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Filosofia da Administracao I 31 ‘imediatez estendeu seu tampo de acdo e de retroa- — medida da rede into transformagao) -encontra-se quase que total- mente -objetivada ‘em dispo- 6.3 Etica na Administragdo: E Possivel Ensinar Etica? Apesar de a discussao sobre ética na filosofia ocidental ter se iniciado com Sécrates, a ética na administragio € nos negécios é um ramo de 312 Filosofia e Etica na Administracao estudos recente, que se configurou nas tiltimas décadas, Em faculda- des de administragao, tornou-se uma disciplina quase obrigatéria, € mesmo em cursos de Filosofia constitui-se em uma proficua drca de investigagao. Como campo novo de investigagio, propoe mais per- guntas do que oferece respostas. Alids, fazer as perguntas corretas € formuld-las adequadamente talvez seja seu grande desafio neste mo mento, assim como conseguir esbogar os contornos da discussio. Existem hoje, no Brasil ¢ no exterior, diversas entidades dedicadas ao tema, como o Centro de Estudos de Etica nos Negécios (Cene)®, a Society for Business Ethics (SBE)*', a European Business Ethics Network (Eben)® ¢ a International Society of Business, Economics and Ethics (Isbee)*’, além de destacadas publicagGes como Jour of Business Ethics, Business Ethics Quarterly, Business Ethics: Europ Review c Business and Professional Ethies Journal, Os manuais de ética na Administragdo em geral comegam pel apresentacao da distingao entre ética teleolégica e deontoldgica, € utilitarismo ou conscquencialismo, que prega que o certo ou en de uma agao derivaria da sua consequéncia, tem em Jeremy Ben (autor de Introduction to the principles of morals and legislation) e } Stuart Mill (autor de Uiilitarianism) scus represcntantes mais dest cados. Para Benthan, o prazer ¢ a dor deveriam servir de guias cos. A utilidade e 0 valor ético de uma agao deveriam ser medide em fungSo de sua capacidade de gerar prazer ou evitar a dor. Jé p a ética deontolégica, cujo representante de maior destaque seria 0 Idsofo alemao Immanuel Kant, as ages teriam valores morais intrinsea Uma grande variedade de temas é abordada sob a insignia Erica na Administragao. Vejamos brevemente alguns deles. Podemos discutir ética em relacio a produtos. Pensemos, exemplo, nos produtos que viciam ou fazem mal. Sao etica te questiondveis as decisées de promover e vender produtos de seg ou valor questiondveis para 0 consumidor, como cigartos, ¢ tes, balas, dlcool etc. Deverfamos, nesse caso, respeitar a libe de de mercado ¢ de escolha individual do consumidor ou 0 " CENE. Disponivel em: . ® SOCIETY FOR BUSINESS ETHICS. Disponivel em: ISBEE — Internationél Society of Business, Economics and Ethics. Disponivel em: htt wensynethos.org/isbee/> ze __ Filosofia da Administracao como devemos encarar eticamente questées relativas a0 design de produtos, como nos casos de obsolescéncia planejada? Questoes relativas a propaganda enganosa so também em ge- ral abordadas em Erica da Administracao. Se de um lado podemos encarar a propaganda como criadora de necessidades, de outro lado temos de reconhecer que a propaganda ¢ também um veiculo de informagao para a sociedade. Pregos e margem de lucro sao varidveis normalmente avaliadas eti- camente, Geralmente ocorre, entretanto, uma confusao entre lucro li- quido e lucro bruto: muitas vezes um lucro bruto percentualmente ele- vado (¢ eticamente indecente), quando se considera apenas o prego de compra ¢ 0 prego de venda de um produto, imbute uma série de custos ¢ despesas envolvidos em sua comercializacao, como assisténcia técnica, garantia, custos de estoque ¢ distribuicdo, promogio, treinamento en- velvido na introducao co produto, saldrios comissio de uma equipe de vendas qualificada, registros nos érgaos competentes, taxas e impos- cos ete., e quando tudo isso ¢ levado em consideracao, podemos chegar 2um lucro liquido eticamente aceitével ou até mesmo ao Prejuizo, O processo de globalizacao instaurou também interessantes questées sticas. Como avaliar eticamente 0 enorme abismo existente entre paises desenvolvidos ¢ subdesenvolvidos ou em desenvolvimento? Nao seria a globalizagao uma miragem ou uma teoria para masca- car essas desigualdades com um discurso de igualdade ¢ liberdade? -omo encarar, no cendrio globalizado, a funcéo, o papel ¢ as obri- sages das empresas multinacionais em paises pobres? Questées relativas ao tratamento da informagao ¢ A comuni- a¢do corporativa revestem-se também de cunho ético. Como en- sarar a honestidade na comunicacao corporativa, interna e externa? Estaria 0 funcionamento efetivo das organizagdes dependente de re- acionamentos bascados em respeito, honestidade, justica e verda- Informagées constantes de relatérios, fraudes, manipulagao da aformagao ¢ da midia sao também interessantes, do ponto de vis- = ético. Quanto de suas informagoes sigilosas seriam as empresas brigadas a compartilhar? Quando? Com quem? O especulador financeiro € quase sempre condenado do pon- le vista ético, mas muitos defendem que cle sustenta 0 arcabougo economias modernas. Nos mercados de agécs encontramos um os temas mais debatidos em ética administrativa, a agao dos inside waders, aqueles que se beneficiam de informag6es supostamente sigilosas aa especulagio. 313 314 Filosofia e Etica na Administragao_. - 4 Tangenciamos alguns temas de interesse ético em Administra= do, observando, assim, uma avalanche de perguntas. Todas essas questoes (cmuitas outras) podemmser tratedas e:desenvolvidas filosoficameail te. Selecionamos a seguir alguns temas para tratamento mais especi- fico: a ética do capitalismo, a responsabilidade das organizacoes, concorréncia, 0 trabalho, algumas questes de administragéo puibli- ca eas relagdes entre desenvolyimento ¢ meio ambiente. 6.3.1 A Etica do Capitalismo O capitalismo ¢ uma teoria econémica baseada no capital, propriedade ¢ na competicao em um mercado livre. Mesmo ess definigao lato sensu do capitalismo j4 aponta uma questao (ou con tradicao) ética intrinseca ao préprio sistema: podem conviver hi moniosamente o espirito da ética ¢ 0 espirito de competicao defendid pelo capitalismo? Nao haveria quase que uma razio inversa entr © comportamento virtuoso ea maximizagio do lucro? Ou sej quanto mais ético um comportamento, menos lucro ele geraria € quanto maior a riqueza, menos ética ela envolveria?™ Outra questao ética levantada pelo sistema capitalista envol arelacdo entre distribuicdo de riqueza ¢ direito 4 propriedade ®, muitos pafses, particularmente no Brasil, é dramatica a injustica envolvida na distribuigéo de riqueza. Os dados do mais recente censo do IBGI séo um bom exemplo. Pode-se justificar a riqueza quando ela coexiste na mesma so ciedade com a extrema pobreza? A riqueza deve ser limitada e/ot obrigada a investir em beneficios sociais? Isso poderia ocorrer 5 a violagao da liberdade individual ¢ dos direitos de propriedade? Seri tal diteito moralmente defensivel? Deveria ele ser sujeito 2 algum restrigio? O capitalismo estaria baseado na maximizacao de no préprio intcresse? Essa posigao seria moralmente aceitavel? Nao i centivaria 0 egofsmo ¢ a indiferenga em relacao aos outros? Uma defesa comum do capitalismo contra esse tipo de acusa: que a pobreza decorre da preguiga e falta de vontade de wabalhar, d ponto de vista do individuo, ¢ da falta de organizacao e corrupgio, caso de paises subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Assim, seri mos terceiro mundo porque somos um pais desorganizado, a pobrezs * The morality of business and capitalism. In: WHITE, Thomas |, Business ethics: a philosophical reader. Upper Saddler River: Prentice Hall, 1993. p. 29-78, ® Distributive justice. In: WHITE, 1993, p. 79-130. Filosofia da Administracao seria nossa culpa e responsabilidade, nunca falha do sistema. Os paises do terceiro mundo sao experiéncias fracassadas ¢ deveriam ser riscados do mapa da humanidade. Os individuos pobres so preguigosos ¢ tém 9 que merecem. Por mais que se queira ser imparcial ¢ procurar nessas posigées al- guma sabedoria e alguma coeréncia, isso é praticamente impossivel. Di- zer que uma crianga que nasce em uma familia (e, numa perspectiva mais ampla, em um pais) que nao consegue nem mesmo alimentd-la decen- temente, que nao tem condigdes de proporcionar-lhe um minimo de educacio, dizer que essa crianga tem 0 que merece, pois, de mil indivi- duos como esses, um conseguiu vencer na vida, ¢ no mfnimo sédico. Mesmo que considerdssemos a propriedade como um critério justo para comparar pessoas on paises (critério cuja justica, € bom que se diga, ¢ bastante questiondvel), tal critério sé teria sentido se as pessoas ou os paises em consideragao tivessem oportunidade justa ¢ igual (ou ao me- nos préxima) de decidir por sua aquisi¢ao. Mas nao ¢ isso 0 que ocorre, pois tal tipo de justiga nao ¢ o pressuposto do sistema capitalista. Um sistema que assume a competicao ¢ a maximizacao de lucros como seus fundamentos bdsicos, e nfio coloca como seu fundamento basico a ali- mentacao decente de sua populacao, nao merece credibilidade. E claro que um pais capitalista pode ser bem-sucedido em fornecer satide, edu- cacdo ¢ alimentacdo em niveis minimos de dectncia para sua populagao, camo 0 séo muitos, mas isso nao significa que 0 fundamento tedrico desse movimento seja ético, mesmo porque outros paises também ca- pitalistas n@o conseguem atingir esse minimo de decéncia. Joel Feinberg apresenta uma interessante discussio sobre cinco prinefpios que em geral entram em consideracio quando se discute a distribuigdo da justiga: igualdade, necessidades, mérito ou realizagao, contribuicdo ou “retorno devido” e trabalho ou esforgo™’. Se pode pa- recer utépico imaginar uma sociedade em que toda a distribuigao de renda ¢ riqueza seja absolutamente equalitéria, nao deixa de ser um en- genhoso exercicio de imaginagao defender que a desigualdade pode ser benéfica para a sociedade como um todo, porque, por exemplo, au- menta o bolo total e, entio. todos receberao um quinhao maior do que receberiam sem as de dades. Também nao deixa de ser fanta- sia imaginar que possamos tragar uma linha divisria entre as “necessi- dades” basicas dos seres humanos, a partir da qual a desigualdade seja * Secia/ philosophy. Englewood, NJ: Prentice Hall, 1973. Apud WHITE, 1993, p. 80-88. 315 Filosofia e €tica na Admi tragao eticamente aceita — o que chamar de “necessidades” seria um ato j& ideoldgico, determinado inextricavelmente pela posigao social do le gislador-filésofo na sociedade. E possivel (¢ necessdrio) realizar uma comparagio filoséfica entre. Capitalismo ¢ Socialismo ¢ criticar © pragmatismo que diz. que o sistema socialista falhou (nas experiéncias do leste europeu ¢ partiz cularmente na Ruissia) ¢ que por isso nao deve mais ser levado em consideragao. As poucas chances e oportunidades para efetivamen- te testar o sistema na pratica nao servem de desqualificacéo de sua teoria ¢ visao. Do ponto de vista ético, 0 socialismo parece dese- nhado como um sistema muito mais justo que o capitalismo. 6.3.2 A Responsabilidade das Empresas Qual a responsabilidad dos dirigentes e administradores em relagao as empresas e aos acionistas? Trata-se aqui de uma relacio fiduciria ou dé simples agente? Podem as empresas ser responsabilizadas? Devernos reco- nhecer que a separagao cada vez mais comum entre propriedade e admi- nistragao toma discutivel a aplicacao de leis morais 2s organizagies. Empresas nao sio simples agregados de individuos, como as mul- tidocs, jd que se estruturam como sistemas de tomadas de decisdes, de responsahilidades, compromissos, relacionamentos e objetivos, re- vestindo-se assim de caracteristicas pessoais. Nesse sentido, podem ser consideradas agentes morais ¢ avaliadas do ponto de vista ético. Surge, entretanto, imediatamente uma questao: até onde se esten- de a responsabilidade social das empresas? Uma visio mais estreita de- fende que a empresa praticamente nZo tem responsabilidade social, Um artigo paradigmdtico essa posicio é “The social responsibility of business is to increase its profits”, de Milton Friedman ®’, O critério de avalia- si0 esta aqui focado exclusivamente na maximizagao dos lucros, obje- tivo principal das organizagbes capitalistas. Assim, deverfamos pensar ex- clusivamente em responsabilidade fiducidria da empresa para com seus acionistas (stockholders). Nas ultimas décadas, constitui-se uma nogao mais ampla de res- ponsabilidade social das organizagoes capiralistas, que enfatiza os valo- res dos stakebolders*, que incluiriam todo grupo ou individuo que podem New York Times Magazine, Sept. 13, 1970, Apud WHITE, op. cit., p, 152-167 © Cabe registar que Chester Barnard, mesmo sem utilizar a palavra, | pensava no inicio do século pasado em redes de comunicacéo nas empresas que envolveriam seus stakeholders (empregados, acministradores, fornecedores @ clientes) Filosofia da Administracao i 317 afetar ou sao afetados pelas agGes, decisdes, praticas e objetivos da orga- nizagao. Os stakeholders seriam, portanto, todos aqueles que tivessem algum tipo de stake (tisco, participagio ou intcresse) naquilo que a or- ganizacao faz e em seus resultados. Assim, a questo de para quem a empresa é tocada seria respondida nao em fungo de uma visio restrita, apontando apenas para os acionistas (aqueles que possuem stocks — agdes — da empresa), mas sim por meio de uma viséo mais ampla da res- ponsabilidade para com todos os stakeholders. As empresas teriam, entio, responsabilidade social para com as comunidades ¢ nagdes em que es- tao inseridas, com 0 meio ambiente, com seus clientes, com seus dis- tribuidores, seus fornecedores, seus empregados e até mesmo com seus concorrentes. A nogao de responsabilidade corporativa é aqui claramente expandida — as organizacoes nao sdo responsdveis por proteger apenas seus acionistas, mas também os interesses de tados aqueles que com ela interagem e que sao por ela afetados. Sem diivida, a relagao ¢ a responsabilidade direta dos administradores de empresas para com os investidores tém uma conotagao diferen- te da relagio dos administradores com os stakeholders da empresa, mas isso ndo significa que o administrador nao tenha obrigagdes morais em relagao aos stakeholders. O filésofo Thomas Donaldson®, por exemplo, desenvolve in- reressante conceivo de contrato social para dar conta dessas obriga- soes indiretas das empresas. Assim como no caso do contrato poli- tico desenvolvido por Hobbes, Locke ¢ Rousseau, poderiamos pensar em um contrato original dos negécios, uma espécie de contrato metaffsico, um ideal ético ¢ moral. Ele seria celebrado entre a so- ciedade ¢ as empresas, ¢ envolyeria basicamente os consumidores dos produtos e servicos da empresa ¢ seus empregacos, trazendo vantagens beneficios para todos, assim como obrigagées, e baseando-se na cldusula maxima de justiga. Esse “contrato” serviria para avaliar o desempenho das empresas da perspectiva moral. Interessante objecdo que em geral se levanta em relagdo a posi- sdes como a de Donaldson ¢ 0 que se costumou chamar de parado- xo do stakeholder. Afinal, como poderfamos lidar com situagdes em gue 0 contrato social dos negécios, que acaba por ditar obrigagées para os administradores de empresas, entra em conflito com a rela- DONALDSON, Thomas, Corporations and morality. Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 982. passim, Enquanto os stockholders so aqueles que possuem stocks (acées) das empresas, 0s stakeholders possuem stake {interesse ou participacao) nas empresas 318 Filosofia e Etica na Administracao Gio entre os administradores ¢ os acionistas? Como avaliar eticamente, por exemplo, uma situacdo em que toda a industria em que a em presa est inserida trabalha causando poluigio ambiental, e caso.a empresa decida adotar medidas antipoluicao, cla se tornard nao- petitiva, reduzindo assim as margens de lucro dos acionistas? Uma forma de pensar essa aparente contradigao é que a'em presa nao € uma entidade auténoma que confronta um ambiente externo, mas antes uma rede de relacdes entre stakeholders. Adm nistrar significa administrar para stakeholders, incluindo aqui os acioni Os stakeholders nao podem ser pensados como sendo afetados p da organizagao. A identidade bdsica da organizagao nao ¢ definida independentemente dos stakeholders. Assim como Ortega y Gasst afirma sobre o individuo “eu sou eu e minhas circunstancias”, po deriamos dizer que “a empresa € a empresa e seus stakeholder: Assim, 0 paradoxo dos stakeholders aponta para um conflito de in teresses que, segundo a perspectiva ética, deve ser resolvido sem privil para nenhuma das partes. Cabe concluir citando uma interessante teoria do Direito, a da desconsideragao da personalidade juridica®, Em algumas situag6es, as empresas podem ser utilizadas como instrumento de realizag de fraude ou abuso de direito. Um juiz pode, nesse caso, ignorar a autonomia patrimonial da pessoa juridica, imputando os atos ile citos ¢ fraudulentos as pessoas fisicas responsaveis por eles. A teo= ria da desconsideragao da personalidade juridica, portanto, indica, com base na perspectiva estritamente legal, que nao sé as empre= sas, mas também seus administradores, podem ser responsabilizado por seus atos. A responsabilidade, portant, nao deve scr limitada’ a fachada juridica da organizacao, ¢ as cobrangas podem ser feitas nao apenas contra os recursos da empresa, mas também de seus s6- cios. Poderfamos nesse sentido dizer que 0 contrato social legal da empresa, que a define como personalidade juridica, é desconsiderado em nome de um contrato social mais amplo, similar ao contrato de que Donaldson fala, Da mesma forma como a relagéo entre 6 administrador ¢ 08 acionistas pode ser desconsiderada em nome de um contrato social mais amplo, entre a empresa e os stakeholders. * Veja, por exemplo, COELHO, Fabio Ulhoa, Desconsideracao da personalidade juridica, 19 Curso de dircito comercial. $0 Paulo: Saraiva, 1999. v. 2, p. 21-56 Filosofia da Administracao Concorréncia Desieal A expressao concorréncia desleal tem dois sentidos de certa forma distintos: macrocconémico, em que representa os atos decorrentes do abuso de poder econémico, e microeconémico, em que representa os atos praticados pela industria ou comércio que prejudicam os concor- rentes. Assim, enquanto as leis antitruste procuram garantir a liberdade de competicao mediante o controle do abuso do poder econdmico, as leis de concorréncia desleal procuram garantir a justia na competigao. As regras de concorréncia desleal, tanto sob o aspecto macro quanto microeconémico, parecem, em principio, caminhar contra o preceito de um mercado livre. Bernard Brancq, com efeito, elenca quatro excegbes & liberdade total de iniciativa: propriedade intelectual ¢ industrial (dircito de autor, marcas e patentes), concorréncia desleal, o principio de liberda- de contractual (clausulas restritivas de nao concorréncia, como de distri- buigdo exclusiva) ea regulamentacao de priticas restritivas®. Entretanto, mais uma ver podemos pensar a intromissio do Fstado vi- sando promover a justica envolvida em contrato social original dos negécios, justiga baseada no numa visio restrita de liberdade, mas numa visio profun- da, de acordo com os conceitos de liberdade propostos na histéria do pensa- mento polftico, ético ¢ juridico, conforme jé estudamos. No aspecto macroeconémico, a formagao de cartéis ou trustes aca~ ba impedindo a entrada de novos competidores no mercado, ou seja, ini- bindo a prépria esstncia do sistema, a competicao, prejudicando assim os consumidores e a sociedade como um todo, que fica condenada a arcar com altos custos para consumir certos bens e servigos. Pode-se condenar no mesmo sentido as situagbes em que concorrentes fazem acordos de cooperacio, principalmente para majorar precos e/ou forjar licitagdes, ja que nesse caso estd sendo lesado 0 princfpio da livre concorréncia, @ por consequéncia estd sendo também lesada a sociedade como um todo. As- sim, as normas de concarréncia desleal macroeconémicas visam assegurar a livre iniciativa e a concorréncia, proteger o consumidor e, em iltima instancia, toda a sociedade, em fungao de um contrato social original como, © proposto por Donaldson e em fungao de uma nogao de liberdade dis- tinta da ideia de liberdade natural, como as propostas por Rousseau, Montesquieu, Locke, Kant ¢ Hegel. RAPPORTS entre la repression da la concurrence deloyale et [a reglementation des pratiques restrictives: Europe. Bulletin de I'institut international de concurrence commerciale, Colloque des 5 et 6 mai 1980, numero special, p. 13-14, 319 320 i Filosofia e Eticana Admi No aspecto microeconémico, a Convengio de Paris para Prote- co da Propriedade Industrial, em 1883, em seu artigo 10bis, forma- lizou a regra geral de que “constitui um ato de concorréncia desles todo ato de concorréncia contririo as priticas honestas em matéria industria ou comercial”. Sem dtivida, a expressio “praticas honestas” tem u significado muito subjetivo ¢ amplo, mas as legislagdes que a disci plinaram nao conseguiram utilizar termos mais precisos: “princfpia de boa-fé” (Fspanha e Suica), “correcao profissional” (Itdlia), “boa moral (Alemanha, Grécia e Polénia), “principios da honestidade c transagée: justas” ou “moral do mercado da regiao” (Estados Unidos) ”. A solu- ¢4o alcangada para precisar um pouco mais a definigao foi listar os atos que caracterizam concorréncia desleal. O artigo 10bis indica como atos d concorréncia desleal: os que criem confusao entre concorrentes, 0 de falsa alega¢do contra concorrentes ¢ os de indicagao ou alegacio qt induza a erro 0 pablico quanto a produto, marca ou caracteristica. 4 também a ser considerados atos de concorréncia desleal os de desvit de funciondrios ¢ de segredos industriais ¢ comerciais. O desvio frat dulento de clientela ¢ a atribuicao, por meio de propaganda, de compensa ou distingao falsas, sto também considerados atos de cot corréncia desleal. Uma interessante espécie de concorréncia desleal €¢ concorréncia parasitéria, em que ocorre imitagio continua e sistemd tica de nomes, marcas, produtos, embalagens, sistemas de vendas ou de distribuicao, publicidade e sistemas de valores de um concorrente, E possivel até mesmo pensar em concorréncia desleal entre empres cm principio, nao concorrentes, como no caso de fornecedor/fabi cante e distribuidor, em contrato de distribuicdo, quando uma das pa age deslealmente™. Quando analisadas de uma perspectiva restrita, pode parecer qi as leis de concorréncia desleal microeconémicas visam proteger apenas © concorrente. Mas uma viséo mais ampla nos mostra que, na ver- dade, o consumidor e¢ a propria competig’o, como interesse da so ciedade como um todo, esto sendo protegidos, da mesma form como no caso de concorréncia desleal macroeconémica. * Ci, WORLD INTELLECTUAL PROPERTY ORGANIZATION. Protection against unfair competition: analysis of the present world situation. Genéve, 1994. p. 23; © CERQUEIRA, Joio da Gama. Tatado da propriedade industrial. 2. e0, S30 Paulo: Revista dos Tribunals, 1982. v. 2, p. 1268. * Cf MONTAGNINI Regina, Concorréncia desleal nos contratos de distribuigS0, 2000. Dissertagio (Mestredo em Direito) — Pontificia Universidede Catdlica de $20 Paulo, S80 Paulo, 2000, Filosofia da Administragao. 6.3.4 O Trabalho Em recursos humanos encontramos intimeras quest6es que merecem ser avaliadas por uma perspectiva ética. Seriam as imensas diferengas entre saldrios justificdveis, do ponto de vista ético? E justo que uma faxineira, que dedica a semana toda de seu trabalho duro a uma empresa, ganhe 200 vezes menos que um executivo? Até onde vai a responsabilidade das empresas pata com seus empregados, que dedicam boa parte de sua vida ao tra- balho? Como encarar eticamente as demissoes de mio-de-obra? Como julgar o caso de empresas que montam filiais em paises em que os salarios sao menores dos que os do pais em que estao estabelecidas para se aproveitarem do custo inferior? E 0 caso da eliminagao de funcoes ¢ posigées de trabalho pela recnologia? Afinal de contas, nao pode a tecnologia também ser encarada de forma positiva, ao eliminar, por exemplo, trabalhas fisicos pesados? Como devemos lidar com questées de privacidade e confidencialidade em relacao ao uso de informagGes sobre os empregados por parte dos empre- gadores, como no caso de exames (drogas, Aids, psicolégicos etc.)? Como julgar 0 “dedo-duro”, aquele que denuncia comportamen- tos ou atitudes em sua empresa que ele considera eticamente erra~ dos? O assédio sexual no trabalho, por exemplo, tornou-se tema dominante nos tltimos anos € reveste-se de conotagdes ¢ticas, as- sim como a discriminagio no ambiente de trabalho. Ainda falando de trabalho, hayeria razdes eticamente defensa- veis para considerar a prostituicao ilegal? Nao se trataria aqui de cerccamento do direito de trabalho, especificamente das mulheres? Por que é proibido “vender” o corpo ¢ ter (e dar) prazer, mas é permitido vender o trabalho sem prazer, com extrema insatisfagio ¢ até mes- mo sofrimento? O trabalho é em geral encarado em nossa sociedade de dois pontos-de-vista até certo ponto antagénicos. De um lado, o traba- Iho nos auxilia a fugit do dcio, servindo de valvula de escape para nossos impetos competitivos, ajudando a nos manter sadios. Nos- sa autodefinigao ocorre em grande parte pelo trabalho. Por meio dele as pessoas definem sua natureza, seu cardter ¢ sua personalida- de. O trabalho garante ao ser humano um lugar seguro na socieda- de, o que determina seu reconhecimento social. Ser humano e tra- balho estao inextricavelmente ligados. 321 Filosofia e Etica na Administracao De outro lado, sabemos que muitas pessoas trabalham por ne- cessidade sao infelizes em seu trabalho. Muitos empregados gos- tariam de receber saldrios sem trabalhar. ¢ boa parte dos emprega- dores preferiria ter resultados sem trabalhadores. Harry Braverman, por exemplo, discutiu cm um cldssico a degradacao do trabalho no século XX, por meio da alienagao do trabalhador e da exploragao do capitalismo™ Parece fascinante ¢ promissor langar um olhar histérico sobre essa atividade humana. A nogio de trabalho sofreu varias mudan- gas essenciais ao longo da histéria da humanidade. Na Grécia An- tiga, o trabalho era visto como um fardo que brutalizava a mente, que devia ser evitado de todas as maneiras. Os hebreus antigas viam 9 trabalho como uma punigio para o pecado. Apenas a partir do Renascimento o trabalho passa a ser encarado de modo positive, Com a Revolugao Industrial ¢ a Reforma protestante, o trabalho passa a ser visto como a atividade mais importante na vida de uma pessoa. Em A erica protestante ¢ 0 expirite do capitalismo, por exemplo, Max Weber discure as relagdes entre as crengas religiosas calvinistas va mentalidade capitalista. Com 0 protestantismo, o trabalho passou aser considerado algo bom cm si mesmo. Ganhar mais daria pra- zer a Deus. O que antetiormente era visto, no maximo, como uma inclinagao pessoal ou escolha, agora se tornou uma obrigacao mo- ral®*. Nos anos 1970, assistimos a uma série de revolugGes sociais, entre as quais uma rejeigao a essa concepcao de trabalho em favor da filosofia de gastos e fruigdo. Teriamos passado da economia de producdo e poupanga para uma economia consumista. Sem duvi- da, a sociedade da informagao e¢ do conhecimento trouxe uma nova revolugao em nossa relagao com o trabalho, a ponto de se poder imaginar, num futuro nao muito distante, o fim do trabalho como o entendemos ainda hoje. Sempre me pareceu que a discuss4o sobre o trabalho nunca colo- ca em questao a estrutura scmantica que criou um espace para o con- ceito “trabalho”, como se ela fosse a tinica possivel de se imaginar, nao ” BRAVERMAN, Harry Trabalho © capital monopolista. a degradagéo do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Guenabara. 1987 ROSENTHAL, Sandra B.; BUCHHOLZ, Rogene A. Rethinking business ethics: 2 pragmatic approach. New York: Oxford University Press, 2009. p. 79, lu. Business ethics: the sregmatic path beyond principles to process, Upper Saddle River: Prentice Hall, 1998 9. 229-332 Filosofiada Administragao podendo ser colocada em questo. A pratica e o préprio conceito de trabalho sao histéricos — nao se trabalhava. da forma como entende- mos hoje o trabalho, até hd poucos séculos. Em geral, fala-se de tra- balho digno, exploracio etc., mas quase nunca se discute se é sempre preciso pensar em trabalho dessa forma, até mesmo se é realmente preciso pensar em trabalho, Se nao € possivel imaginar uma sociedade sem trabalho, e por consequéncia (ou coincidéncia) eticamente mais justa. Parece que nessa questao hd alguém nos enganando, uma cnergia in- visivel que nos Indibriou durante séculos, convencendo-nos de que o trabalho fazia parte de nossa identidade. E. possivel ser humano sem uabalhar — esse seria um dos desafios éricos do novo milénio. 5 Administracgao Publica Interessantes questées éticas surgem no ambito da adminis- tragao publica. Um exemplo é a questao da divida externa de paises subdesenvolyides ou em desenvolvimento. Em princfpio, etica- mente uma divida ¢ uma divida, e deve ser paga. Mas em mui- tos casos, quando pensamos cm dividas de paises pobres, surge um conflito entre a necessidade dos credores e as necessidades da prépria populagao desses paises. Em muitos casos, para con- seguir pagar as dividas e seus clevados juros, alguns governos passam a exigir sacrificios imensos de sua populagao, por meio de polf- ticas de manutengao dos juros internos altos ¢ de elevacao de impostos, deixando de investir em necessidades sociais basicas como satide ¢ educagao. Tanto que essa questao é sempre retomada em ¢po- ca de eleigdes no Brasil, com as constantes ameacas de candida- tos de esquerda de que promoyerao um calote na divida exter- aa, supostamente (ou demagogicamente) em favor de investimentos para a populacao. Outra questao importante € a dos direitos aucorais e intelec- tuais. Em tese, paises mais desenvolvidos tém mais estrutura e capital para registrar patentes, por exemplo, c isso os coloca em posicao de vantagem em relacio aos paises mais pobres. O sistema de di- reitos autorais e intelectuais ¢ injustamente vantajoso para os pafses mais desenvolvidos, fazendo com que a balanca penda despropor- cionalmente para seu lado. A propriedade intelectual e, especifi- camente, os direitos autorais sustentam internacionalmente a ex- ploragao da “matéria-prima” dos pafses subdesenvolvidos ou em desenvolvimento pelos paises desenvolvidos: 323 Filosofia e Ftica na Administragao © eurare, © batique, os mitos ¢ a danga lambada fluem para fora dos patses em desenvolvimento desprotegidos por dircitas de propriedade intelectual, enquante Prozac, Li is, Grisham ¢ 0 filme Layabadal fluem para dento — protegides por uma suite de leis de propriedade intelectual, que por sua ver sio reforcadas pela ameaga de sangoes comerciais, Ha, € claro, mnitas rardex para esse desbalanceamento. Nao é simplesmente o design de um sistema de propriedade intelectual ao te- dor da figura do auror que explica tais resultados, Disparidades em tecnologia e tiqueza significam que, qualquer que soja 0 stema de propriedade intelec- tual adotado, 0s paises desenvolvidos serdo mais capazes de explorar, comercializar e lucrar sobre os objetos de propriedade intelectual. Mas um sistema de pro- priedade intelectual baseado no ideal do criador original ¢ tansformador compoe essas tendéncias. [sso porque a vantagem competitiva tradicional dos paises em desenvolvimento tem sido founecer matéria-prima, ¢ um regime autoral «ki A matéria- rima para a produgao de propriedade intelectual o valor de zero". P P Pt A questao que se coloca, entio, é: por que defender os direi- tos intelectuais, de marcas, patentes € direitos do autor, contra 0 dircico fundamental do acesso & informagao por parte da popula- gio mundial que nao tem condigdes de sustentar esse modelo? Um caso que vivenciamos recentemente no Brasil € 0 das pa- rentes de remédios. © governo brasileiro ameacou quebrar as patentes de remédios para Aids, pois alegava estar gastando muito com esses medicamentos, que seriam fundamentais para frear uma situagio de epidemia ¢ calamidade publica. Os laboratérios multinacionais, ¢ claro, reagiram, mas parece que no final um acordo garantiu pregos mais baixos, ¢ as patentes continuam respeitadas, A questao é complexa do ponto de vista ético. De um lado, é obviamente injusto estipu- lar regras gerais em que os laboratérios acabam se baseando, inves- tindo em pesquisa e desenvolvimento, produgio ¢ marketing, sen- do que muitos projetos resultam em prejuizos astrondmicos, jd que nao chegam nem mesmo & fase de produgao ¢ cometcializagio. As- sim, 0 sucesso de alguns casos deveria estar protegido por regras, definidas de antemao, de propriedade inrelectual, de forma a cobrir os gastos anteriores € 9 préprio risco do negécio. O sistema de propriedade intelectual, nesse sentido, seria o propulsor da pesquisa ¢ do desen- volvimento de novas ¢ poderosas solugdes para a socicdade. Sem ele, nao haveria investimentos, pois esses investimentos no estariam jamais BOYLE, James, Shamans, software, ard spleens: law and the constracion of tne Information secety. Cambneige: Harvard University Press, 1997 p. 125-126, traducéio nossa Filosofia da Administragao garantidos. De outro lado, ¢ no minimo incémodo pensar que re- médios, supostamente produzidos para salvar vidas, nao possam ser consumidos pela grande parte da populaco mundial que nao tem condigdes de pagar por scu uso. Nessa perspectiva, as regras de di- reitos intelectuais acabam impedindo o acesso da populacao (que em tiltima instancia deveria ser a beneficiada com a produgio dos laboratérios) a sua prépria salvacao — a solugao esta dispontvel, mas a legislacdo acaba impedindo que vidas sejam salvas, que os ne- cessitados tenham acesso a ela. O que teria sido produzido para salvar vidas, tragicamente, nao pode ser consumido por boa parte daque- les que poderiam ter a vida salv: Outra delicada questio de administracéo ptiblica pela qual nosso pais tem passado ¢a da reserva de quotas para negros no acesso as universidades. Mesmo que reconhecamos os crimes de escravidio, mesmo que reconhegamos que os negros tiveram menos oporcuni- dades que os brancos em nossa sociedade, ainda assim seria uma decisao correta, do ponto de vista ético, continuar a praticar certo tipo de discriminagao, reservando vagas em fungao da raga no acess 20 ensino puiblico? Nao estarfamos, sob 0 pretexto de cortigir um erro histérico, perpetuando 0 mesmo erro? 6.3.6 Desenvolvimento Econémico versus Poluicgao Ambiental Outro impasse ético contemporaneo ocorre na combinagao entre desenvolvimento econdmico e poluigéo ambiental. Seria possivel harmonizar os dois polos? Seria possivel implantar um projeto de desenvolvimento que incluisse responsabilidade ambiental? Uma proposta pratica internacional, encampada até pelo go- yerno brasileiro, ¢ denominada CDM — clean development mecanism. Afinal, nao é justo que os paises subdesenvolvidos ou em desen- volvimento sejam obrigados a nao poluir c, por consequéncia, obrigados também a frear seu desenvolvimento, que poderia colocé-los num patamar minimo de desenvolvimento, enquanto os paises que se desenvolveram mais cedo tiveram liberdade de poluir durante as tiltimas décadas. © CDM pretende justamente contemplar essa questio, propondo que os paises desenvolvidos, que jd teriam poluido boa parte do planeta por causa de seu desenvolvimento, sejam obriga- dos a investir nos paises mais pobres em programas de desenvolvi- lidade ambiental, ou seja, que esses paises ajudem mento com responsabi 325 Filosofia @ Ftiea na Administragao a sustentar, financeiramente, o desenvolvimento e ao mesmo tem- poa protecio ambiental dos paises mais pobres. Sandra Rosenthal, por cxemplo, defende que é necessdria uma nova compreensio do crescimento. A separagio do crescimento eco- némico do terreno moral (no qual o crescimento econdmico en- contra-sc incrustado) gera a falsa necessidade de precisar escolher entre « desenvolvimento econdmico ¢ natureza. Essa falsa dicotomia en- xerga 0 erescimento econémico como excessivamente externo em relagao a seu propdsito moral. Nossa relagéo com a natureza é 20 mesmo tempo ccondmica e moral. A protec da nacureza e 0 en- riquecimento da qualidade de vida estao inextricavelmente unidos. O desenvolvimento da humanidade escd ecologicamente conectado com seu mundo bioldgico, assim como seu mundo cultural. O “cres- cimento econdmico” é uma abstragdo da realidade mais completa e rica do crescimento do ser humano. Bens ccondmicos sao apenas positivos enquanto contribuem para o enriquecimento da existén- cia humana, A faldcia da falsa dicotomia entre desenvolvimento cco- némico versus preservacao ambiental distorce a propria natureza da riqueza da realidade a que as duas alternativas deveriam no fundo servir’”. A natureza nao pode ser desumanizada nem podem os se- res humanos serem desnaturalizadas. A falsa dicotomia antropocentrismo versus biocencrismo deve ser superada em Favor da visio ccocentrisea. Dentro dessa discussdo, coloca-se a questo da internacionalizagio da Amazénia. A perspectiva partidtica natural seria defender 2 Amaz6nia como parte de nosso territério. O que muitos argumentam, entre- tanco, ¢ que a preservagao do planeta ¢ mais importante do que o respeito a fronteiras geopoliticas definidas nos tiltimos séculos, prin- cipalmente porque o Brasil nao estd conseguindo impedir o desmatamemo da floresta Amazénica, o que em tiltima instancia acabaria conde- nando o mundo todo. Isso, portanto, numa visio ética mais am- pla, justificaria a intervengio. Lideranca Lideranga ¢ ¢tica sio temas estreitamente conectados. O lider determina © tom moral da organizacao, representando e reformulando seus valores. JA discutimos em varios momentos do texto diferen- ROSENTHAL; BUCHHOLZ, 2000, p 77-81 + Filosofia da Administracao tes conceitos de lideranga. Entretanto, gostarfamos de encerrar a discussao sobre Etica na Administragio abordando especificamente esse tema. Ha, sem duvida, inumeras construgGes do conceito de lideranga, ¢ exploraremos aqui, brevemente, apenas algumas perspectivas. Chester Barnard foi um dos pioneiros na discussao sobre lide- ranga na tcoria da Administragao. Ele destaca os aspectos nao inte- lectuais envolvidos nas relacdes com os Iideres, na recepgao de or- dens ¢ nas situacbes de decisée Os homens atribuem autoridade a comunicagSes de posigSes supcriores, com a condigdo de que essas comunicagdes sejam razoavelmente consistentes com as vantagens de escopo e perspectiva que so creditadas a essas posiges. Essa auto- ridade é, até um grau considerével, independente da habilidade pessoal do su jeito que ocupa a posigéo, E muitas vezes reconhecido que, emborz esse sujeito possa rer habilidade pessoal limitada, sua recomendacio deve ser superior pela simples ravo da vantagem de posigio. Essa & a autoridade de posipao. Mas é dbvio que alguns homens tém habilidade superior. Q seu conhe- cimento e a sua compreensio, independentemente da posicdo, geram respeito. Os homens atribuem autoridade ao que eles dizem, em uma organizagio, ape- nas por essa razao. Essa é a autoridade de lideranca™, Na mesma diregao, Mary Parker Follett, como jé vimos, pro- poe a Lei da Situacao, em que os Ifderes, na realidade, nao dao or- dens, mas ajudam a clarear uma situacao para que ela prépria pos- sa indicar 0 caminho mais adequado a ser seguido. Quanto mais uma ordem emana da avaliacao correta da situagao, mais natural- mente ela sera aceita e cumprida. Também relacionando lideranga e ética, William Hitt” iden- tifica quatro estilos particulares de lideranga, que corresponderiam a quatro sistemas éticos distintos: 0 manipulador, 0 administra- dor burocrdtico, 0 administrador profissional e 0 transforma dor. Vejamos as catacter(sticas principais de cada tipo. Para o manipulador, os meios justificam os fins. Alinhado com uma ética maquiavélica, preocupa-se meramente com resultados. J4 vimos que esse ¢ o mote do livro de Gerald R. Griffin, Maquiavel na Administragao. A autoridade do lider manipulador esta baseada * BARNARD, 1968, p. 173, tradugao nossa * HITT, william. Ethics and leadership: pu Press, 1990. p. 135-174. theory into practice. Columbus, Ohio: Battelle | 327 William Hitt identifica quatro lideranga em acministiagéo: manipulador, burocratico, profissional e transformador. Filosofia e Etica na Administragao. no poder. Ele procura ao mesmo tempo tragar aliangas ¢ identifi car claramente um inimigo, e seus subordinados devem ser passi- vos, dependentes ¢ submissos, A principal fungao do administrador burocratico ¢ comunicar e fazer cumprir regras. Ele representa uma ética de regras, que tem como modelo 0 socidlogo alemao Max Weber, que racionalizow as fungées de lideranga e os principios da administracio, Para Weber, as organizacées precisam de uma estrutura que transcenda o lider individual, garantindo dessa maneira estabilidade, independentemente do que ocorra com a pessoa do lider. Assim, as regras tornam-se a autoridade, em substituigao ao lider individual. As organizagoes burocraticas tém descrigdes detalhadas de cargos c fungdes e devem continuar a funcionar normalmente e na mesma diregdo, indepen- dentemente da alterag&o em sua lideranga. Jaéo administrador profissional procura conseguir que as coisas sejam feitas com o propésito de atingir os objetivos da organi- zagao, numa fungao similar 4 do maestro. Numa orquestra, seu papel consiste em planejar, organizar, comunicar, motivar e mensurar os resultados. Ele enxerga seu trabalho como uma carreira ¢ uma profissio, como um engenhciro ou um contador. Seus valores basciam-se numa ética de contrato social, em que os recursos humanos e materiais devem ser utilizados com eficacia para alcangar ob- jetivos, enquanto o administrador burocratico preocupa-se ba- sicamente com a eficiéncia. Para diferenciar os dois termos, convém reproduzir uma brilhante passagem de Chester Barnard: Quando um determinado objetivo desejado é alcangado, podemos di- zer que uma acan 6 “efica2’. Quanda as consequencias nao visadas de uma acio sto mais importantes do que o ato de alcangar o objetivo desejado, ¢ sio insacisfatdrias, podemos dizer que a agao eficaz ¢ ‘ineficiente’. Quando as con- sequéncias nao visadas sio sem importincia ou triviais, a agio é ‘eficiente’. Além disso, as vezes ocorre que 0 objetivo visado nfo ¢ alcangado, mas as conscquéncias nao visadas satisfazem os desejos ou motives, nio a ‘causa da ado. Devemos, enti, considerar essa ago como eficiente mas ndo elicas, Fm forma de retrospecto, @agdo nesse caso ¢ justificada nio pelos resultados visados, mas por aqucles ndo visados. Hssas observagoes so objetos da experiencia pessoal comum. Consequentemente, devemos dizer que uma acio é eficaz se ela aleanga scu objetivo especifico. Devemos também dizer quc ¢ eficiente s¢ satisfar. os motivos desse objetivo, seja eficar ott nao, € 0 processo nao gera insatisfacoes inesperadas, Devemos dizer que uma ago ¢ ineficiente se os motivos nao sio Filosofia da Administracao satisieitos ou ocorrem insatisfagdes inesperadas, mesmo se cla ¢ fica. Isso geralmente ocorre; descobrimos que nao queremos o que pensivamos que querfamos™. Por fim, o lider transformador, por meio da motivacao, pro- cura retitar o melhor de cada pessoa. Para ele a lideranga é menos um atributo ou uma fungao e mais uma relagao entre lideres ¢ co- laboradores. O lider cransformador enxerga o potencial das pessoas € tem prazer no seu crescimento. Ele é um bom treinador ¢ ajuda os outros a se tornarem Iideres. O lider transformador estd, por- tanto, baseado em uma ética personalfstica. Jé Rosenthal e Buchholz"! yao um pouco mais além ao pro- porem o conceito de “lideranga participativa”: o lider no se posiciona 4 parte de um grupo de seguidores nem é um organizador de ideias, mas, antes, por sua prépria natureza, encontra-se em interagao di- namica com © grupo; ambos permanecem em um proceso de cont(nua transformagado por causa dessa interacdo. O Ider nao deveria ser com- preendido, portanto, numa posigao externa em relagdo aos mem- bros do grupo. A organizacao deveria ser entendida como uma co- munidade, ¢ néo um simples aglomerado de individuos e alguns lideres, e nesse sentido seria por natureza ética e moral. Filosofia, Viséo e Missao das Empresas Conceitos Pretendemos agora abordar alguns conceitos essenciais em ad- ministragao, e veremos como ha incriveis variagées no significado desses conceitos, em diferentes autores, Aproveitando o estudo de filosofia da linguagem jé realizado, podemos dizer que filosofia, cultura, valores, visdo e missao das empresas sdo cinco significantes que, na verdade, nao possuem um significado definido a eles associado. Tra- balharemos agora no terreno de fronteiras conceituais movedigas € seremos capazes de demonstrar como um esforco de definigao conceitual rigorosa, como o fizemos neste livro com alguns conceitos filoséfi- cos, é também essencial em teoria da administragéo para definir um cédigo comum que possibilite a comunicagao BARNARD, 1968, p. 19-20, traducdo nossa. ROSENTHAL; BUCHHOLZ, 2000, p. 191-198; id., 1998, p. 415-432

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