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NR CELIA APARECIDA FERREIRA TOLENTIN INTRODUCAO Central do Brasil é wm filme que reclama, outea vez, a velha reflexio sobre a identidade nacional, histéria de um menino & procura de seu pai, depois de perder a mae para o trdnsito infernal do Rio de Janei- ro, serve de fio condutor para seguirmos da cidade grande para o sertao nordestino, untamente com Dora, uma mulher suburbana que, pressionada pela vida na mesma metrépole, perdeu todos os escripulos. Nao. por acaso, Dora é uma ex-professora que sobrevive escrevendo cartas para os muitos analfabetos que tran- sitam pela estagio Central do Brasil. Com total desprezo, ouve as muita historias de vida dessas pes soas simples que se agarram nas letras, que nao dominam, como uma tabua de salvagio. Impassivel aos dramas pessoais desse “Brasil iletrado”, Dora munca envia as cartas pelas quais se incumbe. Até o dia em que entra na sua vida o drama do pequeno Josue. De pois de perder a mae, brutalmente atropelada, o garoro procura Dora para escrever uma nova carta ao pai que nao conhece, Josué, sozinho no Rio de Janeiro, sera acudido por Dora depois de uma relutincia de ambas a8 partes, que coloca em pauta a dualidade bisica do filme: a crianga desconfia, até o ponto permitido por sua ingenuidace, do cariter de Dora e esta tenta esqui- vvar‘se 0 quanto pode da “responsabilidade” por esse pequeno indigente, mesmo sabendo que é a tinica pes- soa que pode devolver-the a identidade destrogada, Dora, depois de algumas peripécias que exibirdo para o espectador o que o filme entende ser a destrui- «io moral do Brasil urbano, acabaré por conduzir Josué 20 Nordeste, 2 procura de seu pai. A partir de entdo, uma visio de Brasil que muito agrada aos estrangeiros, € a0 discurso ficil da identidade nacional desfila pela nossa frente. Segundo o filme, 0 urbano é o inferno. Na grande cidade, as pessoas simples estao mereé de todo tipo de violéncia: rapinagem, teifico de criangas, justiceiros impiedosos e sanguinérios que agem 3s cla- ras, do transito © de gente como Dora, capaz de sobreviver de pequenos delitos, 2 custa da ingenuida- de do “gemuino povo brasileiro’ Ao voltar para 0 “coragio do Brasil” com Josué, * Professora de Sociologia da Faculdade de Filosofia ¢ Giénci da Unesp, campus de Mari, Dora é submetida a um yerdadeiro calvario para pur- gar-se da condigio de urbana. Explorando 0 estranhamento entre os seus valores ¢ os do pais cada ‘ver mais interiorano, vamos nos aproximando de um Brasil supostamente feito de solidariedade, amizade, honta,fé, trabalho e uma pobreza que, segundo 0 nar- rador, é apenas simplicidade. Josué ¢ scus irmios se encarregario de resgatar os afetos de Dora, que volta- i para a cidade “renovada’, depois de um batismo de poeira, sol e misticismo. O saldo: precisamos voltar para o Brasil rural e nordestino para resgatarmo-nos de nossa impureza urbana, La € que se encontra a verdadeira identidade nacional - um pouco desamparada, como Josué que s6 reencontra seus irmios e nfo mais seu pai. Um pai re- presentado por uma velha carta enviada aos filhos analfabetos, como uma comunicagio que precisa de decodificadores~ de gente como Dora, como o cineas- ta, como n6s urbanos que vemos o filme ¢ temos de dizer 0 quanto o velho Nordeste patriarcal legou para seus filhos. ‘Mas, outra vez? Essa idéia de que a identidade na- ional auréntica est no rural nordestino € antiga e constitui um tema recorrente ¢ quase insuportavel no cinema brasileiro. O exterior premia, o Brasil aplaude. ‘Temos de perguntar: por que ainda queremos encon- trar 0 *verdadeiro” Brasil e 0 “povo brasileiro” num suposto outro, nunca naquele que fala? Romintico e sem perspectivas de futuro, Central do Brasil propde a volta as rtzes rarais brasileras como fizera Glauber Rocha em O dragio da maldade contra 6 santo guerrero, de 1969. Tanto nam quanto noutro,, 6s sertanejos sio apresentados com grande dignidade € coletivismo, ao contririo dos personagens urbanos, egocentrados, individualistas, numa sugestio de que estes jamais representariam algo que nao fosse a eles rmesmos. Para Glauber, a tragédia nacional ndo tinha safda, a no ser uma perda honrosa através da recusa 4 modernizagio. Falava isso em plena ditadura militar, num tempo de absoluta obscuridade, decepgio, e con- clufa que essa era uma utopia perdida. Mas como explicar que nos finais dos anos 90 ainda nos depare- ‘mos com essa questo quase intacta? Talvez pudéssemos dizer que num pais como 0 Bra- sil, que combina o pior da modernidade como pior do atraso, resgatar a comunidade sertaneja, os lacos de lealdade, 0 compadtio, a dependéncia matua, afé mis- tica é uma forma de tentar compensar imaginariamente a nossa necessidade de recuperaralgum coletivismo em ‘oposigio a violénciae solidio que a modernizagio bra- sileira acabou construindo, como mostra a parte urbana de Central do Brasil. Um discurso romantico e carrega- do de préjuizos e preconceitos, bastante ao gosto de tum pailico formado pela televisio, PRECISO ME ENCONTRAR Mas antes de esmiuigar 0s mecanismos do filme que encanta ¢ leva. platéia as lagrimas, lembremos uma intetessantfssima fala de Monteiro Lobato. O escritor, discutindo o indianismo do romantismo tardio, obser- vava ironicamente que, quando os sertanistas ¢ antropélogos revelassem 0 verdadeiro indio brasile to, 0s romances perdriam 0 estatuto de representativos, da “alma nacional”: “Mas completado 0 ciclo, vitio destrogar o inverno em flor da ilusio indianista, os pro: saicos demolidores de idolos — gente de ma poesia, lrao (os malvados esgaravatar o icone com as curetas da ci- éncia.”" “Esgaravatar” o filme Central do Brasil com os olhos da critica parece ter um pouco este sentido, o de “esboroar” a poesia do transitério auto-reconhecimen- to do cinema nacional e — por que néo dizer — da identidade nacional que sempre vem a tona em caso de algum reconhecimento internacional, Vamos as “cure- tas” com a nossa md poesia. Central do Brasil 6 um filme que retoma, em chave romantica ¢ conservadora, uma questéo cara para 0 politizado cinema brasileiro dos anos 60: a ilusio de que 0 rural nordestino ¢ 0 verdadeiro pais e o lugar do verdadeiro povo brasileiro. Quer dizer, o filme volta a defender essa idéia. Entretanto, propde 0 avesso da utopia dagueles anos: o Brasil rural pobre e nordesti- no de entdo representava a “genuina nagio brasileira” em vias de construcao e transformacao. O homem sim- ples do campo, o vaqueiro, o retirante, o camponés engajado nas Ligas Camponesas, 0 bravo cangaceiro, compunham a metéfora de um pais supostamente dis- tante das influéncias culturais imperialistas, de onde poderia sair uma verdadeira revolugio nacionalista e nacionalizante, que inclufa superar 0 atcaso nacional e com ele o estado de miséria desses mesmos persona- gens. No final da década, apés o golpe de Estado de 1964, que implanta a ditadura militar, essa posigao & revista pelo cinema nacional numa leitura amarga ¢ desenganada — para usar o termo de Xavier, que faz Romintico e sem perspectivas de futuro, Central do Brasil propoe a volta as raizes rurais brasileiras como fizera Glauber Rocha em O dragao da maldade contra 0 santo guerreiro, de 1969. Tanto num quanto noutro, os sertanejos sao apresentados com grande dignidade e coletivismo, ao contrario dos personagens urbanos, egocentrados, individualistas s, numa sugesté de que estes jamais representariam algo que nao fosse a eles mesmos. uma longa andlise das desilusdes do periodo sob a pers- pectiva do cinem: A utopia de Central prope justamente a volta a0 rural depois de “denunciar” a faléncia daqueles mes- mos sonhos de modernizacao e modernidade. Segundo 0 filme, o urbano é um lugar para os “iniciados”, por- que o urbano € o inferno. Um inferno que nio corresponde a cordial alma nacional, localizada no coragio do pais, no Brasil central, quer dizer, agratio, simples, crédulo, coletivista E Contral desenha 0 tempo todo, sob essa perspec- tiva maniqueista, a conhecida ¢ clissica contraposicéo. centre a cidade e 0 campo: a primeira éo lugar do peca- do e o segundo, o lugar da redengao. E a chave mestra desta leitura € oferecida através da letra de um samba de Candeia: Deixeome i, preciso andar Vou por af procurir Rie pea no chorar Quero asintr ao sol naseet Ver as sigs dos ios correr Ovvir os pasearon cantar Eu quero nascer, quero viver ta Se alguém por mim perguntae Diga que eu s6 vou volear Quando es me encontrar NR Queco asintr ao sol nascer Ver a8 iguas do rio correr ‘Ouvie os plssaros canta En quero nascer, quero ver Deine-me in preciso andar Vou por af procurar bal useja, precisamos voltar ao pais da natureza exu- byerante integrarmo-nosa ele para reencontrarmo-n0s, £ 0 que dizem as palavras do sambista quando jé “so- bem" os créditos e grande parte do piblico abandonou sala escura. E, entio, complementando o comentirio sonoro, ocello de Jacques Morelenbaum introduz uma profunda melancolia a esse desejo: & possivel voltar & simplicidade, ao “mundo ristico” destituido dos valo- res individualistas ¢ da violéncia do mundo urbano ilustrado? Dora, a urbana, est na estrada outra vez. Para onde? Inceressantemente, Sinha Vitdria, Fabiano ¢ os ‘meninos, em Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), também terminam na estrada com o lamento do carro de boi comentando a incerteza do futuro, apesar das esperancas dos primeiros anos 60. Assim também termina 0 Dragdo da maldade contra 0 santo _guerreiro' quando Antonio das Mortes, depois de pro- curaras velhas lealdades da comunidade sertaneja, volta pata a estrada rumo cidade ¢ as desesperangas da- queles tempos de chumbo. Ou seja, voltamos i estrada, mas desautorizamos Sinha Vit6ria que dizia haver coi- sas bonitas na cidade e desautorizamos Antonio das Mortes que sabia nao haver mais redencio no coleti- vismo baseado nas lealdades elementares do sertio. Mas, se o sertio & circunscrito nos dois filmes an- teriores, nesse 0 narrador nao pode desconhecer a presenga da modernizagio e seus signos que se impaem, © tempo todo. Inclusive nas muitas metiforas que co mentam a vida e os dramas das pessoas através de estradas, caminhos, rodovias, ferrovias, rens, dnibus, taxis, caminhoes etc.” A idéia de transit € recorrente ¢, em geral, aparece para comenté-lo como tragédia, solidio, deslocamento, auséncia ou perda de identida de. Eniretanto, revelia do discurso primeio, também acaba revelando que entre 0 rural ¢ o urbano nio ha esta distincia eapaz de tornar um nio-penetrivel pelos valores do outro: sio muitas as estradas e caminhos ‘que conduzem pessoas e idéias de um para 0 outro Quer dizer, & primeira vista, o filme tenta convencer nnos dessa possivel via de mao tinica: os migrantes do Brasil central vém para a cidade e se petdem no caos da urbes. E, entdo, se faz necessério conduzi-los de volta a0 lugar de onde vieram para resgatar-Ihes a identida de, 0 coletivismo, a esperanga feita de crenca € religiosidade populat. Nao deixa de ser uma forma de dizer: deixem as cidades para os iniciados, como nés ue fazemos cinema; somos letrados ¢ sabemos nos defender dos perigos e ciladas da vida urbana, indus- trial, modema e cattica. E so muitos os elementos no filme que se encar- regam de produzir no espectador essa leitura dual: 0 campo é o lugar da paisagem, da liberdade, da vida integrada A nacureza; a cidade é claustrofbica, escura, sui e perigosa. Sio diversos os signos que organizam nosso olhar para concluirmos com Candeia: {Quero asin a0 sol maser Vers Sus do rio corer wvir on passiron camar Eu quero nascer, queto viver [| Preeiso me encontrar Na primeira parte de Central, nao hé horizonte. Nos dois momentos em que temos planos geras, 0 céu € cinza € as cenas nos trazem para as circunstancias imediatas, nio permitindo nenhuma contemplagio: na primeira, um menino € morto por segurancas depois de roubar um walkman; na segunda, as linhas bifarca- das dos trens sugerem a dificuldade de Josué diante dos caminhos paralelos incertos. Jina abertura, o filme criva essa perspectiva da compressio sobre o individao urbano: as vores em off anunciando os horéios de saida e chegada dos trens sonorizam a cena em que a cimera capta o desembar- que dos passageiros. Em plano baixo, mostrando os mitossujitos sem rosto que saltam das composigbes, a cimera mostra uma avalanche humana espremida en- tre as paredes eos vagies dos trens. parti dai veremos muitos corredores estreitos ¢ escuros, portdes que se fecham como ameaga, espiaremos pessoas através de arades ¢ frestas diversas. Haverd sempre um engua- dramento denunciando o estreitamento da situagio estes personagens. Se a tomada € mais aberta, o tema € terrivel, como por exemplo a da cena de atropela- mento da mée de Josué. A descrigdo do prédio de subirbio onde vive Dora € feita através de um plano geral mostrando 0 edificio meio ruinoso ¢ uma briga de casal em off para nos fa- zer a descrigio do “inferno”. Vivendo a beira da linha férrea, com o barulho ensurdecedor dos trens, a casa de Dora é mal iluminada, rota e triste, como a sua dona. Mas, através dos olhos de Josué, a camera comenta para nossos olhos © pequeno quadro na parede onde se vé a pintura de uma paisagem bucélica: uma peque- na casinha no campo, Arvores, riacho, morzo ao fund Como um indicio de que na alma da suburbana so- brevive um sonho de vida simples e integrada a natureza. A gravura do santo na seqiiéncia complementa a versio de que hd alguma metafisica na vida dessa mulher que jd demonstrou para o espectador a sua dureza ao rasgar as cartas que escreve ao invés de en- vite-las, como promete. Enfim, as tomadas da cidade trazem todas a mes- ma impressio: sujeira, decadéncia, claustrofobia, desengano ¢ individualismo. Este tltimo merece um comentétio d parte. A CIDADE £ PARA OS “INICIADOS” Os personagens tipicamente urbanos so “desenha- dos” pelo filme como portadores de uma friavileza. Nao é s6 Dora que demonstra esta espécie de falta de empatia com 0 outro, embora através dela vejamos esta questao reiterativamente. Depois de sabermos que ela rasga ou engaveta as cartas que escreve, ¢ que deposita um olhar cruel sobre os dramas dos quais se inteira, a vemos receber a seguinte resposta de Pedro, quando indaga a respeito do atropelamento da mie de Josué: *— Foi um 6nibus que passou em cima de uma mulher...” (informa Pedrio) Morreu?” (pergunta Dora) *K.. i est acertando as contas la em cima” (es ponde Pedrio, com ar de desprezo). Na seqiiéncia, procurada por Josué em prantos, a propria Dora responde que s6 escreverd outra carta para seu pai se ele mostrarthe 0 dinheiro: “sai daqui, desinfeta, moleque” © contraponto com esse individualismo brutal € feito através das muitas “pessoas simples” ¢ analfabe- tas que ditam suas histérias pessoais para Dora, e para 0 piiblico,reiterando as relagdes de lealdade que 6 ur bano, segundo a ética do filme, infelizmente nao conhece. F para isso que ouviremos a carta de uma mulher que, entre lagrimas, diz a0 scu amado preso que se manterd fiel a ele — independente do que cle tenha feito, Ou a carta de um homem que reclama da deslealdade de um conhecido a quem cedera até mes- ‘mo a chave do seu apartamento, Duas situagoes para provocar nossa simpatia cheia de pena da santa inge- nuidade dessas pessoas “puras” ¢ deslocadas no ambiente urbano, desprovido de qualquer solidarieda- de, que o filme tenta desenhar, ressaltando fortemente 2 distincao entre as relagdes herdadas da pequena ci- dade ou da comunidade sertaneja ea cidade grande. E os analfabetos dizem para Dora que enviam eartas para Muzambinho, Carangola, Cangangio, Mimoso, Bom Jesus do Norte, forcando 0 nosso olhar para a idéia de ‘que hi esse Brasil recdndito, onde as ruas nao tém nome co niimero mas indicagoes: “terceira casa, depois da padatia...". Ao pitoresco e singelo mundo rural dese- tthado pelos analfabetos se opde o letrado, desleal e copressor Brasil urbano. folanda e a venda de criangas para contrabando de érgios € © ponto mais grave apon- ado como resultado dessa situacio de urbanidade destrocadora. Segundo o saldo da narrativa, as pessoas 1a metr6pole sio capazes de “vender a alma ao diabo” por dinheiro: a TV que Dora compra com o dinheiro da “venda” de Josué comenta isso quando mostra um rapidtssimo flash de um conhecido quadro televisivo intitulado Topa tudo por dinheiro. Esse quadeo extrai 0 riso do telespectador ao sujeitar pessoas 20s mais di- versostipos de humithagio pablica em troca de alguma recompensa monetiria, Normalmente, seus organiza- dores cooptam transeuntes desavisados, geralmente pessoas pobres, e para que fagam determinadas tarcfas oferecem uma quantia em dinheiro muito significati- va, as vezes maior do que essas pessoas ganham por uum més de trabalho. Mas o quadro em questio tem como fim expor o participante ao ridiculo, ao achaque piblico e nao a uma yenalidade criminosa como & que se submete Dora. Ou seja, embora seja um detalhe, preciso observar que o filme nessa primeira parte cons- tia idéia de que o individuo na cidade € corrompido € corrupto pelo tnico fato de ser urbano e pobre. E isso significa que o ingnuo, analfabeto e desinforma- do migrante sera invariavelmente vitima desse estado de coisas Josué tem principios de pureza, simplicidade ¢ honestidade que a todo momento sio explicitados pata o espectador. Ainda na Estagio Central do Brasil, 6r- {0 e sozinho, nio responde 3 abordagem de estranhos, no aceita comida oferecida por Pedrao e s6 concorda em acompanhar Dora porque, de alguma forma, esta temo tinico recurso que pode devolvé-Io sua fam Josué repete o tempo todo a sua admiracio pelo pai que “fez a nossa casa sozinho, ele sabe fazé tudo de ‘madeira”. Dora em relagio a ele € 0 exemplo da desa- sgregacdo da familia: lembra com rancor do préprio pai e diz com arrogincia a Josue (e ao espectador) que no tem marido, nem familia, nem eachorro, Eo me- nino dir por nés: por isso que vov8 nose pinta, como Irene, que se solidariza com as cartas e as historias, porque é amarga e sozinha. A vizinha Irene é sozinhae alegre, o retrato da simpatia, daquela que acaba defen- dendo Josué da frieza de Dora quando esta o vende para o trafico de drgios. Irene sinaliza essa perspectiva NR a Jogo no inicio do filme quando diz a Dora que a carta «da mae de Josué poderia “recompor a familia" Irene é sorinha mas é romantica, a dinica entre os personagens urbanos onde encontramos alguma dignidade e solida- riedade, O que nio deixa de ser uma afirmacio involuntéria de que, sob outros c6digos, os lacos afeti- ‘os também se estabelecem entre os pobres da cidade ¢ a desagregacio moral nao é conseqiiéncia simplesmer te da cultura citadina do individualismo em oposigao & cultura rural da solidariedade. Quer dizer, a forma dual que compée o filme, uma conseqiiéncia da apreensio simplista da realidade brasileira, por vezes, acaba por ‘mostrar inadvertidamente que as questées sio muito mais complexas do que se propie a afirmar esse dis- curso senso comum SOL, POEIRA E MISTICISMO: O VERDADEIRO BRASIL EXOTICO Segundo Central, a cidade nao é ctédula, a0 con- tério do sertio onde sobrevive uma éica religiosacapaz de manter as pessoas solidérias e préximas. Para com- [por essa perspectiva é que vemos na estagio de trens do Rio de Janeiro um homem com uma Bsblia na mao a pregar sozinho em meio aos transeuntes apressados.. Isso ¢ um elemento importante para o contraponto que 6 filme estabelece. No Nordeste a religiosidade € ceri- moniosa, mistica, coletiva e catértica, Alids, segundo esse olhar, trata-se da tinica moral redentora para res- gatar 0 humanismo perdido no Brasil urbano, um discurso retomado nas antfpodas de Os fucis (Ruy Guer- ra, 1965), onde a mesma religiosidade popular € acusada de fatalista e imobilizante. Também nas anti- podas de Deus e 0 Diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964) que a mostra como uma violéncia sem possibili- dade transformadora na histéria, apesar da utopia de um reino de fartura na terra, Isso para nao falar de tantos outros filmes nacionais que reclamaram um olhar critico sobre o irracionalismo mfstico da cultura rural brasileira, Segundo o discurso de Cendral, essa metatisica se estende as relagGes sociais & natureza, construindo uuma harmonia e integragio simples do hemem com o meio € 0 conjunto. Dessa maneira, Dora devera pur- garse do pecado do individualism, da sua falta de escripulos e solidariedade ao ser submetida a uma es- pécie de “via crucis” enquanto viaja ao pais interior € 4s suas proprias emog6es. E as etapas dessa via sacra se compéem da destruigao sucessiva da légica urbana de Dora, deixando-a cada vex mais dependente dos prin- cipios basicos de solidariedade, que tanto despreza, do povo sertanejo. E cada vez que transgride os principi- os da honra, da lealdade e da sociabilidade tipicas da comunidade sofre desastrosas conseqiéncias. Em pri- meio lugar, tenta corromper 0 motorista do énibus para que este leve Josué sozinho para a cidade de Bom Jesus do Norte. Perce o dinheiro e acaba com Josué no meio da estrada, Na seqiéneia, desrespeita os princt- Pios religiosos do caminhoneiro César, “avanga o sinal” tentando forgar uma aproximagio ¢ acaba sem carona e sem comida, Ea camera reforga esse estrangulamento da moral urbana voltando para os espagos estreitos roda vez que Dora é “punida” pela falta de respeito aos principios da sociabilidade em causa, Entio, os enquadramentos da cimera retomam a observagao dos personagens € das coisas em torno a partir dos espacos fechados, das frestas das janelas, sob a auséncia de luz dos espacos interiores. Ou seja, no sertio a ex-professora estara tio deslocada quanto os analfabetos na cidade. E, por iss0, 96 serd “libertada” do pecado original da urbani- dade quando integrar-se a0 meio, respeitar 0 espago da sociabilidade e solidariedade popular, comunitéria e rural. Mas, a0 contrario do que se faz necessério para a decodificagio dos e6digos sofisticados do modern urbano, a iniciacio do mundo rural é simples, basica e imediata. E como se Dora devesse apenas desvestir-se dos elementos que oprimem e agridem o verdadeiro Brasil. No entanto, a idéia de que séo dois mundos que nio se interpenetram € 0 que prevalece no final da narrativa, dando razio 3 fala irada de Dora quando esta, ainda no meio do caminho, responde a insistente pergunca de Josué sobre a distancia que ainda haveria para chegar a casa de seu pai: “sew pai mora noutro planeta”. Ainda que aparentando uma simpatia, a camera vai destacar para 0 olhar do espectador tudo aquilo que puder demonstrar algum exotismo singelo, a coisa pi- toresca, 0 curioso na descricao do Brasil nordeste. Por isso, deter-se-d em mostrar-nos um bode aleijado que se arrasta numa das paradas do dnibus, 0 sanitario com 2 inscrigio curiosa “urine aqui”, uma mina d’igua bro- tando no alto de uma pedra, os porcos soltos no quintal do posto de gasolina, a igrejinha no pé do morro, a sala de ex-votos etc, etc, Tudo é visto com o olhar escrito do narrador urbano para o espectador urba- no, Poderia ser o olhar de estranhamento de Dora, mas ndo € 6 isso, A cimera faz questio de desenhar esse Nordeste como outro planeta, como uma espécie de lugar fora da civilizagao. No Nordeste a religiosidade é cerimoniosa, mistica, coletiva e catartica. Alias, segundo esse olhar, trata-se da tinica moral redentora para resgatar 0 humanismo perdido no Brasil urbano, um discurso retomadc nas antipodas de Os fuzis (Ruy Guerra, 1965), onde a mesma religiosidade popular ¢ acusada de fatali ae imobilizante. Tambér nas antipodas de Deus e 0 Diabo na terra do sol (Glaube Rocha, 1964) que a mostr como uma violéncia sem possibilidade transformadora na his apesar da utopia de um reino de fartu’ na terra. dnibus aos pedacos que conduz Dora e Josué até 0 pequeno miicleo habitacional onde vivem os ir- mios do menino, além de passageiros, leva galinhas, para render alento ao espectador urbano e citadino, que assim pensa a respeito da vida pobre das regiées que “ainda” no chegaram ao estigio de civilidade da metrpole. Mas é romantico pois, na cidade, a veloci dade impressa ao ritmo do tempo de trabalho atropela as pessoas — literalmente atropela e mata, como o fez com a mie de Josué. Aqui o dnibus s6 passa uma vez por dia, o que arranca um improvavel comentirio do encarregado de vender bilhetes: “isso aqui é 0 fim do ‘mundo, dona”, diz ele a Dora inconformada. Quando estamos concordando com ele, a mente deixa captar um avido que passa em manobra de pouso (em vo baixo). Ou sea, no é o fim do mundo. mera inadvertida- CONSIDERAGOES FINAIS Hi que se perguntar por que ainda queremos ele- ger o rural brasileiro como a verdadeira identidade nacional. Essa € uma questio largamente reiterada pelo cinema nacional: a identidade esta quele que fala, Poucas vezes nos entendemos com a histéria em curso e com a convivéncia — nem sempre pacifica — de arcaico e moderno que caracteriza a vida nacional. © narrador de Central, podemos dizer, € 0 sujeito urhano, senso comum, que acredita haver um Jugar de natureza generosa, largo, amplo, em que a égua brote das pedras ea solidariedade seja a marca das rela ges interpessoais. vez pudéssemos pensar que essa é a pequena utopia possivel para o narrador urbano po- bre: a de uma vida melhor, diferente desta que a Mi conta a primeira modernidade nos legou, da qual se d parte de Central do Brasil. Entretanto, o natrador niio esté propondo essa volta romantica para si mesmo, como observamos no corpo deste texto. Como o “verdadero povo brasileiro” é sempre o outro, e nunca aquele que fala, essa mopia se destina também para o outro. Na sua forma, o filme rentaafirmar que o Brasil rural eo rbano ndo se interpenetram e, por iso, cons tei essa leitura paralelas, como os trilhos dos trens. o espectador: so duas realidades Glauber Rocha NR rural na sua contrapartida poderosa, feita dos resqui- cios do coronelismo ¢ patriarcalismo, que assume a feigio do atraso quando as mesmas relagdes sociais aqui tematizadas sio reclamadas para manutengio da de- pendéncia, do controle pessoal e da intimidacio, nao parece nos interessar. Ainda que seja inevitavel a exis téncia de ambas as coisas. E, por fim, parece interessante observa que, ain- da que feito numa perspectiva supostamente generosa, 0 discurso subliminar do filme nio deixa de apontar para a questio do deslocamento dos migrantes na ci- dade grande, mas também para o mal-estar do citadino com a presenca deles. Quando se esforga para dese. ahé-los como humildes, de rostos crispados, olhar ingénuo, esti de alguma forma demonstrando o olhar urbano, cheio de etnocentrismo, que assim pensa os migrantes, sobretudo nordestinos. E, ainda, € preciso dizer que, depois de décadas de migragio, esse discur- so de que la € 0 verdadeiro lugar da gente simples, a cidade € dos iniciados, parece endossar propostas et- nocéntricas um tanto perigosas para a atualidade. E, para nio ficar apenas com os olhos frios da ci- éncia, € preciso lembrar que Fernanda Montenegro realmente constr6i magnificamente a personagem Dora «a desesperanga daqueles que convivem com o pior da modernidade brasileira NOTAS 1 Monteito Lobato, Urypés (Sio Paulo: Editora Brasiliense, 1847), p28. 2 Ismail Xavier, Alegorias do subdesenvolvimento,tese de livre: ocdncia apresentada 3 ECA-USR mimeo, 1989 3 Dora comenta com Josué que andar de énibus é melhor do ‘auc andar de tx, porque o Gnibus term uma rota defini, 0 Contririo do taxi, Observa que seu pai uso esta metfora para dizer 3 sua mae que arrumara una amante, causando ast 4 morte da mulher. © eaminhoneiro Cesar observa questa me ther estrada, desenbando para os nossosolhos2sua profunda solidio 40 comentar que cothece muitas pessoas mas as perde Sempre de vista porgue mio tem parada. O pai de Josué “ca ho mundo” depois de tomsesealeoslaea. Fo dibs vrbano provoca 9 fio condutor da pereprinagio de Dora, ao matar a rie de Josué

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