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Colegio Espirito Critico Conselho edicoral: Alfiedo Bosi Antonio Candido Augusto Mass Davi Arriguec Jr Flora Sisckind Gilda de Mello e Souza Roberto Schware Walter Benjamin ESCRITOS SOBRE MITO E LINGUAGEM (1915-1921) Organiza, apresentagio notas Jeanne Marie Gagnebin Tradugao Susana Kampff Lagese Ernani Chaves TAL Livraria TAl_ Duss Cidades editoralill34 Livraria Duas Cidades Leda, Rua Bento Freitas, 158 Centro CEP 01220-000 Sio Paulo SP Brasil livraia@duascidades.com.br Edivora 34 Leda Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 Sto Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3811-6777 www.cdivora34.com.be Copyright © Edivora 34 Lida., 2011 Organizagio, apresentasio e notas © Jeanne Marie Gagnebin, 2011 A fotocépia de qualquer folha deste livroéilegale configura uma apropriagio indevida dos direitos intelecuaiee pattimoniais do auco Capa, projeto grfico e editoragio eletrénica: Bracher & Malta Produsio Grafica Revisor Alberta Martin, Lucas Simone 1¥ Edigdo - 2011, 2" Edigio - 2013 CIP Brasil. Catalogacio-na-Fonte (Gindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Bexjmin, Wal, 1892-1640 Blot Exc sbre mo ngage (1915-1921) ‘Wal Benjamin ongnizao, proentio cps de Jeanne Mare Gignac de Sane Kap Les mani Chaves — So Pu: Das Cade Eeltra 34, 2013 2 Eig} 176. (Calo Epa Cio) ISBN 978.85-23500-43.6 (Due Cis) ISBN 978 95-72264746 Editors 4) ),Flomialemd. 2 Lira - india cen. 1 Gagne, Jenne Mais Lage Susana Kamp I Chae, ini HV. Tal V. Ste cop- 4 Indice Apresentacao, Jeanne Marie Gagnebin 1. Dois poemas de Friedrich Héldeslin Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem .. 3. O idiata de Dostoiéwski 4, Sobre a pintura ou Signo e mancha 5. Destino e cariter 6. tarefa do tradutor 7. Para a critica da violéncia senvansones Léxico remissivo . Sobre os textos.. Obras constltadas.ssstesrsereenee ea Sobre 0 aittor er ata 13 49 75 81 89 101 121 157 162 165 167 Escritos sobre mito e inguagem um povo, nem a de um individuo, nem outra coisa senio essa vida prépria que encontramos no “poetificado” do poema. Essa vida é construida segundo as formas do mito grego, mas —c esse €0 elemento decisivo — nao apenas por elas; precisamente 0 elemento grego encontra-se suprimido na tiltima versio ¢ subs- tituido por um outro que (a bem da verdade, sem uma justifi- cativa explicita) denominamos de oriental. Quase todas as mo- dificagoes da titima versio vio nessa direcio, seja nas imagens, seja na introdugio das ideias e, por fim, na nova significagZo que dada & morte, todos esses elementos elevando-se como ilimi- tados face ao fenémeno que repousa em si mesmo, limitado por sua forma. Que ai se oculte uma questio decisiva, nao apenas para o conhecimento de Hélderlin, €algo que nfo cabe demons- trar no presente contexto. O estudo do “poetificado”, entretan- t0, nao leva ao mito, mas leva apenas — nas obras maiores — as ligagdes miticas que a obra de arte plasma numa figura inica, que no é nem mitolégica nem mitica e que nos ¢ impossivel de conceber de modo mais preciso. Se houvesse palavras para captar a relagio que se estabelece entre 0 mito ea vida interior da qual nasce o tiltimo poema, se riam aquelas que Holderlin escreveu numa obra pertencente a um periodo ainda mais tardio: “As lendas, que da Terra se afastam,/ [..J/ Voltam-se para a humanidade” (“Die Sagen, die der Erde sich entfernen] |. Sie kebren zu der Menschbeit sich"|29 «agis) Traducio de Susana Kamplf Lages 20 Do poema “Der Herbrt”,“O ourono”. (N. da E.) Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem ‘Toda manifestacio da vida espiritual humana pode ser con- cebida como uma especie de linguagem, ¢ essa concepsao leva, em toda a parte, a maneira de verdadeiro mérodo, a novos ques- tionamentos. Pode-se falar de uma linguagem da miisica e da escultura, de uma linguagem da jurisprudéncia que nada tém a ver, imedliatamente, com as linguas em que estao redigidas as sentengas dos tribunais ingleses e alemies; pode-se falar de uma inguagem da técnica que nao €a lingua especializada dos téc cos. Nesse contexto, lingua, ou linguagem,2" significa o princi 2" Uma das dificaldades de teaducio deste texto estd no fato de o alemiio (assim come o latim, o inglés o asso, por exemplo) pertencer as linguas que fa- ‘em uma distingio binéria entre Sprache e Rede, enquanto.o portugués opera com. ‘uma distngio ternéria: “ngua’, “linguagem” c “palavra”. Essa diferencias4o, to- mada de empréstimo ao lingusta E. Coseri, ajuda a entender que o termo Spra- ‘he poss st taduride aqui tanto por “lingua” como por “lingusgem”, dependen- dodo comtexto. O aleanceexpeculativo ¢ ontolégico de Sprache, em sua amplitu- de, merece ser resaltado e pode servi de horizonte para toda a flosofaalem, em Particular aquela do romantismo alemo, tadigio na qual oensaio de Benj se insere, ccupando lugar de destaque. Com eftito, mesmo que a lingua alemt ‘confi ingua humana, isto verbal earticulada, is vias linguasidiomaticas Escritos sobre mito elinguagem pio que se volta para a comunicagio de contetidos espirituais?? nos dominios em questo: na técnica, na arte, na jurisprudéncia ou na religido. Resumindo: toda comunicagao de contetidos es- pirituais é lingua, linguagem, sendo a comunicagéo pela palavra apenas um caso particular: o da comunicagao humana e do que a fundamenta ou do que se funda sobre ela (a jurisprudéncia, a poesia). Mas a existéncia da linguagem estende-se nao apenas a todos os dominios de manifestacao do espirito humano, ao qual, uum sentido eminente (vero verbete Sprache do Deutsches Warterbuch dos irmios Grimm), em conformidade com toda a tadiso filosfica que distingue o homem 4dos outros animais pela posse da linguagem, ela pressupSe uma fungi expressiva nna base dessa linguallinguagem, que no pode se reduida unicamente 3s linguas verbais humanas. Nesse sentido, em alemfo nfo é uma metifora falar da“l dos pssaros” ou da“linguagem da musica”; a0 contrdro, a lingua alema instiga a indagar sobre as rlacdes entre estas “linguagens" e a “lingua humana” (como © faz, por exemplo, Adorno, em seu famoso “Fragment tiber Musik tnd Sprache’ Fragmento sobre miisica linguagem’, in GeammelteSebrifien, vol. 3, pp-251 6.4 fansao expresivae significante da Sprache ajuda também a entender que se possa dizer dos homens que eles tém linguas diferentes, mas, 0 mesmo tempo, possuem a mesma lingua/linguagem, como disse Wilhelm von Humbolde. Deve-se, por fim, abservar que a radu Ja adjetivo o para o portugy sprachlch, Formado a partir do substancivo Sprache, desdobra esas difculdades. Ema amas sitmages, pode ser tradusido por “Tinguistica”, desde que nio se pes 2 riqueza semntica de sua origem, nem se confira peso demasiado ao aspecto té- nico e cientifico da expresso. Via de regra, optou-se por traduzir pela locusio “de linguagem”, para manter 0 seu alcance. Outros traducores, como Marcio Selig ‘mann-Silva (ver Ler o livre de mundo. Walter Benjamin: remantimo ¢ erbica pod ‘e8, Sao Paulo, Hluminuras, 1999), preferram 0 neologismo “lingual” para asi- salar essa dimensio, (N. da E.) brea traducio do termo Geicige seus correlatos, ver nota 9 do ensaio DDois poemat de Friedrich Haldedin”, neste volume. (N. da E.) 50 Sobre a linguagem em geral ¢ sobre a linguagem do homem num sentido ou em outro, a lingua sempre pertence, mas a ab- solutamente tudo. Nao ha evento ou coisa, tanto na matureza animada, quanto na inanimada, que nao tenha, de alguma thie participacio na linguagem, pois é essencial a tudo come nicar seu contetido espiritual. Mas as palavras “lingua” e “lingua gem” nessa acepeZo, no consticuem em absoluto metéforas, O faro de que nao podemos representar para nés mesmos nada que cia espiritual, é um conhecimento pleno de contetido; 0 maior ou menor gratt de conscié realmente) esté ligada em nada altera 0 fato de no podermos nio comunique, através da expressio, sua es ia com qual tal comunicagio aparentemente (ou representar para nés mesmos em parte alguma uma total ausén- cia de linguagem. Uma existéncia que nao tivesse nenhuma re- lagéo com a linguagem é uma ideia; mas nem mesmo no domi- nip daquelasideias que definem, em seu ambito, a ideia de Deus, uma tal ideia seria capaz de sc tornar fecunda, S6 € correto dizer que, nessa terminologia, toda expresso, na medida em que se constitui como comunicagéo de contett- dos espirituais, é atribufda & linguagem. E nao hé diivida de que expresso s6 deve ser entendida, de acordo com sua inteira € mis fntima esséncia, como linguagem; por outro lado, para com- preender uma esséncia linguistica, temos sempre que perguntar deque esséncia espiritual ela éa manifestacio imediata. Isso si em absoluto, a expresso de tudo 0 que podemos — supostamente — expres: nifica que a lingua alemé, por exemplo, n: sar através dela, mas, sim, a expresso imediata daquilo que se comunica dentro dela. Este “se” é uma esséncia espiritual. Com isso, & primeira vista, ¢ evidente que a esséncia espiritual que se comunica na lingua nao é a prépria lingua, mas algo que dela deve ser diferenciado. A visto segundo a qual a esséncia espiti- tual de uma coisa consiste precisamente em sua lingua ou lingua- gem — tal visio, entendida como hipérese, € 0 grande abismo 51 Escritos sobre mito e linguagem 23 ¢ sua no qual ameaca precipitar-se toda teoria da linguagem tarefa € a de manter-se em suspenso, precisamente acima desse abismo. A diferenciagio entre a esséncia espiritual ¢ a ess linguistica, na qual aquela comunica, é a distin¢ao primordial em uma investigagio de carter tedrico sobre a linguagem; ¢ essa diferenca parece ser to indubitével que, ao contro, a identida- de entre a esséncia espiritual ea linguistica, tantas vezes afirma: da, constitui um profundo incompreensivel paradoxo, para 0 qual sc encontrou expressio no duplo sentido da palavra Aéyot, [Logos]. E, no entanto, esse paradoxo, enquanto solugao, ocupa um lugar central na teoria da linguagem, permanecendo para- doxo, e insoliivel, quando colocado no inicio. (O que comunica a lingua? Ela comunica a esséncia espiri tual que Ihe corresponde. F fundamental saber que essa essén. cia espirivual se comunica na lingua e nfo através da lingua. Por- tanto, no hé um aquele que se comunica através dessas linguas. A essencia espiri- tual comunica-se em uma lingua e no através de uma lingua, espiritual, nao inte das linguas, se se entender por falante do exterior, cla, a essen isto quer dizer q € idéntica & esséncia linguistica. A esséncia espiritual s6 é idén- ncia Linguistica na medida em que é comunicavel. O que € comunicavel em uma esséncia espiritual é sua esséncia lin- tica ess guistica, Portanto, a linguagem comunica, a cada vez, a respec- € comunicada na medida em que se encontra imediatamente ncia linguistica das coisas; mas sua esséncia espiritual s6 encerrada em su: comunicével, séncia linguistica, na medida em que ela seja 2 Ou serd antes tencagio de colocar a hipétese no inicio, que constitu o abismo de todo o filosofar? (N, de W. B,) 82 Sobre a linguagom om goral e sobre a linguagem do homem A linguagem comunica a esséncia linguistica das coisas, Masa manifestagio mais clara dessa esséncia ¢ a prépria lingua- gem. A resposta & pergunta “O que comunica a linguagem?” deve ser: “Toda linguagem comunica-se a si mesma”. A lingua- gem desta lampada, por exemplo, néo comunica a limpada (pois a esséncia espiritual da lampada, na medida em que é comuni- civel, no é em absoluto a propria limpada), mas a lampada-lin- guagem, a limpad: mpada-na-expres Pois na linguagem é assim: a eséncia linguistica das coisas é sua linguagem. A compreensio da teoria da linguagem depende da capacidade de levar essa assergio a um grau de clarcza que eli- mine qualquer aparéncia de tautologia. tautolégica, pois significa que aquilo que é comunicavel em uma esséncia espiritual ésua linguagem. Tudo repousa nesse “é” (que a-comunicagio, a a proposigao nao é equivale a dizer “€ imediatamente”). — Nao se trata de dizer que aquilo que em uma esséncia espiritual é comunicdvel se manife ta mais claramente na sua lingua, como acabamos de dizer, de passagem, no inicio deste parigrafo; mas esse elem nicdvel €a linguagem mesma sem mediacées. Dito de outra ma- neira, a lingua de uma esséncia espiricual ¢ imediatamente aqui- Jo que nela € comunicével. Aquilo que é comunicavel en uma esséncia espiritual € aquilo no que ela se comunica; 0 que quer dizer que toda lingua se comunica a si mesma. Ou melhor: toda lingua se comunica em si mesma; ela é, no sentido mais puro, 0 ‘meio (Medium|4 da comunicagao. A caracteristica propria do 4 Medium Miel sto vermos recorrentes na reflexso benjaminiana eas samem particular importancia no presente ens, O segundo tem a significacto de “meio para determinado fim”, caracterza, portant, um contexto instrumen: tal ealude sempre & necessidade de mediagSo. J& 0 primeiro termo, Medium, de signa 9 meio enquanto matéria, ambiente ¢ modo da comunicasao, sem que soja 53 Escritos sobre mito e inguagem ‘meio, isto é, a imediatidade de toda comunicagio espiritual, é 0 problema fundamental da teoria da linguagem, e, se quisermos chamar de magica essa imediatidade, entio o problema originé- rio da linguagem sera a sua magia. Ao mesmo tempo, falar da magia da linguagem significa remeter a outro aspecto: a seu ca- iter infinito, Este é condicionado por seu caréter imediato. Pois -nte porque nada se comunica através da lingua, aqui- lo que se comunica na lingua nao pode ser limitado nem med do do exterior, ¢ por isso em cada lingua reside sua incomensu- ravel, €inica em seu género, infinitude. E a sua esséncia linguis- tica, e nio seus contetidos verbais, que define o seu limite. A cesséncia linguistica das coisas é a sua linguagem; aplica- da ao ser humano, essa afirmasio significa que a esséncia lin- guistica do ser humano é sua lingua. Isso quer dizer que o ho- mem comunica sua propria esséncia espiritual na sua lingua. Mas a lingua do homem fala em palavras. Portanto, a ser humano comunica sua prépria esséncia espiritual (na medida em que ela seja comunicével) a0 nomear todas as outras coisas. Mas conhe- cemos outras linguagens que nomeiam as coisas? Que nao se faca aqui a objecéo de que nao conhecemos nenhuma outra lingua- gem que nio seja a do homem, pois isso nao é verdade. O que ‘no conhecemos fora da linguagem humana é uma linguagem nomeadora; ao identificar linguagem nomeadora e linguagem em geral, a teoria da linguagem acaba por pri precis se de suas percep. Possivl estabelecer com ele uma relacSo instrumental com vista a um fim exte lade (Un ‘inelbarkeit). Como a palavra “meio” em portugués ndo distingue entre as duas rior; por isso mesmo, para Benjamin, indica uma relagio de imediat acepgbes, a tradugdo optou por grafar meio em itdlico, sempre que se tratar de Medion, ¢ sem grifo, quando Mitt. Vale notat ainda que o uso que o autor faz do termo Medium nio se confunde com seu emprego atual no plural, tal como ‘ocorre na Medientheore (Teoria dos mia). (N. da E.) 54 ‘Sobre a linquagem em geral e sobre a linguagem do homem es mais profundas. — Portanto, a eséncia lingutstica do homem std no fato de ele nomear as coisa. Para qué nomear? A quem se comunica o homem?— Mas serd essa questdo, no caso do homem, diversa da de outras formas de comunicagio (linguagens)? A quem se comunica a limpada? A quem, a montanha? E a raposa? — Aqui a resposta é: a0 ho- mem. Nao se trata de antropomorfismo. A verdade dessa tespos- ta se ceixa ver no conhecimento e, talvez também, na arte. E ais: ea limpada e a montanha e a raposa nao se comunicas- sem ao homem, como poderia ele nomeé-las? No entanto, ele as nomeias ele se comunica ao nomeé-las. A quem ele se comunica? ‘Antes de responder a esta pergunta, deve-se examinar no- vamente a questo: como se comunica o homem? Deve-se esta bclecer aqui uma diferenca clara, colocar uma alternativa diante da qual, seguramente, uma concepgio da linguagem essencial- mente falsa seja desmascarada, Sera que 0 homem comunica a sua esstncia espiritual através dos nomes que ele dé as coisas? Ou nos nomes? O paradoxo da questo contém a sua resposta. Quem acredita que o homem comunica sua esséncia espiritual através dos nomes, ndo pode, por sua ver, aceitar que seja a sta esséncia «spiritual o que ele comunica, pois isso nao se dé através de no- mes de coisas, isto é, ndo se dé através das palavras com as quais cle designa uma coisa. Por sua vez, pode accitar apenas que co- munica alguma coisa a outros homens, pois isso se dé através da palavra com a qual eu designo uma coisa. Tal viséo €a concep- ao burguesa da linguagem, cuja inconsisténcia ¢ vacuidade de- vem resultar cada vez mais claras, a partir das reflexGes que fare- mos a seguir. Essa visio afirma que o meio [Mittell da comuni- cacao ¢ a palavra; seu objeto, a coisa; seu destinatério, um ser humano. J4 a outra concepgio nfo conhece nem meio, nem ob- jeto, nem destinatério da comunicagao. Ela afirma que no nome a esséncia espiritual do homem se comunica a Deus. Escritos sobre mito elinguagem No ambito da linguagem, o nome possui somente esse sen- tido © essa significagao, de um nivel incomparavelmente alto: ser a esséncia mais intima da prépria lingua. O nome é aquilo aera ésdo qual nada mais se comunica, e em que a propria lingua se comunica a si mesma, e de modo absoluto. No nome, a essén ingua. Somente onde a essén- cia espiritual que se comunic cia espiritval em sua comunicagio for a prépria lingua em sua absoluta totalidade, somente ali estard o nome e léestaré o nome somente. Assim, como parte do legado da lingu © nome garante que a lingua & pura e simplesmente a esséncia es- gem humana, piritual do homem; ¢ é somente por isso que o homem é entre todos os seres dotados de espitito, o tinico cuja esséncia espiri- tual é plenamente comunicivel. E isso que fundamenta a dife- renga entre a inguagem humana ea linguagem das coisas. Mas cia espiritual do homem é a lingua mesma, ele nao como ae pode se comunicar através dela, mas apenas dentro dela. O nome éa.condensagio dessa toralidade intensiva da lingua como essén- piritual do homem. O homem é aquele que nomeia, nisso ua. Toda natu: reconhecemos que por sua boca fala a pura Is reza, desde que se comunica, se comunica na lingua, portanto, em tiltima instancia, no homem. Por isso, ele é 0 senhor da na- tureza € pode nomear as coisas. E somente através da esséncia linguistica das coisas que ele, a partir de si mesmo, alcanga 0 conhecimento delas — no nome. A criacio divina completa-se no momento em que as coisas recebem seu nome do homem, a partir de quem, no nome, somente a lingua fala. Pode-se de- signar o nome como a lingua da lingua, a linguagem da lingua- gem (desde que o genitivo nfo designe uma relagao de “meio” (Mitte, mas de “meio” (Medium), e, nessc sentido com certe- a, por que ele fala 0 nome, o homem é 0 falante da linguagem € por isso mesmo, seu tinico falante. Ao designar o homem como “aquele que fala” (que é evidentemente, segundo a Bib! Sobre a linguagem em goral e sobre a linguagem do homem “Aquele-que-dé-nome”: “e como © homem daya nome a todos 0s tipos de animais vivos, assim estes deviam se chamar”),2) mui- tas linguas abrigam esse conhecimento metafisico, Contudo, o nome nao é somente a tiltima exclamagio; € também a verdadeira interpelagio da linguagem. Com isso, apa- Fece no nome a lei essencial da linguagem, segundo a qual ex- pressar-se a si mesmo ¢ interpelar todas as outras coisas so um 56 movimento. A linguagem — e nela, uma esséncia espiritual — nio se exprime de modo puro seno quando ela fila no nome, quer dizer, na nomeacao universal. Assim, no nome culminam a totalidade intensiva da lingua como esséncia absoluramente comunicivel, ¢ a toralidade extensiva da Iingua como esséncia universalmente comunicante (que nomeia). A linguagem seri imperfeita em sua esséncia comunicante, em sua universalidade, quardo a esséncia espiritual, que fala a partir dela, nao for, em todaa sua estrutura, algo linguistico, ista é, algo comunicével. Somente 0 homem possui a linguagem perfeisa do ponto de vista da universalidade e da intensidade. A partir de tal conhecimento, ¢ posstvel formular, sem tis- co de equivoco, uma questo que possui certamente a mais alta importincia metafisica, mas que aqui deverd ser apresentada com toda clareza, em primeiro lugar, como questo terminolégica. Trata-se de saber se, do ponto de vista de uma teoria da lingua- gem, deve-se definir toda esséncia espiricual como linguistica — nao apenas a do ser humano (pois no seu caso isso se dé neces- sariamente), mas também a esséncia das coisas e, com isso, toda € qualquer esséncia espiritual em geral. Se a esséncia espiritual Géness, 2, 19. No origina, Benjamin cita a Biblia de Lutero: “wie der Mensch allele lebendige Tiere nennen witrde, so sllten sc hessen” (grifo do autor) (N. da) 37 Escritos sobre mito e inguagem for idéntica a esséncia linguistica, a coisa é, em sua esséncia es- Piritual, © meio da comunicagio, e aquilo que nela se comunica —em fungio desse seu estatuto de meio — precisamente esse proprio meio (a linguagem). Assim, a linguagem é a esséncia es- Pititual das coisas. A esséncia espiritual, portanto, & colocada desde 0 principio como comunicével, ou melhor, colocada jus- tamente na comunicabilidade, e a tese segundo a qual a essén- cia linguistica das coisas é idéntica a sua esséncia espiritual, en- quanto esta ¢ comunicével, torna-se, com este “enquanto”, uma autologia. Nao hd um conterido da lingua, ou da linguagem; en- quanto comunicagao a linguagem comunica uma esiéncia espri- tual, ito é uma comunicabilidade pura e simples. As diferencas entre linguagens sao diferencas entre meios que se diferenciam, por assim dizer, por sua densidad, gradualmente, portanto; ¢ isso tanto do ponto de vista da densidade daquele que comunica (@ que nomeia) quanto do comunicivel (0 nome) na comuni- cacao, Essas duas esferas, perfeitamente distintas, e no entanto uunidas na lingua nominal do homem, no cessam obviamente de se corresponder. Para a metafisica da linguagem, essa equiparacio entre es- séncia espiricual esséncia linguistica, a qual s6 conhece diferen- sas de grau, produz uma gradacio de todo 0 ser espiritual. Essa sradago, que ocorre no interior da propria esséncia espiritual, nio se deixa apreender por nenhuma outra categoria superior, ¢ conduz.consequentemente a uma gradagio de todas as esséncias, tanto espirituais como linguisticas, segundo graus de existéncia ou de ser, como aqueles familiares & escoléstica medieval no que diz respeito as esséncias espirituais. Mas se essa equiparacao en- tte esséncia espiritual e esséncia linguistica tem, do ponto de vista de uma tcoria da linguagem, um alcance metafisico tio grande € porque conduz aquele conceito que sempre voltou a se desta- cat, por sis6, no centro da filosofia da linguagem e que estabe- Sobre a linguagem em geral e sobre a linquagem do homem Jeceu armais intima ligagio entre esta ea filosofia da religido, Este €0 conceito de revelacio. — No interior de toda configuracéo linguisica reina 0 conflico do expresso e do exprim{vel com 0 inexprimivel eo inexpresso. Ao considerar esse conflito, vislum- bra-se na perspectiva do inexprimivel, simultaneamente, a tl ma essincia espiritual. Ora, € claro que equiparar a esséncia es- piritual & esséncia linguistica implica contestar essa relagio de proporcionalidade inversa entre ambas. Pois a tese aqui é a de que quanto mais profundo, isto é quanto mais existente ¢ real for o espirito, tanto mais exprimivel e expresso; nesse sentido, proprio dessa equiparagio tornar absolutamente univoca a rela- fo entre espirito ¢ linguagem, de modo que aquilo que existe com mais forca na linguagem, aquilo que esta melhor estabele- ido, aquilo que é, em termos de linguagem, mais pregnante e inarredivel, em suma, o que mais se exprime, € a0 mesmo tem- poo espiritual em sua forma pura. E exatamente isso que signi- fica 0 conceito de revelagio, quando toma a intangibilidade da palavra como condigo tinica e suficiente—e a caracteristica éncia espiritual que nela se exprime. O do cariter divino da es mais alto dominio espiritual da religiéo é (no conceito de reve- Jaco) também o tinico que nao conhece o inexprimivel, Pois este é convocado no nome e se diz. como revelagio. Ora, 0 que as- sim se anuncia € que s6 a esséncia espiritual mais elevada, tal como ela se manifesta na religido, repousa puramente sobre 0 homem e sobre linguagem no homem, a0 passo que toda arte, poesia, nao repousa sobre a quintesséncia do espirito inclusi da linguagem, mas repousa sobre o espitito linguistico das coi- sas, ainda que em sua perfeita beleza. “Linguagem, a mie da ra- zo € da revelagao, seu alfa e 6mega”, diz Hamann. Alinguagem mesma nio se encontra expressa de modo per- feito nas coisas enquanto tais. Essa proposi¢ao possui um senti- do duplo, caso seja entendida de modo figurado ou concreto: as Escritos sobre mito e linguagem linguas dos objetos sio impetfeitas, ¢ eles so mudos. As coisas & negado o puro principio formal da linguagem que é o som. Elas 86 podem se comunicar umas com as outras por uma comuni- dade mais ou menos material. Essa comunidade é imediata e infinita como a de toda comunicas linguistica; ela é magica (pois tam hd uma magia da matéria). O que ¢ incomparé- vel na linguagem humana é que sua comunidade magica com as coisas ¢ imaterial e puramente espiritual, e disso 0 simbolo é 0 som. A Biblia exprime esse fato simbélico quando diz. que Deus insuflou no homem 0 sopro: que é, ao mesmo tempo, vida e espfrito e linguagem, Ao se considerar a seguir, com base nos primeiros capitu los do Gnesi, aesstnca da fee eae linguagem, no se pretende realizar uma interpretacéo da Biblia, nem colocar aqui a Biblia, objeti- vamente, enquanto verdade revelada, como base para nossa re- flexo, mas sim indagar o que resulta quando se considera 0 texto hiblico em rela wager; ea Biblia 6, de inicio, indispensivel para este projeto apenas porg & prépria natureza dali reflexGes a seguem em seu principio, que ¢ 0 de pressupor a lin- gua como uma realidade iltima, inexplicivel e mistica que s6 po- de ser considerada em seu desenvolvimento. Considerando a si mesma como revelacio, a Biblia deve necessariamente desenvol ver os fatos linguisticos fundamentais. — A segunda versao da hist6ria da Criagao, que fala do sopro insuflado no homem, re- lata simultaneamente que o homem foi feito de terra. Essa é, em toda a hist6ria da Criacio, a tinica passagem em que se fala da matéria na qual 0 Criador expressa a sua vontade; uma vontade que em outras passagens é sempre concebida como sendo imedia. tamente criadora. Nessa segunda hist6ria da Criacio, a criacdo do homem nao se dé pela palavra (Deus disse — e assim se fez), mas a esse homem que ndo foi criado a partir da palavra é con- ferido agora o dom da lingua, que o eleva acima da natureza 60 Sobre-a linguagem om goral@ sobre a linguagem do homem Ora, essa singular revolucio do ato criador no que diz res- mente clara na peito ao homem esté reg primeira histéria da Criagio, Em um contexto bem diferente, ‘encontra-se também, de modo igualmente determinado, a cor: ntre o homem ea linguagem telagao especial que se estabelece a partir do ato da Criagao. A variedade ritmica dos atos criado- res do primeiro capitulo deixa perceber, porém, uma espécie de molde bésico do qual somente a criagio do homem se destaca de modo significativo. E bem verdade que nao se trata nunca, de uma relagio nem no caso do homem, nem no da natur cexplicita com a matéria a partir da qual foram criados; e nfo € possivel determinar se as palavras “ele fez” implicam uma cria- (Gioa partir da matéria. Mas o ritmo da criagio da natureza (con forme Génesis, 1) é: Hi le fez (criou) — Ele chamou. — Em alguns atos criadores (1, 3; 1, 14) intervém unicamente 0 “Hija”. Nesse “Haja” e no “Ele chamou”, no inicio e no fim dos atos, aparece, a cada vez, a profuunda ¢ clara relagao do ato cria- dor com a linguagem. Este comega com a onipoténcia criadora da linguagem, e ao final a linguagem, por assim dizer, incorpo- ra asi criado, ela o nomeia. Ela é aquilo que cria, e perfaz, ela iador por ser palavra, ¢ € palavra e nome. Em Deus 0 nome apalavra de Deus é saber por ser nome. “E Deus viu que isso era isto é ele o conheceu pelo nome. A relagio absoluta do nome com o conhecimento 56 existe em Deus, s6 nele o nome, porque ¢ intimamente idéntico a palavra criadora, €0 puro meio do conhecimento. Isso quer dizer: Deus tornou as coisas cognos- civeis a0 Ihes dar nomes. Mas 0 homem sé nomeia as coisas na medida em que as conhece. Com a criagao do homem, o ritmo terndrio da criagao da natareza dé lugar a uma ordem inteiramente outra. A linguagem tem aqui, por conseguinte, outra significacao; 0 aspecto terndtio clara- do ato ¢ mantido, mas o paralelismo ressalta ainda mai 61 Escritos sobre mito ¢ linguagem mente a distancia; no triplo “ele criou” do versiculo 1, 27, Deus nao criou o homem a partir da palavra, ¢ cle nao. 0 nomeou.26 Deus nao quis submeté-lo a linguagem, mas liberou no homem a linguagem que lhe havia servido, a ele, como meio da Criagao. Deus descansou apés depositar no homem seu poder criador. Privado de sua atualidade divina, esse poder ctiador converteu- -se em conhecimento. O homem é aquele que conhece na mes- ma lingua em que Deus cria. Deus criou © homem & sua ima gem, criou aquele que conhece & imagem daquele que cia. E por isso que, quando se diz que a esséncia espiriual do homem €a linguagem, essa frase precisa de uma explicacio. spiritual ¢ a lingua ocorreu na palavra, ¢ a esséncia linguistica de Deus é a palavra Toda linguagem humana ¢ tao s6 reflexo da pal: Onor gem em que ocorreu a Criagéo, A Criagio ra no nome, canga tio pouco a palavra quanto o conhecimento, a Criagio. A infinitude de toda linguagem humana petmanece sempre de natureza limitada e analitica em comparagso com a ra divina. A imagem mais profunda dessa palavra divina — 0 ponto em que a lingua do homem participa mais intimamente da in- finicude divina da pura palavra, 0 ponto em que essa lingua nio pode se tornar nem palavra finita e nem conhecimento — é 0 nome humano. A teoria do nome préprio é teoria do limite da linguagem finita em relagao a linguagem infinita. Dentre todos os seres, o homem é 0 tinico que dé ele mesmo um nome aos seus infinitude absoluta, ilimitada e criadora da p: semelhantes, assim como ele é 0 tinico a quem Deus no no- meou. Talvez seja ousado, mas decerto nao imposstvel,, presente contexto a segi nda parte do versiculo 2, 20: 0 homem 2 Genesis 1,27: “Deus cron o homem sua imagem, imagem de Deus ele o criow,/ homem ¢ mulher ee os cru", na tradugso da Biblia de Jerusalém. (dE) 8 Sobre a linguagem em goral e sobre a linguagem do homem deu nomes a todos os seres, “mas, para 0 homem, nao encon- trou a auxiliar que Ihe correspondesse”. Como de resto Adio, assim que a recebe, dé um nome a sua mulher (Zha,2” no segun- do capitulo; Eva, no terceiro), Com a doagio de um nome, os pais consagram seus filhos a Deus; a0 nome que eles dio nesse io etimol6gico ato no corresponde — no sentido metafisico, —nenhum conhecimento, uma vez que é por ocasiio do nasci- mento que dio nome a seus filhos. Para um espirito rigoroso, nenhum homem deveria corresponder a seu nome (segundo seut significado etimolégico), pois o nome préprio € palavra de Deus em sons humanos. Esse nome garante a cada homem sua do por Deus ¢, nesse sentido, ele mesmo € criador, como a sa- bedoria mitolégica bem exprime na visio (alids, nada rara) de que o nome de um homem é seu destino. O nome préprio é 0 que 0 homem tem em comum com a palavra criadora de Deus. (Esse no € 0 tinico caso, e 6 homem conhece ainda uma outra comunidade linguistica com a palavra divina.) Pela palavra 0 homem esté ligado & linguagem das coisas. A palavra humana é ‘0 nome das coisas. Com isso, nao vigora mais a concepgao bur- gues da lingua segundo a qual a palavra estaria relacionada & coisa de modo casual e que ela seria um signo das coisas (ou de seu conhecimento), estabelecido por uma convengao qualquer. A linguagem nao fornece jamais meres signos. Mas a refuragio ide da teoria burguesa da linguagem por parte da teoria mistica é igualmente equivocada. Pois segundo esta, a palavra é por defi- nigio a esséncia da coisa. Isso é incorreto, pois a coisa enquanto tal nio tem nenhuma palavra; criada a partir da palavra de Deus, cla éconhecida em seu nome pela palavra do homem, Esse co- nhecimento da coisa nio é, contudo, uma criagio espontinea, 77 0 cermo isha 6, em hebraico,o feminino deh, homem. (N. da E.) @ Escritos sobre mito e linguagem cle nfo acontece a partir da linguagem de maneira absolutamente ilimitada e infinita, como ocorre na Criagio; 0 nome que o ho- mem atribui & coisa repousa sobre a maneira como cla se comu nica a ele. No nome a palavra divina nao continua criadora; ela se torna em parte uma receptividade ativa, uma receptividade que concebe, ainda que tal concepgio seja de linguagem. Essa re- ceptividade responde & linguagem das coisas mesmas, das quais, divina se irradia, sem som, na magia muda por sua ver, a palav da natureza, Para designar conjuntamente essa receptividade ¢ essa es pontaneidade tal como elas se encontram nessa conexo tinica em seu género, que ocorre apenas no dominio linguistico, a lin- ‘gua possui sua palavra prépria, e esta vale também para aquela receptividade do que nio tem nome no nome. Ea tradu linguagem das coisas para a linguagem do hon fundamentar o conceito de traducio no nivel mais profundo da teoria linguistica, pois ele possui alcance e poder demasiado am- plos para ser tratado de uma maneira qualquer num momento em. E necessario posterior, como algumas vezes se pensa. Tal conceito adquire sua plena significagio quando se percebe que toda lingua superior (com excegio da palavra de Deus) pode ser considerada como tradugio de todas as outras. Gracas & relacao acima menciona- da entre as linguas como uma relacio entre meios de diferente densidade, dé-se a traduzibilidade das linguas entre si. A tradu «fo é a passagem de uma lingua para outra por uma série conti- ies continuas de metamorfoses, endo nua de mecamorfoses regiGes abstratas de igualdade e de similitude, ¢ isso que a tra dugéo percorre. Traduzir a linguagem das coisas para a linguagem do ho- mem nao consiste apenas em traduzir 0 que é mudo para o que €sonoro, mas em traduzir aquilo que nao tem nome em nome. ‘Trata-se, portanto, da tradugo de uma lingua imperfeita para 64 Sobre a linguagem em gerale sobre a linguagem do homem uma lingua mais perfeita, e ela no pode deixar de acrescentar algo, 0 conhecimento. Ora, a objetividade dessa tradugio esti gitantida em Deus. Pois Deus criou as coisas e nelas a palavea ctiadora é 0 gérmen do nome que conhece, da mesma forma como Deus também, ao final, nomeava cada coisa apés té-la eri do, Mas evidentemente essa nomeacao constitui somente @ €X= pressio da identidade, em Deus, entre a palavra criadora € 0: No me que conhece, ¢ nao a solugio antecipada para aquela re que Deus atribui expressamente ao préprio homem: nomeara coisas. Recebendo a lingua muda e sem nome das coisas ¢ trans= pondo-a em sons, nos nomes, o homem solve essa tarcfa, Mas essa tarefa seria insoliivel se a lingua nomeadora do home! Ifagua sem nome das coisas nio tivessem uma proxi parentesco em Deus, oriundas da mesma palavra criadora, tor nada, nas coisas, comunicago da matéria em uma comunidade magica, e, no homem, linguagem do conhecimento e do nome em um eapfrito bem-aventurado, Diz Hamann; “Tudo v que, ig principio, o homem ouviu, viu com seus olhos (...] e tocou com suas maos, era [...] palavra viva; pois Deus era a palavra, Com essa palavra na boca ¢ no coragao, a origem da linguagem foi ti natural, tio préxima ¢ facil como uma brincadeira de criang Em seu poema “O primeiro despertar de Adio e suas primeitas noites bem-aventuradas”, o pintor Miiller?® apresenta Deus in citando homem a dar nomes as coisas, nesses termos: “Homem, de terra, aproxima-te e, contemplando, torna-t P ate m s perfeito, tarna-te mais perfeito pela palavral”. Neste nexo. entre conteme ph Jo © nomeagéo a mudez comunicante das coisas (e dos ani mais) estd intimamente voltada para a linguagem verbal do ho= mem, a qual a acolhe no nome, No mesmo capitulo do poema, Trata-se de Friedrich Miller (1749-1825), conhecido excrtor « anit Escritos sobre mito e linguagem brota do poeta o conhecimentd de que somente a palavra a par- tir da qual as coisas foram criadas permite ao homem nomeé-las; palavra que se comunica, ainda que mudamente, nas virias Is guas dos animais, através da seguinte imagem: Deus faz. um si- nal aos ani is para que eles, um a um, se apresentem ao ho- mem para serem nomeados, Assim, de modo quase sublime, a comunidade ling imagem do sinal. stica entre a criagio muda e Deus é dada na ‘Como a palavra muda, na existéncia das coisas, estd infini- tamente longe, ¢ abaixo, da palavra que, no conhecimento do homem, nomeia, por sua vez, esta palavra estd também longe da palavra criadora de Deus — eis af o fundamento da pluralida- de das linguas humanas. A linguagem das coisas pode adentrar ‘aguela linguagem do conhecimento e do nome somente na tra- dugio — hé tantas traduges quanto linguas desde que o homem caiu do estado paradisiaco, que conhecia uma sé lingua. (Se bem que, segundo a Biblia, esa consequéncia da expulsdo do parat- so 86 ird se verificar mais tarde.) A lingua paradisfaca do homem deve necessariamente ter sido a do conhecimento perfeito, a0 passo que mais tarde todo 0 conhecimento se diferencia, ainda uma vez, ao infinito na multiplicida le da linguagem, ¢ devia se diferenciar, num nfvel inferior, enquanto ago no nome de modo geral. Que a lingua do paraiso tenha sido a lingua do co- nhecimento perfeito é algo que nem mesmo a existéncia da ér- vore do conhecimento pode dissimular. Suas magas deveriam proporcionar o conhecimento daquilo que é bom daquilo que € mau. Mas no sétimo dia Deus jé 0 reconhecera com as p: “e era muito bom”.? O conhecimento para o vras da criaga ” Genesis, 1, 31: “Deus viu tudo 0 que tinha feito: ¢ era muito bom”, na tradugdo da Biblia de Jerusalém, a passager refere-se ao sexto dia, € ni a0 séti- mo, come observa o autor. (N. da E) 86 Sobre 2 linguagom em goral e sobre a inguagem do homem qual a serpente seduz, 0 saber sobre o que é bom € 0 que émau, nio tem nome. Ele é, no sentido mais profundo, nulo; ¢ esse saber ¢ justamente ele mesmo o tinico mal que o estado para- disfaco conhece. O saber sobre o que é bom ¢ 0 que é mau no tema ver com o nome, é um conhecimento exterior, a imitagio nio criativa da palavra criadora. Nesse conhecimento, o nome sai de si mesmo: 0 pecado original é a hora de nascimento da palavra humana, aquela em que o nome nio vivia mais intacto, aquela palavra que abandonou a lingua que nomeia, a lingua que pode-se dizer: abandonou a sua prépria magia ima- nente para reivindicar expressamente seu cariter magico, de certo modo, a partir do exterior. A palavra deve comunicar alguma coisa (afora si mesma). Esse é realmente pecado original do o linguistico. A palavra que comunica do exterior, expres- samente mediada, é de certa forma uma parddia da palavra ime- diata, da palavra criadora de Deus; é também a queda do espiti- to admico, do espitico lingufstico bem-aventurado, que se en- contra entre ambos. Pois hi, de fato, entre a palavra que conhe- ce « bem eo mal, segundo a promessa da serpente, ¢ a palavra que comunica do exterior, uma identidade fundamental. O co- nhecimento das coisas repousa no nome; mas o conhecimento do bem e do mal é— no sentido profundo em que Kierkegaard centende este termo — uma “tagarelice”, ¢ este s6 conhece uma purificagao e uma elevagio (a que também foi submetido 0 ho- , 0 pecador): 0 tribunal. Realmente, para a palavra mem tagar que julga, 0 conhecimento do bem e do mal é imediato. Sua magia € diferente da magia do nome, mas é igualmente magia. Essa palavra que jullga expulsa os primeiros homens do paraiso; eles mesmos a incitaram, em conformidade com uma lei eterna segundo a qual essa palavra que julga pune seu proprio desper tar como a tinica, a mais profunda culpa — e ¢ isso que cla es- pera. No pecado original, em que a pureza eterna do nome foi 87 Escritos sobre mito ¢ linguagem lesada, jeu-se a putreza mais severa da palavra judicante, do julgamento. Para pensar 0 nexo essencial da linguagem, o peca door nal possui triplice significagao (para nao mencionar aqui sua significagao mais corriqueira). Ao sair da pura linguagem do nome, o homem transforma a linguagem em meio (a saber, meio para um conhecimento que nao Ihe ¢ adequado), com isso a transforma também, pelo menos em parte, em mero signo; dai, mais tarde, a pluralidade das Iinguas. O segundo significado do pecado original é que a partir dele se ergue — enquanto resti- tuigio da imediatidade do nome, que nele foi lesada — uma nova imediatidade, a magia do julgamento, que néo mais re pousa feliz.em si mesma. O terceiro significado, que se pode ar riscadamente supor, seria o de que também a origem da abstra- ‘go enquanto capacidade do espirito linguistico deveria ser bus- cada no pecado original. Pois o bem ¢ o mal se mantém, sem nome ¢ sem poderem ser nomeados, fora da linguagem que no- meia, aquela linguagem que o homem abandona precisamente no abismo desse perguntar. Ora, com relacio a linguagem exis tente, 0 nome fornece apenas 0 solo no qual seus el cretos se enraizam, Mas nentos con- 08 elementos abstratos da lin; iagem — talvez seja licito supor — tém suas raizes na palavra judicante, no julgamento. A imediatidade™ (ora, essa é a raiz lingufstica) da comunicabilidade prépria & abstracio reside no veredicto ju dicial. Essa imediatidade na comunicacao do abstrato instalou -se como juidicante quando o homem, pela queda, abandonou a imediatidade na comunicas0 do conereto, isto é,0 nome, e cai ® No original, os termos empregados nesta passagem guardam semelhan. as fonéticas que no podem ser reproduzid ‘ podem ser reproduzida portugues: a saber, Unmitiel: boarkeit (imediatidade), Mistilbarkeit(comvunicablidade), Mittlbarkeit (caster mediado), Mittilung (comanicagio) e Mitt! (meio). (N. da E 88 Sobre 8 inguagem em goral » sobre a linguagem do homem no abismo do carter mediado de toda comunicagio, da palavea como meio, da palavra va, no abismo da tagarelice. Pois — é preciso repetir ainda uma vez — a pergunta sobre o bem eo mal no mundo depois da Criagio foi tagarelice. A rvore do conhec ‘mento nao estava no jardim de Deus pelas informages que even- tualmente pudesse fornecer sobre o bem ¢ 0 insignia do julgamento sobre aquele que pergunta. Essa mons- trucsa ironia é 0 sinal distintivo da origem mitica do Direito. Depois da queda, que, 20 tornar a lingua mediada, langou base para sua pluralidade, nao era preciso mais que um paso 3 confusio entre as linguas. Como os homens ha- viam ferido a pureza do nome, bastava apenas o distanciamento através da qual sua linguagem daquela contemplacao das coi n, para roubar aos homens a base comum do ecessariamente se con- adentra o hom espitito linguistico jé abalado. Os signos fundem, lé onde as coisas se complicam. A servidio da tagarelice segue-se a servidio das coisas na doidice quase como consequéncia inevitével. Nesse distanciamento das coisas, que foi a serviddo, surgiu o plano da construgio da torre de Babel e, com cla, a confusio entre as linguas. A vida do homem no puro espitito da linguagem era bem- aventurada. Mas a natureza € muda. Pode-se perceber com cla- rera, no segundo capitulo do Génesis, que essa mudez, nomeada pelohomem, tomou-se cla prdpria uma beatitude, ainda que de grau inferior. No poema do pintor Miiller, Adio diz a respeito dos animais que o deixam depois de terem sido nomeados: “e pelanobreza com que se afastavam de mim, vi que o homem Ihes dera um nome”. Mas depois do pecado original, com a palavra de Deus que amaldigoa a lavoura, 0 aspecto da natureza altera- se profundamente. Agora principia aquela outra mudez a que aludimos ao falar da tristeza profunda da natureza. E uma ver- dade metafisica que toda a narureza comegaria a se queixar se lhe 69 Escritos sobre mito e linguagem fosse dada uma lingua. (Sendo que “dar uma lingua” ébem mais do que “fazer com que seja capaz de falar”.) Essa frase tem sen- tido duplo: em primeiro lugar, significa que a natureza iria se queixar da lingua mesma. Ser priv ida de linguagem: esse & 0 grande sofrimento da natureza (e ¢ para redimi-la que a vida ea linguagem do homem esti na natuteza, ¢ nao apenas, como se supe, a vida © a linguagem do poeta). Em segundo lugar, essa afirmagao quer dizer: a natureza iria se lamentar. Mas lamen: to a expressio mais indiferenciada, mais impotente da lingua gem: ele contém quase s6 0 suspiro sensivel; e basta um rumor de folhagem para que ress0¢ j ‘0 um lamento, Por ser muda, 3! Mas &a inversio dessa frase que penetra ainda mais fundo na esséncia da natureza: é a tristeza da anatureza € triste e se enluta "No original, “Weise sun it erauere die Naru” © ver truer Singuindo-se de Traurghi, que no alemo correntedesigna a tristeza em ger), fica por Freud entre Trauer e Melancholi. Em seu livro Unpru Trauenpiels (1928), traluido por Sergio Paula Rouanet(Origem do drome bar reco slemio, So Paulo, Brasiliens, 1984), Benjamin enftiza a rlago de Trauer com a eaducidade, a trtera © mone, em oposigfo 20 modelo cisco da tage dia (Trade). Para ele, teatro batraco (Trewerpiel sexi uma jogo (Spi, uma encenagfo do luto (Trav) dai a proposta de Haroldo de Campos detraduz-lo por “lu-ldio A din da wistexa da Natures, presente neste ensioe também na ilosoia da misica de Adorno, remete a um estado de lito da Natureza apés a queda e 9 fim do Paraiso portanto, a uma narrativa biblica que serve de referéncia conceitual para devolver Naturera uma dgnidade oncoligicasubjetva. Quando o homem, cexpulo do Paras, nio consegue mais reconhecer, através do nome, a significa ssencial e boa da Natureza, masa transforma num objeto aser dominado ¢ cexplorado, a Natureza é condenads a siléncio e ao luto. (N. da E:) 2 Sobre a linguagem em geral e sobre @ linguagem do hamem natureza que a emudece. Em todo luto, hé uma profunda inci nagdo para a auséncia de linguagem, o que é infinitamente mais do que uma incapacidade ou uma aversio a comunicar. Assim, aquilo que ¢ triste sente-se conhecido de parte a parte pelo in- cognoscivel. Ser nomeado — mesmo quando aquele que nomeia é semelhante aos deuses ¢ bem-aventurado — talvez continue sempre a ser um pressigio de tristeza. Tanto mais por esse nome no provir daquela Ginica, bem-aventurada ¢ paradisiaca lingua- ‘gem dos nomes, mas das centenas de linguas humanas nas quais © nome jé murchou € que, no entanto, segundo a sentenga de Deus, conhecem as coisas. As coisas nao tém nome préprio a no ser em Deus. Pois, certamente, na palavra criadora, Deus as cha- ‘mou por seu nome préprio. Em contrapartida, na linguagem dos homens, elas esto sobrenomeadas. Na relagio entre as linguas humanas ea das coisas ha algo que se pode designar, de manei- raaproximada, como “sobrenumeayau”, fundanienvo linguistice mais profundo de toda tristeza ¢ (do ponto de vista da coisa) de fstica da tristeza, a todo emudecimento. Como esséncia ling sobrenomeagio remete a um outro aspecto curioso da lingua- gemza excessiva determinacdo que vigora na trdgica relacio en- tre as | Hi uma linguagem da sim como a linguagem da poesia se fi tc, pelo menos em parte — na linguagem de nomes do homem, pode-se muito bem pensar que a linguagem da escultura ou da pintura estejam fundadas em certas espécies de linguagens das coisas, que nelas, na pintura ou na escultura, ocorra uma tradi cao da linguagem das coisas para uma linguagem infinitamente superior, embora talvez pertencente A mesma esfera. Trata-se m nome, sem actistica, de linguas préprias do iguas dos homens que falam. escultura, da pintura, da poesia. As- nda — se nfo unicamen- aqui de lingu material; aqui é preciso pensar naquilo que as coisas tém em co- rial, em sua comunicacio. mum, em termos de r n Escritos sobre mito e linguegem Derresto, a comunicasio das coisas € com certeza de tal tipo de comunidade que Ihe permite abracar o mundo inteiro como um todo indiviso. Para o conhecimento das formas artisticas, vale tentat con cebé-las todas como linguagens e buscar sua correlagéo com as linguagens da natureza. Um exemplo que se oferece de imedia. to, por pertencer & esfera actistica, é 0 parentesco do canto com a Tinguagem dos passaros. Por outro lado, é certo que a lingua gem d a doutrina dos signos. Sem ela, toda e qualquer filosofia guagem permanece inteiramente fragmentéria, pois a relagao entre linguagem e signo (da qual a relagao entre lingua humana €escrita constitui apenas um exemplo muito particular) € origi- arte s6 pode ser compreendida em estreita conexao com da lin- niria fundamental. Isso permite definir uma outra oposigéo que atravessa todo © campo da linguagem e que apresenta relagSes importantes com 2 oposigao jd assinalada entre a linguagem em sentido estrito ¢ © signo, com o qual, é claro, a linguagem nao necessatiamente coincide. Pois de todo modo a lin wagem nunca é somente co municagio do comunicivel, mas é, a0 mesmo te: do ni comunicivel. Esse lado simbélico da linguagem est liga dloa sua relacéo com o signo, eestende-se também, por exemple, €m certos aspectos, ao nome ¢ a0 julgamento, Estes tém no ape nas uma fungao comunicante, mas também, com toda probabi- lidade, uma fungio simbdlica em estreita conexao com esta — 8 qual nio se aludiu aqui, pelo menos nao de modo explicito, Resta assim, depois de tais consideragdes, um conceito mais depurado de linguagem, por imperfeito que ele ainda possa ser A linguagem de um ser € 0 meio em que sta esséncia espititual se comunica. O fluxo ininterrupto dessa comunicagio percotte toda a natureza, do mais baixo ser existente ao homem do ho- mem a Deus. O homem comunica-se a Deus através do nome n Sobre a inguagem em goral ¢ sobre a linguagem do homem que dé a natureza c a seus semelhantes (no nome préprio), ¢ cle dé nome dnatureza segundo a comunicagio que dela reebe, pois também a natureza toda é atravessada por uma lingua muda ¢ sem nome, residuo da palavra criadora de Deus, que se conser- — acima dele you no homem como nome que conhece ¢ pai n da natureza pode ser —como veredicto judicante. A nese arada a uma senha secreta, que cada sentinela passa 3 prd- xima em sua prépra lingua, mas o contetido da senha €a ine guada sentinela mesma. Toda linguagem superior ¢ tradugao de uma linguagem inferior, até que se desdobre, em sua altima cae rez, palvra deus, queréiannidade dees manvineteem linguagem 916) isto de Susana Kampf Lages w

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