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Cepyright ©2006 das Katoras Todos os dircitos desta edicao reservados 4 Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.) Imagem da capa Waldomiro Sane Anna, Menina lendo, 2006 (6leo sobre tela), Droduzido especialmente pelo artista para iustar esta capa, Montage de capa Gustavo S. Vilas Boas Projet grifico e diagramagao Antonio Kehl Revisio Lilian Aquino 0 fionais de Catalogacio na Publicagio (cin) ____ Camara Brasileira do Livro, sb, Brasil) cbp-418.4 1 Leitura, texto e sentido Concep¢ao de leitura Frequentemente ouvimos falar —e também falamos — sobre a importancia Jade de se cultivar o habito de da leitura na nossa vida, sobre a neces leitura entre criancas e jovens, sobre o papel da escola na formagao de leitores competentes, com o que concordamos prontamente. Mas, no bojo dessa discussao, destacam-se quest6es como: O que é ler? Para que ler? Como ler? Evidentemente, as perguntas poderao ser respondidas de diferentes modos, os quais revelarao uma concepcao de leitura decorrente da concep¢ao de sujeito, de lingua, de texto e de sentido que se adote. Foco no autor Sobre essa questao, Kocu (2002) afirma que 4 concepgao de lingua como representagao do pensamento corresponde a de sujeito psicolégico, individual, dono de sua vontade e de suas ages. Trata-se de um sujeito visto como um ego que constroi uma representacao mental e deseja que esta seja “captada” pelo interlocutor da maneira como foi mentalizada. Nessa concep¢ao de lingua como representacao do pensamento e de sujeito como senhor absoluto de suas ag6es e de seu dizer, o texto 10. ingedore villaca Koch * Vanda Maria Elias € visto como um produto ~ l6gico — do pensamento (representa mental) do autor, nada mais cabendo ao leitor Tepresentacao mental, juntamente com as intengdes (psicolégicas) produtor, exercendo, pois, um papel passivo. A leitura, assim, é entendida como a atividade de captagao das ideias do autor, sem se levar em conta as experiéncias e os conhecimentos do leitor, a interacdo autor-texto-leitor com propdsitos constituidos sociocognitivo-interacionalmente. O foco de aten¢ao &, pois, 6 autor e Suas inten¢des, e o sentido esta centrado no autor, bastando tao-somente ao leitor captar essas intengdes. Ao “captar” essa do Foco no texto Por sua vez, 4 concepgao de lingua como estrutura corresponde a de sujeito determinado, “assujeitado” pelo sistema, caracterizado : uma espécie de “nao consciéncia”. O principio explicativo todo e qualquer fendmeno e de todo e qualquer comportamento ‘repousa sobre a consideracao do sistema, quer linguistico, o de lingua como cédigo — portanto, como mero omunicacio - e de sujeito como (pre)determinado cado pelo leitor/ouvinte, bastando a este, para cédigo utilizado. Jeitura é uma atividade que exige do leitor 0 , uma vez que “tudo esta dito no dito’. itor cabia o reconhecimento das intengdes a ‘0 reconhecimento do sentido das por o leitor é caracterizado ee to ow ee compreender 11 da interacao e da constitui o dos interlocutores. Desse modo, ha lugar, No texto, para toda uma gama de implicitos, dos mais variados tipos, somente detectaveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo (ver capitulo 3) dos participantes da interacao. Nessa perspectiva, 0 sentido de um texto é construido na interacao texto-sujeitos e nao algo que preexista a essa interacao. A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente complexa de producao de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguisticos presentes na superficie textual e na sua forma de organizacao, mas requer a mobilizaco de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo. A titulo de exemplificagao do que acabamos de afirmar, vejamos a tirinha a seguir: Fonte: Folha de S.Paulo, 13 abr. 2005. Na tirinha, Garfield representa bem o papel do leitor que, em interagao com 0 texto, constréi-lhe o sentido, considerando nao sé as informagdes explicitamente constituidas, como também o que é implicitamente sugerido, numa clara demonstracao de que: * a leitura é uma atividade na qual se leva em conta as experiéncias e os conhecimentos do leitor; * aleitura de um texto exige do leitor bem mais que o conhecimento do cédigo linguistico, uma vez que o texto nao € simples produto da codificagao de um emissor a ser decodificado por um receptor passivo. (bene 12 ingedore vill ja Koch * Vanda Maria Elias Fundamentamo-nos, pois, em 1 racional de lingua que privile A concepcao sociocognitivo-inte. | 05 Sujeitos € seus conhecimentos €m processos de interag4o. O lugar mesmo de interagao dissemos — € 0 texto cujo sentido “nao esi considerando-s como ja ", mas € construido , para tanto, as “sinalizagdes” textuais dadas pelo autor os conhecimentos do leitor, qu leitura, deve assumir uma atitude , durante todo 0 processo de responsiva ativa”. Em outras pala- wras, espera-se que 0 leitor, concorde ou nao com as ideias do autor complete-as, adapte-as etc., uma vez que “toda compreensao é prenhe de respostas e, de uma forma ou de outra, forgosamente, a produz’ (Bakunin, 1992:290). A interacao: autor-texto-leitor Nas consideragdes anteriores, explicitamos a concepcao de leitura como uma atividade de produgdo de sentido. Pela consonancia com nossa posi¢ao aqui assumida, merece destaque o trecho a seguir sobre leitura, extraido dos Parametros Curriculares de Lingua Portuguesa: A leitura € 0 processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensio ¢ interpretacao do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre 0 assunto, sobre 0 autor, de tudo 0 que sabe sobre a linguagem etc. Nao se trata de extrair informacao, decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de selecao, antecipagao, inferéncia e verificagao, sem as quais nao € possivel proficiéncia. E 0 uso desses procedimentos que possibilita controlar 0 que vai sendo lido, permitindo tomar decis6es diante de dificuldades de compreensao, avangar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposig6es feitas. In: Parametros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos de ensino fundamental: lingua portuguesa/Secretaria de Educagao Fundamental. ~ Brasilia: wec/str, 1998, pp. 69-70. Ler e compreender 13 Como vemos nesse trecho, encontra-se reforcado, na atividade de leitura, o papel do leitor enquanto construtor de sentido, utilizando- Se, para tanto, de estratégias, tais como selegdo, antecipacao, inferéncia e verificagao. Estratégias de leitura | Desse leitor, espera~ e que processe, critique, contradiga ou avalie a informagao que tem diante de si, que a desfrute ou a rechace, que dé sentido e significado ao que lé (cf. Sout , 2003:21). a concep¢ao de leitura, que pode em foco o leitor e seus conhecimentos em interagdo com 0 autor e 0 texto para a construcao de sentido, vem merecendo a aten¢ao de estudiosos do texto e alimentando muitas pesquisas e discuss6es sobre a sua importancia para 0 ensino da leitura. A titulo de exemplificacao, tentemos uma “simulagao” de como nés, leitores, recorremos a uma série de estratégias no trabalho de construgao de sentido, Para 0 nosso propésito, selecionamos 0 miniconto intitulado , de Marcelo Coelho, publicado na Folhinha da Folba de S.Paulo. Nossa atividade de leitores ativos em interagao com 0 autor e 0 texto comeg¢a com antecipagées e hipéteses elaboradas com base em nossos conhecimentos sobre: © o autor do texto: Marcelo Coelho; * o meio de veiculagao do texto: Folha de $.Paulo; * o género textual; miniconto; * 0 titulo: elemento constitutivo do texto cuja fungao é, geralmente, chamar a atengao do leitor e orienta-lo na produgio de sentid i * a distribuigdo e configuragao de informagoes no texto. Especificamente, ao nos depararmos com 0 titulo PAGRNOWFEG, fazemos antecipagdes, levantamos | decorrer da leitura, serao confirmadas ou rejeita as hipoteses serao reformuladas e novamente que destaca a nossa atividade de leitor, arquivados na meméria (sobre a lingua, 14 Ingedore Villaca Koch * Vanda Maria Elias textos, outros géneros textuais, como veremos no capitulo 2) ¢ ativados no processo de interagao com o texto. Focalizando 0 titulo, atentamos para a palavra “reforno’ © Scu significado — regresso, voltae situamos a hist6ria no mundo das narrativas infantis, resgatando em nossa meméria a historia do Patinho Feio com a qual este conto dialoga de perto. Com “previsdes” motivadas pelo titulo, “adentramos' prosseguindo em nossa atividade de leitura e produgao de s © texto, entido: WfoRe GeO nais Belo Cisne do Iago Principe de Astdrias. Todos 0s dias, ele contemplava sua imagem refletida nas aguas daquele chiquérrimo © exclusive condominio para aves miliondrias. Mas Alfonso ndo se esquecia de sua origem humilde. Pensar que, néo faz muito tempo, eu era conhecido como 0 Fatinho Feio.. Um dia, ee sentiu saudades da mae, dos irmaos e dos amiguinhos da escola ‘A leitura desse trecho apresenta-nos uma personagem — que julgamos tratar-se da principal, uma vez que € citada no titulo e aparece em posicao de destaque no inicio da historia ‘Também nossos olhos de leitores atentos apontam para uma oposicao marcante no trecho em torno dos nomes Alfonso x Patinho Feio, 4 qual subjazem outras oposigOes: presente X pa: No quadro abaixo, destacamos essa oposi¢ do; riqueza x pobreza. Lfelatie} O mais belo cisne lago Principe de Asturias . chiquérrimo e exclusivo ° -condominio para aves milionarias O quadro chama a nossa atengao para a forte caracterizacao de Alfonso, composta pelas adjetivages referentes 4 personagem e a sua morada, em frente a fraca caracterizagdo no que concerne a sua vida quando era conhecido como Patinho Feio, fato esse que pode servir de estimulo 4 formulacao de novas antecipagdes do leitor ativo. compreender 15 No trecho em destaque, ainda nos salta aos olhos a expressao — HEEB — introdut6ria de uma situacao-problema, conforme conhe- cimento empiricamente constituido como ouvintes ¢/ou leitores desse género textual. Continuando o processo de efetiva interaco com o texto, levantamos Ifonso (Onde morava? Como era esse hipoteses sobre o passado de lugar?), bem como sobre as provaveis agdes do “mais belo cisne do lago Principe das Asturias”, motivadas pelo sentimento de saudade expresso Entao, 0 que fara Alfonso? Voltara ao lugar de origem? Reencontrara a mae, os irmaos e amiguinhos de escola? Prossigamos a leitura para a verificaco e confirmagao (ou nao) de nossas hipoteses: Voou até a lagoa do Quaquenhd. O pequeno e barrento local de sua infancia. A pata Quitéria conversava com as amigas chocando sua quadragésima ninhada. Alfonso abriu suas largas asas brancas. '—Maméae! Mamée! Vocé se lembra de mim? iovig's E... se antecipamos que Alfonso voltaria 4 sua origem, acertamos. A leitura do trecho ainda nos prope um avanco na caracterizagao do lugar de origem do Patinho Feio, em contraposi¢ao e complementagao ao contetido do primeiro trecho da historia. Vejamos a representacao das novas informacdes (em negrito) no quadro: © trecho se encerra com uma pergunta: Sia SiMarae Nees SUSABRMIENA, cuja resposta - positiva ou negativa? — tentamos foomulads, tantas quantas e dos pleitores. Mas como Lere compreender 17 Alfonso poderd fazer? Voltar para o lago Principe das Astirias e esquecer de vez seu passado humilde? E uma (outra) hipotes« __ Alfonso respirou fundo. Nada mais fazia sentido por ali. Resolveu procurar um | famoso bruxo da regio. aa Temos de confessar que por essa nao esperavamos, nao é mesmo? © que acontecera, entdo? Resolverd 0 bruxo o problema do Alfonso? Qu insistimos na hipdtese de que nenhuma tentativa dara certo, devendo Alfonso retornar ao seu luxuoso condominio e esquecer de vez seu passado humilde? Tera a hist6ria um final (in)feliz? E s6 ler para ver: ee: passes magicos, 0 feiticeiro e astrélogo Omar Rhekko resolveu 0 a. Em poucos dias, Alfonso transformou-se num pato adulto. Gorducho eg: cabega de Dae tudo... bicudo... Mas sabe que eu acho vocé uma gracinha? ‘Chegamos ao final da leitura do texto SRSA, apresentado em fragmentos, para atender a nosso propésito. A seguir, o texto sera apresentado de forma ininterrupta, para propiciar a sua releitura. Ler e compreender 19 Objetivos de leitura E claro que nao devemos nos esquecer de que a constante interacao entre o contetido do texto e o leitor é regulada também pela intengao com que lemos 0 texto, pelos objetivos da leitura. De modo geral, podemos dizer que ha textos que lemos porque queremos nos manter informados (jornais, revistas); ha outros textos que lemos para realizar trabalhos académicos (dissertag6es, teses, livros, periddicos cientificos); ha, ainda, outros textos cuja leitura é realizada por prazer, puro deleite (poemas, contos, romances); e, nessa lista, nao podemos nos esquecer dos textos que lemos para consulta (diciondrios, catdlogos), dos que somos “obrigados” a ler de vez em quando (manuais, bulas), dos que nos caem em mios (panfletos) ou nos sao apresentados aos olhos (outdoors, cartazes, faixas). Sao, pois, os objetivos do leitor que nortearao o modo de leitura, em mais tempo ou em menos tempo; com mais atengdo ou com menos aten¢ao; com maior interacdo ou com menor interagao, enfim. Leitura e producao de sentido Anteriormente, destacamos a concep¢io de leitura como uma atividade baseada na interacao autor-texto-leitor. Se, por um lado, nesse processo, necessario se faz considerar a materialidade linguistica do texto, elemento sobre o qual e a partir do qual se constitui a interagdo, por outro lado, € preciso também levar em conta os conhecimentos do leitor, condi¢ao fundamental para o estabelecimento da interagao, com maior ou menor intensidade, durabilidade, qualidade. Leitura e ativacéo de conhecimento E por essa razdo que falamos de um sentido para o texto, nao do sentido, e justificamos essa posigdo, visto que, na atividade de leitura, ativamos: lugar social, vivéncias, relagdes com o outro, valores da comunidade, conhecimentos textuais (cf. Pautino et al. 2001), conforme nos revela a leitura do texto a seguir: 20 Ingedore Villaga Koch * Vanda Maria Elias MENOS TONUS MUSCULAR, MENOS BRILHO NO CABELO, MENOS PEITO, MENOS BUNDA... A MEDIDA QUE ENVELHECE, A GENTE VAL FLCANDO CADA VEZ MENOS..! SEDA MAIS POSITLVA, LAURLNHA, PENSA EMTUDO O QUE TEM AGORA ENAOTINHA HA 20 ANOS..! E,TEMRAZAO. MAIS OLHETRAS, MAIS RUGAS, Fonte: Coleco Subindo nas Tamancas 1. Selecionado por Maitena, rad. Ryta Vinagre, p. 21 Na leitura da charge, dentre outros conhecimentos, ativa da época e da comunidade em que vivemos, conforme verificamos na telagao de causa € consequéncia sugerida na materialidade linguistica do texto: * a velhice € a causa de se ficar cada vez menos: (EHOSIEOHUS + a velhice € a causa de se ficar cada vez mais: (RASYOINERAS HAAS jos valores der 21 Quer encabegada pelo menos, quer pelo mats, avalia no texto se destaca uma ‘0 negativa sobre a velhice, atualmente compartilhada por muitos Sabemos - verdade - que nem sempre foi assim, nem sao todos os im pensam sobre essa fase da vida. sentido sao atividades orientadas por nossa bagagem sociocognitiva conhecimentos que as A leitura e a producao de {a lingua e das coisas do mundo (lugares sociais, cren: valores, vivéncias), Pluralidade de leituras e sentidos Considerar o leitor e seus conhecimentos e que esses conhecimentos sdo diferentes de um leitor para outro implica aceitar uma pluralidade de leituras e de sentidos em relacao a um mesmo texto. A titulo de exemplificag4o do que acabamos de afirmar, a proposta de Galhardo, expressa na tirinha abaixo — embora caricaturizada -, é excelente. Fonte: Folha de S.Paulo, 11 ago. 1997. A tirinha — que parte da proposta maior expressa verticalmente a esquerda como mote — apresenta trés leituras para o mesmo fato: o esmagamento do mosquito na parede. Sobre esse fato, as leituras — num total de 36, segundo a proposta do autor — vao se constituindo diferentemente dependendo do leitor — seu lugar social, seus conhecimentos, seus valores, suas vivéncias. E claro que com isso nao preconizamos que o leitor possa ler qualquer coisa em um texto, pois, como ja afirmamos, o sentido nao esté apenas no leitor, nem no texto, mas na interag4o autor-texto-leitor. Por isso, € de fundamental importancia que 0 leitor considere na e para a produgao de sentido as “sinalizagdes” do texto, além dos conhecimentos que possui. 22 Ingedore Villaga Koch * Vanda Maria Elias A pluralidade de leituras ¢ de sentidos pode ser maior ou menor dependendo do texto, do modo como foi constituido, do que foi | explicitamente revelado ¢ do que foi implicitamente sugerido, por um lado; | da ativacio, por parte do leitor, cde conhecimentos de natureza diversa, | como veremos no capitulo a seguir, ¢ de sua atitude cooperativa perani | © texto, por outro lado. Se vimos, anteriormente, em relagao a tirinha do Galhardo, que a leitura pode variar de um leitor para outro, podemos verificar também que a leitura pode variar em se tratando do mesmo leitor. F 0 que evidenciaremos com o texto a seguir: Fonte: Revista Veja, Sa0 Paulo: Abril, ed. 1.874, ano 37, n, 40, 6 out. 2004. Em relagdo ao texto, o mesmo leitor podera realizar duas leituras diametralmente opostas e, nesta atividade, a orientacao do autor tem Lere compreender 23 peso significativo: ler 0 poema de cima para baixo implica uma leitura orientada pelo fio condutor SGRGRARGRARAIS: ler de baixo para cima, uma leitura baseada no fio condutor G36 No exemplo, destacamos a orientagio do autor para a realizagio da leitura: de cima para baixo ou de baixo para cima. No entanto, nem sempre essa orientac3o se constitui explicitamente. Um timo exemplo dis 10 € 0 texto a seguir: Fui a Agua Doce Cachagaria e tomei uma cachaca da boa, mas tao boa que resolvi levar dez garrafas para casa, mas Dona Patroa me obrigou a jogar tudo fora. Peguei a primeira garrafa, bebi um copo e joguei o resto na pia. Peguei a segunda garrafa, bebi outro copo e joguei o resto na pia. Pegueia terceira garrafa, bebi o resto e joguei o copo na pia. Peguei a quarta garrafa, bebi na pia e joguei o resto no copo. Peguei o quinto copo, joguei a rolha na pia e bebi a garrafa. Peguei a sexta pia, bebi a garrafa e joguei o copo no resto. A sétima garrafa eu peguei no resto e bebi a pia Peguei no copo, bebi no resto e joguei a pia na oitava garrafa. Joguei a nona pia no copo, peguei na garrafa e bebi o resto. O décimo copo, eu peguei a garrafa no resto e me joguei na pia. ‘Nao me lembro do que fiz com a Patroa! Nao!!! Como leitores competentes, sabemos que agora nao se trata de ler 0 texto de baixo para cima ou da direita para esquerda. A orientagao do autor é de outra natureza. Observemos: até a quinta linha o texto progride sem “estranhamento”. Da sexta linha em diante, a disposicao dos termos na ora¢4o nos chama a aten¢4o por ser semanticamente inaceitavel, segundo 0 nosso conhecimento de mundo. Isso € uma pista importante para a produgao do sentido do texto, assinaladora da relacdo de proporcionalidade: quanto mais 0 sujeito bebe, mais se embriaga; quanto mais se embriaga, mais comete “incoeréncias” sintatico-semAnticas. 24 Ingedore Vilaga Koch * Vanda Maria Elias No texto, a acentuagio do grau de embriaguez esta correlacionad Be construg6es sintatico-semanticamente comprometidas: quanto ma incoerentes os enunciados, mais acentuado o grau de embriaguez (final, bébado nao fala coisa com coisa mesmo, nao €). Como vernos © texto pressupde do leitor que leve em conta a “incoeréncia” - estilisticamente constituida — como uma indicacao relevante para « produgao de sentido. Fatores de compreensao da leitura Ja é do nosso conhecimento que a compreensao de um texto varia segundo as circunstancias de leitura e depende de varios fatores, complexos e inter-relacionados entre si (ALuENDE & Conpemarin, 2002). Embora defendamos a correlagao de fatores implicados na compreensio da leitura, queremos chamar a atengao para as vezes em que fatores relativos a0 autor/leitor, por um lado, ou ao texto, por outro lado, podem interferir nesse processo, de modo a dificulta-lo ou facilita-lo. Autor/leitor _ Esses fatores referem-se a conhecimento dos elementos linguistics , de determinadas express6es, léxico antigo etc.), esquemas cognitivos, m cultural, circunstancias em que o texto foi produzido. im de exemplificar 0 que afirmamos, vamos ler 0 texto a seguir: Muito se tem tentado com drogas tradicion: nenhuma teve o tao almejado efeito de c: ‘Ha bem pouco tempo foi tentada uma droga novissima, a1 que prometia sucesso total, a “Collorcaina”, que, in nada serviu, seus efeitos colaterais extremamente del da “Pecelidona”) quase acaba com o doente. Porém, para 0 ano que vem, novos. medicamentos poder Enquanto isso ndo acontece, 9 doente consegue sémanter com c “Itamarina” que 6 uma.espétie de emplastro que, se do ndo mata. ‘Mas, voltando ao ano, que vem, se é que podemos voltar ao fu estudar os possiveis medicamentos que teremos a disposi¢a0 do A primeiadroga a sérdiscutida ja 6 uma antiga qué estava em - voljor comyova embalagem e novas indicatées, podendo ser € nofmomento. Trata-se da “Paumalufina”, ext}idd do pou-brasif com’ proprieddde d pfomover perda das gorduras,-printipalmenté.estatais, atentuando a liv jativa. Terp’com6 efeéite colateral a orise aguda deaUtaritarismo e ta de perdularismo, Bo contraindicaga para as democracies. A ‘segunda droga, também ja testada, é derivada da ‘Pemedebona”, a “Oresteqdércina”, quejatua em praticamente todos os drgdos, que passam a funcionar somente esicustas da “Desoxidopropinainterferase”, que promove um desempenho muito ‘mais fisjol6gico. ammSECY Esta droga tem como'efelté colateral uma deplegdo esta que pode ser fatal a0 0 ‘Mais recentemente foi criada a “L.A. Fleutizipé” ~rivada db “Drestequercina”, age de maneira muito semelhente a mesmna,,séndo, enfretanto, muito mais contundente e agressiva. E “~ cogalidleges para Carandirus e professores. A terceira droga do nosso eck ima ainda nao 2. mas jd com fama de eficiéncia. Trata-se do “Cloridrato laid", derivada da “Estrelapetina”, e, como efeito, promete revitalizar as células periféricas, tornando-as tao importantes quanto as do SNC (Sistema Nervoso Central). E importante lembrar que a mesma pode causar imobilismo com liberacdo de Seitas e dissidéncias. Tais efeitos colaterais podem ser evitados com injegao na veia de “antisectarina” e cdpsulas de “Bonsensol”. Ainda é bom lembrar que 0 uso de tal substancia provoca uma cor avermelhada em todos os orgaos. A quarta droga que discutiremos é a “Tucanina Cacicoide”, na verdade, um complexo de iniimeros componentes, como a “FH.Cardozina”, 2 3, OU rar este p m 26 Ingedorevilaca Koch + Vanda Mara las “Zesserrinitrina”, a “Mariocovase” e muitas outras. mais que sao muito eficientes “In Vitro”, porém sem comprovacao de efeito “In Vivo”. Seu maior efeito colateral é a interago de seus componentes que competem entre si, causando uma sindrome chamada “encimamurismo", sindrome esta extremamente deletéria e que pode invibializar 0 uso de tal medicamento. Existem ainda drogas menores como a “Brizolonina” que, quando aplicada, provoca intensa verborragia e manias perseguitorias. Hd ainda a A.C. Malvadezina, uma droga extremamente toxica que causa nduseas até em quem aplica. Terminando nosso estudo, esperamos que, desta vez, os médicos saibarn o remédio certo para salvar o doente. ‘Autor: Luiz Fernando Elias € cardiologist e, nas horas vagas, cronista © que nos chama a atencao no texto? Que conhecimentos sto necessarios da parte do leitor para compreender o texto? Respondendo 4 primeira pergunta, podemos dizer que nos chama a atencao a criacao de um “cédigo especifico” resultante da conjuga¢ao do conhecimento do autor sobre: © politica e medicina; elementos formadores e processos de formagao de palavras, o que Ihe possibilita elaborar um “diagndstico” sobre a politica brasileira Além desse “cédigo inventado”, destacamos as partes do texto referentes a informagdes sobre as “drogas”, composicao, efeito colateral, contraindicagao. Em outras palavras, 0 autor, em sua produgao, também evidencia 0 conhecimento que possui sobre 0 género bula. E o que podemos verificar se compararmos © contetido de uma bula qualquer com 0 contetido do texto apresentado no quadro a seguir:

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