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O periodo cartaginés B.H. WARMINGTON ‘A entrada do Magreb na histéria escrita comeca com o desembarque em suas costas de marinheiros ¢ colonos vindos da Fenicia. E dificil reconstruir a histéria desse periodo, pois quase todas as informagdes nos vém de gregos © romanos, povos que tiveram como seus piores inimigos os fenicios do oeste, particularmente aqueles que estavam sob o comando de Cartago. Isso explica por que é tio negativa a imagem que as fontes nos fornecem. Nada sobreviveu da literatura cartaginesa ' E, embora nas duas ultimas décadas tenham ocorrido alguns progressos, a contribuiciio da arqueologia também é limitada, pois na maior parte dos casos as colénias fenicias esto encobertas pelas cidades roma- nas, muito mais imponentes. Existe um grande nimero de inscrigdes em varias versGes da lingua fenicia, mas sdo quase todas inscrigées votivas ou epitafios de sepulcros, que oferecem pouca informagao. Do mesmo modo, permanece até certo ponto obscuro o desenvolvimento -das culturas Ibias autdéctones, antes do século III antes da era cristi*. O Neolitico de tradicdo capsiense prolongou-se no Magreb até o I milénio antes da era cristae poucos vestigios podem ser atribuidos a uma Idade do Bronze distinta. Portanto, 0 quadro arqueolégico do I milénio caracteriza-se por uma evolugdo lenta e continua, mas com influéncias fenicias cada vez mais fortes por volta do século IV. O fenémeno especifico dos timulos fechados por grandes lajes dispostas na superficie do solo parece nao ter relagdo com as culturas megaliticas bem mais antigas da Europa do norte, e é provavel que esses timulos sejam da era crista. Os monumentos mais notdveis, como os tiimulos de Mzora e de Medracen, provavelmente estiio Tigados ao crescimento 10s autores gregos e latinos concentraram sua atengio principalmente nas guerras, primeiramente entre Cartago © Siracusa e posteriormente entre Cartago ¢ Roma. Nessc £480, 08 relatos sio abrangentes, detalhados e€ escritos logo apés os eventos. Quanto ao restante da historia cartaginesa, as informag6es sido esporddicas. As observagoes de Arisiételes sobre a constituigio piinica, 0 relato de Polibio sobre a revolta dos merce- nérios, a versio grega da inscrigéo de Hanio ¢ a lista dos dominios cartagineses na Africa na metade do século IV, dada por Pseudo-Silas, sio exemplos extraidos de uma documentacao esparsa ¢ desorganizada, chcia de lacunas e freqiientemente dificil de compilar”, Mascari, 8. 1968. p. 113 2 Neste capitulo, salvo indicagio contréria, as datas referem-se a periodos anteriores & era cristi. 450 A Africa antiga de unidades tribais maiores, nos séculos IV ou III antes da eta crista. Por todo o Magreb observa-se uma uniformidade caracteristica. Autores gregos e romanos citam, nomeando-as, um grande nimero de tribos diferentes; para o periodo em questao, porém, geralmente dividem os habitantes ndo-fenicios do Magreb em irés grupos principais. A oeste, entre o Atlantico ¢ o Mulucca (Muluya), viviam os mouros, de onde provém o nome Mauritinia (antiga Maurousia) dado a esse territério; posteriormente, tal denominacéo passou a abranger regides situadas bem mais a leste, além do Chelif. Entre o territério mauritano e © limite ocidental da parte conti- nental do territério dos cartagineses (ver mais adiante), estendia-se o pais dos Numidas ou Numidia. Embora os gregos e romanos tenham derivado incorretamente o nome “Numidas” de uma palavra grega que significa “pas- torear”, considerando-o como uma evocagiio da vida némade desse povo, parece que nio ha diferenca fundamental entre os habitantes dessas duas regides; em ambas predominava uma cultura pastoril seminémade, embora jé existissem dreas de vida sedentéria e de agricultura regular, que continuaram a se desenvolver. Além do mais, havia um contato bastante estreito entre a Mauritinia € o sul da Espanha, onde existiam culturas semelhantes. O terceiro grupo era o dos Getulos, nome dado aos verdadeiros némades dos limites setentrionais do Saara. Em todo este capitulo serao empregados os nomes classicos desses grupos e das diversas tribos auténomas. As primeiras povoagées fenicias Segundo a tradigo antiga, Tiro foi o ponto de partida das expedicées dos fenicios para o Oeste, responsdveis pela fundagao de numerosas povoacoes. A Biblia, entre outras fontes, confirma a primazia de Tiro sobre as demais cidades da Fenicia no periodo posterior & destruigéo das civilizacées da Idade do Bronze no Oriente Préximo, no século XIII antes da era crista, Por volta de — 1000, Tiro ¢ outras cidades (Sidon e Biblos, por exemplo) eram os centros mercantis mais ativos no Egeu oriental e no Oriente Préximo, pouco prejudicados pelo crescimento do Império Assirio. O que atraiu os negociantes fenicios para o Mediterraneo ocidental foi a procura de metais, particular- mente ouro, prata, cobre e estanho. Essa busca acabou por conduzi-los a Espanha, que continuou sendo uma das principais fontes de produgio de prata no mundo mediterranico, mesmo na época romana. © historiador Diodoro da Sicilia (século T antes da era cristé) provavelmente nos fornece uma anélise correta da situagdo geral da época, quando diz que “os nativos [isto é, os habitantes da Espanha] ignoravam o uso da prata, até que os feni- cios em suas viagens comerciais a adquirissem em troca de pequenas quanti- dades de mercadorias, Eles fizeram fortuna com o transporte desse metal para a Grécia, a Asia outras regides. Com tal comércio, que durou muito tempo, seu poder também aumentou, e eles puderam fundar numerosas cold- nias na Sicilia, nas ilhas vizinhas, na Africa, na Sardenha ¢ mesmo na Espanha™. Segundo a tradi¢ao, a mais antiga coldnia fenicia no Ocidente se localizava onde atualmente se situa Cadiz, cujo nome provém do fenicio Gadir, que significa “forte”, 0 que leva a crer que sua origem tenha sido um entreposto comercial. O periodo cartaginés 451 A longa rota maritima que conduzia aos novos mercados da Espanha necessitava de protecao, principalmente em virtude das condigdes de nave- gacdo na Antigiiidade, quando a pratica geral era navegar pela costa e ancorar Ou arrastar o navio para a praia 4 noite. Os fenicios utilizavam duas rotas; uma passava pela norte, ao longo das costas meridionais da Sicilia, da Sar- denha e das ilhas Baleares; a do sul margeava a costa da Africa do Norte. Sup6e-se que os fenicios dispunham de um ancoradouro a cada 50 km aproxi- madamente, ao longo desta ultima rota. No entanto, a transformacio dos pontos de escala em coldnias permanentes dependia de varios fatores: os sitios classicos eram ilhas proximas da costa ou promontérios acessiveis dos dois lados. A utilizagéo das escalas nio apresentava maiores dificuldades para os fenicios, pois as populagées do Magreb, e de resta as de quase todo © Mediterraneo ocidental, tinham um nivel de desenvolvimento cultural, poli- tico e militar inferior ao seu. Além disso, fatores estratégicos gerais levaram ao desenvolvimento de alguns sitios em oposicgo a outros. E significativo que trés dos mais importantes — Cartago e Utica (Utique) na Africa do Norte e Mécia (Mozia) na Sicilia — ocupem uma posicdo estratégica nos estreitos que conduzem do Mediterraneo oriental ao Mediterraneo ocidental, e que controlem tanto as retas maritimas do sul como as do norte. Fundacao de Cartago O nome Cartago equivale ao nome fenicio Kart Hadasht, que significa “cidade nova”. Isso pode fazer supor que o lugar se destinasse, desde o inicio, a ser a principal colonia dos fenicios no Ocidente, mas sabemos muito pouco sobre a arqueologia do periodo inicial da cidade para que possamos estar seguros dessa afirmacaéo. A data tradicional da fundagéo é — 814, bem depois de Cadiz (— 1110) ¢ Utica (—1101). Estas duas ultimas datas parecem lenda- rias. Quanto a data de fundacao de Cartago, os primeiros dados arqueolégicos incontestéveis so da metade do século VIII antes da era cristé. Ou seja, existe um descompasso de duas geragdes com relacio A data tradicional. Nao se pode extrair nenhum documento histérico valido das diversas lendas que 0s autores gregos € romanos nos transmitiram sobre a fundagao da cidade. Descobriram-se indicios mais ou menos da mesma data em Utica e foram efetuadas datacdes do século VI ou VIT antes da era crista em Leptis Magna (Lebda), Hadrumeto (Susa), Tipasa, Siga (Rachgoun), Lixos (no Oued Loukkos) ¢ Mogador, a colénia fenicia mais distante que se conhece. Vestigios datados da mesma época foram descobertos em Mécia, na Sicilia; em Nora (Nuri), Suleis e Tharros (Torre de San Giovanni), na Sardenha; e em Cadiz ¢ Almunecar, na Espanha. A coeréncia geral dos indicios arqueolégicos mostra que, embora possa ter havido expedigdes isoladas anteriores, nao existiu ne- nhuma colénia permanente na costa do Magreb antes de — 800. Deve-se enfatizar que, ao contrario das colénias que os gregos fundaram na Sicilia, na Itélia e em outras regiées nos séculos VIII e WIT antes da era crista, todas as coldnias fenicias, incluindo a propria Cartago, continuaram a ser pequenos centros que, durante geragdes, talvez nao chegassem a ter mais que algumas centenas de colonos. 452 A Africa antiga A hegemonia de Cartago sobre os fenicios do Ocidente No século VI antes da era cristé, Cartago tornou-se auténoma e passou a exercer supremacia sobre as outras povoagGes fenicias do Ocidente, assumindo a lideranga de um império na Africa do Norte, cuja criacdo teria profundas repercussées na historia de todos os povos do Mediterraneo ocidental. Tal evolugiio foi favorecida principalmente pelo enfraquecimento do poder de Tiro ¢ da Fenicia — a metrépole — que cairam sob o jugo do Império Babilénico. No entanto, a pressdo crescente exercida pelas colénias gregas da Si parece ter sido um fator ainda mais determinante. As mais importantes dessas colénias, como Siracusa, haviam tido um desenvolvimento demografico @ econémico muito rapido. Basicamente, elas tinham sido fundadas para absor- ver o excedente de populagao da Grécia continental. Ao que parece, no século VII antes da era cristé, nao houve nenhum grande conflito entre fenicios € gregos e foram encontrados vestigios de importagdes gregas em numerosas colénias fenicias do Magreb. Em — 580, porém, os habitantes da cidade de Selinus (Selinunte) € outras populagdes gregas da Sicilia tentaram expulsar os fenicios estabelecidos em Mécia ¢ Palermo. Cartago parece ter dirigido as operagdes defensivas contra essa agressdo, que, se vitoriosa, teria permitido a08 gregos ameacarem as cidades fenicias da Sardenha e lhes teria aberto a rota do comércio para a Espanha, fechada até essa época. O éxito obtido consolidou as colénias fenicias da Sardenha. Nesse mesmo século, Cartago firmou uma alianca com as cidades etruscas da costa oeste da Itélia. Por volta de —535, uma vitéria comum impediu os gregos de se fixarem na Cérsega. © dltimo triunfo a marcar esse periodo ocorreu na propria Africa. ‘Um espartano chamado Dorieus tentou fundar uma feitoria na embocadura do rio Kinyps (Oued Oukirri) na Lfbia; Cartago considerou o empreendi- mento uma intrusdo e, com a ajuda dos libios, conseguiu expulsar os gregos ao final de trés anos. ‘A supremacia exercida sobre os fenicios do Ocidente envolvia encargos que parecem ter sido muito pesados em relacao aos efetivos de que dispunha Cartago: até o século VI, como as cidades gregas, Cartago devia contar com seus proprios cidadéos. Na metade do século, sob o governo de Magon, fun- dador de uma poderosa familia da cidade, inaugurou-se uma nova politica, que consistia em recrutar tropas de mercendrios em larga escala. Tal pratica continuou em vigor durante o restante da histéria cartaginesa. Os ibios, particularmente eficazes como infantaria ligeira, constitufam a maior parte dos efetivos estrangeiros. Tais efetivos aumentavam A medida que Cartago estendia suas possessdes pelo interior e ai instaurava 0 recrutamento obrigatério (ver adiante). Inicialmente mercendrias ¢ depois aliadas em virtude de tratados, também as cavalarias nimida e mauritana (origindrias do norte da Argélia e do Marrocos atuais) forneceram importantes contingentes aos grandes exércitos cartagineses. Em diferentes épocas, serviram em Cartago mercendrios vindos da Espanha, da Gilia, da Itélia e finalmente da Grécia. Essa politica se revelou mais eficaz do que geralmente se pensa e é improvavel que Cartago pudesse sustentar as longas guerras de sua histéria se tivesse contado apenas com os limitados efetivos de sua propria populagao. © periodo cartaginés 453 A gerac4o posterior A vitéria contra Dorieus assistiu a profundas mudangas nas cidades gregas da Sicilia, que reagiram vigorosamente contra Cartago. Gelao, rei de Gela — e de Siracusa a partir de — 405 — empreendeu uma guerra para vingar Dorieus e planejou uma campanha para conquistar a area de colonizagéo fenicia em torno do golfo de Gabes. Como resultado, Cartago procurou aliados na Sicilia, entre os que se opunham a Gelao, e em —480 desembarcou um grande exército mercendrio na ilha, talvez aprovei- tando-se do fato de que no mesmo ano ocorria a invasio da Grécia pelos persas. Avalia-se em duzentos navios a frota de Cartago na época, o que a colocava em igualdade de condigdes com Siracusa e quase no mesmo nivel da frota grega. Contudo, essa intervengéo terminou em desastre completo, com a destruigao do exército ¢ da esquadra na grande batalha de Himera. Gelao nao péde ou nfo soube tirar proveito dessa vitéria e contentou-se com uma modesta indenizacdo de guerra. A expansao na Africa do norte A essa derrota sucederam-se setenta anos de paz, durante os quais Cartago evitou entrar em conflito com os gregos, conseguindo, no entanto, manter Seu monopdlio comercial. Um fato ainda mais importante foi a preocupagio de Cartago em ampliar seus territérios em solo africano. Tal politica foi adotada quando os cartagineses se viram cada vez mais isolados pelas vitérias dos gregos no Mediterrineo, primeiramente durante as guerras médicas contra 0s persas, em que os fenicios sofreram grandes perdas, ¢ depois contra os etruscos na Italia. E possivel que os cartagineses tenham procurado reduzir Suas trocas comerciais com o mundo grego: © contetido das sepulturas do século V parece pobre ¢ austero, com pouco material importado. Contudo, isso nao implica que a comunidade como um todo estivesse mais empobrecida do que antes, uma vez que o contetido das sepulturas nao constitui, por si 36, um indice absoluto do grau de riqueza ow pobreza. A nova politica territorial est associada a dinastia mag6nida, dirigida nessa época por Hando, filho de Amilcar, que havia sido derrotado em Himera, Sobre ele, o historiador grego Dion Criséstomo diria mais tarde que “transformou os cartagineses de tirios em africanos”. Embora nao se tenha certeza da superficie dos territérios conquistados no século V e do nimero de colénias que atingiram a dimensao de cidades, ainda que modestas, as novas possessdes estavam proximas do limite maximo que Cartago chegou a controlar. E preciso assinalar a grande importincia que teve a conquista'da peninsula do cabo Bon ¢ de um vasto territério situado ao sul da cidade, estendendo-se ao menos até Dougga e englobando algumas das terras mais férteis da Tunisia. B nessa drea que a colonizacao romana atingiu, tempos depois, uma densidade particularmente significativa. Essas terras forneciam 0 essencial do abasiecimento de Cartago e permitiram que a populacaéo da cidade aumentasse de modo considerdvel. Mais tarde, Muitos cartagineses possufram dominios no cabo Bon. As terras do cabo Bon eram consideradas piblicas e provavelmente seus habitantes estavam reduzidos a,uma condigdo de servidaio. Nas outras regiGes conquistadas, as populacdes deviam pagar tributo e fornecer tropas. 454 A Africa antiga Dai em diante, ao ntimero de estabelecimentos costeiros fenicias vieram somar-se as préprias colénias de Cartago, cujos nomes, em sua maioria, néo chegaram até nés. Como as colénias originais, cram localidades pequenas, com algumas centenas de habitantes, em que as populagées locais das regides vizinhas vinham vender seus produtos, como indica o nome que hes deram 0s gregos: emporia (mercados). A fronteira entre o Império Cartaginés e as coldnias gregas da Cirenaica situava-se no golfo de Sidra, mas eram poucas as colénias na costa da Libia. A mais importante situava-se em Leptis, onde provavelmente se estabeleceu uma colénia permanente quando o ataque de Dorieus a regido vizinha mostrou ‘0 risco de invasio grega. Em Sabrata, a presenca cartaginesa remontava ao inicio do século IV. Leptis tornou-se o centro administrativo das diversas colénias do golfo de Gabes e sabe-se que esta cidade prosperou ao final do periodo cartaginés. Ai, a cultura fenicia continuou a ser dominante por mais de um século sob ocupacao romana. A origem da prosperidade de Leptis é geralmente atribuida ao comércio transaariano, pois a drea estava situada ‘no fim do itinerdrio mais curto que, por Cidamus (Gadames), conduzia ao Niger. No entanto, ignoramos a natureza desse comércio, ainda que haja men- ¢&o a pedras semipreciosas. Na época romana, a regido devia sua riqueza agricola aos colonos cartagineses. No golfo de Gabes existiam outros sitios: Zouchis, que se tornou célebre por seu peixe salgado e sua tintura pirpura; Gigthis (Bou Ghirarah) e Tacape (Gabes). Mais ao norte, citamos Thaenae (ou Tina), situada no ponto em que a fronteira sul do territorio de Cartago atingia o mar. Segundo a tradigio, Leptis Minor e Hadrumeto foram fundadas pela Fenicia, nao por Cartago, ¢ a Ultima tornou-se a maior cidade da costa leste da Tunisia. A partir de Nedpolis (Nabeul) uma rota que atravessava a base do cabo Bon levava a Cartago. A oeste de Cartago estendia-se Utica, que sé perdia em importdncia para a metrépole, Como Cartago, era um porto, embora atualmente esteja situada a 10km da costa. Durante algum tempo, Utica manteve uma inde- pendéncia ao menos nominal em relacio a Cartago. Além desse porto, até 9 estreito de Gibraltar, a costa oferecia um certo nimero de ancoradouros, mas. poucos atingiram um desenvolvimento compardvel as escalas da costa tunisiana. Com certeza isso se deveu principalmente ao fato de apresentarem maior dificuldade de acesso ao interior. Os sitios conhecidos ou provaveis incluem Hippo Acta (Bizerta), Hippo Regius (Bona), Rusicade (Skikda), Tipasa e Icdsio (Argélia). Na época romana, diversas localidades costeiras (além de Rusicade) guardaram 0 prefixo fenicio rus, que significa “cabo”: Rusucurru (Dellys) e Rusguniae (Natifou), por exemplo. Tingis (Tanger) € mencionada no século V, mas supde-se que ja era conhecida dos fenicios desde as primeiras ligacdes regulares destes com Cédiz. O Império de Cartago Cartago foi criticada por seus inimigos pelo duro tratamento e pela exploragao a que submeteu seus siditos, que com certeza estavam divididos em diferentes categorias. Sem diivida, os mais privilegiados foram os velhos estabelecimentos s € as colénias fundadas pela propria Cartago, cujos habitantes eram © periodo cartaginés 455 chamados pelos gregos de Ifbio-fenicios, isto é, fenicios da Africa. Ao que tudo indica, tais colénias possuiam funciondrios locais e instituigdes seme~ Ihantes as da prépria Cartago (wer adiante); sabemos que esse foi o caso de Gades (C4diz), Tharros e dos fenicios de Malta. Essas cidades estavam submetidas ao pagamento de taxas sobre as importagdes ¢ exportagdes ¢ as vezes deviam fornecer contingentes militares. Também é provavel que tenham contribuido para equipar a frota cartaginesa. Apéds — 348, parece que foram proibidas de comerciar com outras cidades além de Cartago. A posicio dos stiditos de Cartago na Sicilia era influenciada pela proximidade das cidades gregas; cles tinham direito a instituicées auténomas ¢ cunhavam moeda desde © século V, num periodo em que a propria Cartago ainda nao as emitia. Nao ha indicios de que scu direito de comércio tenha sofrido restrigao; coma ocorreu mais tarde, quando a Sicilia caiu sob dominio romano, les pagavam um tributo equivalente a 10% sobre os lucros. Os libios do interior eram tratados com mais dureza, ainda que aparente- mente fossem autorizados a conservar sua organizagao tribal. Parece que o$ funcionarios de Cartago supervisionavam diretamente a coleta do tributo e o alistamento de soldados. A taxa normal do tributo correspondia provavelmente a um quarto das colheitas, sendo que, num perfodo critico de lutas contra Roma (Primeira Guerra Punica), 0 imposto exigido atingiu 50%. De acordo com o historiador grego Polibio (século II), numerosos Iibios tomaram parte na sangrenta revolta de mercendrios que se seguiu A derrota de Cartago, para se vingarem dessa ¢ de outras cobrangas, “Os cartagineses estimavam e honra- yam ndo os governadores que tratavam seus administrados com moderagao e humanidade, mas os que Ihes extorquiam o maximo de recursos e que os tratavam com mais crueldade.” Essa critica deve ter fundamento, pois ocorre- fam varias revoltas libias, além da mencionada. Ao que parece, os carta- gineses nao conseguiram adotar politicas capazes de levar as populagdes con- quistadas a aceitarem sua sorte. O comércio cartaginés e a exploracao maritima A Africa Ocidental Para os pregos © romanos, Cartago era mais dependente do comércio do que qualquer outra cidade, e a idéia que cles faziam do cartaginés tipico era a de um negociante. Além disso, Cartago era tida na é¢poca como a cidade mais rica do mundo mediterranico, Contudo, é preciso dizer que essas trocas comerciais e essa suposta riqueza deixaram muito poucos vestigios para 0 arqueélogo — muito menos, por exemplo, do que importantes cidades gregas e etruscas da mesma ¢poca. Seth divida, uma das principais razGes disso é que parte mais significativa do comércio de Cartago consistia em produtos que nao deixavam vestigio, especialmente os metais em estado bruto, que eram © objetive maior ja dos primeiros navegadores fenicios. E preciso acres- centar os téxteis, o trdfico de escravos e, A medida que as terras férteis eram cultivadas, os produtos agricolas. Os lucros do comércio com as tribos atra- sadas, que forneciam ouro, prata, estanho e provavelmente ferro (sabe-se que 456 A Africa antiga Cartago fabricava suas prdprias armas) em troca de artigos manufaturados sem valor, so evidenciados pelos grandes exércitos mercenarios que a cidade podia recrutar ‘nos séculas IV e III e pela cunhagem de moedas de ouro, que foi bem mais intensa que em outras cidades igualmente desenvolvidas. © Estado dirigia ativamente os grandes empreendimentos comerciais, como atestam diversas fontes, em particular as que se referem a Africa ocidental. Segundo Herddoto (século W), 0 rei egipcio Necau (c. —610 a — 594) enviou uma expedicao de marinheiros fenicios para navegar pelo mar Verme- Iho e dai contornar a Africa. A viagem teria durado dois anos, com duas paradas para semear € colher uma safra de trigo. Herédoto acreditava que a viagem havia sido coroada de éxito, 0 que nao é impossivel, mas na época nao houve nenhuma repercussao. Se tal pétiplo realmente se realizou, as dimensdes do continente ent3o revelado devem ter afastado qualquer idéia de uma rota que se estendesse do mar Vermelho ao Mediterraneo. Ainda segundo Herddoto, os cartagineses que acreditavam na possibilidade de circunavegar a Africa deviam estar a par do empreendimento, bem como de uma outra tentativa que remonta ao inicio do 'século V. Um principe persa conseguiu um navio no Egito com a condigéo de tentar a circunavegacdo no sentido oposto. O navio teria seguido ao longo das costas marroquinas bem além do cabo Spartel, mas teve de retornar, Herédoto também fornece um relato do comércio cartaginés nas costas marroquinas. Num escrita que data aproximadamente de — 430, ele diz: “Os cartagineses também nos falam de uma regido da Africa e de seus habitantes, além do estreito de Gibraltar. Assim que eles chegam a este pais, descarregam suas mercadorias e as colocam na praia; depois retornam a seus navios € enviam um sinal de fumaca. Quando os nativos véem a fumaga, descem até a praia, depositam ali uma certa quantidade de ouro para ser trocado pelas mercadorias e depois se retiram. Os cartagineses desembarcam novamente ¢ examinam o ouro que foi deixado. Se julgam que seu valor corresponde ao dos produtos ofertados, eles o recolhem e seguem viagem; se nfo, voltam aos navios e esperam até que os nativos tenham levado cure suficiente para satisfazé-los, Nenhuma das partes engana a outra: os carta- gineses nunca tocam o ouro até que seu valor corresponda ao que trouxeram para vender, e os nativos ndo tocam as mercadorias até que o ouro tenha sido levado”, Esta € a deserigio mais antiga que temos do método classica do “comér- cio mudo”. Esse comércio do ouro € normalmente associado a um texto grego muito controvertido, considerado como tradugdo do relato de uma viagem ao longo da costa marroquina feita por um certo Hanao, identificado como © chefe da familia dos magénidas, em meados do século V, e também como. 0 estadista responsdvel pela expansdo cartaginesa no continente africano: As dificuldades de interpretagdo desse texto impedem que seja analisado porme- norizadamenie. De maneira geral, pode-se dizer que a divulgagao de um documento que revela tantos fatos é pouco plausivel, pelo que se sabe da politica comercial praticada pelos cartagineses, que impediam qualquer con- corrente em suas zonas de atividade. Além disso, o documento néo menciona nem mesmo o objetivo da viagem, A parte mais precisa trata da implantagdo de feitorias na costa marroquina, Sabe-se que essas colénias existiram: Lixos, na embocadura do Oued Loukkos, era com certeza uma delas, Hando nao O periodo cartaginés 457 a menciona, e a histéria ulterior das tribos da regifio (ver mais adiante) demonstra a influéncia cultural de Cartago. A feitoria mais meridional cons- tante do documento chama-se Cerna, geralmente associada a ilha Hern, na embocadura do Rio de Oro. Esse nome é citado em outra fonte geogrdfica gtega conhecida como Pseudo-Silas, de cerea de —338. “Em Cerna, os fenicios [isto é, os cartagineses] ancoram seus gauloi (assim se chamavam seus navios mercantes) ¢ armam suas tendas na ilha. Apdés ter descarregado suas mercadorias, eles as transportam em pequenas canoas para © continente; ai vivem os etiopes [isto é, os negros] com os quais negociam. Os fenicios trocam suas mercadorias por peles de veado, de ledo e de leopardo, couros e presas de elefantes [...] os fenicios trazem perfume, pedras egipcias [cera- mica?], loucas e anforas atenienses.” Também aqui 0 ouro niio é mencionado; Cerna aparece mais como um ancoradouro do que como uma colénia. A lista das mercadorias trazidas de Cartago parece correta, mas tem-se contes- tado a aquisigao de peles de animais selvagens, pois era possivel obtt-las bem mais perto de Cartago. O relato de Hando termina com uma narrativa de duas viagens feitas bem ao sul de Cerna, com descrigdes pitorescas de populacSes ferozes, de “tambores na noite” ¢ de “rios de fogo”, provavel- mente com a intengdo de assustar qualquer eventual concorrente. O limite sul dessas viagens foi fixado no monte Camarées, 0 que parece exagerado. Os indicios arqueolégicos que testemunham as expedigses carta- ginesas nao vao além de Essauira (Mogador), mas se referem a viagens Ocasionais restritas ao século VI ¢ néo podem ser identificados ¢om qualquer um dos lugares mencionados no relatorio em questao. Se 0 objetivo era o ouro, é estranho que toda lembranga desse comércio haja desaparecido com a queda de Cartago, ainda que certas coldnias na costa marroquina tenham sobrevivido. © historiador prego Polibio navegou ao sul de Cerna depois de — 146, mas nao descobriu nada de interessante. No século I da era crista, o escritor romano Plinio refere-se nestes termos a0 relato de Hanao: “Muitos gregos e romanos, com base nesse documento, evocam muitas terras fabulosas e relatam a fundagao de muitas cidades, das quais ndo subsiste na realidade nenhuma lembranga ou vestigio”. Fato singu- lar, Mogador seria visitada mais tarde por marinheiros vindos da Mauritania (ver adiante), Estado vassalo de Roma, mas parece que seu objetivo era mais a pesca do que © ouro. O Atlantico O mundo antigo conhecia o relato de outra expedig&o dirigida por Himflcon, contemporaneo de Hanao, mas as referéncias que possuimos sao fragmentérias. Essa expedic¢éo explorou a costa ailantica da Espanha ¢ da Franca e certa- mente atingiu a Bretanha. Provavelmente seu objetivo era ampliar o controle sobre @ comércio do estanho extraido em varias regides préximas ao litoral atlantico. Diversos escritores da Antigiidade se interessaram pelo comércio de estanho, com certeza porque eram muito poucas as informagGes que os cartagineses deixavam circular a esse respeito. Na verdade, o periodo carta- ginés constituiu a ltima fase do comércio de estanho ao longo dessa costa; tal comércio remontaria 4 Pré-Histéria, sendo a regio sudoeste da Inglaterra 458 A Africa antiga uma das principais fontes de produgio. Contudo, nfo h4 provas de que os fenicios tenham algum dia atingido a Inglaterra; nenhum objeto fenicio foi jamais descoberto nessa regiao (nem na Bretanha, alias). Se eles adqui- riam estanho da Inglaterra, cra provavelmente por intermédio de tribos da Bretanha. £ possivel que a maior parte da produgao inglesa de estanho fosse transportada através da Galia até o vale do Rédano e o Mediterraneo, e que os cartagineses adquirissem esse metal principalmente no norte da Espanha. Seja como for, o mineral mais valioso explorado na Espanha era a prata; sabemos que no século III a produgéo atingiu niveis considerdveis e que sem duvida ultrapassou em muito a de estanho, A partir do século V CAdiz rapida- mente ganhou importancia ¢ foi a Gnica possessao cartaginesa no Ocidente, a excegio de Ibiza, a emitir sua propria moeda. Segundo o gedgrafo grego Estrabao, seus construtores de navios superavam todos os outros na fabri- cacao de embarcacées tanto para o Mediterrineo quanto para o Atlantico. O comércio mediterranico Como vimos, Cartago possufa o monopélio do comércio em seu império, afundando toda embarcagdo intrusa ou concluindo tratados comerciais com 0s possiveis concorrentes, como as cidades etruscas e Roma. Em principio, nenhum estrangeiro estava autorizado a comerciar a oeste de Cartago; isso significava que as mercadorias levadas a essa cidade por navios estrangeiros deveriam sofrer transbordo para navios cartagineses, para entao serem reexpor- tadas. Foi assim que os produtos da Etriria, Campania, do Egito e de diversas cidades gregas atingiram um grande naimero de colénias da Africa do Norte. Os produtos manufaturados de Cartago sao dificeis de identificar do ponto de vista arqueoldgico, pois nia tém qualquer originalidade ou valor. Talvez isso tenha sido economicamente vantajoso no século IV, principalmente apés as profundas alteragdes econdmicas e politicas desencadeadas no Mediterrfineo ocidental pelas conquistas de Alexandre, o Grande. De fato, a partir dai abriram-se grandes mercados, de tipo mais cosmopolita, para os artigos bara- tos, mercados que os cartagineses estavam bem preparades para explorar. Foi somente no século IV que Cartago comecou a cunhar suas préprias moedas, A medida que aumentava o seu comércio com paises mais desenvolvidos e que a evolucio da situagfio econémica também obrigava a pagar os merce- narios em dinheiro, O comércio saariano A quest&o dos contatos des cartagineses com 0s povos saarianos e outras popu- lagGes que viviam mais ao sul ainda nao foi elucidada. Se tais comunicagoes existiram, devem ter ocorrido a partir de Leptis Magna ¢ Sabrata, uma vez que nessa regio s4o muito poucos os obstaculos naturais. A preocupagéo dos cartagineses em manter os gregos longe dessa dtea foi mencionada como prova de que eles praticavam um comércio muito importante com o interior, pois af as terras agricolas propicias 4 colonizagao so raras. No século V, Herédoto citava dois grupos tribais, os Garamantes e os Nasamones, que vi periado cartaginés 459 viam nas regides interioranas ao sul do golfo da Sirte; ele também afirmava que eram necessdrios trinta dias para ir da costa até o territério da primeira tribo, provavelmente a populagio de Garama (Germa). Foi por intermédio dos Garamantes que, séculos mais tarde, os romanos obtiveram maiores informagées sobre o interior da Africa. Segundo uma narrativa mais recente, um cartaginés chamado Magon atravessou trés vezes o deserto. Infelizmente, nao restou nenhum vestigio arqueolégico desse comér- cio — se é que existiu — e 0s autores mencionam apenas um artigo de comércio do deserto: o carbinculo. Talvez se praticasse 0 trifico de escravos — diz-se que os Garamantes perseguiam os etiopes (isto é, 0s povos negros), em carros puxados por quatro cavalos. E possivel também que houvesse comércio de marfim ¢ peles, embora esses artigos fossem facilmente encon- trados no Magreb. Sabe-se menos ainda sobre o transporte do ouro prove- niente do Sudio, mas nao se pode descartar a existéncia dessa atividade. As investigacdes arqueolégicas recentes indicam que em Germa o crescimento demografico ocorreu a partir do século V ou IV e que, nos séculos seguintes, se desenvolveu uma considerdvel populagdo de agricultores sedentarios, pro- vavelmente devido as influéncias culturais que se exerceram a partir dos estabelecimentos cartagineses do litoral. Apés a destruigo de Cartago, 08 romanos penetraram em Germa e em Gadames € ocasionalmente bem mais ao sul; alguns vestigios arqueoldgicos testemunham a existéncia de modestas importagées do Mediterraneo para o interior. A auséncia de camelos na Africa do Norte nessa época explica a dificuldade e a irregularidade das viagens transaarianas. Mesmo que as condigées naturais do Saara na Antigiiidade fossem menos precarias que hoje em dia, a falta de animais de carga dificultaria enorme- mente qualquer comércio de larga escala. Portanto, a integracio das regides saarianas ¢ transaarianas num conjunto cultural mais amplo deve ser datada do inicio do periodo arabe. A cidade de Cartago Embora Cartago tivesse a reputacio de possuir uma fabulosa riqueza, nfo encontramos nenhum traco arqueolégico dela, mesmo levando em conta a destruigao total da cidade pelos romanos. Isso no significa que nado houvesse ali construgdes importantes, como sao encontradas em cidades semelhantes da €poca, Cartago possuia um sofisticado porto artificial duplo: 0 porto externo destinava-se ao uso de navios mercantes — desconhece-se sua capacidade — eo porto interno tinha cais e abrigos para 220 navios de guerra; foi erigida uma torre de controle suficientemente alta para permitir a observagio do mar por cima dos edificios da cidade. As muralhas da cidade, de dimensdes excepcionais, resistiram a todos os ataques- até o assalto final dos romanos. A extensao total (incluindo a parte que se estendia ao longo do mar) era de 40 km aproximadamente. Na parte principal que defendia o istmo de Cartago, com extensio de 4km, os muros atingiam 12m de altura ¢ 9m de espessura, Uma fortaleza interna de mais de 3km de perimetro circundava a colina conhecida como Birsa, que sem diivida constitu‘a a parte maié antiga da cidade. Entre o porto e 460 A Africa antiga a colina de Birsa havia uma praca piiblica equivalente a uma agora grega. Mas Cartago nunca teve o aspecto planificado ou monumental que veio a caracterizar as cidades gregas. Parece ter-se desenvolvido sem planejamento, com ruas estreitas e sinuosas; sabe-se de edificios que teriam até seis andares, como na propria Tiro e em Moécia na Sicilia Quanto aos templos, embora se diga que foram numerosos, é pouco provivel que tenham tido grandes dimensdes antes do ultimo periodo da histéria de Cartago, quando a influéncia cultural grega se fez sentir. De fato, a maior parte dos indicios mostra que os cartagineses eram essencialmente conservadores em assuntos religiosos ¢ que durante muito tempo permaneceram figis ao conceito de simples recintos, desprovidos de monumentos imponentes. No apogeu de Cartago, a populacio pode ser apenas estimada; o numero de 700 mil habitantes fornecido por Estrabao é uma concentracdo impossivel, mas pode-se referir a populagdo da cidade e de toda a regiao do cabo Bon. O mimero, mais razodvel, de 400 mil pessoas, incluindo os escravos, poria Cartago no mesmo nivel que a Atenas do século V. As instituig6es politicas de Cartago O iinico aspecto de Cartago admirado pelos gregos ¢ romanos foi seu regime politico, que parecia garantir a estabilidade tio apreciada na Antigiiidade. Os detalhes do sistema ainda séo pouco conhecidos e nao se pode ter certeza de que os fatos tenham sido interpretados corretamente. E provavel, contudo, que em suas grandes linhas funcionasse da seguinte maneira: a realeza here- ditéria prevaleceu nas cidades fenicias até a época helenistica; de acordo com todas as fontes de que dispomos, ela também existiu em Cartago. Assim, Amilcar, derrotado em Himera, ¢ Haniio, 0 promotor da expansio de Cartago na Africa, sio designados pelo titulo de rei, E provavel que, ao empregarem © termo “rei”, os autores classicos estivessem pensando tanto nos poderes sagrados e judicidrios dos titulares, quanto em seus poderes politicos e mil tares. O cargo era, em principio, eletivo e nao hereditério, mas varias geragoes da familia mag6nida ocuparam tal posigao. Durante os séculos VI € V, os reis parecem ter sido, quando era preciso, também chefes militares da nagéo. No decorrer do século V teve inicio um processo que enfraqueceu o poder dos reis. Essa mudanga talvez esteja associada 4 influéncia crescente dos sufetes, o Gnico termo politico cartaginés que os autores romanos nos transmitiram. Essa palavra alia as nogées de juiz e governador e, dado que no século III dois (ou talvez mais) sufetes eram eleitos anualmente, € facil compard-los aos cénsules romanos. O termo sufete continuou a ser usado na Africa do Norte, em regides colonizadas por Cartago, durante mais de um século apés a conquista romana, para designar © principal magistrado de uma cidade. O processo de enfraquecimento do poder dos reis assemelhou-se ao que icou nas cidades gregas e em Roma. Paralelamente a esse declinio, aumentava o poderio e a riqueza da aristocracia. Além de exercer o direito exclusivo de fazer parte de um conselho de estado, como o senado romano, a aristocracia fundou uma corte de cem membros, aparentemente com a funcao especifica de controlar todos os érgios do governo. Embora os cidadaos © periodo cartaginés 461 participassem de uma certa maneira da eleigdo dos reis, dos sufetes ¢ de outros dirigentes, ndo ha divida que a politica cartaginesa sempre foi dominada pelos ricos. Aristételes julgava nefasto o papel descmpenhado pela riqueza em Cartago. © nascimento ¢ a fortuna cram critérios determinantes nas eleigées; todos 0s assuntos eram decididos pelos reis ou sufetes de acordo com o conselho, e somente em caso de desacordo as assembléias de cidadiios eram consul- tadas. No século 1V ou LI, o comando das forgas armadas era totalmente independente dos outros cargos; os generais eram nomeados apenas de acordo com as necessidades para campanhas especificas, pois o Estado nfo mantinha um exército regular que exigisse um chefe permanente. Varias familias ou dinastias — os magénidas no inicio da Histéria e posteriormente os barcidas (ver mais adiante) — desenvolveram uma tradigao militar, E interessante notar que Cartago nunca sofreu um golpe de estado por parte de um general ambicioso, como era comum nas cidades gregas, principalmente na Sicilia. £ muito provavel que os drgios de supervisao © controle fossem eficazes. © fato de, a partir do inicio do século V, os cidadaos cartagineses terem sido dispensados do servico militar — exceto em raras ocasioes — possivelmente os impediu de tomar consciéncia de sua propria forga. Na Grécia e em Roma, tal consciéncia teve importante papel na formagio do espirito democritico. A religiao dos cartagineses Embora as instituigdes politicas de Cartago recebessem elogios, a vida reli- giosa foi severamente criticada pelos autores clissicos, principalmente em virtude da persisténcia de sacrificios humanos. Mencionava-se também a inten- sidade das crencas religiosas, ‘Como é natural, os cultos praticados em Cartago apresentam semelhangas com as tradicdes da Fenicia, das quais se originaram. A suprema divindade masculina do mundo fenicio era conhecida na Africa sob a denominagio de Baal-Hamon; ao que parece, o epiteto Hamon significava “ardente” ¢ evocava seu aspecto solar. Na época romana, essa divindade era identificada com Saturno, No século V, Baal foi sobrepujado, pelo menos no culto popu- lar, por uma deusa chamada Tanit. O nome parece ser de origem libia, ¢ 0 desenvolvimento de seu culto est4 associado 4 aquisigdo de territérios na Africa, pois a divindade possuia aspectos nitidamente ligados a fertilidade, lembrando muito as deusas gregas Hera e Deméter. RepresentagGes grosseiras de uma figura feminina com bragos erguidos aparecem em centenas dé estelas em Cartago e em outros lugares. Essas duas divindades ofuscaram todas as de- mais, mas conhecemos também Astarte, Eshmoun (identificado com Esculd- pio, deus da medicina) e Melqart, protetor particular de Tira, a cidade-mac. A instituigiio de sacrificios humanos é comprovada arqueologicamente pelas descobertas feitas néo apenas em Cartago ¢ Hadrumeto, mas também em Cirta — que se situa no territério libio, onde a influéncia da cultura cartaginesa foi muito marcante — ¢ em diversas colénias situadas fora da Africa. A descoberta, nos recintos sagrados, de urnas com ossadas calcinadas de criancas, que freqiientemente eram enterradas aos pés das estelas, levam a supor que se tratava de sacrificios geralmente oferecidos a Baal-Hamon, 462 A Africa antiga mas com freqiiéncia também a Tanit, De acordo com as fontes de que dispomos (que possuem aspectos duvidosos), as vitimas eram sempre do sexo masculino; os sacrificios realizavam-se a cada ano ¢ atingiam obrigatoriamente as familias influentes. Tal prética caiu em desuso, mas um incidente em — 310 mostra que ela podia renascer em momentos de crise, quando a célera divina era atribuida & negligéncia desse rito. Nao ha divida de que o fervor religioso dos cartagineses repousava na necessidade de apaziguar 0 humor caprichoso dos deuses. A maior parte dos nomes cartagineses possuia uma etimologia sagrada, sem divida com a mesma intengdo. Amilcar, por exemplo, significa “protegido de Melqart” e Anibal, “protegido de Baal”. Além dos sacrificios humanos, havia um ritual complexo envolvendo a oferenda de outras vitimas, que era cumprido por um corpo de sacerdotes nomeados a titulo permanente € por outros oficiantes que nao pertenciam a uma casta especial. Apesar de seus contatos com o Egito, os cartagineses parecem ter dado pouca impor- tancia & idéia da vida apds a morte, 0 que os aproxima dos primeiros hebreus. A inumagao cra regra geral ¢ os objetos funerdrios eram modestos; varios timulos continham pequenas mdscaras grotescas em terracota, que, imagina-se, deviam conjurar as influéncias maléficas. Mesmo mais tarde, as cartagineses foram muito menos influenciados pela civilizagdo grega do que os etruscos e os romanos, embora nao fossem total- mente fechados a essa cultura. O culto de Deméter e Perséfone foi oficial- mente instalado em Cartago, mas os cultos tradicionais nunca chegaram a ser totalmente helenizados. Quanto ao panorama artistico, pode-se afirmar que as artes menores revelam poucas influgncias externas, mas os poucas. vestigios do século II indicam que nessa época as influéncias da arquitetura do mundo grego fizeram-se sentir ndo apenas na regido de Cartago (Dar Essafi no cabo Bon), mas também em territério libio (Dougga). O fenicio era empre- gado como lingua literdria, mas nenhum de seus tracos sobreviveu. Sabemos da existéncia de um tratado sobre agricultura escrito por um certo Magon e que foi traduzido para o latim; é claro que Magon utilizou os livros gregos sobre o assunto. Também sabemos de alguns cartagineses adeptos da filosofia grega. Os conflitos com os gregos da Sicilia © periodo de expanséo na Africa e de paz geral que se havia iniciado com © desastre de Himera chegou ao fim em — 410. Os Estados gregos da Sicilia estavam empenhados na aspera luta entre Atenas e Esparta pela supremacia na Grécia. Embora uma expedigio ateniense mandada para a Sicilia termi- masse em desastre total, as conseqiiéncias acabaram por envolver Cartago. A cidade de Segesta, comunidade nativa da Sicilia mas aliada de Cartago, que tinha sido em parte responsdvel pela chegada dos atenienses a ilha e que nessa €poca foi vitima de um forte ataque punitivo feito pela cidade grega de Selinunte, pediu auxilio a Cartago. O apelo foi atendido, provavelmente porque a derrota de Segesta asseguraria o dominio grego, que reduziria as coldnias fenicias a um mero ponto de apoio no oesie da ilha. Além disso, © chefe cartaginés Anibal fez dessa expedigéo uma guerra de vinganga pela derrota em Himera, onde perecera seu avo. © pertodo cartaginés 463 Em — 409, um exército cartaginés formado por cerca de 50 mil merce- narios sitiou Selinunte, tomando-a de assalto no nono dia. Pouco tempo depois, Himera também foi conquistada e totalmente destruida; todos os habi- tantes que n4o conseguiram fugir foram massacrados. Em seguida, Anibal retornou a Cartago e desfez o exército, a que indica que os cartagineses nao tinham por objetivo estender seu territério. E evidente, porém, que a partir dessa data as colénias fenicias da Sicilia, como ocorria com os demais terri- t6rios ocupados, se tornaram de fato uma provincia cartaginesa.. Contudo, em — 406, Cartago foi tentada, pela primeira e tnica vez em sua histéria, a conquistar toda a ilha em resposta aos ataques feitos por alguns siracusanos a seu territério. Um exército ainda mais poderoso foi enviado, e Acragas (Agrigento), a segunda cidade grega mais importante da Sicilia, foi dominada, naquele ano, 0 mesmo acontecendo com Gela, em — 405. Mas Anibal ndo estava em condicGes de coroar suas vitérias com a tomada da prépria Siracusa. Ao que parece, uma epidemia destruiu metade do exército cartaginés, e o novo tirano de Siracusa apressou-se em firmar a paz para consolidar sua ‘prépria posigéo. Os termos do tratado confirmavam a dominagdo cartaginesa sobre o oeste da Sicilia, incluindo diversas comu- nidades sicilianas nativas e os sobreviventes de Selinunte, Acragas e Himera. Com isso, Cartago passou a dominar um territério maior do que o anterior, e também a receber maiores tributos. Além disso, a cidade rompeu 0 isola- mento em que tinha vivido durante a maior parte do século V. A partir dessa data, as importagdes e de maneira geral o comércio com o mundo grego foram retomados, apesar dos freqiientes periodos de guerra. O fato é que nao havia unido entre os gregos, divididos que estavam em numerosas cidades ciosas de sua independéncia. Embora tenham sido feitas varias tenta- vas de coalizéo na Sicilia para expulsar os cartagineses da ilha, essas iniciativas nunca tiveram sucesso, pois tratava-se apenas de manobras oportu- nistas ditadas por interesses particulares de certos Estados ou de seus diri- gentes. Tal foi o caso de Dionisio de Siracusa, que em trés ocasi6es — de — 398 a — 392, de — 383 a — 375 e¢ em — 368 — tentou expulsar os cartagineses. Cada uma foi marcada por um revés: em — 398, por exemplo, a cidade fenicia de Mécia foi tomada e destruida, mas no ano seguinte Siracusa foi ameagada e novamente salva por uma epidemia. Na maior parte do tempo os cartagineses conseguiram manter 0 rio Halycus (Platani) como fronteira oriental de seu territorio. As tropas de mercendrios, embora heterogéneas e recrutadas as pressas, eram em geral sufi- cientes para fazer frente aos hoplitas gregos. Além disso, sua frota era normal- mente superior a dos inimigos. Fato ainda mais significativo, Cartago nunca mais poderia ser isolada do mundo grego. Havia gregos residindo em Cartago @ §ua intervengao chegou a ser solicitada pelos proprios politicos gregos. Desse modo, a cidade niio tardou a ser reconhecida como parte do mundo helénico. Durante a década de — 350, Cartago estava prestes a dominar toda a Sicilia por meios pacificos, pois as dissensdes politicas internas enfraqueciam ainda mais as cidades gregas. A posigio grega sé foi salva pela expedigéio de um idealista, Timoleonte de Corinto. Na batalha do rio Crimisos (— 341), um corpo de elite composto de 3 mil cidadaos cartagineses foi destrufdo. 464 A Africa antiga Essa é tida como a maior derrota sofrida por Cartago e mostra até que ponto a cidade contava com os mercendrios. A propria Africa estava naturalmente imune a destruigio, embora tenha havido uma revolta em — 361/7, que, diz-se, foi facilmente reprimida. Nos anos — 340, um certo Hando tentou um golpe de estado apelando a popu- lagao escrava e as tribos africanas e mouras, mas ao que tudo indica essa tentativa nfo chegou a ameacar seriamente a estabilidade de Cartago. Muito mais grave foi a situacdo enfrentada de — 310 a — 307, época em que Cartago estava engajada numa nova guerra contra Siracusa, entio dirigida por Agétocles. A cidade estava sitiada pelos cartagineses € os gregos fizeram uma tentativa desesperada para reverter a situagio: enganando a frata de Cartago, Agatocles

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