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MORTE — VIDA ~ POETA (Poema dramético para declamador — atriz) Coro: — 0 poeta esta morto, morto!? Nota: ~ Morte sobse a terra, sobre a terra, sobre a terra; Morte sobre o mar, sobre 0 mar, sobre o mar, Morte sobre o esterco, sobre 0 esterco... Eh morte corre sobre o seu estro € possui a sua vida. 0 coro deve ser dividido em varios pequenos grupos (8) de acordo com es: cala diatnica, O dltimo verso (Eh morte...) deve ser dito pela declamado- ya —atriz, A miasica deve ser executada por violino ¢ s¢ inspira nos nossos cantos lititrgicos, cujo sitmo & o mesmo do poema. 1 (Nartando): Bis que a morle, louca, nos chega. Nao sei, nao sabemos que horas so. S6 sei, sabemos que o dom da morte me atravessou, nos atravessou, Triunfante! Os olhos semicerrados. Respiragdo terminada e pronto! a vida se foi. Num dpice, tudo se consumiu: a beleza do corpo, a dogura da fala ¢ os prazeres da vida. J4 no sou, nffo somos. Apenas o estro, uma existéncia sem hist6ria, terminando. 122 Corot.) a (anudando de yor ¢ de tom): Mas eu sou poeta, Um poeta nfo pode morter. Que asco! Um poeta morto! Erradicado, itradiado do seio dos vivos! Uma ousadia... ‘Talver. um fio do sonho, perseguindo ‘uma voz longfnqua, breve, nas vielas escondidas, sussurrando a palavra nfo disparada, projetade com aarma do medo. Oh medo, medo; dissipa aangéstia deste ente que apenas de viver s6 soube sonhar e k morte vendeu 16 seu corpo, fr4gil, nd convo a deusa de amor numa dédiva, ‘mas como @ prostifuta no seu leito de entrega venial. Coro (...} Ww (tom ¢ voz diferente: narrando) : Ele morreu. Talvez, numa tarde. Dizem, disseram: ele era a poesia, Na sua secretéria de trabalho nenhum poema escrito. E a sua voz, quente, parece que paira, Mas ninguém sabe onde... Sobre o mar! Sobre as vicissitudes! Quigd sobre 0 deserto das consciéncias. (mudando de tom ¢ de voz, elevando-se): ‘Sim, eu sou poeta, Um poeta nfo more. ai um poeta morto (rindo-se...) o mundo vive A nossa volta. 123 Nota: — Sobre a terra id nde temos casas. Nés ser vivo como todos os outros, anstando a vida; pois que do estro nos despedimos, despedidos; a rentincia que nos oferece o mundo neste desprezo. que nos conduz ao desperdicio, neste transitar da vide para a morte Coro (..) Vv Bu sou poeta. Fui a guerra santa, Soldados, gritando, fazendo amor, emprenhando a vida, sem que a terra entendesse, e mar sentisse: Pois os deuses decretaram: Os poetas s6 tém um destino: morrer, niio pela vida, mas pela morte. Morte nfo saciada, morte no determinada, morte simplesmente morte neste absurdo prazer de desaparecer, neste sentir das ansias do nada em que o homem vencido pela sua sombra 6 a encamagio da derrota. Pois os deuses decretaram: 0s poetas s6 tém um destino: morrer, no pela vida, mas pela morte, (so versos a dizer em vor cavernosa), Coro (..) v Bis a tarde consumindo. A noite violenta, ienebrose, 124 As palavras esmagadas, vendidas. Tulvez mesmo empenhoradas. E eles disseram: Nao temais, filho da norte, somos detentores, da verdade somos mestes; Elz eternidade nos erguemos, erguidos. Mas a loucura onde ficou, quedando? Pedras, paredes, muros intranspontveis, casais, cacos, macacos, sussurrando, E a voz passa, passando sempre, sempre ¢ sempre ... Corot.) Nota: A atriz declamadora se tetira da cona, regressando no fim da fala do coro para a cstrofe seguinte (Eh poeta aonde vais?...) VI Eh poeta aonde vais? A enterrar, sepultando? O mar nfio te quer e a terra no te recebe. ‘A maldigio dum corpo, embora moxto, ndo apodrecido; embora finado, no desfeito. Eh poeta, os corvos nflo conseguem tragar a tua carne, dura, conquanto morto, nfo apodrecido, aio desfeito, Coro...) vir (narrando inicialmente): Naquela tarde fria: os nossos corpos, enlagados, quentes. © medo nfo existia, A terra nos recebeu abrindo as suas entranhas. E sia dddiva de purificegaio nos favou o mar. (mudando de tom, se elevando): B depois, disseste, dissomos, disseram: Léestd o pocta, que a morte no o incomode; De vida se erguev, erguido; Da realidade se assumiu, assumindo-se. Sim! Eu sou poeta! Do dom da motte interdito, Da vitéria, a encarnagao. E eis que do sonho nos conjuramos, conjurados, Os cameiros, bestas, passando. O nosso ato de amor nfo se consumindo. A tarde cada vez mais fria. Dois corvos, agourentos, pairam, pensando lugubremente na nossa morte, que nés por gesto fingimos estando, ¢ 0s seus olhios de felizes encovados se espantam. (aqui a declamadora atriz diz:) Bh vida corre sobre o estro ¢ possui a sua morte! depois 0 coro retoma: © poeta esté vivo, vivo vivo sobre a terra, sobre a terra, sobre a terra vivo sobre o mar, sobre o mar, sobre o mar, vivo sobre 0 esterco, sobre 0 esterco... Vill Para que a terra saiba e o mar entenda: Q caminho do poeta nfo é a morte. O seu destino é a vida, A vida que se vive ¢ que renasce. A vida que se abre, 4 nossa volta. E disseram 0 poeta s6 quer a morte; Se 0 poeta é 2 propria vida E mais disseram 0 poeta quer ¢ a sombra 126 Se o poeta saiu das luzes; B disseram ainda, o poeta este s6 quer as grades (gesto de desprezo). Se 0 poeta é a liberdade. Mas, sim, para que a terra saiba ¢ o mar entend: est4 vivo, vivo. Vivo sobre a terra, sobre a terra, sobre a terra; vive sobre o mar, sobre o mat, sobse © mar; vive sobre 0 esterco, sobre 0 esterco,.. poeta Eh vida corre sobre o scu estro ¢ possai a sua morte! Praia, 19 de dezembro de 1977 Kwamé Kondé Cabo Verde 127

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