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O Campo Social Introdug3o a Bourdieu MeditacSes Pascalianas é 0 titulo de um livro. £, um livro de um autor chamado Pierre Bourdieu. Esclarecimento necessério pra deixar claro que o curso ndo é nem sobre meditagdes e nem sobre Pascal, mas uma tentativa de oferecer uma facilitaggo da compreensdo da obra de Bourdieu. Bourdieu é um socidlogo francés que se tornou mundialmente conhecido no final do século Ce faleceu no comecinho do século atual, 2002. a sua obra eu diria que teve grande impacto na Academia Brasileira. Eu me atrevo a dizer que esse impacto se deu mais fartemente na educaco, nas Faculdades de Educacdo, em seguida nas Faculdades de Cigncias Sociais e em terceiro lugar nas Faculdades de Comunicacdo. £ neste Ultimo caso eu sou amplamente resoonsével por esta divulgacéo. E muito curioso vocé dar um curso sobre alguém que vocé conheceu to bem. Esteve na casa, frequentou a familia, foi orientada por. E mais curioso ainda se tratando de alguém de convivéncis tio dificil como era esse cidadao. Ent&o, é clara que né, dentro dessa relacao professor-aluno, eu pude aproveitar 0 maximo qué eu pude dessa figure que tinha um discernimento extraordinério, esse discernimento extraordinario é um juizo que eu fiz com o alhar que eu tinha dos 22 aos 26 anos da minha vida. Talvez hoje Bourdieu me impressionasse menos, mas na época ele era de fato pra mim uma especie de Deus. A primeira coisa que ele me mandou fazer foi ler tod sua obra imensi e fiché-a, trabalho que levava dias e noites. € & um pouco essa perspectiva que jé comeca a revelar tracos da sua personalidade. Na verdade Bourdieu criou uma escola de pensamento. Escola de pesquisadores ditos Bourdieusianos. Bourdieu tinha uma revista, Bourdieu tinha o seu curso, tinha os seus orientandos @ tinha uma visdo da Academia que era uma visao mafiosa mesmo: “ou vocé estd comigo ou vocé é inimigo”, £ a truculéncia académica de Bourdieu rendeu a ele muitos inimigos, mas rendeu a ele uma notoriedade, um prestigio impressionantes, Um dia me pediu pra escrever um artigo sobre as criticas que ele fez a Sartre. Porque, na verdade, Sartre é 0 mais importante reconhecido intelectual da Franca da segunda metade do século XX. E Bourdieu ndo engolia isso. Na verdade achave Sartre um falastrdo, um enganador, um picareta, E queria porque queria ter um reconhecimento equivalente ou superior. Eu me atrevo a dizer que em certos aspectos conseguiu, mas conseguiu do jeito dele fazendo ciéncia. E o jeito mais dificil, porque pra ele concluir alguma coisa ele fazia milhdes de pesquisas, enquanto que a filosofia especulativa permite dizer qualquer coisa, e se desmentir amanha mesmo, Individuo xiita, ortodoxo, absolutamente convencido das suas posigdes, ndo era exatamente uma figura flexivel, Intelectual de esquerda formado na militancia mais tradicional das esquerdas francesas, Bourdieu nasceu no sudoeste da Franca, nasceu no sudoeste da Franca, é, na década de vinte e o pai era funciondrio dos Correios, Importante lembrar que 0, a Post, na Franca, é correio e é banco. Entéo o pai de Bourdieu, na verdade, era uma espécie de funcionario do Banco do Brasil ¢ dos Correios ao mesmo tempo. Funciondrio piblico. E vocé sabe que isso deixa tragos. Tragos, primeiro lugar porque Bourdieu néo era parisiense, ¢ na Franga quem ndo é parisiense meio que ndo é, né? Sotaque diferente, falar cantado, um jeito quase italianado de falar. Tragos de inferioridade que Bourdieu teve que carregar a vida inteira, Como se no bastasse, 0 pai era um pouco como um caixa de banco. € ai Bourdieu vai estudar, num primeiro momento, numa cidade chamada Pau, que esta sob a influéncia maior de Bordeaux ali no sudoeste da Franca, na regido da Gironde, né? E de Pau ele vai pra Paris se preparar pra entrar na Escola de Filosofia, que fica em Paris na Rue Dime ULM e nao € muito facil entrar. E Bourdieu, entao, é, vai ter colegas muito diferentes dele. E é muito interessante como isso Mmarcou profundamente a sua trajetoria, porque eu que ndo era ninguém, um moleque que pediu pra ser orientado por ele, entrava com ele no metré pra fazer metade do caminho junto e invariavelmente ele dizia: “Esses idiotas parisienses que se acham superiores aos outros, asquerosos, me fazem lembrar da tempo de faculdade...". Aquele vomitdrio de ressentimentos saltava de forma que, que absolutamente tava por tras de tudo a que ele fazia do ponto de vista intelectual. E eu nao pude me impedir de me reconhecer. Vocé vai achar que é delirante da minha parte estabelecer um paralelo, mas eu estabeleco, afinal de contas aqui quem esta dando aula sou eu. Eu também nasci ndo se sabe bem aonde, também tenho um sotaque meio “acaipirado”, meu pai era de quinto escalo da policia, funciondrio publico, e eu também vim pra Séo Paulo estudar em colégio de rico, e também entrei na Sao Francisco, faculdade de rico. Meus colegas seduziam minhas colegas com Escart XR3 conversivel e eu me deslocava em transporte coletivo, E ai fui parar na Franga, veja sd. Pior né? E fui parar na Faculdade de Direito, lugar ultraconservador, Wocé sabe que na Franga quando vacé tem “D” no nome quer dizer que vocé é da regido de algum lugar e por isso vocé é nobre, né? Por exemplo, Pierre Bourdieu, ndo tem “D", mas Valéry Giscard, D apdstrofe Estaing, quer dizer que ele é de Estaing, da regido de Estaing, ele é nobre e eu sou Clovis de Barros, E os professores mais de direita que eu tive todos me perguntaram: “De que regido vocé é?” E eu dizia: “Da Vila Tibério. Ville Tibere”, bairro periférico de Ribeiro Preto. E dificil encontrar lugar pobre em Ribeirdo Preto, mas eu achei um pra nascer. Coisa esquisita: - Qsenhor é da onde? - Ville Tibere. — Mas fica onde isso? ~Au Brésil. — Au Brésil. Ah! bom. Desculpe ai. Disfarcavam e caiam fora: “Me equivoquei”. Entende muito bem o que Bourdieu viveu, mas acho que digeri muito melhor todas as patadas simbdlicas que eu levei. Ele nunca as digeriu. E toda a sua obra é marcada por essa inferioridade social. No tem como entender Bourdieu sem entender da onde ele veio ¢, de certa maneira, que tipo de relacdo social injusta ele se sentia vitima de. Vida e personalidade de Bourdieu Entdo, é claro, que quando vocé pega um livro de Bourdieu pra lé a primeira coisa que chama atengdo € a maneira absolutamente complicada que ele escreve. Claro que, o que ele diz é complicado mesmo, mas claro que podia ser dito de maneira mais simples. Nao que ele fosse vulgarizar, mas que, por exemplo, ele escrevesse frases mais curtas. E um dia perguntado por mim: por que aquele jeito estranho de escrever? E Bourdieu me diz que a maneira de escrever é ideologicamente marcada, € nds néo devemos assumir compromissos ideolégicos que pudessem nos confundir com uma vulzarizagZo burguess da ciéncia. Sé pra voce entender o tipo de figura que nds vamos estudar. Mas com tudo isso ele se tornou o grande intelectual da segunda metade do século XX. Sem divide, o mais importante cientista social depois de Marx, Max Weber e Durkheim. Eu me atrevo a dizer que Bourdieu é herdeiro dos trés. £ esse curso mostrard as herancas dos trés. Na minha opiniao, a heranca mais visivel e mais imediata ¢ a de Durkheim ate pela formacso francesa da sua sociologia. Mas eu tinha dite que Bourdieu entrou na Faculdade de Filosofia e maturalmente vocé deve esta se perguntando: “Mas ele nao é socidloga?” Pois é, em algum momento Bourdieu deixou de fazer Filosofia pra fazer Sociologia. E é claro que essa opgo é uma opeio estratégica. E claro que essa opcdo é uma opcio que tem 3 ver com a sua trajetdria. De certa maneira, ser socidlogo nfo tem muito a ver com ser fildsofo. E jogar outro jogo. E pertencer a outro campo. E conviver com outro tipo de gente. E Bourdieu comega sua vida profissional na Argélia, pra onde ele vai dar aula assim que ele se forma. E é justamente na Argélia que ele aproveita também pra fazer o seu servico militar, que Bourdieu comeca seus estudos de Antropologia. Bourdieu é um cientista. £ um homem que tem enorme apreco pela anélise da reslidade. Bourdieu ndo é um especulador, e é por isso que a sua obra é cheia de dados o que torna ainda mais indigesta a leitura. E muito diferente das outras coisas que eu jé ensinei aqui, porque vocé pega esses fildsofos ai, eles vao falando, nao ha 0 que comprovar, ndo ha o que demonstrar, ndo ha o que fundamentar, € 0 que saiu da cabeca. Mas Bourdieu néo, ele néo fala uma frase que néo tenha um milhdo de dados por tras comprovando. £ € por isso que a sua literatura é imensa, ela ndo acaba mais, porque a capacidade de trabalho é infernal. Viveu para o trabalho, viveu para o estudo das sociedades que se dispds 3 estudar. Bourdieu volta da Argélia e vai dar aula em escolas do ensino médio, é um percurso muito comum dos professores universitdrios franceses. E das escolas de ensino médio ele tem a sua primeira oportunidade em Lille, pra dar aula como professor universitdrio. Nos estamos na década de sessenta e Bourdieu publica “A distingo”, £ quando Bourdieu publica “A distingdo” nds estamos na efervescéncia de maio de 68 e Bourdieu se tora uma das grandes referencias dessa revolucdo estudantil e a sua fama se torna nacional, Bourdieu é uma referéncia subversiva do movimento estudantil de maio de 68, E nesse momento que ele é convidado pra ir dar aula em Nanterre. E em Nanterre ele comeca a publicar um livro atras do outro, E de Nanterre ele sd saird pra trabalhar na “Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales” e depois no “Collége de France”, onde eu propriamente o conheci, Bourdieu termina a sua vida tendo percorrido todas as instancias da Academia Francesa, tendo terminado no “Collage de France”, que ¢ onde dao aula os grandes nomes da Franga, em cada disciplina. Por exemplo, Sartre na Filosofia, Bourdieu na Ciencias Sociais, Georges Duby na Historia e assim por diante. Coma se nao bastasse, Bourdieu entrou, eu diria, num esquema de consagrado de tedricos de esquerda, é, internacional, Um pouco o que aconteceu com Paulo Freire também, ai entdo, ele se tornou um icone, um icone do pensamento de esquerda numa época que o pensamento de esquerda perdeu seus idolos, e Bourdieu se aproveitou muito disso. E tornou-se o grande intelectual de esquerda do final do século XX. Quando Bourdieu morreu em 2002, 0 caderno Mais da Folha fez um numero especial e eu escrevi um grande artigo central pra esse caderno contando da minha experincia pessoal com ele, Um lindo artigo cuja leitura, se voc& quiser, te € acessivel pela internet; “fevereiro de 2002, caderno Mais, morte de Bourdieu", um domingo de fevereiro de 2002; é muito facil de achar. Simbolicamente pra mim aquilo foi inesquecivel, porque eu escrevi oito décimos de pagina e os dois décimos de pagina que sobraram colocaram um artigo de Habermas sobre Gourdieu, Abrindo a pagina, a distribuiggo da diagramagao é de uma distor¢do simbdlica estupenda. Muito legitima pra mim, muito inveridica, mas muito, muito respeitadora dos meus afetos. Sou muito grato 2 esse individuo cuja convivéncia era quase insuportavel, Entdo depois de ter dito tudo isso, do por que nds, que eu me dispus a fazer esse curso, a Ultima pergunta que faltaria responder é: “por que demorei tanto pra falar do autor que eu mais conheco?” E porque ¢ preciso reconhecer que ele ndo tem muito a ver com a instituigfo mesmo, Mas depois que eu dei curso sobre o Capital de Marx, e ninguém falou nada... Bourdieu fica fichinha, A partir de agora eu me esmerarei em tornar a leitura de Bourdieu possivel. Oferecerei um instrumental que a mim nao foi dado desse jeito, Eu tive que ralar mesmo, e de me deparar com frases e frases inteiras que eu ndo entendia nada. Bourdieu é 0 tipo do cara que vocé pode ficar quatro horas assistindo uma aula e voce corre ‘0 risco de ndo entender uma Unica frase. E ele ndo via nisso nenhum problema, Os circuitos de consagragao social ‘Quando eu o conheci ele dava aula no “College de France” e ele dava aula num anfiteatro pra umas quatrocentas pessoas, mas ele também aparecia na tela de seis outros anfiteatros ‘equivalentes. Pra assistir onde ele estava era preciso chegar em torno de cinco horas da manhé pra uma aula as nove, nao sei se me entendeu? —Ah, Professor, aquino Brasil tem alguma coisa equivalente? No, Nao por falta de intelectuais importantes; por falta de gente interassada em ouvi-los, certamente. E eu ia 4s cinco horas. Na verdade, dizer que eu ia as cinco horas é mentira, eu ficava até as cinco horas, porque o metrd abre cinco e vinte, eu tinha que chegar antes. Junto comigo estudantes orientais, mais afeitos a suportar sacrificio, e eu fui ensinado por meu pai a néo “arvegar” pros oriental. Desde o tempo que eu prastei vestibular na USP eu ouvia meu pai dizer que 0s japoneses to se preparando e que eu tinha que vencé-los. Se eles chegavam &s cinco eu chegava também, ¢ficivamos das cinco as nove esperando a aula comecar E é claro que a histéria que eu conto mo artigo é a histéria de uma frase que ele falou, porque, ele pode te socar, te humilhar, porque toda vez que vocé nfo entende € humilhante. Eu me sinto assim, humilhado, burro. Mas tem uma hora que vocé pega o pedo na unha diz: “Nao, ndo € possivel, eu tenho que entender. Eu no sou tio burro assim”. Ea frase dele, que eu certamente jé citel varias vezes, ¢ vou retomar aqui no curso era assim: “Os circuitos de consagracio social serio tanto mais eficazes, quanto maior a disténcia social do objeto consagrado”. Vocé pode imaginar que ele falou isso no meio de outra como quem diz: “Vou ‘tirar a cueca porque me sujei todo”. Ele falou isso como se fosse a coisa mais obvia do mundo, & continuava com outra pior. E eu dizia: “Po! Mas nao € possivel.” Eu gravava a porra, transcrevia, levava pra casa ¢ ai ‘tentava lé: “os circuitos de consagragao...” Nao erg possivel. Tentava de todo jeito, |é devagar ¢ ai ja ‘tinha esquecide o comeso. Ou entao tentava lé como ele falava, ¢, de forma pedante, um pouco como o Femando Henrique dizia, como se fosse ébvio, né? E também no entendia porra nenhuma. Ai teve um dia, jd que eu tava mesmo ld na frente dele, eu nao tava no telao, terminou a aula eu levantei a mao. Nossa! $6 Bourdieu pra explicar a heresia do gesto. $6 Bourdieu pra explicar 0 quanto eu n3o deveria ter feito. $6 Bourdieu pra explicar a falta de capital simbdlico que me autorizaria a levantar a mdo. $0 Bourdieu pra entender o peso social daquele gesto. $6 Bourdieu pra explicar o quanto eu devia ter ficado quieto. ‘Mas como eu nao tinha nada a perder e Bourdieu explica isso também, afinal de contas ninguém me conhece, eu levantei a mo, ele ja tava indo embora, al ele viu aquilo ¢ ele levou trés segundos pra encaixar o golpe: “Quem que € esse bosta, quer fazer alguma pergunta’. Ah, como eu sei dessas coisas. E ai ele falau: “Monsieur”. Ai eu falei: “Na aula passada o senhor falou uma frase que eu nfo entendi’£ claro, eu ndo disse que as outras eu também nio tinha entendido, ai passaria por um imbecil completo. Mas: “Au revoir...Pois nZo, qual éa frase?", eu fale: “Circuito de consagracio social serdo tanto mais eficazes quanto maior a clisténcis social do objeto consagrado”. Ele olhou pra mim, um pouco estranhando: “Justo isso vocé néo entendeu? Eu disse tantas coisas mais complicadas, mas isso to dbvio e vocé no entendeu?”, Ele me olhou com ternura, ternura de quem contempla um mentecapto completo, né? Que sujeito desoreparado, ne? O mais bizarro é que a camera, como ninguém fazia pergunta tal, focaram em mim, eu devia estar nos seis teldes. Do meu lado meu amigo Tanziri, eu sempre tive assim amigos, amigos subversivos, né? Quem poderia ser meu amigo na Franga? Um tailandés completamente sem nogio. Um failandés que até hoje nfo entendeu naaa... cho que ele no sabe onde fica a Franca rno mundo. E 0 japonés, o tallandés ia pra aula do, e ele, ele ficava com o alhinho dele assim, até hoje eu nao sei se ele dormia, se ele... Ele ficava em diagonal assim. A hora que eu levantei a mo ele permaneceu imével assim... Fle s6 viu ele no telfo e, né? Sabe-se ld o que passava pela cabeca dele. Grande Tanziri! E, cozinheiro de comida tailandesa, que é doce e picante ao mesmo tempo. Engana muito pra quem tem hemorrdida. Vocé acha que é docinho, he! Depois de meiz hora vocé esta pegando fogo e ndo sabe porqué. Mas Tanziri, Bourdieu acho que nunca entendeu nada. E ai Bourdieu virou pra mim e disse: “O senhor algum dia vai escrever um livro”. Falei: “E, possivel”. “Nese livro o senhor, no dia da apresentaco da livro o senhor wai receber trés elogias: © primeiro € 0 da sua mie; o segundo é do seu melhor amigo € 0 terceiro é de um professor de outra universidade que vocé ndo conhece’. Ele olhou pra mim e disse: “Entendeu até aqui?” Veja o tipinho. Francés ja € uma categoria insuportavel, mas esse cara, ele excedia. Eu falei: “Até ai eu entendi”. Ai ele virou pra mim e falou: “Qual dos trés elogios te consagra mais?” Eu nao esperava por outra, por uma pergunta, eu no podia errar, ai eu falei: “Oterceiro”. Ele olhou pra mim como diver: “Viu? E por qué?" Eu fale: “Ah, porque o colega ¢ suspeito e a me mais suspeita ainda’. “Au revoir monsieur” Virou-se as costes, virou, a lousa se abriu como no show da Yun, ele passou pela lousa, olhei pro Tanzii e © Tanzii assim... Porque vocé nao entender @ frase... bom vai lil Agora ro entender a explicacio é demais. Mas 05 circuitos de consagraco social serfo tanto mais eficazes quanto maior a distancia social do objeto consagrado, agora ficou mais claro. O elogio seré tanto mais eficaz quanto maior a distancia social de quem elogia, em relagdo a quem é elogiado. Portanto, qual ¢ 0 elogio de eficécia menor possivel? Aquele de distincia social zero, E quando é que & disténcia social é zero? Quando... £, nfo o da mle ainda tem um pouquinho... O pior € 0 préprio, né? “Eu sou fodal” né? “Eu sou o melhor do mundo!” né? E,&,é risivel, nfo tem consagracao nenhuma. Quanto maior a distancia social maior a eficécia do elogio. A Academia sabe muito bem disso, Ninguém fala bem de si, pede pro outro falar © depois devolve na mesma moeds Consagracéo. Os franceses tam uma expresso que é assim: “Eu te ponho ld em cima e ai vocé manda o elevador pra baixo pra eu subir também’. Acho uma expressio fantastica, ¢ a aplicacdo da teoria de Bourdieu em esquemas reciprocos de consagracio: “Eu falo bem de voc®, voce fala bem de mim’, Ainda € melhor do que falar bem de si mesmo. Acho que vocé entendeu a ideia, ela ¢ até simples depois que vocé vence aquele primeiro impacto de uma frase, que passa muito longe do teu repertério. Assim ers Bourdieu e continu sendo. Sus leiturs é dificil e "MeditagBes Pascalianas”, como todo livro de Bourdieu, é um livra hermético ¢ dificil de ser entendido. Minha meta oferecer 0 instrumental basico pra tornar essa dificuldade um pouco menor, so um pouco menor, continuara sendo um livro dificil. Eu espero que voce se encante com o pensamento que é de um realismo e de uma crueza fascinantes, certo? Eu acho que Bourdieu esté para a Sociologia como Nietesche esté para a Filosofia, né? €, diz as coisas como elas realmente so. & fascinante. £, e depois que vocé vira admiredor de Bourdieu vocé no se desprega mais, né? E, tamanha a fertlidade dos seus conceitos. Acho que eu posso comecar. Ailusio naturalista de Bourdieu Eu acho que & primeira grande ideia que eu gostaris de apresentar pra vocé é a ideia daquilo que Bourdieu denominava é, a ilusdo naturalista, que ele repete muito. A ilusdo naturalista. Ora, venha comigo, né? Venha comigo! Afinal de contas vocé jé esté aqui numa sexta-feira. Esse & 0 momento de progredir, né? Sabe, do mesmo jeito que pra progredir fisicamente é preciso fazer forca, eu me lembro de um treinador que dizi: “Se nfo cansar no adiantou nada", aqui também é assim. é claro que a aula pode ser leve e vocé pode se divertir nela, mas se nfo houver um pouco de tensio néo haverd alargamento do repertério. Todo alargamento implica um desconforto inicial. AilusSo naturalista o que quer dizer? Bourdieu passa a sua vida mostrando que muitas coisas qué na sociedade nds consideramos, coisas de natureza, so, na verdade, coisas de sociedade. Se voc® preferir, muitas manifestacBes humanas que nés consideramos naturais, na verdade 80 socialmente adquiridas. Ou, pra falar como Bourdieu, socialmente construidas. Temos uma tendéncia no senso comum, aquilo que Bourdieu chamava com enorme desprezo de saber esponténeo, temos uma tendéncia no senso comum de naturalizar 8 aco humans, isto &, consideré-la como resultado de uma natureza qualquer e, portanto, temos a tendéncia de ignorar o quanto as nossas manifestagdes resultam de um trabalho propriamente social de que 0 nosso corpo é vitima. De um pertencimento social qué nos permite um certo posicionamento no mundo social. De certa maneira, de uma explicacdo propriamente sociolégica de uma manifestacgo que nao € natural, mas que é um fate social. Socialmente explicavel, porque um fato social, desde Durkheim, é isso: uma ocorréncia que sd € explicavel socialmente. Entdo, o que faz Bourdieu? identifica uma série de situagdes e comportamentos que no senso comum costumam ser imputados a uma natureza qualquer, e que na verdade séo 0 resultado de um pracesso complexo de socializaggo, de vida em sociedade. €, portanto, Bourdieu, de certa maneira, faz um trabalho de investigaggo desse proceso denunciando, né? A interven¢go da sociedade sobre o individuo e mostrando em que medida as relacdes sociais é que explicam os comportamentos humanos mais aparentemente naturais, dbvios, evidentes e cromossdmicos pra nao dizer diferente. Ento claro esté que essa ilusdo naturalista ¢, digamos, o primeira degrau a vencer. Em ‘outras palavras, a capacidade de identificar 0 que é socialmente explicdvel e a partir dai identificar as verdadeiras causas sociais que determinam este au aquele fendmeno sob pena de continuarmos no senso comum. E se Bourdieu escreve esquisito é pra deixar claro que o seu pensamento no é um pensamento de senso comum. Em autras palavras, se vocé quer fazer revista nova, Marie Claire, como ele dizia, ent&o ai a banca de jormal esta cheio de literature facil de entender. Eu escrevo do jeito que eu quiser pra deixar claro o qué? Que eu estou rompendo com o Gbvio; rompendo com o evidente; rompendo com o natural; rompendo com o que parece dbvio, por qué? Bourdieu estava absolutamente convencido de que esse trabalho é a condicdo pra evidenciar os processos de dominacdo simbdlica dentro da sociedade. Em outras palavras, a naturalizag&o dos comportamentos. A naturalizagdo dos comportamentos tira da sociedade o peso da responsabilidade daqueles resultados. Nada mais conveniente para dominantes que, de certa maneira, Ihes convém que as coisas sejam como so, Entao perceba, o trabalho é um trabalho delicado de identificacdo das relagdes sociais, seus processos de dominaggo e suas consequéncias comumente apresentadas como naturais, Obvias, evidentes e decorrentes de um “inatismo” bioldgico. Muito bem, claro que muitos exemplos me vérn 4 mente. © que eu estou querendo te dizer que pra Bourdieu 0 conceito de natureza humana é uma ideologia. Toda vez que alguém imputa 20 homem atributos inatos, o que esta fazendo é mascarar os processos sociais que socializam o homem e que o fazem ser do jeito que é, e no de outro jeito. Existe, portanto, uma iniciativa interessada de ocultar os processos de dominaggo em nome de um inatismo. Toda a natureza humana é uma grande sacanagem e é claro que isso se traduz de varias maneiras. A primeira delas é querer imputar ao homem a humanidade genericamente, atributos inatos de natureza intelectual, de natureza afetiva, de natureza espiritual, De certa maneira, definindo o homem antes mesmo dele nascer. Se é homem é porque é assim. E é claro que toda vez que vocé apresenta uma definicdo de qualquer homem, genérica como toda boa definicdo, e recheada de atributos, vocé obviamente esta dizendo que esses atributos estdo presentes no homem desde o nascimento, E se esta dizendo isso é porque esta retirando da convivéncia social, da vida social, do pertencimento social, a responsabilidade por aqueles atributos, Portanto, toda a ideia de natureza humana é uma grande sacanagem ideoldgica para mascarar as coisas como elas sda. Mas é claro que os atributos... Esta quente ou eu é que estou entusiasmado? Os atributos, os atributos genéricos tipo: o homem é animal politico dotado de logos etc. e tal, definicgo aristotélica e outras, esses, digamos, sda os menos graves. Suporte bioldgico Na verdade, Bourdieu se insurgia mais ainda contra as naturezas setoriais. E ai tem de todo o tipo. O primeiro tipo que ele consagrou num livro extraordinario, é 0 género. A natureza masculina é a natureza feminina. E Bourdieu escreve entdo “A DominacSo Masculina”. Uma obra extraordinaria. Uma obra absolutamente rica de investigacdo e de analise pra mostrar em funcao de que mecanismos saciais 2 dominagga masculina se torna legitima, aceita e defendida por todos, homens e mulheres. E é curioso como ele levanta dados que estéo presentes no nosso cotidiano, como até mesmo detalhes do parto, a maneira como o ginecologista lida no trabalho do parto pra mostrar 0 quanto no cotidiano aceitamos implicitamente uma superioridade que se evidencia nas praticas, ¢ que de certa forma teria como fundamento uma natureza masculina e uma natureza feminina. Ora, dird Bourdieu, a Biologia é responsével por um suporte bioldgico inequivoco, mas entre o macho com pénis e a mulher com seus correspondentes, entre isso ¢ a masculinidade entre isso 0 feminino ha uma distancia ocednica. Um trabalho propriamente simbdlico de construgge da identidade masculina que & cem por cento social. Um trabalho propriamente simbdlico da construg3o da identidade feminina que é propriamente social. De certa maneira, 0 que se espera do comportamento masculino @ 0 que se espera do comportamento feminino, sd podem ser compreendidos dentro da andlise daquele universo social especifico, naquele momento da histéria, naquele momento da, daquela sociedade especifica e assim por diante. Eos exemplos vo ao infinito. Afinal de contas, ao longo da hist6ria é preciso aceitar que 0 que se exigia do comportamento masculino em outros séculos ai, fariam com que uma figura como eu fosse um marica, pederasta, ridiculo, uma espécie de... Porque, imagina que eu nunca comi um cérebro de um animal vivo e isso pra um homem é uma lacuna espetacular. Eu nunca arranquei as. tripas de um inimigo vive com a mao. Eu nunca deflorei cinco mulheres a machadada. Nunca cortei a cabeca de um cara vivo. Entdo, é claro, eu s6 passo ser um individuo com inclinagdes femininas. E 56 estudar Historia e verificar que o que se espera do comportamento masculino em outros tempos, ndo é 0 que se espera do comportamento masculino hoje. Mas vocé no precisa ser historiador pra isso. Aliés, vocé ndo precisa ser historiador pra nada. £ s6 mesmo analisar hoje. Diferentes universos sociais tim diferentes formas de definigo da masculinidade. £, portanto @ evidente que o que se espera do comportamento masculino em certos espacos é completamente diferente do que se espera do comportamento masculino em outros espagos. Por que ndo dizer regies geograficas, né? Eu me lembro de um parente recém-adquirido e ele contava a seguinte histdria; ele foi abordado no transito e 0 sujeito saiu com um revolver, ele entae disse: “Isso ai sé funciona na mao de homem, seu bosta!’. E ai eu olhei aterrorizado. “6, imagina se eu ia voltar pra casa com a pecha de frouxo?!” Isso foi este ano, ndo é incursao histérica. Naturalmente que se alguém sai com um revdlver na minha frente, eu me escondo, coma ja aconteceu. E é claro entdo que o que se exige de comportamento masculino em certos lugares é diferente do que se exige em outros lugares. E isso vai deixando claro a vocé que os processos de construg3o da masculinidade que comecam com a cor azul na porta da maternidade, que comecam com um nome masculino, séo na verdade processos performativos. & um discurso performativo é sempre um discurso que fazer acontecer aquilo sobre o qual se fala, E a masculinidade é performativa no seguinte sentido, no sentido de que tudo o que é dito pra uma crianga de um sexo ou de outro poderia se resumir no seguinte: “Veja se voce vire o homem que eu jA estou afirmando que vocé é”. Em outras palavras, a socializagdo masculina é uma socializago performativa que visa fazer acontecer aquilo sobre o qual ela ja afirma estar acontecendo, de tal maneira que vocé s6 consegue entender a masculinidade se voc entender o lugar aonde aquele macho virou home. Vocé s6 consegue entender a feminilidade se vocé entender aonde aquela mulher virou mulher; aonde aquela fémea virou mulher. Acho que voc percebeu o suporte bioldgico é um pretexto inicial de uma construgo simbdlica complexa que varia de lugar pra lugar. Pra ficar ainda mais claro o que eu estou explicando, € preciso deixar claro que muitas vezes a identidade social do masculino € do feminino podem, de certa maneira, prescindir do suport bioldgico supracitado. Exemplo.. = O senhorj parece que ests falando como Bourdieu Pois 6, & inevitavel. E 0 caso de certos meios homossexuais ou prisionais onde vocé tem o marido, vacé tem a esposa e € tudo homem. Portanto, vocé tem a identidade do masculino, a identidade do feminino, e voc na tem o suparte bioldgico dando conta, deixando claro a independéncis € 3 soberania das construgdes simbdlicas em relacko a0 pinto, a0 clitoris e, a clitdris, sei la como cham, € essas especificidades bioldgicas. Entlo, & claro, ore, a pergunta é e por que apesar disso tudo, é, tants importincia a0 biolégico é dada? Por que o fundamento do bioldgico é sempre levantado? Porque de certa forma aidentidade masculina ela é incorporada a golpes de “encucacao’, relacdes sociais que “encucam" um certo jeito de ser, de pensar, de agir etc., que véo muito além da perceagdo consciente dessa pénese € desse processo. Em outras palavras, vocé vai virando homem sem perceber; vai virando mulher sem. perceber, de tal maneirs que quando vocé se d por si voce jé virou homem, virando mulher, sem ter se dado conta do trabalho social de construcdo dessa identidade, o que te faz pensar que tudo isso nada mais é do que uma consequéncia da natureza @ da biologia. & justamente pela incorporacdo e pela interiorizagdo de uma identidade simbdlica masculina socialmente construida, que vocé perde a dimensio social dessa construgio, razio pela qual o que é simbdlico acaba sendo interpretado como sendo bioldgico. Identidade Social Muitas vezes ento, os gestos destemperados de valentia ou gestos de covardia, so muitas vezes interpretados ¢ atribuidos a cromossomos tortos, he he he, ou até mesmo filiaches hereditarias: “Nao, o pai ja era macho. Esse tem o bago do pai”. Quando na verdade nao é 0 bago do pai que ele tem, 0 que ele tem é a socializa¢do que comegou com o pai, e que de certa maneira foi patrocinada no meio que obviamente levou a esse tipo de comportamento como inevitavel. E ai entdo, a valentia ou a covardia sao construgdes sociais que quase nunca so explicadas como tais, mas quase sempre so explicadas em funcao de fatores que nao sao as bons. Sobre 3 domingo masculin, recomendo a leitura, “Pierre Bourdieu’, ta escrito em portugués e é um dos livros mais tranquilos do nosso autor. Mas essa questo da ilusdo naturslista ndo ¢ 30 de género. Afinal de contas, o género foi a coisa que menos atrapalhou Bourdieu. Essa ilusdo naturalista tem a ver com tantas outras variéveis como étnicas, por exemplo. Afinal de contas, quem é que ndo relaciona um cabeca chata com uma série de outras reagdes e atribui-lhe a uma certa genética nordestina, esta, este ou aquele comportamento. Toda origem do racismo, toda a origem da xenofobia esta neste biologismo do comportamento humano. Esté em tentar identificar nas origens genéticas e bioldgicas, comportamentos que na verdade sao social e politicamente explicados. Uma natureza de negro, ah, quantos de nés, como é tentador dizer que negro tem a bunda mais dura. Como é tentador colocar em evidéncias diferencas bioldgicas pra justificar todos os nossos preconceitos. Como ¢ tentador acreditar que pequenas dliferengas bioldgicas possam justificar tanta discriminagéo, tanta distancia. Afinal de contas, mesmo num pais como o nosso, que todo mundo afirma ndo haver racismo, eu mesmo nao consigo ver muita diversidade étnica por onde eu passo. E olha que eu ensino numa universidade publica, e nos uitimos quinze anos eu no tive cinco alunos negros nesse pais que nfo racista. Nao é legal? Mas deve ser porque ele tem a bunda mais dura. Por isso, alids, eles correm mais. E por isso negro corre e homem vai pra r... E branco vai pra universidade. Nada como justificar biologicamente aquilo que é. Vocé sabe por que, né? Porque quando vocé justifica biologicamente, vocé ta dizendo na verdade que nao tem jeito. E sempre haverd um americano de extrema direita pra dizer que é 0 ndmero de cromassomos que @ menor, que deve ter algum problema de genética, que na verdade 0 que ha é, é que o cérebro é menor, eu acho, né? Nao sei se é pra mulher ou pra negro, o problema continua 0 mesmo. Sendo o cérebro menor, ent&o, a diviséo social do trabalho esta justificada: “os de cérebro maior, os cabegSes, vo pra universidade e os de cérebro menor, vacé da uma marreta, uma picareta etc. e tal”. E vocé faz uma divisdo social do trabalho a partir do tamanho do suposto cérebro diferente, Entdo vocé percebe que a partir dai vocé tira da sociedade, da socializac3o, do preconceito todo o Gnus da responsabilidade pela discriminacdo e vocé joga em diferencas bioldgicas quaisquer, como um musculo adutor da coxa desenvolvido ou até um pinte maior, eu sei ld, o que ‘vocé quiser chamar. E ai ento Bourdieu, ele se transtornava com essa perspectiva, 6 claro, o fato do negro e do branco ainda nao era exatamente o problema dele. O problema dele, dele pessoal, é que ele era taxado pela sociedade parisiense de caipira, caipira, né? Que eles chamam de “provence”, é... 0 cara vem da Provence, ele é lerdinho e tal. E nessa, velho! E ele toda aula ele falava: “Eu vou mostrar o lerdinho agora!” E ai ele comecava a falar ¢ ninguém entendia porra nenhuma: “E ai, Jo entenderam? Entao, sou euc lerdinho?” E, claro, ele nunca digeriu isso. £, eu, amim me faz rir quando alguém vé meu sotaque caipira, eu me divirto, é, no, ndo me irrito com nada disso, prefiro o sexo @ raiva. Mas ele nfo deixava barato. Ele nao deixava barato. Ele dizia: “Eu falo esquisito, mas vocé ndo me entende, porque o lerdinho é vocé. E aqui eu estou invertendo os processos de ‘socializagao, parisiense inferior, incapaz de me entender’, Espero que vocé entenda, ndo tem como separar a sua Sociologia da sua prdpria trajetéria. Alias, coisa que ele confirma na sua obra. Muito respeitador do que fez Nietzsche também, que dizia: “A minha filosofia 6 o resultado da minha loucura”. E Bourdieu dizia: “A minha sociologia esta totalmente explicada pela minha sociologia”. Em outras palavras: “Eu sou um subversivo e tudo o que eu falo sobre dominagao se aplica perfeitamente a todas as minhas estratégias de subversdo do campo, e depois como dominante de conservagao do campo". Muito bem, sendo assim, espero que vocé tenha entendido esse nosso primeiro degrau, 2 ilusdo naturalista, Depois do intervalo nds vamos atacar talvez aquele que é o mais fértil conceito da sociologia de Bourdieu, o conceito de campo, absolutamente imprescindivel pra vocé entender do que ele esta falando. Eu tenho certeza que depois que vocé entender bem o que é um campo social a tua andlise do mundo vai mudar, ela tem que mudar, ela tem que mudar. Depois que vocé entender bem o que é um campo social, de certa maneira a ldgica das estratégias sociais vai ficar muito mais clara pra vocé, e de certa forma, muito do seu moralismo ingénuo vai ser substituide por uma espécie de sagacidade cientifica muito competente pra entender como as coisas funcionam de fato. Conceito de campo é fantastico, mas esse eu vou abordar depois do intervalo. O conceito de campo Venham comigo! £, conceite de campo, nossa, é, quando eu digo isso sempre eu corro 0 risco de ser mal interpretado, mas corremos 0 risco de ser mal interpretado sempre. Se na minha trajetéria eu tivesse tido uma aula como essa teria me facilitado a vida. O conceito de campo € um conceito que esta presente em todos os livros de Bourdieu. No entanto, dizer o que campo @, de forma didética, definitiva, que nem gente, ele nao faz em momento algum. O lugar aonde vocé talvez possa ter um arremedo de didatismo ¢ no livro “Questées de Sociologia” que é uma reunigo de conferéncias e uma das conferéncias tem como titulo, Algumas Propriedades dos Campos. $6 ai, no resto da obra inteira ele fala de campo como se fosse a maior obviedade do mundo e todo mundo ja, né? Porque é o tipo da obra que ela ja comeca com 0 bonde andando. Vocé comega a Ié e ele parte da premissa que vocé sabe jd tudo. E é essa enorme dificuldade de ingressar na obra. © que é um campo social? Um campo social é um espaco de posigées sociais. Agentes sociais, pra Bourdieu, ocupam posigdes sociais. E & claro que ao se relacionar, as relagdes sociais, elas estdo a mercé das posi¢des socials ocupadas por aqueles que se relacionam. Entdo, todo campo é um espaco estruturada de posigdes sociais, Ora... — Professor, eu ndo sei se eu captel. Entdo venha comigo! Quando Bourdieu diz que é um espaco, a primeira coisa que vem a sua cabeca é um espaco. fisico, como, por exemplo, esta sala. E é claro que o espago de que ele esta falando ndo é esse, Essa a primeira dificuldade, E, portanto, 0 espaco social é um espaco que é abstrato, ele nao ¢ fisico, ele ndo é um lugar, ndo é um prédio, Eventualmente, espagos fisicos podem conter agentes de um campo de forma muito recorrente e intensa, mas isso é uma coincidéncia, O espaco social ndo é um espago fisico e, portanto, as relacdes sociais que constituem esse espaco social sio relages que podem se dar em qualquer lugar. Muito bem. Isto quer dizer que as posigGes sociais ndo s4o geograficas, elas sao simbdlicas, de tal maneira que elas podem néo ter nada a ver com as posigdes fisicas. E as distancias socials podem néo ter nada a ver com as distncias fisicas, Exempla: 0 CEO, que na Franca ¢ PDG, Président Directeur Général, o CEO de uma empresa pode eventualmente tomar o elevador com @ moga do café. A distancia fisiea se reduz, mas 2 distancia social é ocednica, continua ocednica, talvez até nunca pareca tio oceanica quando a dist&ncia fisica se reduz. A distancia fisica ndo elimina a distancia social. Coisa que Relagdes Publicas nunca entendeu. Isso eo resto, 6 é. Ent&o, existe em Relagtes Pubblicas um negdcio que é o café da manhd com o chefe, Entlo, 0 que, qual & a premissa? Colocando o empregado, de que nivel for, pra tomar café da manha como chefe, eles ficam os dois na mesma sala e com isso a gente consegue... he he he, sei. E de uma ingenuidade extraordinaria, O chefe ja vai tomar café da manha com o cara, como faria Maria Antonieta recebendo os seus siditos. 0 cara ja vai tomar café da manhd com o chefe, né? E, e ele vai comer meio croissant, né? Em casa ele comeria dezoito daqueles. € de uma artificialidade extraordindria, a distancia social e a distancia Fisice .» $6. um RP pra nao enxergar que as distdncias simbdlicas nao se encurtam botando uma pessoa na frente da outra. Ora, isto no quer dizer que as distancias sociais possam ser simbolizadas geograficamente. O que é outra coisa, Se esse menino - levante-se aqui - ele é meu aluno, ele vai me abordar na faculdade, entéo a distancia que ele vai manter é uma distancia de aluno, E essa distancia ndo & espontanea, essa distancia é socialmente aprendida, E se porventura ele transgredir essa distancia eu vou recuar de maneira a ele respeitar de qualquer jeito, por qué? Porque aluno e professor tem que conservar uma distancia. Entdo, aqui vocé tem uma certa materializagdo fisica de uma distdncia simbdlica, mas isso nao significa que se eu chegar perto dele pra tirar um foto, eu virei igual a ele ou quase igual. De jeito nenhum. Ele continua no valendo nada perto de mim. € evidente, porque ele nem mestrado tem, eu ja cheguei no fim da carreira académica, é preciso respeitar os titulos, portanto, va se sentar, entendeu? O campo é um espaco de posiges e de distancias. E essas posicbes se definem como? Agora vocé tem que entender. Preste atengao, porque esse € 0 pulo do gato. Quando vocé vai definir uma coisa, vocé costuma definir uma coisa seguindo os preceitos da logica classica. Toda definicao deve ser universal e propria. £ o que isso quer dizer? Aquila que & necessario pra conseguir, pra identificar a diferenca especifica, quer dizer, aquilo que tudo o que vocé define é, e aquilo que s6 o que vocé define é. Nao sei se me entendeu, se nao entendeu va pra casa com esse problema. E, claro, se eu vou definir bananas eu tenho que dé uma defini¢#o que compreends todas as bananas, ¢ eu tenho que da uma definicSo que nfo inclua péra. Portanto, que inclus todas as bananas, mas sd as bananas, universal & prdpria, no pode transbordar, e nla pode ficar aquém. Tem que oferecer a diferenca especifica, o contorno daquele universo. Ta claro? Entdo, todaa defini¢do costuma ser entendida na logica classica a partir do qué? A partir de um exame do objeto a definir. € @.a partir do exame de urn objeto a definir que eu vou encontrar a sua universalidade e a sua propriedade. Ora, a5 posigées sociais de Bourdieu ndo conseguem ser definidas assim; ndo é assim que se define. E por qué? Porque elas no sdo definiveis por elas mesmas. Na sociedade as posicées sociais néo sdo definiveis por si s6, elas s6 so definiveis em relacdo as outras. A definicdo, portanto, ela relacional, ela é uma definicao por tautologia. Uma coisa é 0 que o outro néo é. Eo outro? Eo que esse no €. E assim a vida social, de acordo com Bourdieu, é estruturada em torno de polaridades que sd tem significado no desmentido do seu contrario. - Osenhor podia dar um exemplo? - Naturalmente, nunca deixei vocé na mao. Vamos imaginar que eu peca pra vocé definir um chefe. Exemplo classico de Bourdieu, um chefe. Como é que vocé define um chefe? Fica claro que um chefe néo é definivel por ele mesmo. Mas um chefe 50 é definivel em fungéo do seu subordinado. Um chefe sem subordinado nao tem sentido, no chefia, portanto, chefe s6 é chefe em funcio do que lhe € outro, tautologicamente Do mesmo jeito que péra e banana numa pereira, o que é banana nao € péra, eo que é pére no é banana. Entio, quem é chefe é chefe, quem é subordinado é subordinado. Se eu for definir subordinado € nao fizer alusdo-a chefe eu nao consigo definir 0 subordinado, porque as posigGes sociais s so definiveis assim, umas em relagdo as outras. Paradoxalmente, elas encontram no seu contrario a sua definicSo possivel. E como norte € sul, né? Exempla cléssico de Bourdieu. Como é que vocé define sul? £0 que esta do outro lado do norte. E o norte? E o que esta do outro lado do sul. Assim chefe e subordinado. Assim burgués e proletario. Assim rico € pobre. Assim escroto e gente fina. Assim brega e chique. Assim... Em outras palavras, a sociedade tem posicées que sd so definiveis relacionalmente, reflexivamente. Umas em relacdo és outras. £, portanto, no campo social, nesse espaco social, as posicGes 56 podem ser cernidas relacionalmente. Ah, mas sabe, pé! Vocé vai desculpar, se o universe é infinito, se vocé quer situar um ponto P, vocé precisa de referéncia. Onde é 0 ponto P? Eo que té embaixo do ponto £. Eo E? Eo quetdem cima do . Quando Descartes situou um ponto P, ele n3o situa assim, mas ele situa assim: tem um eixo assim, um eixa assim, ai eu tenho um ponto P né? Aqui 6, 6, 6, né? Aqui é A, aqui é B, A virgula B. Entéa esse ponto P so é situavel em relacéo a dois eixos cartesianos colacados em perpendicular. Portanto, percebeu? Desde Copérnico, Galileu e Newton, pra eu posicionar tem que ser em relacdo 4. Ninguém posiciona em si, sempre em relacdo 4. E Bourdieu nao faz diferente. Ficou claro? Aestruturagao do campo social Muito bem. Um campo é um espaco de posigGes cefiniveis reflexivamente. Mas ele é estruturado. E 0 que significa estruturado? Significa que essa reflexividade ela sempre se di a partir de eixos e so eixos estruturantes do campo. $0 eixos, portanto, em torno dos quais as posigdes ganham a sua simetria de reflexividade. Todo campo ¢ estruturado, quer dizer, todo campo tem eixos que permitem facilitar o posicionamento dos agentes. Qualquer campo é assim. E & medida que nds formos dando exemplo de campos, vocé encontrard esse eixo com facilidade e outros eixos. ‘Vamos pegar o exemplo do campo jornalistico. 0 campo jornalistico tem varios eixos. Um ‘eixo do campo jornalistico € 0 eixo, é, jornalismo de massa, né? Jornalismo de massa, que td na industria cultural, e jornalismo alternative, né? Entao, a rigor, vacé sabe muito bem que a revista ‘Veja aqui € 0 Jornal Nacional esta aqui e aqui vocé tera o Pasquim, vocé terd, é, a Tribuna Operaria, voct terd a Carta Capital etc. que esto aqui. Um outro eixo que estrutura o campo jornalistico € pelo veiculo: televiséo, nao é? Televiséo de um lado, jornalismo impresso do outro lado. E assim, todo campo tem uma série de eixos a partir dos quais vocé consegue ir situando os

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