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GRANDES DOUTRINAS BIBLICAS Volume 3 A Igreja e as Ultimas Coisas D. Martyn Lloyd-Jones Fes PUBLICACGOES EVANGELICAS SELECIONADAS Caixa Postal 1287 01059-970 — Sao Paulo — SP Titulo original: The Church and the Last Things Editora: Hodder and Stoughton Ltd., Londres Primeira edigao em inglés: 1998 Copyright: Lady E. Catherwood Ann Desmond O direito de Dr. Martyn Lloyd-Jones de ser identificado como o autor desta obra tem sido asseverado de acordo com o ato de Copyright, Designs e Patents 1988 Traducao do inglés: Valter Graciano Martins Revisao: Antonio Poccinelli Capa: Sergio Luiz Menga Primeira edicao em portugués: 1999 Impressao: Imprensa da Fé PYOfACIO wesssessseessssesssvessesesssessssessstesseessnscssessssessssessessnsesanens 7 1 A Igreja. 9 2 As Marcas e o Governo da Igreja.. 24 3 As Ordenangas — Sinais e Selos 39 4 O Batismo 51 5 A Ceia do Senhor 65 6 Mortee Imortalidade . 78 7 Imortalidade Condicional ou Segunda Chance? 89 8 A Segunda Vinda — Introdugao Geral 9 O Tempo de Sua Vinda — os Sinai: 10 O Plano de Deus para os Judeus . LL O Anticristo w....ceseesee A Interpretagdo de Daniel 9: 24. 2) Conclusao do Capitulo 9 de Daniel e o Arrebatamento Secreto O Livro do Apocalipse — Introdugao. Os Pontos de Vista Preterista e Futurista O Ponto de Vista Historicista Espiritual O Sofrimento e a Seguranga dos Redimidos As Trombetas... O Juizo Final O Ponto de Vista Premilenista. Pés-milenismo e 0 Ponto de Vista Espiritual A Ressurreigio do Corpo O Destino Definitivo .... PREFACIO Nas noites de sexta-feira, apds a guerra, o Dr. Lloyd-Jones passou a manter reunides de debates numa das salas da Capela de Westminster, em Londres. Os temas desses debates versavam sobre questées praticas da vida crist4, e as reunides eram freqiientadas por um grande ntimero de pessoas. As questées que surgiram demandavam um sélido conhecimento de todo tipo de ensino biblico. As vezes surgiam também problemas doutri- narios, com os quais “o Doutor” tinha que tratar, geralmente em sua conclusdo, no encerramento do debate. Em parte era resultado disso, e em parte porque o numero foi se tornando grande demais para a sala comportar, e talvez também porque as pessoas que lhe pediam informagoes sobre as doutrinas biblicas eram tantas, que ele comecou a sentir a necessidade de mudar a “reuniao noturna de sexta-feira” para a propria Capela, e ali ministrar uma série de prelecdes sobre esses grandes temas. Ele fez isso de 1952 a 1955, e entao deu inicio a sua magistral série sobre a Epistola aos Romanos, a qual deu seguimento até sua aposentadoria em 1968. As prelegées doutrindrias eram muitis- simo apreciadas pelas grandes congregagées que as ouviam; e, ao longo dos anos, muitos tém dado testemunho da maneira como, por meio delas, sua vida crista se fortaleceu. Mais tarde, 0 préprio Doutor se sentiu mais satisfeito em pregar sobre doutrinas como parte da exposi¢éo regular, como certa vez afirmou: “Se as pessoas desejam conhecer uma doutrina em particular, poderao encontré-la nos manuais de doutrina”. Masa grande forca de seus estudos doutrinarios consiste em que eles nao sio dridos compéndios de preleg6es. Ele era acima de tudo um pregador, ¢ isso se salienta em todas as suas prelecées. Ele era também pastor, e desejava que homens e mulheres compartilhassem de seu senso de admiracao e de sua gratidao a Deus pelos fatos poderosos do evangelho. Dai sua linguagem clara e destituida daquela complexa fraseologia académica. A semelhanga de Tyndale, ele queria que a verdade se revestisse de palavras “compreensiveis ao povo”. Outro desejo seu era que 0 ensino nao ficasse s6 na cabega, por isso ha em cada prelecio uma aplicagao para que se assegurasse que 0 coracao e a vontade também fossem tocados. A gléria de Deus era sua principal Motivagao na ministracdo destas prelecées. ~ Os que conhecem a pregacao ¢ 0s livros do Dr. Lloyd-Jones, ao lerem as prelegées, haverao de se lembrar que seus pontos de vista sobre alguns temas se desenvolveram ao longo dos anos, e que suas énfases provavelmente nem sempre eram as mesmas. Todavia esta constitui parte da riqueza de seu ministério, como o foi do ministério de muitos dos grandes pregadores do passado. N&o obstante, no tocante as verdades essenciais e fundamentais da Palavra de Deus, néo ha qualquer mudanga em sua proclamacao, e nenhum som incerto tem-se emitido. Temos encontrado certa dificuldade na preparagao destas prelegées para a publicagao. Elas foram ha muito tempo pronunciadas e gravadas em fitas, de modo que em certos lugares houve dificuldade em decifrarem-se as palavras, e algumas fitas se perderam. Além disso, s6 uma pequena parte das prelecdes foi taquigrafada, ¢ assim, num ou dois casos, nao temos nem fita nem manuscrito. Afortunadamente, contudo, o Doutor guardou suas anotagées pessoais de todas as prelegdes, e assim as temos usado, embora, naturalmente, significa que esses capftulos ndo se acham téo completos quanto os demais. As fitas do Doutor sao distribuidas pelo Martyn Lloyd-Jones Recording Trust, e de todas as suas fitas o maior nimero de pedidos consiste nestas prelegdes doutrinarias. A caréncia de conhecimento das verdades vitais da fé cristé é maior agora do que antes — com certeza ainda maior agora do que na década de 1950! Portanto nossa oragao é para que Deus use e abengoe estas prelegdes novamente, para o nosso fortalecimento e para a gloria dEle. Os Editores A IGREJA Chegamos agora a sexagésima prelecao em nosso estudo das doutrinas biblicas, portanto € provavel que este seja um bom lugar para lembrar-lhes dos varios passos ¢ est4gios pelos quais ja passamos. Tendo comegado com nossa consideragao do homem neste mundo, e tendo notado a futilidade de confiarmos somente em nosso préprio entendimento, chegamos a perceber, como as pessoas tém sempre percebido, a necessidade de uma revelagdo. Deus nos deu essa revelag&o: é uma revelacao de Si proprio em Sua Palavra. Entéo, havendo considerado 0 que a Palavra nos diz sobre Deus, prosseguimos considerando o que ela nos diz sobre homens e mulheres em suas necessidades, bem como a causa de suas necessidades — a qual introduziu a doutrina do pecado. Isso conduz 4 necessidade de salvagao que consideramos na Pessoa e obra do Senhor Jesus Cristo, e em seguida na aplicagao de tudo isso a nés mediante a operagéo do Espirito Santo. E assim chegamos a uma nova segao: nova simplesmente no sentido em que reconhecemos certas divisdes 4 guisa de conveniéncia do pensamento; obviamente, porém, nova em nenhum outro sentido. Além disso, devemos observar nova- mente o maravilhoso modo no qual cada uma dessas doutrinas conduz 4 préxima, de uma forma totalmente inevitavel. A verdade é uma s6 € 0 propésito de Deus é um todo, de tal maneira que, ao terminarmos de discutir uma doutrina estamos, necessariamente, nos introduzindo na préxima. Na prelecao anterior, estivemos analisando juntos 0 ensino da Biblia concernente aos dons espirituais. Consideramos como Deus concede a Igreja apéstolos e profetas, pastores e mestres, os quais possuem os dons necessdrios. E vimos que varios outros dons especiais sio concedidos ao povo cristéo, tanto dons temporarios para os primeiros cristaos quanto outros dons que sao de carater permanente e sao concedidos a todos os cristdos em todos os tempos. Em todos esses casos, porém, observamos que os dons eram concedidos a Igreja e aos membros da Igreja. E assim chegamos, por meio de uma légica inevitavel e pela forga da propria verdade, a uma consideracdo da doutrina biblica da natureza da Igreja. Ora, esta doutrina costuma ser totalmente omitida nos livros que tratam das doutrinas biblicas, embora seja dificil de se descobrir 0 porqué. Isso € muitissimo lamentavel, pois se real- mente estamos interessados em discutir as doutrinas que aparecem na prépria Biblia, entéo precisamos analisar a doutrina da Igreja. A maioria das Epistolas neotestamentarias foi escrita a uma igreja, e seu ensino se volta mais para a Igreja. Por isso nao basta considerar as doutrinas da Biblia que tratam mais de nossas necessidades e experiéncias pessoais e individuais. Grande parte do Novo Testamento nao se destinaria a verdades concernentes 4 Igreja a no ser que isso fosse algo de vital importancia. O préprio cardter das Escrituras por si mesmo nos compele a considerar esta doutrina. Outra razao, sem diivida, é a grande proeminéncia que esta doutrina ja teve na hist6ria da propria Igreja. Tomemos, por exemplo, a hist6ria da Bretanha. Distingue-se proeminente- mente toda a questao da natureza da Igreja. Notamos isso na Reforma Protestante — uma daquelas grandes questdes decisivas acerca das quais todo mundo conhece~eem tudo 0 queaconteceu no século dezessete, inclusive certos aspectos da Guerra Civil. Ora, vocés nao podem visualizar essas coisas, mesmo pelo prisma secular, sem perceber que a doutrina é muitissimo importante. Nossos pais a consideraram como algo de importancia tao vital que estavam preparados para enfrentar as maiores dificuldades e sofrer a perda de quase todas as coisas em decorréncia de sua preocupagao pela doutrina da natureza da Igreja. Para eles, ela nao era algo que pudesse ser considerado com indiferenga. Qualquer que fosse a perseguig&o, ainda com 0 risco de suas vidas, muitos deles fundaram conventiculos e insistiam em reunir-se 10 neles. Portanto, se nao tivéssemos nenhuma outra razfo para considerar esta doutrina, seriamos compelidos a estuda-la por respeito aos nomes e a grandeza de nossos antepassados distantes. As pessoas no sofreriam assim pela verdade e por uma causa se ela fosse uma questao indiferente. Eevidente que hé ainda outra razao que nos leva a considerar esta questao, e é justamente a grande proeminéncia que est4 sendo dada na atualidade a Igreja Crista em conexéo com o que é conhecido pelo nome de movimento ecuménico. Os noticidrios teligiosos dedicam grande espago a isso e esta sendo propagado pelos expoentes do ecumenismo que a fungao particular da Igreja no século vinte é chamar a atengdo para a natureza da Igreja. Portanto, se porventura quisermos entrar em discussao com tais pessoas € sermos capazes de nutrir um inteligente interesse por essas discusses, cabe-nos conhecer algo acerca desta doutrina neotestamentéria. Além disso, porém, ha uma razao que, em certo sentido, é muito mais importante do que todas as outras juntas. Suspeito que ela constitui a deficiéncia do povo evangélico, particu- larmente durante os tiltimos sessenta a setenta anos, de levar a sério o ensino biblico concernente a natureza da Igreja, o que explica a maioria dos problemas que estamos enfrentando na atualidade. Por uma raz4o ou outra, nossos pais e avés imediatos sentiam que era suficiente formar movimentos sem pensar em termos da Igreja, com 0 resultado de que o testemunho evangélico se diluiu entre as grandes denominagées e o povo cristéo evangélico s6 se reune em movimentos em vez de reunir-se em igrejas. E assim, olhando por esse prisma, isso se constitui num tema de muita importancia. Se é verdade que nutrimos profundo interesse pela mensagem evangélica e sua vital importancia no mundo atual, entéo somos compelidos a considerar a doutrina da Igreja. Uma vez introduzidos no ensino biblico concernente a natureza da Igreja, permitam-me fazer minha costumeira observa¢ao introdutéria. Este € um tema em extremo contro- vertido — praticamente tem sido assim com todas as doutrinas. ll Acaso nao tem? A histéria, porém, por si s6, assegura-nos que esta é, provavelmente, a mais controvertida de todas. E no entanto é pura covardia deixar de tratar um tema simplesmente por ser controvertido. Qualquer que tenha sido nossa educagao ou histéria; quaisquer que sejam nossos preconceitos, é preciso que tentemos avaliar, com a mente mais aberta possivel, o que as Escrituras tém a nos dizer. Que todos nés nos esforcemos em fazer isso, orando para que Deus nos livre dos preconceitos para os quais todos nos nos inclinamos. Aproximemo-nos, portanto, de algumas palavras prelimi- nares de definicdo. A primeira pergunta que devemos encarar é esta: qual éa relacdo da Igreja com o reino de Deus? Encontramos na Biblia ensino sobre o reino e ensino acerca da Igreja. Ha entre 0s cristdos, com freqiténcia, muita confusdo acerca desses dois assuntos. Isso se deve grandemente ao fato de como a igreja catélica romana identifica os dois. No ensino catélico-romano, a Igreja é o reino de Deus, e os catélicos romanos sao absolutamente coerentes na maneira como resolvem isso, teivindicando o direito de governar e dominar toda a vida das pessoas em todos os seus aspectos. Vocés se lembram como, na Idade Média, a igreja romana costumava governar 0s reis, os senhores, os principes, as provincias e as autoridades com base na alegacdo de que ela era o reino de Deus, de que ela era suprema. E tal idéia tende, em certa medida, a persistir. Por isso temos de ser claros sobre a relacdo entre Igreja e reino. O que € 0 reino de Deus? Ele é melhor definido como o governo de Deus. O reino de Deus esta presente onde quer que Deus esteja reinando. Eis a raz4o por que nosso Senhor podia dizer que, em virtude de Sua atividade e Suas obras, “o reino de Deus esta dentro de vés” (Luc. 17:21). Disse ainda: “Mas, se é pelo dedo de Deus que eu expulso os deménios, logo é chegado a vés 0 reino de Deus” (Luc. 11:20). Portanto, se considerarmos 0 reino de Deus como 0 governo e o reinado de Deus, entdo 0 reino esteve aqui quando nosso Senhor esteve aqui pessoalmente. Ele est4 presente onde quer que o Senhor Jesus Cristo é reconhecido como Senhor. O reino vird, porém, com maior 12 plenitude quando tudo e todos tiverem reconhecido Seu senhorio. E assim podemos dizer que 0 reino ja veio, o reino est4 entre nos e o reino ainda esta por vir. Qual, pois, é a relagao da Igreja com o reino? Seguramente é esta: a Igreja é uma expresso do reino, mas nao deve ser equiparada a ele. O reino de Deus é mais amplo e mais poderoso que a Igreja. Na Igreja, onde ela é verdadeiramente a Igreja, 0 senhorio de Cristo é reconhecido e confessado e Ele habita ali. Portanto, o reino esté ali nesse sentido. E assim a Igreja é uma parte do reino, mas apenas uma parte. O reino de Deus é muito mais amplo do que a Igreja. Deus governa em regides além da Igreja, em regides onde Ele nao € reconhecido, porquanto todas as coisas estao em Suas maos e a historia esté em Suas mos. Por isso a Igreja nao é co-extensiva com o Reino. Examinemos agora alguns dos termos que sao usados. A palavra grega que se traduz para “igreja” é 0 termo ekklesia, e ekklesia significa “aqueles que sao chamados”, nao necessaria- mente chamados do mundo, mas chamados da sociedade para alguma fung4o ou propésito particular; so “chamados conjuntamente”. Podemos traduzir ekklesia pela palavra “assembléia”. Se vocés lerem o relato em Atos, capitulo 19, sobre a extraordinéria reuniao que se deu na cidade de Efeso, reuniao que quase se transformou em motim, descobrirao que 0 secretario municipal da cidade a denominou de uma assembléia, uma ekklesia, pela qual ele quiz dizer que certo ntimero de pessoas se reuniram conjuntamente. Da mesma forma, em seu discurso em Atos, capitulo 7, Estévao refere-se a Moisés como estando “na igreja no deserto” (v.38). E assim os filhos de Israel eram uma igreja, um ajuntamento, uma assembléia do povo de Deus. Eraa ekklesia, a igreja do Velho Testamento. Esse € 0 significado fundamental da palavra “igreja”. Ora, nossa palavra “igreja”, e todos os termos e nomes cognatos, inclui um significado ligeiramente diferente. Usamos a palavra para significar que pertencemos ao Senhor. Nossa palavra “igreja” vem da palavra grega kurios, que significa “senhor” — tem a mesma derivagéo das palavras Imperador e 13 César. E importante termos isso em mente, visto que devemos manter estes dois significados juntos: a Igreja consiste daqueles que pertencem ao Senhor, que se retinem conjuntamente. Avancemos, porém, mais um passo, Analisemos algumas afirmacédes que as Escrituras fazem sobre a Igreja, e que sio realmente importantes. Na Biblia, a palavra ekklesia, quando aplicada aos cristaos, geralmente se usa em referéncia a um local de reuniao. A distingdo que ora faco é quanto a diferenga entre a Igreja considerada como uma idéia geral e a igreja considerada como idéia de localidade e particularidade. O termo que é quase invariavelmente usado nas Escrituras inclui este sentido de localidade. Por exemplo, em Romanos, capitulo 16, quando Paulo envia suas saudacées a Aquila e Priscila, ele faz uma referéncia a “a igreja que esta na casa deles” (v.5). Um grupo de cristaos se reunia na casa de Aquila e Priscila, e o apdstolo Paulo nao hesita em chamar de igreja aquele local de reuniao. Ele nao esta pensando em termos da idéia moderna ecuménica, segundo a qual a Igreja é o grande elemento. Em seguida, Paulo também enderega sua Epistola, por exemplo, “a igreja de Deus que esté em Corinto”. Ele escreve a Epistola aos Galatas “as igrejas da Galacia” (Gal. 1:12), nao “a Igreja da Galacia”. Paulo nao esté pensando numa s6 unidade dividida em ramos locais, mas nas igrejas, um grupo dessas unidades, na Galacia. Esta € uma questéo muitissimo significativa e importante. Ora, se vocés percorrerem as Escrituras, descobrirao ser esse 0 método apostdélico comum de lidar com 0 tema. Temos, porém, que observar que ha dois ou trés exemplos em que a palavra “igreja” € usada em vez de “igrejas”, e um deles é bastante interessante. Ele se encontra em Atos 9:31. HA certa diferenga aqui entre a Authorised (King James) Version e a Revised Version. A Authorised Version tem a redagao: “Entao as igrejas tinham descanso por toda a Judéia, a Galiléia e a Samaria, e eram edificadas.” A Revised Version, porém, traz o singular, “igreja”, e esta € indubitavelmente a melhor traducdo. Sim, mas mesmo assim devemos lembrar-nos que a referéncia é quase com 14 toda certeza aos membros da igreja em Jerusalém que haviam sido espalhados por toda parte em decorréncia da perseguigao. Portanto é provavel que Lucas nao estivesse se referindo a idéia de “a Igreja” como diferente de “as igrejas”, mas estivesse pensando numa sé igreja dispersa por varias regides e em paz. Entretanto, este nao é um ponto vital. Além disso, lemos em 1 Corintios 12:28: “E a uns pés Deus na igreja, primeiramente ap6stolos, e em segundo lugar profetas”. Paulo nao diz que Deus os pds “nas igrejas”, e, sim, “na igreja”. Ha ainda outra forma na qual se usa o termo “igreja”. Em certas passagens, como aquelas grandes passagens na Epistola aos Efésios, Paulo esté obviamente pensando na Igreja como incluindo nao sé os que estdo na terra, porém também os que est4o no céu. No final do primeiro capitulo, ele diz: “E sujeitou todas as coisas debaixo dos seus pés, e para ser cabeca sobre todas as coisas o deu 4 igreja, que é 0 seu corpo, o complemento daquele que cumpre tudo em todas as coisas” (Ef. 1:22,23). Semelhantemente, em outra parte da Epistola, ele diz: “Para que agora a multiforme sabedoria de Deus seja manifestada, por meio da igreja, aos principados e potestades nas regides celestiais” (3:10). E Paulo escreve a mesma coisa também em Efésios 5:23-32. Até aqui, pois, vimos que, geralmente falando, o termo ekklesia € usado no plural, e os escritores estio obviamente pensando nas igrejas individuais; nuns poucos exemplos, porém, ha uma concepgio mais ampla em que se usa o termo “a Igreja”. E em seguida devemos analisar os varios quadros ou ilustragdes que sao usadas a fim de ensinar a doutrina concer- nente 4 Igreja, e ha um bom numero delas muito interessantes. A primeira é a analogia de um corpo. Em diversas das Epistolas neotestamentarias somos informados que a Igreja é 0 “corpo de Cristo”. O classico exemplo, sem diivida, esté em 1 Corintios, capitulo 12, mas o encontramos também em Romanos, capitulo 12, em Efésios, capitulo 4, e noutros lugares. Outro quadro é 0 da Igreja como um templo ou como um edificio, onde o apéstolo se compara com um sdbio construtor 15 (1 Cor. 3:10). Em Efésios 2:20 ele fala da Igreja sendo edificada sobre o fundamento dos apéstolos e profetas; portanto ele pensa nela ali como um edificio que esté sendo erigido. Em Ef€sios, capitulo 5, Paulo se refere a Igreja como a noiva de Cristo, e essa imagem reaparece no livro do Apocalipse. Ainda outro conceito é aquele de um império. Em Efésios, capitulo 2, Paulo fala de nés como “concidadaos dos santos e da familia de Deus” (v.19). Essa, obviamente, foi uma analogia que de repente surgiu na mente do apéstolo. Provavelmente ja fosse um prisioneiro em Roma no tempo em que escreveu essa Epistola, e estivesse pensando nesse admiravel Império Romano. Ele sentia que havia algo no Império que era andlogo a Igreja, com todas as partes dispersas e ainda com uma unidade central. Fazendo uso de outro termo, podemos falar, como se tem feito ao longo de todos os séculos, da “Igreja militante” e da “Tgreja triunfante” (a Igreja terrena esta lutando por sua vida, pela doutrina e por cada elemento) a Igreja que se encontra além do véu, jubilosa e triunfante. Tomem, por exemplo, a grandiosa forma na qual isso é expresso em Hebreus 12:22-24. E assim, tomando todas essas idéias juntas, que conclusao tiramos? Obviamente, a Igreja é espiritual e invisivel. Todos os exemplos que tenho lhes apresentado da palavra empregada no singular pressupdem algo que nao pode ser visto, mas que possui uma realidade como entidade espiritual. Ao mesmo tempo, porém, a Igreja é também visivel e pode ser vista externamente ¢ pode ser descrita como existindo em Corinto, em Roma ou em algum outro lugar particular. E muito importante que tenhamos em mente essas duas coisas. O invisivel tem suas manifestagées locais. Uma boa analogia aqui € a alma. Nao podemos ver as almas humanas, mas sabemos que cada pessoa possui uma alma e expressa esse fato através do corpo, através do comportamento e da vida, o invisivel manifestando-se através do visivel. E isso € obviamente verdadeiro no que tange a Igreja Crista. Além das igrejas locais ha aquilo que se chama a Igreja. O corpo de Cristo € uma entidade, é algo real e vivo. 16 E muito importante que delineemos essas distingdes para que, a luz do que tenho dito, eu possa prosseguir e acrescentar 0 seguinte: ninguém pode ser cristéo sem ser membro da Igreja espiritual ¢ invisivel. E impossivel. Todos os cristios sio mem- bros do corpo de Cristo. No entanto, é possivel ser membro da Igreja sem ser membro de uma parte visivel da Igreja~ embora devesse ser. Alguém pode estar numa sem estar na outra. E possivel igualmente ser membro da Igreja visivel, de sua manifestagao externa, € néo ser membro da Igreja invisivel, espiritual. E assim vocés podem ver como é muito importante essa disting&o biblica entre Igreja universal, que € Seu corpo, e suas manifestacoes visiveis ¢ locais. Portanto, em resumo: o sentido usual de “igreja” apresentado nas Escrituras é de um local de encontro dos santos onde sao reconhecidos a presenga e o senhorio de Cristo, Além de tudo isso, porém, nas igrejas locais, todas as pessoas que realmente nasceram de novo e s4o espirituais, sao também membros da Igreja espiritual invisivel, o genuino corpo de Cristo. Como j4 disse, isso é algo de grande importancia caso queiramos entender a presente discussao sobre a Igreja. E assim chegamos 4 préxima questao referente 4 unidade da Igreja. E este € o grande tema de hoje. Com toda seguranga, aqui se pode dizer certas coisas sem qualquer receio de contradicao. Se é para sermos guiados pelo ensino biblico, entéo devemos concordar prontamente que a unidade com a qual as Escrituras se preocupam é a unidade espiritual. O décimo-sétimo capitulo do Evangelho de Joao é com freqiiéncia citado equivocadamente! As pessoas simplesmente retiram uma frase de seu contexto. Dizem, citando o versiculo 21: “Para que todos sejam um”, e ficam nisso. Insistem também que diviséo na Igreja é o maior de todos os pecados. Ora, por certo que todos nés concordamos que divisio € algo deploravel; cisma é certamente pecado. Entretanto, quando interpretamos isso no sentido em que todo aquele que se chama cristao, nao importa qual a condi¢aéo ou forma, é alguém com quem devemos manter unido absoluta em todos os aspectos, 17 ent4o isso €é uma contradi¢éo do que Jodo, capitulo 17, ensina. Certamente, Jodo, capitulo 17, faz o carater dessa unidade muito simples e claro. Os termos de nosso Senhor so estes: “Para que todos sejam um; assim como tu, 6 Pai, és em mim, e eu em ti, que também eles sejam um em nds ... E eu lhes dei a gloria que a mim me deste, para que sejam um, como nés somos um” (vv. 21,22). Isso € totalmente espiritual. Nosso Senhor esta falando da relagao entre o Pai e o Filho e os que estao em Cristo, 08 quais estao no Pai e no Filho, e Ele j4 nos disse certas coisas sobre essas pessoas. Diz Ele: “Porque eu lhes dei as palavras que tu me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que sai de ti, e creram que tu me enviaste” (v.8). Por isso as palavras de nosso Senhor acerca da unidade sao aplicdveis unicamente as pessoas que créem nessa doutrina particular; e se alguém me diz que é cristdo, porém diz que Jesus era unicamente homem, entao eu nao tenho nenhuma unigo com ele. Nao pertengo ao mesmo grupo dele. Pode chamar-se de cristao, mas se n4o creu nem aceitou isso, no existe nenhuma base para a unidade. A unidade é de carater espiritual. Também em Efésios 4:3 Paulo fala acerca de “a unidade do Espirito no vinculo da paz”. Aquele grande capitulo 12 de 1 Corintios apresenta a mesma questao. Para a analogia do corpo ser absolutamente correta, deve haver uma unidade essencial, organica e espiritual. As partes nio podem funcionar em harmonia se nao se pertencerem reciprocamente, se nao tiverem em si a mesma vida, se o mesmo sangue nAo fluir através delas. Ainda em Efésios, Paulo diz: “Porque por ele ambos temos acesso ao Pai em um mesmo Espirito” (2:18). Portanto, o primeiro ponto que deve receber énfase é 0 Espirito. A unidade é espiritual. Nao é uma mera uniao biolégica de uma porgao de organismos nem um mero consentimento formal. Tampouco é uma liga de pessoas que divergem, mas que se uniram em favor de algum propésito comum. Isso nao é o que encontramos nas Escrituras. Esta unidade é algo mistico, algo espiritual; é vital; é uma comunidade cheia de vida. O segundo principio, porém, é igualmente claro nas 18 Escrituras, a saber: que essa unidade deve basear-se na doutrina; deve ser doutrinal. J4 lhes mostrei isso 4 luz de Joao, capitulo 17. Diz nosso Senhor: “Agora sabem que tudo quanto me deste provém de ti; porque eu hes dei as palavras que tu me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que saf de ti, €creram que tu me enviaste” (Joao 17:7,8). Ora, as “palavras” as quais nosso Senhor Se referiu significam as palavras sobre ser Ele o unigénito Filho de Deus. Sao palavras acerca da encarnacio, acerca da Palavra que Se fez carne. Sao palavras nas quais Ele alega: “Antes que Abraio existisse, eu sou” (Jodo 8:58). SAo palavras que ensinam Sua miraculosa vinda ao mundo, Seu nascimento virginal. Referem-se aos Seus milagres, porque Ele mesmo faz referéncia a Seus milagres (Jodo 14:11), ao sobre- natural, ao propésito de Sua morte — dando Sua vida em resgate por muitos (Mat. 20:28) - e as palavras que Ele falou acerca da Pessoa do Espirito Santo, e assim por diante. E no entanto exige- -se que entremos em alguma grande uniao com pessoas que negam Sua deidade singular, as quais nao créem que Ele é 0 unigénito Filho de Deus, nao créem no Seu nascimento virginal e néo créem que Ele tenha alguma vez operado milagre — dizem que milagres sao impossiveis e que nao passam de folclore. Tais pessoas nao créem na expiacao substitutiva nem na Pessoa do Espirito Santo. Destacam bem esta afirmagao: “as trés Pessoas sao uma s6”, e ignoram todo este rico ensino doutrinal precedente. Falar de unidade com tais pessoas nada mais é que uma negac4o de Joao, capitulo 17. Joao, capitulo 17, porém, nao é 0 tinico exemplo desta verdade de que a unidade deve ser baseada na doutrina. Em Atos 2:42 somos informados que imediatamente apés o dia de Pentecoste, “perseveravam na doutrina dos apéstolos e na comunhao, no partir do pao e nas oragées”. As Escrituras sao verbalmente inspiradas. As palavras tém valor; o lugar e a posicio das palavras num versiculo sao de tremenda importancia. Nao nos é dito que os primeiros crentes perseveravam firmemente na comunhdo e na doutrina dos apéstolos. Nao! Perseveravam na doutrina e na comunhio dos apéstolos, no partir do pao e nas 19 oragdes. Noutros termos, antes que possa haver comunhao é preciso haver aceitacéo geral da doutrina. A comunhao tem por base a mesma f€, a mesma verdade, o mesmo discernimento. Se vocé pretende uma coisa ao falar de Cristo, e outra pessoa pretende outra coisa, seria possivel vocés terem comunhio real? Como seria possivel vocés irem a Deus através da mesma Pessoa, se uma pessoa cré que Ela é simplesmente homem, ¢ a outra diz: “Nao, nao, essa Pessoa é a substancia eterna que Se fez carne”? E preciso que haja a unidade de crenga, do contrario vocé se sentir4 pesaroso acerca da outra pessoa e cheio de dtivida quanto ao que ela pretende com seus termos. Atos 2:42 tem a doutrina dos apéstolos, em seguida a comunhao; hoje, porém, a comunhao € posta em primeiro lugar. Diz-se: “Cheguemos todos a um acordo. Entao podemos decidir sobre questées de fé”. Nos, porém, nao podemos ter comunhfo 4 parte desta unidade de doutrina. Hé ainda uma declaragao muito forte na Segunda Epistola de Joao: “Se alguém vem ter convosco, e nao traz este ensino, nao o recebais em casa, nem tampouco o saudeis. Porque quem o satida participa de suas mas obras” (2 Jo4o 10,11). Isso procede de Joao, o apéstolo do amor. A importancia que ele atribui 4 doutrina e& verdade é tao grande que na verdade ele esta dizendo: “Vocés nao devem receber um homem em sua casa, porque, se 0 fizerem, estarao estimulando-o. Se lhe derem comida e 0 despedirem em sua viagem, estarao estimulando sua falsa doutrina. Nao fagam isso”. Ese vocés lerem a Primeira Epistola de Joao, entio descobrirao que toda a sua preocupacio gira em torno da mesma coisa. Havia determinadas pessoas, diz ele, esses anticristos e seus seguidores, que “safiram de nosso meio”. Estavam entre nds, mas se foram. Evidentemente nado eram dos nossos (] Joao 2:19), Lembrem-se que essa € uma questao de doutrina, e que doutrina é essencial e vital 4 genuina comunhio. Portanto, quando estivermos discutindo a questo da unidade da ‘Igreja, € preciso que coloquemos nas primeiras posigées 0 carater espiritual e doutrinal da unidade. Nunca é coisa dificil 20 reunir um grupo de pessoas que nado créem em nada em par- ticular. Isso, porém, nao é unidade. Unidade é algo positivo. Nao €86 0 caso de pessoas se reunirem, visto que ninguém se preocupa muito com o que é dito ou crido. Unidade é uma vida, é um poder, é um entusiasmo. E 0 povo unido que se junta pelo que tem em comum. Isso é supremamente verdadeiro na Igreja de Deus. - Se vocés retrocederem ao Jongo da histéria da Igreja, descobrirao que ela amitide tem sido mais valiosa e mais usada por Deus quando tem havido apenas um punhado de pessoas que concordavam em espirito e em doutrina. Deus as tomou e as usou e fez algo poderoso através delas. Quando, porém, havia apenas uma Igreja em toda a Europa ocidental, que rumo ela tomou? A Era das Trevas. E no entanto, parece-me que essa grande licdo da histéria est4 sendo inteiramente esquecida ¢ ignorada neste tempo presente. Digo essas coisas, nao porque me sinto animado pelo espirito de controvérsia, mas porque sinto zelo pela verdade como a encontro nas Escrituras, e considero algo trégico notar como as Escrituras estéo sendo deturpadas e pervertidas no interesse de uma unidade que nao é unidade nenhuma. Finalmente, qual € a relagéo da Igreja com o Estado? Aqui, uma vez mais, esté um assunto extremamente controvertido, A idéia catélico-romana sempre foi que a Igreja é 0 Estado e controla tudo no Estado e, como lembrei-lhes no inicio, essa igreja sempre fez isso. No extremo oposto est4 o assim chamado ponto de vista “erastiano”, uma idéia inicialmente proposta por um homem chamado Erasto, 0 qual, lamento dizer, foi médico. Sinto o dever, em alguma ocasiao, de apresentar-lhes a histéria das desditosas intervengdes de médicos na histéria doutrinal da Igreja! Erasto, infelizmente, foi o homem que deu origem 4 perniciosa doutrina de que a Igreja é um ramo do Estado. Ora, esse é, naturalmente, o ponto de vista na Inglaterra com respeito A Igreja Anglicana. A Igreja da Inglaterra é erastiana, e a maioria das Igrejas Luteranas defende a mesma posigao. A Igreja Luterana na 21 Alemanha era erastiana, e creio que um bom argumento pode ser estabelecido, dizendo que, provavelmente, jamais teriamos ouvido a respeito de Hitler, ndo fosse o erastianismo da Igreja Luterana na Alemanha. Entretanto, esse é um ponto passivel de debate. O erastianismo, reitero, é a crenca de que a Igreja €é uma espécie de departamento do Estado, e que ela é administrada e governada pelo Estado, de forma que a cabega do Estado designa bispos e outros dignitarios ¢ funciondrios da Igreja. Na Inglaterra, em 1928, houve uma grande controvérsia na Casa dos Comuns sobre a proposta de um novo Livro de Oragao. A Igreja decidiu té-lo, porém o Parlamento tinha poder para indeferi-lo. Talvez vocés digam que foi algo muito bom que o Parlamento possuisse tal autoridade! De um ponto de vista, sim, mas olhando por outro prisma, nao, pois isso constitui uma espada que pode cortar de ambos os lados. Em 1928 deu certo, no entanto, o que dizer se 0 Parlamento de repente decidisse agir erroneamente? Nao nos esquecamos de que ele ainda tem o poder de agir assim. Eis, pois, os pontos de vista catélico-romano e erastiano da Igreja e do Estado. Mas contra estes sem diivida devemos concordat, se percorrermos cuidadosamente as Escrituras, que ha um terceiro ponto de vista que pode ser descrito como “os dois Estados”. As pessoas que defendem este ponto de vista créem que Deus é dono de tudo. Deus é 0 Senhor do universo, tanto quanto o Senhor da Igreja. Deus ordenou o Estado. Diz Paulo: “Porque néo ha autoridade que nao venha de Deus; e as que existem foram ordenadas por Deus” (Rom. 13:1). Os magistrados e outros tipos de governantes nao foram instituidos pelo homem, mas por Deus. Sim, porém ha este outro Estado, a Igreja, e os dois existem lado a lado. Um nfo controla 0 outro. Ambos sao separados e ambos se acham sujeitos a Deus. Esse, sugiro-lhes, € o quadro apresentado pelo Novo Testamento. Nao existe qualquer indicagao de algo vindo de algum lugar que se assemelhe a uma Igreja-Estado. Os primeiros crentes eram independentes dos governos. Reuniam-se sob 0 senhorio e na presenca de Cristo. De fora estava o grande Estado 22

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