0 inimigo do homem? protestou Paine, “a nao ser por meio de um falso sistema de governo. Portanto, em vez de gritar contra a ambi¢ao dos reis, os gritos devem ser dirigi- dos contra o principio de tais governos; e, em vez de tentar reformar 0 individuo, a sabedoria de uma nac&o deve ser aplicada na reforma do sistema”. 347 BARLOW, 1792-1794, v. 1, p. 69; WALTZ, 1962, p. 335. 348 PAINE, 1985, p. 146. A CRITICA ILUMINISTA DA GUERRA E A BUSCA PELA “Paz PERPETUA” | 141 O “sistema de paz universal” entre os homens, concluiu Paine, nao é apenas concebivel, mas também viavel, se os povos se torna- rem “suficientemente esclarecidos para nao serem feitos de bobos da corte”. A remogao dos reis e a substituicdo por republicas democrati- cas itiam, pensava-se, por si s6 curar as animosidades nacionais. “O povo da América’, observou ele, em 1791, “cresceu com os mesmos preconceitos contra a Franca” que, na década de 1770, “caracteriza- vam o povo da Inglaterra; mas a experiéncia e uma familiaridade com a na¢ao francesa mostrou efetivamente aos americanos a falsi- dade de tais preconceitos, e eu nao acredito que exista uma relagio mais cordial e confidencial entre dois paises [hoje] do que entre a América ea Franga’*” A América, argumentaram os escritores radi- cais, também serve a humanidade como modelo em outro aspecto, ao provar que as pessoas de diferentes extragdes podem viver lado a Jado em harmonia e concordancia. No estado de Nova York, obser- vou Paine, “cerca de metade” da populagio ¢ holandesa e o resto, uma mistura de ingleses, irlandeses e escoceses; enquanto em Nova Jersey encontramos novamente “uma mistura de ingleses e holandeses, com alguns escoceses e irlandeses”; e na Pensilvania, um ter¢o da popula- cao é alema e os inglés somam nao mais do que 0 outro tergo.*” “Quando todos os governos da Europa estiverem estabelecidos sob o sistema representativo’, declarou Paine, “as nagGes se conhe- cerao e as animosidades e preconceitos fomentados pelas intrigas e artificios das cortes irao acabar”.*' O pensamento radical considera- ya as animosidades nacionais, como o amor ao combate e a bravura, vestigios do estado selvagem do homem, maculas grosseiras cor- tigidas apenas pela propagagao, tanto nacional quanto internacio- nalmente, da nova moralidade da igualdade e equidade. Conforme dito por Cerisier, “nao é impossivel que os lideres das nagées um 19 PAINE, 1985, p. 35-6. 150 Ibid. p. 166n, 451 Ibid., p. 268. 142. | A REVOLUGAO DAS LUZES dia desejem o bem da humanidade”. Cerisier era classificado como um seguidor de Montesquieu,*® mas até 0 inicio da década de 1790 ele havia aderido as posigGes radicais, e era um defensor particular- mente ardente da Revolugéo Americana. Pode até acontecer, ele pre- viu, que aqueles que dirigem as negociagoes finalmente entendam que quando 0s interesses dos povos colidem violentamente sempre ocorrem desvantagens mutuas, Todo o poder que imagina ser a in- terrupcao do comércio comum e das relagSes entre os povos algo do seu préprio interesse particular 6, por esse simples fato, opposée Au Bonheur général* Nunca houve um momento mais favordvel, ele instou em seu diario Le Politique Hollandois* em abril 1781, para que um congresso geral de poténcias maritimas examine todas as formas possiveis pelas quais a humanidade possa evitar futuros con- flitos no mar, pela elaboracdo de um tratado geral, o qual seria assi- nado por todos, incorporando o direito dos povos sobre os mares. Este seria um passo crucial rumo & “paz perpétua’®* Para encontrar o caminho que leva a paz universal, Diderot, @Holbach e os seus discipulos estenderam a ideia espinosista dos vinculos morais, que ligam um individuo ao outro em uma socie- dade justa, baseados na reciprocidade das relagoes internacionais. Cada na¢4o tem obrigagées morais para com os seus vizinhos, in- cluindo as mais fracas, uma lig&o que a humanidade considera mui- to dificil de se adotar. Era essencial que as relagGes internacionais, e nada menos que o governo, os costumes e a religido fossem pro- fundamente reformadas de acordo com as leis naturais.*° A “vonta- de geral” de wma determinada sociedade, em Diderot e d'Holbach, obriga todos os cidadaos a permitirem a seguranca ea tranquilidade alheia, e a cumprir as suas obrigagées a elas, punindo os infratores 352 POPKIN apud TIJDSCHRIFT, 1989, p. 543-4. 353 Oposto ao bem comum. (N.L) 354 A politica holandesa. (N.T.) 355 Ibid., p. 534-4; CERISIER, 1783, v. 1, p. 175. 356 D’HOLBACH, 1998, p. 383-4. AORITICA ILUMINISTA DA GUERRA E A BUSCA PRLA “Paz PERPETUA” | 143 e impondo limites aos que se comportam de uma forma antisocial. O conceito de “vontade geral” de Diderot e d'Holbach se estende (ao contrario do conceito de Rousseau) 4 lei da “grande sociedade” de naces do mundo, e pressupGe a universalidade da nova moralidade secular da cidadania e da igualdade. A “vontade geral” de Rousseau, por contraste — infundida por seu compromisso protonacionalista, preferéncia pelas republicas pequenas e autossuficientes, e pela antipatia explicita ao cosmopolitismo e inter- nacionalismo -, foi de pouca ajuda neste sentido.” Somente a “vontade geral” do Iluminismo Radical pedia que todos os Estados defendessem a justica, a tranquilidade e a boa-fé no interesse de todos, Obviamente, ainda nao existia qualquer autoridade capaz de dissuadir ou impedir principes e povos de perpetrar agress6es € de se comportar injustamen- te em relacao aos outros, Principes e nagées formaram uma espécie de superssociedade, mas, infelizmente, nao tinha nem cabega, nem prin- cipios fixos ou leis. Assim, nao era surpreendente que os homens con- tinuassem a sofrer as consequéncias atrozes da guerra e da anarquia. Com a disseminagao das reptiblicas democraticas, porém, a situagao melhoraria rapidamente. A partir da criagao de um tribunal internacio- nal dos poderes, esses escritores propunham um tribunal das nagées, entio, os verdadeiros principios morais, a ordem genuina e 0 direito poderiam substituir a rivalidade irrestrita ea ganancia desenfreada das presuncosas monarquias imperiais € dos principes ambiciosos.* Kant concordava, mas nio acreditava na necessidade de se eliminar a mo- narquia e a aristocracia e adotar a democracia representativa universal- mente para alcangar tal objetivo. ‘Assim, de acordo com os philosophes radicais, para produzir a paz mundial é necessario um duplo processo — uma mudanga em diregao ao republicanismo democratico no interior das nacées, por um lado, e, por outro, uma convergéncia dos interesses dos povos, sob a forma de uma assembleia internacional geral com regras acor- 357 LOUDEN, 2007, p. 99-100. 358 D'HOLBACH, 1998, p. 411-2. 144 | AREVOLUGAO Das LUZ dadas para a resolucdo de disputas. Da mesma forma que a agressdo eas tradigées bélicas inevitavelmente alimentam a tendéncia para a tirania e a monarquia hereditaria, inversamente, a mudanga em di- recaio 4 democracia formal, representativa e consultiva ira alimentar © apetite para a paz e para a estabilidade: as coisas que realmente pertencem ao verdadeiro interesse de todos. Os povos bélicos exal- tam a necessidade da tomada de decisées rapidas e secretas, da ago disciplinada e da auséncia de dissidéncia dos comprometimentos decididos.* Assim, as propens6es belicosas e agressivas predisp6em asociedade a autocracia, tirania, supressdo da dissidéncia e perda de liberdade individual. Por outro lado, um povo ferido pela guerra e pela tirania, eles afirmavam, ird se esforcar pelo oposto. A paz é tao necessiria para a felicidade da raga humana, instou Cerisier em 1783, que existe uma necessidade de um novo organis- mo na terra que seja suficientemente poderoso e respeitado, capaz de obrigar todos os poderes a aceitar esse beneficio para a espécie huma- na, e para ajustar as condi¢des em que eles possam nomear em con- junto um “senado” internacional, autorizado a arbitrar as diferengas que surgem entre os paises. Esse organismo, apds rigorosa inspeao de todas as reivindicagées rivais, direitos e declaragées, pronunciaria seus entendimentos e resolugdes que, entdo, se tornariam obrigaté- rios para todos os povos. Tal “senado” das nagées deve ser composto por homens suficientemente virtuosos “para nao terem outra patria sendo o universo, nenhum outro amigo sendo a justica e a verdade” (pour dautre navoir patrie Que lUnivers, dautres amis que la justiga et la vérité). A générale assemblée, como Cerisier denominou suas Nag6es Unidas, no que foi, talvez, a primeira formulagao exata do conceito, precisaria ter um presidente; ¢ todos os anos essa “presi déncia” internacional iria recair sobre um novo deputado eleito por maioria de votos.** 359 D'HOLBACH, 1998, p. 94. 360 Assembleia Geral. (N:.) 361 CERISIER, 1783, v. 5, p. 56-8. ACRITICA ILUMINISTA DA GUERRA A BUSCA PELA “Paz PERPEruA” | 145 O estabelecimento de uma assembleia geral para regular as re- lag6es internacionais das democracias representativas do mundo era o caminho légico para a “paz perpétua’. Mas a sociedade hu- mana nao pode ser formada por republicas democraticas, baseadas no principio da representacao e nas eleigdes, sem que antes ocorra uma “Revolugio Geral” para abrir caminho. Em nitido contraste com Voltaire e Kant, esta era a perspectiva do Iluminismo Radical. Monar- quia, aristocracia e autoridade religiosa eram os interesses investidos que atrapalhavam o caminho, pois mantinham os exércitos perma- nentes, programacao de recrutamento, sistema de alta tributagao e constante condugo de guerras. “A razao, como o tempo, trilhara o seu proprio caminho’, previu Paine, “e no combate com os interesses, 0 preconceito ira tombar, Para que a paz universal, a civilizagao e 0 comércio sejam sempre a porcao de felicidade do homem, nao outro meio de conquista sendo uma revolugao nos sistemas de governo”** Este programa, mais uma vez, mostrava 0 gigantesco abismo entre o Iluminismo Moderado e 0 Radical. O debate do século XVIII a res- peito da “paz perpétua’, em esséncia, nao era uma controvérsia so- bre a guerra, exércitos permanentes e 0 militarismo ou, ainda, sobre como criar as Nacées Unidas, mas sim uma parte integrante de toda a batalha entre os pensamentos radical e moderado, entre a visdo de uma ordem providencial, divina e respeitada por sua antiguidade, por um lado, e os sistemas monistas e espinosistas baseados na de- mocracia representativa e no igualitarismo, por outro. 62. PAINE, 1985, p. 161.

Você também pode gostar