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8. SAMBA DE 1946: PIOR PRODUTO DA POLITICA DE BOA-VIZINHANGA A misica popular do Rio de Janeiro seguia normalmen- te sua linha de evolucdo quando, em 1946, uma série de in- fluéncias ligadas as transformacdes econdmico-sociais provo- cadas pela Segunda Guerra Mundial vieram transformar com- pletamente a sua fisionomia. A necessidade de intercdmbio intenso com os Estados Unidos traduzida pela chamada Politica de Boa Vizinhanca levara as elites brasileiras a.uma extraordindria identificagdo com os interesses e costumes norte-americanos. Os préprios Estados Unidos, postos diante da necessida- de de romper com o isolacionismo que os mantinha alheios aos seus aliados, iniciavam uma campanha de aproximacao orientada que, no campo da miisica popular, ia explicar.em parte 0 extraordindrio sucesso de Carmen Miranda, cantan- do inicialmente em portugués com_o acompanhamento dos brasileiros do Bando da Lua, gracas a dedicada cobertura do Departamento de Estado.(na-mesma-época-em-que Walt Dis- ney vinha ao Brasil criar-a-figura.do Zé Carioca). No campo econémico, o excedente de lucro obtido com a venda de produtos agricolas e de matérias-primas, nao po- dendo ser reinvertido no mercado interno pela quase ausén- cia de indtstrias, seria empregado no setor imobilidrio, pro- vocando a corrida que modificaria em poucos anos a fisio- nomia das principais cidades brasileiras e, no Rio de Janeiro, dissolveria pela derrubada em massa das casas humildes os nticleos responsaveis pelo tipo de musica popular conhecida. Samba de 1946 59 Modificando violentamente o quadro social com a gis persado de moradores das Zonas Centro e Sul para vastas areas da Zona Norte e dos morros, modificavam-se os valores que serviam para aferir a qualidade do tipo de misica popular atg entao produzida; ocupando o seu lugar a massa dos moradores de apartamentos, ou seja, os representantes da nova camada da classe média criada pelas oportunidades da guerra. Seus componentes voltavam-se para fora, isto é, julgavam 0 tra- dicional ultrapassado e admiravam os costumes da camada equivalente a sua no pais mais desenvolvido (Estados Unidos), admitindo apenas, no campo interno, a procura do exotismo, o que explicaria, desde logo, o efémero sucesso do baiao, Para essa admira¢do, os Estados Unidos, interessados em provar as exceléncias do American way of life, forneciam am- plo material através da propaganda de guerra (revista Em Guarda), cultural (tabloide Pensamento da América encarta- do pelo jornal A Manhd, e cursos de lingua inglesa), de di- versdo (filmes de Hollywood e histérias em quadrinhos) e musical, aqui através do duplo bombardeamento do cinema e dos discos, que entao invadiram o mercado brasileiro im- pondo o estilo cool dos seus cantores sussurrantes. Imediatamente, o ideal da juventude representante das camadas médias das populagGdes urbanas passou a ser, no campo da técnica, a profissao de aviador (nascia a FAB), no da elegancia, o uso dos éculos ray-ban, blusdes de couro e calcas blue-jeans e, no das diversGes, 0 cultivo do jazz ea realizacdo de reunides dancantes ao som dos blues que chega- vam as centenas, mensalmente, como parte de um programa de reciprocidade totalmente falso e desfavoravel para o Brasil. Paralelamente, o mercado do disco, principalmente no Rio e em Sao Paulo, ampliava-se ao ponto de tornar a sua inddstria uma das mais importantes do pais (segundo o IBGE a produgao nacional de discos mantinha-se acima de meio bilhao de cruzeiros j4 em 1955 ), © que provocou a inovagao 60 das pesquisas de mercado para vender cientificamente, de acordo com o gosto do publico. Ora, como o pitiblico poten- cialmente comprador de discos era a-classe- média, foi.o. gosto alienado que se impés ao gosto geral e, assim, todos os meios de divulgacdo — 0 disco, 0 radio e depois a televisio —fo- ram postos a servico da musica norte-americana e, no campo da musica brasileira, da que mais parecesse com essa miisica dominante. ~~ Assim, nao é de admirar que a necessidade de adaptar o estilo norte-americano a mtsica popular brasileira tenha sido obra de um cantor recém-chegado dos Estados Unidos, e que o género escolhido fosse 0 samba-cangao, que ja constituia um produto hibrido de ritmos nacionais. O estudioso de misica popular Ari Vasconcelos-situou pre samente essa nova fase de comercializagio do samba, “a partir do langamento de ‘Copacabana’, de Joao de Barro e Alberto Ribeiro (Continental) — suplemento de julho e agos- to de 1946 — com Dick Farney cantando em portugués com a entona¢ao de cantor americano. Realmente, 0 cantor Farnésio Dutra, que muito sintoma- ticamente escolhera o pseud6nimo norte-americano de Dick ) Farney, estivera nos Estados Unidos pouco antes, na crenga / quase infantil de que conseguiria fazer carreira naquele pais cantando misica norte-americana. No caso desse cantor — que foi, alias, bom pianista — 0 processo de alienacdo da mentalidade chegava a ser alar- mante: sua voz era quase uma réplica da de Bing Crosby e, segundo se divulgou, ele chegou a disputar nos Estados Uni- dos um concurso de imitagao daquele seu émulo, entao no au- ge da carreira. De volta ao Brasil, Farnésio Dutra, feito Dick Farney, resolveu tentar a sorte fazendo a coisa que mais pa- recesse com Bing Crosby cantando um fox-blue, e passou a cantar sambas-cangoes imitando Bing em portugués, no esti- lo sussurrante dos blues. Samba de 1946 61 sojunto 20 piiblico igualmente alienado foi ime. diato- ‘ores como OS ja citados Joao de Barro e Albert Composit ‘Alcir Pires Vermelho, Benny Wolkoff, Luis Ribeiro» © ne Maria de ‘Abreu, Jair Amorim, Oscar Belang pirencour JOS io Rossi comecaram a produzir samba. Marino Pinto e ee americanizadas, em que Dick Farney 3 hase er eeee or Liicio Alves — entrava com seu gy,. oe cordes jazzisticos do piano. surro sobre 08 4 Caan estilizador dos motivos folcléri. Até Dorival acrid ao miliondrio Carlos Guinle em cos baianos, oe de que inclufa alegres passeios de lanchg nome de uma nabara, em companhia de mulheres bonitas pela Baia da Gua a fotdgrafos de jornais e revistas. f com a ae ba “Sébado em Copacabana”, exatamente oe Je-Dorival Caymmi — e que figuraria Jos Guin! da dupla Carlos de Joao de Barro e Alberto Ribei- ao lado de “Copacabana ‘i : como um dos mais representativos dessa fase coca-cola da ar brasileira —, estava destinado a constituir um do ponto de vista da compreensio so- O suces 10, misica popul: verdadeiro documento, ciolégica do problema. Em primeiro lugar pela escolha de Copacabana para te- ma (0 bairro formado, precisamente, pela mais nova cama- da da classe média arrivista), e, em segundo lugar, pela exal- tacdo de um ideal de vida cujo contraste com o evidenciado nos sambas-cangées da época anterior é de saltar aos olhos: Depois de trabalhar toda a semana, Meu sdbado nao vou desperdicar, Ja fia © meu programa pra essa noite E ja sei onde vou comegar. Um bom lugar Para encontrar Copacabana 2 Problemas ae Pra passear a beira-mar Copacabana Depois um bar, a meia-luz, Copacabana Eu esperei por essa noite Uma semana. Um bom jantar Depois dancar Copacabana Um sé lugar Pra se amar Copacabana A noite passa tao depressa, Mas eu vou voltar la pra semana Se encontrar um novo amor Copacabana. Sao dessa fase os sambas “Barqueiro do Sao Francisco” (Alberto Ribeiro e Alcir Pires Vermelho), na voz de Dick Far- ney, “Aquelas Palavras” (Benny Wolkoff e Luis Bittencourt), com Liicio Alves, “Ser ou Nao Ser” (José Maria de Abreu e Alberto Ribeiro) e “Um Cantinho e Vocé” (José Maria de Abreu e Jair Amorim), “Ponto Final”, da dupla anterior, “Olhos Tentadores” (Oscar Belandi e Chico Silva), todos cantados por Dick Farney, “Reverso” (Marino Pinto e Gil- berto Milfont) e “Se o Tempo Entendesse” (Marino Pinto e Mario Rossi) e “O Direito de Amar”, de Liicio Alves, que 0 gravou tal como os dois anteriores. Tais composig6es, que em alguns pontos ndo se pode- riam distinguir da mtsica norte-americana, eram arranjadas pela nova geracao de orquestradores, todos eles — como Ra- damés Gnattali — profundamente influenciados pela “musi- ca americana tipo Gershwin” (a observagao quanto a Rada- Samba de 1946 63 més é de Francisco Mignone, em artigo publicado no tabloide Pensamento da América em 1949). Esses arranjadores — muito diferentes daqueles que hy. viam criado o samba-cangao vinte anos antes — haviam.se formado no periodo mais intenso da propaganda de guerra norte-americana, que incluia a investida no setor cultural, através da interpretagao politica da polifonia do jazz como mais uma demonstracdo da liberdade ensejada pela democra- cia, 0 que exemplificavam com a exibi¢do de virtuosismo que asua misica permitia, individualmente, aos componentes do conjunto. Esse fato caracteristico do hot jazz, submetido a admi- ragao basbaque dos orquestradores semieruditos do radio brasileiro, foi apreendido fora das suas razdes histéricas (a polifonia do jazz nasceu do encontro dos escravos africanos com os corais protestantes, ao contrario do caso brasileiro, em que os negros se fizeram solistas e cantores em unissono, por influéncia do cantochao da Igreja Catélica), e essa con- fusdo originou a verdadeira palhagada das orquestragées do chamado maestro Severino Aratijo, especialista no aprovei- tamento de misica classica para orquestragGes em ritmo de samba com harmonizagao de jazz. A alienacao dos orquestradores chegou a tal ponto que, segundo contou em entrevista ao semanario Para Todos, em 1957, a cantora Araci Cértes, foi-lhe quase impossivel cantar no Teatro Municipal o samba-cangao “Ai loi”, “tal era.acon- fusdo de sons da riqueza da orquestragdo” (grifo do autor). O que se verificava, na realidade, era do ponto de vista da concepgo artistica a imposicao do conceito musical alie- nado do orquestrador sobre a criagdo popular original, o que © poeta Herminio Belo de Carvalho definiu 4 maravilha em entrevista a Joao Paulo dos Santos Gomes, ao fazer notar que “a orquestracao € a valorizacao de uma estética individual, a do orquestrador”. 64 Problemas: Por esses desencontrados caminhos — primeiro jazzifi- cado, depois abolerado — prosseguiria 0 samba-cangao, du- rante mais de dez anos, até que, a partir de 1957, a denomi- nada bossa nova viria por fim a confusao, através da elimi- nacido dos tiltimos toques de originalidade do samba tradicio- nal, o que conseguiria através do nivelamento da melodia, da harmonia, do ritmo e do contraponto, numa espécie de pas- ta musical. Tal “solugdo” pode ser interpretada como uma nova etapa do processo de alienagdo a que é submetida moder- namente a classe média dos paises subdesenvolvidos. Ea maior prova dessa verdade vem sendo fornecida a cada carnaval, quando 0 povo consagra um tipo de mtisica que poe em relevo essa diferenca cada vez mais profunda en- tre o sentido tradicional do ritmo e a pretensdo gratuita de chegar a universalidade, pela transplantacao pura e simples de processos musicais validos apenas para os paises que con- seguiram imp6-los ao mundo pela forca da sua economia. 6S Samba de 1946 “EVOLUGAO” DO SAMBA E ASCENSAO SOCIAL O problema da evolucao da misica popular esta direta- mente ligado a um processo geral de ascensao social, que faz com que a musica das camadas mais baixas seja estilizada pela semicultura das camadas médias, nas misicas de danca orquestradas, para acabar sendo “elevada” a categoria de misica erudita pelas minorias intelectualizadas. E isso que explica que 0 jazz, por exemplo, tenha nas- cido entre os negros de Nova Orleans, criadores de blues e spirituals ainda improvisados, para depois passar, sucessiva- mente, a comercializacao dos jazz-bands de Chicago e Nova York, e, finalmente, acabar na pretensdo encasacada dos crioulos do Modern Jazz Quartet, que andam pelo mundo (e ainda hd tempos estiveram no Municipal) divulgando 4 cus- ta do Departamento de Estado a nova cultura universal nor- te-americana. No caso do samba, o jornalzinho cultural Arrastao veio revelar com uma noticia sob 0 titulo “Classico e popular no- vamente juntos”, publicada em seu ntimero de outubro de 1965, que j4 nessa data a moderna juventude universitaria carioca atingira a terceira fase no processo delirante de rea- firmagao pessoal, que consiste em procurar uma linguagem universal para o que nasceu regional e se tornou nacional. Segundo a noticia, “a reuniao de mtisica de bossa nova com erudita foi feita pela primeira vez numa temporada de quatro meses na boate Zum-Zum”. Nesse espetaculo, depois reno- vado no show Reencontro, no Teatro Santa Rosa, o Quinte- to Villa-Lobos tocava trechos de Bach, Haydn, Hindemith e 66 Problemas Jacques Ibert, enquanto o Trio Tamba, Edu Lobo e Silvinha Telles se encarregavam da parte de bossa nova, numa mistu- ra que terminava com a musica “Arrastao” fazendo apoteose. No fundo — e é bom lembrar que os norte-americanos componentes do Modern Jazz Quartet séo negros — o pro- blema se prende, fundamentalmente, a um complexo de in- ferioridade, que deve ser vencido pela demonstragao de que “os modernos muisicos tém categoria”, “tém cultura”, “to- cam o popular, mas também estudam o classico” etc. Num pais subdesenvolvido, como o Brasil, essa fase de febre de ascensao social dos filhos das camadas médias che- gaa ser dramitica, pelo que o esforgo envolve de boas inten- ces, mas nao deixa de ser cdmico, pelo que revela de initil e de alienado, quando observado de um ponto de vista socio- légico dialético. Assim é que, bem examinado, um fox-trot composto por Lamartine Babo, na década de 1930, é mais brasileiro que um samba bossa nova atual de Anténio Carlos Jobim, porque no tempo de Lamartine Babo a admiragao pela misica do “ir- mao mais desenvolvido” ainda nao tinha atingido o refina- mento da verdadeira lavagem cerebral, que consistiu em pen- sar musicalmente em termos jazzisticos, quando, sob o nome de bossa nova, se conseguiu a esquematiza¢ao ritmica capaz de ser universalmente assimilada. A afirmagao poderia parecer gratuita. Mas nao é. Ainda em 1965, depondo na série de flagrantes “Pano- rama da bossa nova”, em boa hora publicada no Jornal do Brasil por Mauro Iva e Juvenal Portela, o baterista Rubinho, do Zimbo Trio, classificou como um dos pontos mais impor- tantes “da musica popular brasileira moderna.a simplificagao ritmica, verificada com o aparecimento da bossa nova”. Com a maior simplicidade, o baterista Rubinho conta entao um pe- queno fato que ilustra, excelentemente, o que classificamos de lavagem cerebral: “Evolugio” do samba é ascensao social 67 “Eu tive um exemplo bem vivo do que aconte- ceu a parte ritmica quando apareceu em Sao Paulo um baterista que tocava com o Carmen Cavallaro, Era um baterista americano ¢ eu estava louco para que ele ouvisse musica brasileira. Levei-o a um bar onde poderia ouvir um dos bons bateristas do Bra- sil, naquela época, o Nei, que hoje vive em Paris. Era um nortista, que batia 0 samba como poucos. O americano sentou, ouviu tudo aquilo e ficou com- pletamente confuso. Absolutamente, nao conseguiu apreender nada do ritmo que ouvira, e 0 considerou desordenado, impossivel de entender. ( Agora ja existe uma mescla de samba antigo | coma bossa nova, o que voltou a dar maior liber- | dade ao baterista. Essa mescla nao chegou a com- plicar, principalmente porque acho que o proble- ma era sair do Brasil e nds precisdvamos que os ou- tros povos compreendessem a nossa muisica.” (gri- fo do autor) Afesté. Passando por cima da realidade representada pe- lo fato de que a bossa nova abastardou o ritmo tradicional brasileiro, de grande “vida interior”, trocando-o pela impor- tacao de células ritmicas cerebrinas ou estereotipadas, o ba- terista vinha revelar em seu depoimento a verdadeira frustra- cao do artista da classe média: nado basta subir na escala so- cial pela assimilacao da cultura musical erudita — é preciso que os outros compreendam a “nossa musica”, isto é, que nos desnacionalizemos pela assimilagao dos simbolos tradicionais dos outros. E esse problema pessoal de frustracao da classe média, ligado ao processo geral do dominio dos mercados mais fra- cos pela indtistria dos paises mais desenvolvidos, que permite o refinamento da alienacdo a um ponto tal, que as contradi- 68 Problemas des — todas somadas — acabam dando na monstruosida- de do empresdrio Aloisio de Oliveira, entao dono da etique- ta de discos Elenco, ao distribuir 4 imprensa em 1965 0 se- guinte convite para o langamento de sua ultima produgao in- dustrial-comercial: “Aloisio de Oliveira tem o prazer de convidar o Sr. . para o coquetel de langamento do long-play The Music of Mr. Jobim by Sylvia Telles...” A incompreensao total de que a conquista da universa- lidade, em cultura, tal como a dos mercados estrangeiros, em comércio, s6 se verifica com a transformagao do pais numa poténcia, gerou o monstro. Um monstro que se alimenta da propria alienacao.! | A tese exposta neste capitulo, originalmente publicado sob a for- ma de um artigo em fins de 1965, foi posteriormente desenvolvida num amplo estudo sobre as varias tentativas de colocagéo da misica brasileira no mercado internacional, e publicado no livro intitulado O samba agora vai...: a farsa da miisica popular no exterior, Rio de Janeiro, JCM Edito- res, 1969. [Nota da 2* edicao] “Evolucdo” do samba é ascensao social 69 -_ ™ 10. BOSSA NOVA (NEW BRAZILIAN JAZZ) Sempre muito atacado pela insisténcia com que interpre- tava o fendmeno da bossa nova como um capitulo da influén- cia da musica norte-americana no Brasil, 0 autor teve esse seu argumento central confirmado, j4 agora pelos préprios cria- dores e adeptos do movimento, com a publicagao do livro Misica popular brasileira cantada e contada por..., de José Eduardo Homem de Mello, em 1976. Beneficiado por esses novos dados, o autor péde entao chegar A sintese de tudo que antes afirmara, através de pequeno ensaio publicado em fins de 1991 sob o titulo “Os ‘samba sessions’ e 0 estilo bossa nova”, na plaqueta Os sons do Brasil: trajetoria da muiisica instrumental, que aqui se reproduz. O fim da era das grandes orquestras, apds o fechamen- to dos cassinos no Brasil, em 1946, e a rapida decadéncia dos programas de mtisica ao vivo das radios, ante o aparecimen- to da televiséo em 1950, repercutiu na area da miisica instru- mental através de uma tendéncia elitizante que ia explicar, ja em 1958, o aparecimento da chamada bossa nova. Foi a onda dos pequenos conjuntos a base de piano, baixo e bateria, es- pecialistas em tocar musica americana para 0 novo piblico das casas noturnas das areas elegantes cariocas, denomina- das boites. Reprodugéo com mais de dez anos de atraso do que acontecera nos Estados Unidos, quando miisicos como Diz- zy Gillespie, Kenny Clarke e Thelonious Monk criaram em 2 Problemas suas jam sessions no cabaré Minton’s, do Harlem, em Nova York, as variagdes complicadas chamadas bebop (para de- sestimular os mtisicos medfocres que pediam canja), a expe- riéncia brasileira repetiu também a experiéncia americana até nas suas consequéncias. Assim como nos Estados Unidos 0 bebop, ao levar a for- macio dos combos (grupo instrumental sem formagao certa, que acabaria fixando a base piano, baixo e bateria, comple- mentada por saxofone ou piston), acabou por estimular nos misicos mais ambiciosos a pesquisa de novos timbres (no estilo Stan Kenton), no Brasil, a imitagdo dessa busca do som “puro” do cool jazz ia conduzir 4 bossa nova. De fato, como 0 processo de concentragao urbana con- temporanea da Segunda Guerra Mundial havia provocado no Rio de Janeiro verdadeira explosao imobilidria em Copa- cabana, transformando aquela drea da Zona Sul carioca no bairro das novas camadas média e alta (componentes do logo apelidado “café society”), a diversao a ser oferecida a tal tipo de gente, na falta de modelo prévio local, s6 podia ser a do equivalente da mesma classe nos paises mais desenvolvidos da Europa e dos Estados Unidos. E 0 que de mais parecido se encontrou, nesse particular, foi o tipo de casas noturnas passiveis de serem montadas nos ambientes apertados dos tér- reos e subsolos de edificios, e que, sob o nome parisiense de boites, ofereciam a seus clientes o romantismo do repertério internacional dos pianos e a miisica americana dos pequenos conjuntos para “ouvir e dangar”. Foi para atender a essa exigéncia da moderna vida ur- bana da ento capital do pais, que se formou em pouco tem- po uma geracao de misicos jovens, a maioria moradora do proprio bairro (e eventualmente safdos alguns até das “me- lhores familias”). Ora, como por sua condigao de classe ou desejo de as- censao social (no caso dos originados da classe média baixa Bossa nova (New Brazilian Jazz) 71 _, ou vindos da Zona Norte para o meio da chamada “genty bem”) todos tinhham em comum 0 ideal de modernidade e bom, gosto da “melhor mtisica americana” — que continuava a ser 0 jazz —, era a adesao a essa linguagem sonora que ia carac. terizar a sua musica. Para nao deixar diividas quanto a essa vinculacio dos miisicos jovens componentes dos pequenos conjuntos de Co- pacabana na década de 1950 com seu modelo norte-ameri- cano, suas exibig6es eram chamadas de “samba sessions” ¢ a parte que tocava ao jazz — e logo explicaria o surgimento de bossa nova — nao seria negada mais tarde pelos préprios envolvidos nesse processo de aculturagao desejada. De fato, em depoimentos especialmente prestados ao jor- nalista e radialista José Eduardo Homem de Mello para seu livto Musica popular brasileira cantada e contada por Tom, Chico Buarque, Johnny Alf, Carlos Lyra, Milton Nascimen- to, Eumir, Menescal, Vinicius, Edu, Dori, Band, Elis, Caeta- no, Gil, de 1976, muitas das declaracdes de miisicos e com- positores envolvidos na preparagao e depois no movimento que viria a dar na miisica de bossa nova se mostravam reve- ladores. Alguns exemplos: “No6s faziamos muito negécio de jam session, até que surgiu a ideia de uma jam session samba” (Roberto Menes- cal, p. 95); “A nossa formagao musical era baseada na misi- ca americana” (Eumir Deodato, p. 100); “No Plaza (a boite do Hotel Plaza) eu tocava mtisicas americanas, minhas misi- cas e dos brasileiros que tivessem esse estilo: ‘Nem Eu’, ‘Uma Loura’. Nesse tempo todo mundo estava naquela de George Shearing, acho que todos sabiam de cor a gravacdo de ‘Con- ception’. Havia também um pouco de Charlie Parker, Billy Bauer e Stan Kenton, que era 0 idolo dos idolos” (Johnny Alf, p. 95); “Shorty Rogers, para mim, é o inventor da BN por- que tocava do jeito que Joao e Tom tocavam — harménica e melodicamente —, e Joao tem influéncia dele muito grande, 2 Problemas até hoje. Eu sei que ele adorava e ouvia muito Shorty Rogers” (Dori Caymmi, p. 193); “Acho que a formagao de todo mun- do da BN é de jazz. Menescal e Lira, todos tiveram grande contato com 0 jazz” (Ronaldo Béscoli, p. 191); “Fundamen- talmente na arquitetura da miisica, na parte da composigao mesmo, nas novidades dos acordes, realmente no comeco (fo- mos) influenciados pelo jazz” (Edu Lobo, p. 140). Aestrutura da forma de tocar — especialmente 0 sam- ba — através da interpolacao de improvisag6es do cool jazz depois denominada de bossa nova, pdde fixar-se ap6s a cria- cio ao violao, por Joao Gilberto, de uma “batida diferente” (como era chamada na €poca). ( Esse novo esquema ritmico, proprio para solo e acom- | panhamento, era construido por uma batida baseada_ na desa- | cent centuagao das tonicas da melodia e acompanhamento, den- tro do tempo, levando a impressao auditiva da simultaneidade de dois. ritmos, logo apelidada por isso de “violao gago” e, mais gozativamente {dizem que pelo cantor Moreira da Sil- va), de “ritmo de goteira”. “A verdade foi que, comprovada a possibilidade de a no- va batida — ao contrario do que acontecia com o ritmo ba- sico do 2/4 quadrado do samba tradicional — permitir a su- perposicdo de solugdes harmonicas tipicas do jazz com bom resultado sonoro, a expresso “samba moderno” (até 1959 usada para designar a nova tendéncia musical) péde, segun- do Ruy Castro em seu livro Chega de saudade, de 1990, ser afinal e definitivamente substitufda por bossa nova. Expres- sao, alias — segundo ainda o mesmo autor —, “imposta com grande senso de marketing por Ronaldo Béscoli em Manche- te” (a revista Manchete, para a qual trabalhava). E, assim, quando em 1962, os proprios norte-america- nos resolveram abrir as portas de sua mais famosa casa de musica, o Carnegie Hall, para ouvir pela primeira vez, ao vivo, 0 que afinal constituia um eco do seu proprio jazz “di- Bossa nova (New Brazilian Jazz) 73 rect from Brazil”, 0 programa distribufdo ao publico podia abrir com os dizeres do convite reproduzido abaixo, dificeis de serem contestados: CARNEGIE HALL 1962-63 SEASON Wednesay Evening. November 21, 1962 at 8:30 Oclock AUDIO FIDELITY RECORDS, Sidney Frey, President ad SHOW MAGAZINE, Robert Wool, Editor-In Chief Prevent Bossa Nova (NEW BRAZILIAN JAZZ) Pin SHAPIRO, Prater LEONARD FEATHER, Hor Noraoe PROGRAM oi wns sone DIRECT FROM BRAZIL (Via Vag Aine)

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