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vate bal. Var edader - Tred. Maize Mantras de Anqvela - So “ule: Tluminurer, wg. ‘Mas cu s6 tive a intengio de tomar da filosofia um pouco da sua cor. {As diversas observagbes precedentes podem dar uma idéta das reflexdes de unt autor na presenga de um comentirio sobre sua obra. Ele ve nela aquilo que cl deveria ser e aquilo que poderia ter sido, bem mais do que aquilo que ela € 0 que pode haver entio de mais interessante para ele do que o resultado de um exame escrupuloso eas impress6es de um olhar esiranho? Nao éem mim que se compoe4 4 unidade real de minha obra. Euescrevi uma “partitura" —mass6 posso escut-a quando executada pela alma e pelo espirito de outra pessoa * por isso que © trabalho do senhor Cohen (abstragio feita das coisas muito! amfveis que nele se encontram) para mim ésingularmente precioso. Ele procurou minhas intengbes com um cuidado ¢ um método notive's, aplicou a um texto contemporineo a mesma ciéncia e a mesma precisio que Costuma mostrar em cus estudos eruditos sobre hist6ra literdria, Delincou a arquitetura dese poema tio bem quanto realgou o detalhe — assinalou, por exemplo, as repeticées de termos que revelam as tendéncias, as freqUncias caracteristicas de um expt. (Certas palavras soam em nés, entre todas as outras, como harménicos de nossa natureza mais profunda...) Finalmente, fico-lhe muito reconhecide por terme explicado tio lucidamente a seus jovens alunos Quanto a interpretagio da letra, jf me expliquei antes sobre esse ponto; mas nunca serd demais insistic: ndo bd sentido verdadeiro de um texto. Nio hi autoridade do autor. Seja 0 que for que tenha pretendido dizer, escreveu 0 que | escreveu. Uma vez publicado, um texto é como uma méquina que qualquer um pode usar a sua vontade e de acordo com seus meios: nio & evidente que 0 construtora use melhor queos outros. Além disso, se ele conhece bem o que quis fazer, esse conhecimento sempre perturba, nele, a perfeigfo daquilo que fer, 168 QUESTOES DE POESIA' Hi cerea de quarenta € cinco anos, vi a pocsia sofrer muitas agressdes, ser .. submetida a experiéncias de uma extrema diversidade, experimentar caminhos totalmente desconhecidos, voltar as vezes a certas tradic6cs; participar, em suma, das bruscas Mlutuagdes € do regime de novidide freqiiente que parccem ser caracteristicas do mundo atual. A riqueza ¢ a [ragilidade das combinacocs, a instabilidade dos gostos e as transmutagbes ripidas de valores; finalmente, a renga nos extremos e o desaparecimento do durivel so tracos dessa €poca, que seriam ainda bem mais sensiveis se nao respondessem com muita exatidio a nossa propria scnsibilidade, que se torna cada vez mais obtusa. ‘Nessa tltima metade do século, uma sucessio de {6rmulas ou de modelos poéticos se pronunciaram, desde o tipo estrito ¢ facilmente definivel do Parnaso até as produgées mais corrompidas € as tentativas realmente mais livres. E conveniente, € importante, juntar a esse conjunto de invengics ccrtas retomadas freqiientemente muito felizes: empréstimos {eitos 20s séculos XV1, XVII ¢ XVIII de formas puras ou cruditas, cuja clegiincia é, talvez, imprescritivel. ‘Todos esses requintes foram instituidos na Franga; o que é bastante notivel, uma vez que este pais € considerado pouco Fottico, apesar de ter produzido muitos poctas famosos. f certo que, hi cerca de trezentos anos, os franceses foram instruidos a menosprezar a verdadcira naturezs da poesia c a deixar-se cnganat por caminhos que levam ao extremo oposto de sua morada. Vou mostri-to facilmente daqui a pouco. Isso explica por que os acessos de pocsia que se produziram de vez em quando entre nés tiveram que se produzir sob forma de revolta ou de rebeliio; ou entéo, 20 contrério, concentram-se em um pequeno ntimero de cabegas ardentes, ciumentas de suas sccretas certezas. ‘Mas, nesta mesma nagio pouco cantante, uma surpreendente riqueza de invengées liicas se manifestou durante o wltimo quarto de século. Aproximada- mente em 1875, com Victor Hugo ainda vivo, com Leconte de Lisle ¢ os seus alcangando a gléria, vimos nascer os nomes de Verlaine, de Stéphane Mallarmé, 1. Publicado em La Nouvelle Revue Francaise, 1° de janciro de 1935, pp. 53-70. 169 de Arthur Rimbaud, esses trés Reis Magos da poética moderna, portadores de presentes tio preciosos e dle perfumes to raros que o tempo passado desde entio’ io alterou o britho nem a forga desses dons extraordindrios. 4 ‘A extrema diversidade de suas obras, aliada a variedade de modclos oferecidos pelos poctas da geracio precedente, permitiu e permite conceber, sentir e praticat 2 pocsia em uma quantidade admirivel de formas muito diferentes. Hoje em dia cexistem, sem diivida, aqueles que ainda seguem Lamartine; outros prolongam Rimbaud. O mesmo pode mudar de gosto ¢ de estilo, qucimando aos vinte anos © que adorava aos dezesscis; nao sci que transmutacio intima faz deslizar de um: mestre a outro o poder de encantar. O amante de Mussct se rcfina ¢ abandona-o 4 por Verlaine. Aquele, alimentado precocemente com Hugo, dedica-se totalmente a Mallarmé. ‘ sas passagens espirituais em geral so feitas em um certo sentido ao inwés de ‘outro, que é muito menos provavel: deve ser rarissimo que o Barco Ebrio conduc 4 por fim a0 Lago. Em compensacio, no se pode perder, peloamor da pura edura Herodiades, 0 gosto pela Prece de Ester. y Esses desamores, essas paixdes stibitas ou golpes de miscricéedia, essas convengies e substituigoes, essa possibilidade de sensibilizar-se sucessivamente 4 pela agio de poctas incompativcis so fendmenos literirios de primeira importins | Cia. Portanto, nem falemos detes. “4 Mas, do que falamos quando filamos em “Poesia? Admira-me no existir um campo de nossa curiosidade no qual a observagio das proprias cotsas scja mais descuidada. Y Sei muito bem que o mesmo acontece com todas as matérias em que se possa 4 temer que 0 olhar totalmente puro dissipe ou desencante scu objeto. Vi, no sem interesse, 0 descontentamento excitado pelo que escrcvi hd algum tempo sobre a. Histéria € que se reduzia a simples constatagoes que todo mundo pode fazer. Ess Pequena agitagio cra muito natural ¢ facil de se prever, visto scr mais ficil reagir: c que esse minimo deve necessariamente prevalecer no maior (08. Quanto a mim, abstenho-me sempre de acompanhar esse arrebatamento de idéias que foge do objeto obsexvavel 6, de sinal er sna, irtea 9 sentimento particular... Acho que ¢ preciso desaprender a considcrar apenas 6 que o costume ¢, principalmente, a mais podcrosa de todas, a linguagem, ofercce: § ‘Ros para consideragio. £ preciso tentar se deter em outros pontos além daqucles indicados pelas palavras, ou seja, pelos outros, t Portanto, vou tentar mostrar como 0 uso trata a Poe: como fiz dela 0 qué cla nic ‘em detrimento do que cla & Quase nada pode scr falado sobre a “Pocsia” que nfo seja diretamente india todas as pessoas em cujas vidas intimas essa forga singular que faz deseji-la ou produzir-se pronuncia-se como um apelo inexplicvel de scu'ser ou entio como Sua resposta mais pura, Essas pessoas scntem a necessidade daquilo que geralmente no serve paré 170 gh xt a” coisa alguma e, as vezes, percebem no sei que rigor em certos arranjos de palavras totalmente arbitrérios a outros olhos. 'As mesmas nio se deixam convencer facilmente a amar o que nfo amam, nem 4 nfo amar 0 que amam — que foi, outrora e recentemente, o principal esforgo da critica Quanto aqueles que nao scntem com muita forga a presenca nem a auséncia da Poesia, ela é para cles, sem diivida, apenas uma coisa abstrata e misteriosamente admitida: coisa to indi! quanto se quiser — embora uma tradigio que convém ser respcitada atribua a essa entidade um desses valores indeterminados, como furuam alguns no espirito publico. A importincia confcrida a algum titulo de ‘nobreza em uma nagéo democritica pode servir de exemplo aqui. Imagino, sobre a esséncia da Pocsia, que cla tenha, de acordo com as diversas naturezas dos espirtos, valor nulo ou importincia infinita: 0 que a assimila 20 proprio Deus. sre esses homens sem grande aj dela © que nfo 2 teriam inventac _ntimero daqueles cujo fardo ow destino ¢ julf-ta, discorrer sobre cla, estimular € cultivar 0 gosto por cla; e, em suma, conceder 0 que no tem, Freqiicntemente eles dedicama isso toda sua inteligéncia ¢ todo seu zelo: 0 que nos faz temer pelas conseqiiéncias. ‘Sob o nome magnifico ¢ discrcto de “Pocsia”, cles s4o incvitavelmente condu- zidos ou obrigados 4 considerar todos 0s outros objetivos akém daquele com que pensam se ocupar. Tudo thes serve, sem que sequer duvidem, para fugit do tessencial ou para iludi-lo inocentemente. Tudo o que nio for esse essencial é bom paca cles. Enumeramsse, por cxemplo, os meios aparentes usados pelos poctas; sali tam-se Irequéncias ou auséncias no vocabuldrio; denunciam-se as imagens favor tas; assinalam-se semelhangas entre um ¢ outro ¢ empréstimos. Alguns tentam restituir scus designios secretos ¢ ler, com uma transparéncia duvidosa, intengocs oualusées na obra. Escrutam naturalmente, com uma complacéncia que demons- tra como se extraviam, o que sabemos (ou acreditamos saber) da vida dos autores como se fosse possivel um dia conhecer dela a verdadeira dedugio intima e, aids, comoseas belezas de expressio,a concordncia deliciosa, sempre... providencial, de termos e de sons fossem efeitos muito naturais das vicissitudes encantadoras ou patéticas de uma existéncia, Mas todo mundo € feliz € infeliz; ¢ 0s extremos da alegria, como os da dor, nio foram recusados 20s mais grossciros ¢ as almas menos cantantes. Sentir nio ‘significa tornar sensivel — ©, menos ainds, belamente sensivel... ne a « Nao € admirivel que scjam procuradas ¢ encontradas tantas manciras de tratar de um assunto sem a0 menos roar o principio, demonstrando através do método, ‘empregado, dos modos de atengio aplicados e até através do trabalho inlligido,” um pleno e perfeito desconhccimento da verdadeira questao? if Além disso: na quantidade de trabalhos eruditos que hd séculos foram consay Brados a Poesia, vemos maravilhosamente poucos (¢ digo “poucos” para no ser absoluto) que nio implicam uma negacio de sua existéncia, As caracteristicas mais sensiveis, os problemas mais reais dessa artc tio complexa sio como que exata- mente ofuscados pelo género de olharcs que se fixam nelas, © que se fa? Tratase 0 poema como se fosseUivsivel (e como se devesse sto) em um discurso de prosa que se basta ¢ consistese por si; €, por Outro lado, em | tum trecho de wma misiea particular, mais ou menos proximoda mesiea propre menue dita tal como a voz humana pode produzila; mas 2 nossa Ato se leva a6 © canto que, de resto, pouco conserva as palavras, atendo-se apenas 28 sflabas, Quanto 20 discurso de prosa — ol sj, discurso que, colocado em outros termos, preencherit 2 mesma fungio —, ele também € divide, por sua ve2 Considera-se que ele se decompde em um texto pequeno (que pode se reduzit, as vezes, a uma palavra ou ao titulo da obra) por um lado, eem tuma quantidade qualquer de palaeras acessérias por outro; ornamentos, imagens, Iiguras, epi tos, “belos detalhes",cuja caracteristica comum & de poderem set introduzidos, ‘multiplicados, suprimidos ad libitum E quanto a musica de poesia, essa mulsica particular de que eu falava, para uns cla ¢ imperceptivel; para a maioria, desprezivel, para alguns, o objete de Pesquisas absiraas, As vezes erucitas, geralmente estéreis. Si que foram esforgos dignas conira as dificuldades dessa matéria; mas temo que as forges tenham sido mal aplicadas. Nada mais enganador que os métodos denominados “cientficos” (¢ as medidas ow os registros, em particular) que sempee permite que se respond’ com*um fat” a uma questio, mesmo absurda ou mal formulada O valor desses métodos (como o da logics) depende da mancira como s80 tulizados. As estatistica, os tracos sobre a cera, a5 observagées eronométricas invocadas para resolver quest6cs de origem ou de tendéncia totalmente “subjett vas" enunciam bem aleuma coisa; mas, nesse cis0, seus ordeulos, longe de nos tirarem de dificuldades e encerrarem qualquer diseussio, apenas imiroduzem, ob 3 forma eo aparato do material da fica, uma metafsica completa, ingenvamente distargaca, For mais que contemos os passos da deusa, que observemos a feequigacia 0 comprimento médio, néo obteremos oscgredo de sua graca instantinea. Ate hoje no constatamos que a louvdvel curiosidace que se consumiu escrutando os mistérios da misica feta para a linguagem “articulada” tenha nos proporcionado rodugdes de importineis nova c essencial Ora, tudo estd If. A inca garantia do Saber real é © poder: poder de fizer ou poder de predizer. Tous 0 resto € Lieratura in Contucd, devo reconhecer que ess pesquisa que considero pouco fratferas sm, pelo menos, o mérivo de buscar a precisio. A intengdo Excelente, O quase contenta facilmente nossa época, €m todas as ocasides em que a matéria nfo eet em jogo. Nossa 6poca se encontra, portanto, 20 mesmo tempo mals precisa ¢ mais superficial que qualquer outra: mais precisa apesar dela mesma, mais superficial por si mesma, O acidente € mais precioso para cla que a substincia. As pessoas a divertem, co homemaaborrece; ¢ ela receia em todas as coisas esse aborrecimento bemaventurado que, nas Epocas mais tranquilas ¢ como que mais vazias, nos produzia profundos, dificeis¢ descjéveis citores. Quem, ¢ para quem, pesaria hoje Suas menores palavras? E que Racine interogaria scu Boileau particular a fim de ‘obter licenga para substituir a palavra infortunado pela palavra miserdeel em tal verso? — 0 que nio foi permitido, ade tanta prose do espitito de proms [Ja que resolvi resgatar um pouco a Poes 8. ue a sobrecarrega ¢ oculta com conhecimentos completamente intite! Se ne ee eo trabalhos produzem em muitos espiritos de nossa época. Ocorre que o habito da extrema exatidao atingida em alguns campos (familiar 4 maioria por causa das Imuitas aplicagocs na vida pritica) tende a tornar indtcis, se nao insuportévets, muitas especulagdes tradicionais, muitas tescs ou teorias que, sem diivida, podem znos ocupar ainda, irritar um pouco 0 intelecto, fazer-nos escrever, © até folhear, diversos livros excelentcs; mas sobre a qual sentimos, por outro lado, que nos pastaria um olhar ligeiramente mais ativo, ou algumas questbes imprevistas, para ver teansformarem-se em simples possibilidades verbais as miragens abstratas, 08 sistemas abiiirios eas vagas perspectivas, De hoje em dante oda a eibactas ue tem para si apenaso queelas dizem cncontram-scvirwalmente” deprecia aes dolenvolvimento daguels cujos resultados sto experimeniados € wllzados + erences eno 02 julgimentos que podem nascer em wna intligncia acostumada a algum rigor quando sio propostas certas “definigdes” € certos “desenvolvimentos” que pretendem introduzi-la na compreensio das Letras € particularmente da Poesia. Que valor atribuir aos raciocinios feitos sobre 0 *Clas- Ercismo", 0 “Romantismo", 0 “Simbolismo” etc. quando estivermos cuidando de estabelecera rclagio entre as caractcristicas singulares¢as qualidades de execugio que faint 6 prego © garantiram a consenaGio de tal obra no estado vivo ¢ as pretcnsas idéias gerais e tendéncias “estGticas” que se presume sercm designadas por esses belos nomes? So termos abstratos € convencionadas: mas convenes Sio nada menos que “cOmodas", jf que 0 desacordo dos autores sobre scus significados 6, de alguma forma, regra; ¢ j4 que parecem feitas para provaci-lo & fornecer 0 pretexto para dlissensdcs infinitas. Fica muito claro que todas essas classificagoes € visdes cavalheirescas nada 173 acrescentam ao prazet de um leitor capaz de amor, nem aumentam em um Profissional a compreensio dos mcios que os mestecs prepararam: clas nao ensinam a ler nem escrever. Além disso, elas desviam e dispersam 0 espirito dos | problemas reais da arte; a0 mesmo tempo que permitem a muitos cegos discorre: 4 fem admiravelmente sobre a cor. Quantas leviandades foram escritas pela praca 4 da palavra “Humanismo", ¢ quantas tolices para fazer as pessoas acreditarem na invengio da “Navureza” por Rousseaut... E verdade que, uma vez adotadas ¢ absorvidas pelo piiblico, entre mil vis6cs que o ocupam inutilmente, esas apa réncias de pensamentos adquirem uma forma de existéncia ¢ fornecem pretexto” matéria a uma grande quantidade de combinagées de uma ceria origtnalidade escolar. Engenhosamente descobre-se um Botleau em Victor Hugo, um romntico em Comeille, um “psic6togo” ou um realista em Racine... S40 todas coisas que do sio verdadeiras nem falsas — e que, aliés, no podem sé-lo, a Admito que nio se faga caso da literatura em geral © da poesia em particular Ese € um assunto particular, «bclea) a impreasio de reeonhectla ete tal momento um acidente mais-oi menos freqiiente en ‘co _ Beontece com a dor € a volpia; mas mais casual ainda. Nunca € certo que um tal Objet0 nos seduzird; nem que, havendo agradado (ou desagradado) uma vez, agradard (ou desagradara) na vez scguinte. Essa inccricza que frustra todos os 4 Cilculos ¢ todos os cuidados € qué permite todas as combinagées das obras comm 0s individuos, todas as rcjcigbes e todas as idolatrias, faz com que os destinos das ‘obras participem dos caprichos, das paixées ¢ variagées de qualquer pessox Se alguém aprecia realmente um pocma, sabcmolo através do que cle comenta-a respeito como se fosse uma alcigio pessoal —se é que cle lala a respeito, Conheel ‘homens tio ciumentos do que admiravam perdidamente que suportavam mal a3 ‘gia de que outros estivessem apaixonados ¢ até de que conhecessem, imaginan do seu amor prejudicado pela divisio, Preferiam esconder a propagar seus livros prediletos, tratando-os (em detrimento da gloria geral dos autores € em proveito. de seu culto) como os sibios maridos do Oriente tratavam suas esposas, cercan do.as de segredo. Mas se quisermos, como quer 0 uso, fazer das Letras uma espécie de instituigi de tlidads pabliea,assocar clcbridade de uma nagio “ue G,emsone ae 4 valor de Estado — tivulos de “obras-primas", que devem ser inscrtas junto aos nomes de suas vit6rias; ¢ se, transformando em meios de educagi instrume ites de prazer intelectual, atribuimos a essas criagées um emprego importante na formagio e classficagio dos jovens, ainda € preciso tomar culdado para no se corromper dessa forma o sentido prdprio e verdadeiro da arte. Essa corrupcio. consiste em substiwuir g-precisio absoluta do przet- bu de Intcrcsse denis 2 pease convenciorsi ‘excitado por uma obra poe precisbcs indtcis ¢ externas ou opi em fazer dessa obra um reagente que sirva a0 controle pedagogico, umia mate -executdlo melhor com desenvolvimentos parasitas. um preicxto para problemas absurdos. “Todas essas intengdes colaboram para © mesmo efeito: esquivar-se das questées reais, organizar uma confusio... Quando vejo 0 que se faz com a Poesia, o que se pergunta, o que se responde a seu respeito,a idéia que se dé nos estudos (€ quase em toda parte), meu espirito, que se acredita (em conseqiiéncia sem dvida da natureza intima dos espiritos) 0 spitito mais simples possivel, espanta-se “até o limite do espanto”. ‘ Ble se diz: nada vejo em tudo isso que me permita ler melhor este pocma, melhor para meu prazer; nem conceber mais distintamente sua estru: ‘ura. Incitam-me a algo totalmente diferente e nada existe que ndo seja procurado, para desviar-me do divino. Ensinam-me datas, biografias, entretém-me com dis- putas, com doutrinas que nao me preocupam quando sc trata de canto ¢ da arte sutil da voz portadora de idéias... Onde estf entio 0 essencial nessas propostas e Inessas teses? O que é feito do que sc observa imediatamente em um texto, das sensagbes que cle esti destinado a produzie? Ainda haverd tempo de sc tratar da vida, dos amores ¢ das opinides de um pocta, de scus amigos ¢ inimigos, de scu nascimento e de sua morte, quando tivermos avangado bastante no conbecimento oética de seu poema, ou seja, quando estivermos transformados no instrumento da coisa escrita, de mancira que nossa vor, nossa inteligéncia ¢ todos os meios de nossa sensibilidade se tenham composto para dar vida ¢ presenga poderosa 40 ato de criagio do autor. A caracteristica superficial ¢ induil dos estudos e dos ensinamentos coma qual acabo de me surpreender aparece coma menor questio precisa. Enquanto escuto cessas dissertagoes, as quais nio faltam os “documentos” nem as sutilezas, no posso me impedir de pensar que nem sci o que é uma Frase... Meu ponto de vista sobre 0 que entendo por um Verso é divergente. Liou forjei vinte “definigbes" de Ritmo, sendo que no adoto qualquer uma delas. Que estou dizendot... Se me demoro somente para perguntar-me o que é uma Consoante, cu me intcrrogo; Coinsulto; ¢ s6 obtenho aparencias de conhecimento nitido, distribuido em vinte opinides contradit6rias. ‘Se eu ousar agora informar-me sobre esses empregos, ou melhor, sobre esses abusos da linguagem agrupados sob 0 nome vago ¢ geral de “figuras”, nada encontro além de vestigios muito desprezados da andlise bastante imperfeita tentada pelos antigos nesses fendmenos “ret6ricos”. Ora, essas figuras, tio despr ads pela critica dos modernos, desempenham um papel de primeira importin ‘no somente na pocsia declarada ¢ organizada, mas também naquel erpetuamente ativa que alorménia © vocabulitio fixado, dilata ou Scrtda das palavias, Oper sobre ch ntaves day sincirhs ourconetabesr tera a todo instante 0s valores desta mocda fiduciaria; ¢, Ora pela boca do POvO, Ora’ | pelas necessidades imprevistis da cxpressto éenica, orrsobrax pena hesitante do— cscritor, d origema essa variagio da lingua que a torna insensivelmente diferenic. Ninguém parece terao menos tentado retomar essa andlise. Ninguem procura io ‘exame profundo dessas substituigées, dessas observagoes contraidas, desses cqui- | voces refletidas e desses expedienics tio vagamente definidos até aqui pelos 175 i ‘graméticos, as propriedades que cles supéem ¢ que nifo podem ser muito dife- rentes daquclas que as vezes sio salientadas pelo genio geométrico e sua arte de via instrumentos de pensamento cada vez mais flexiveis e penetrantes. O Poeta, sem saber, movimenta-se em uma ordem de relagées ¢ de transformasées posst vets, na qual cle 86 percebe ou busca os cfeitos momentncos e particulares que Ihe sio importantes em tal estado de sua operacio interior. Concordo que as pesquisas desse tipo sio terrivelmente dificeis e que sua Uutilidade s6 pode se manifestara pouquissimos espititos; e concordo que é menos abstrato, mais ficil, mais “humano", mais vivo, desenvolver consideragées sobre as “fontes”, as “influéncias”, a “psicologia”, os “meios" e as “inspiragdes” posticas do que se ster a probe or nso expEESSTO AEH ts) Nao nego valor nem coment intersse de uma lterturt qus tte prope Lncees ‘como cendrio, ¢ 0s autores como personagens; mas devo constatar que nao encontrei af muita coisa que pudesse me servir positivamente. 1ss0 & bom para conversas, discussdes, conferéncias, exames ou teses, ¢ toclos os assuntos externos desse genero, cas exigencias sio bem diferentes daquclas do col6quio impiedoso entre 0 querer © o poder de alguém. A Poesia forma-se ou comunica-se no abandono mais puro ou na espera mais profunda: Se a tomarmos como objeto de” estudo, € por esse lado que se deve olhar: € no ser, € muito poued nos sciis ambientes. —_ - = Como é surpreendente, diz-me ainda meu espirito de simplicidade, que uma época que estimula até um ponto inacreditével, na fébcica, no canteito de obras, ‘aareia, no laboratério ou nos escrit6rios,adisseminagio do teabalho, aeconomia © a eficicia dos atos, a purcza e a limpeza das opcragics, rejcite nas artes a8 vantagens da experi¢ncia adquirida, recuse invocae algo além da improvisacio, do fogo do céu, do recurso ao acaso sob diversos nomes lisonjeiros!... Em nenhuma €poca se marcou, se exprimiu, se afirmou ¢ até se proclamou mais fortemente 0 menosprezo por aquilo que garantea perfeigio propria das obras, thes dd através das ligagocs de suas partes a unidade a consisiéncia da forma, € todas as qualidades que os lances mais felizes nfo Ihe podem conferie. Mas n6s somos instantancos. Metamorfoses demais ¢ revolugdes de todo tipo, muitas transmu- tagbes ripidas de gostas em desgostos e de coisas ridiculas em coisas sem prego, muitos valores diversos demais dados simultaneamente acostumam-nos 40 contentamento com os primeiros termos de nossas impressocs. F como, em nossa época, sonhar com a duragio, especular sobre o futuro, querer legar? Parcce-nos inuiiltentar resistira0 “tempo” ¢ oferecera desconhecidos que viverio dentro de duzentos anos modelos que possam emocioné-los. Achamos quase inexplicivel que tantos homens importantes tenham pensado em nds € tenham, talvez, se tornado grandes homens exatamente por ter pensado nisso. Finalmente, tudo nos parece tio precirio ¢ tio instével em tudo, tio necessariamente acidental, que acabamos transformando em acidentes a sensagéo e a consciéncia menos susten. tadas, a substincia de muitas obras. Em suma, estando abolida a supersticfo da posteridade; dissipada a preocupa: lo com 0 dia seguinte; com a composigio, a economia dus mclos, a clogincia € 176 a pericigio tomnando-se imperceptiveis a um piblico menos sensivel e mais ingénuo do que antes, é muito natural que a arte da poesia e que a compreensio dessa arte sejam (como tantas outras coisas) afetadas a ponto de impedir qualquer previsio e até qualquer imaginagio de seu destino, mesmo préximo, O destino de ‘uma arte estd ligado, de um lado, a seus meios materiais; de outro lado, aos cespititos que possam se interessar por ela e que encontsem ai a satisfagio de uma necessidade verdadcira. Até aqui, € desde a mais alta antigilidade, a leitura € a escrita cram os tinicos meios de troca, bem como os inicos métodos de trabalho ede conservagio da expressio através da linguagem. Nio se pode mais responder . Por seu futuro. Quanto aos espiritos, jé se vé que sio solicitados e seduzidos por tantos prestigios imediatos, tantos excitantes diretos que Ihe dio, sem esfo:

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