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DAS PRATICAS CORPORAIS OU PORQUE “NARCISO” SE EXERCITA Ana Marcia Silva* ‘RESUMO: Este ago busca lvantar algun indicos sobre o trate com 0 corpo na histéria do ocidente, com vistas a possibiltar 8 compreensio 4 ileresse pele pritcascorporase a contitucSo da igica itera e da forma que esse cutvo do corpa assume a atalidade, Parte da ese da que ocore, ao longo do process cvlzaéro ocidental uma progressiva entiicacSo do sujet com ‘#U prpio corpo, exacerbads peo capitaismo e por sua ieologao liberalism, com uma fase narcisista. PARA UMA ANALISE DA PROVENIENCIA Uma andlise das sociedades industriais mo- dernas mostra um fendmeno surproendente de expansio da oferta e da procura pelas praticas corporais na atualidade: da grande repercussio do esporte espetdculo aos muitos praticantes de “jogging” de fins de semana; da ampla procura pelas academias a febre das escolas de esporte para criangas; do sucesso das gindsticas através de videos disputa pelas piscinas de clubes. Uma parcela significativa da populagdo vém engrossan- do as fileiras daqueles que, de uma forma ou de outra, acreditam que devem cultivar 0 seu corpo. A compreensdo desse fato pode, a prinefpio, caminhar com o auxilio das andlises elaboradas por Karl Marx na eritica a economia politica. [sso porque, mesmo como um produto nao material, as rétieas corporais de uma forma geral e, especial- ‘mente, o esporte espetéculo, adquiriram 0 estatu- to de mercadoria. Enquanto tal, possuem um valor de troca, para além de sua utilidade As pessoas que procuram delas usufruir. Esses dados so suficien- tes, apenas para apontar o caréter de fetiche que adquire essa mercadoria e sua conseqiiente absor- 40 pelas consciéncias individuais, fato esse refor- ado pelo papel mediador exercido pela ciéncia © pelos meios de comunicagdo de massa (ef. Souza, 1991), Essa anflise, porém, fornece indicativos ara compreender 0 surgimento e ampliagio do valor de troca atingido pelo conjunto das priticas corporais nas dltimas décadas, nas sociedades in- dustriais. Nao é suficiente para indicar como se constitui o interesse por esse tipo de pratica (seu valor de uso) e, ainda menos, para que se compre- ‘enda constituigso da légica interna e da forma que esse cultivo do corpo assumiu na atualidade. ‘Nese sentido, esse artigo pretende estabele- cer algumas indicagées para a compreensio desse fenémeno, partindo da tese central de que ocorre, a0 longo do processo civilizatério ocidental, uma rogressiva identificagao do sujeito com o seu pro- rio corpo. Essa identificagao culminaria com uma opsao pelo privado e individual, exacerbada pelo capitalismo e sua ideologia, o Liberalismo, onde prevalece 0 interesse por si mesmo e para si mes- ‘mo, de acordo com Horkheimer (1976:27). Aénfase dessa opeio parece ser, sobretudo, narcisista, como se pretende discutir a seguir. A genealogia dessa concepedo do “eu”, ‘identificada com o corpo, nao é simples e go traduz como 0 resultado de uma intrincada rede de com- ponentes. Este ensaio se estrutura a partir de uma histéria do trata com o corpo, buscandoestabelecer © entrecruzamento das suas condigdes andtomo- fisiolégicas e sécio-econdmicas. As discussdes em. torno da smide, da estétiea, da moral e da econo- ‘mia fornecem os principais dados utilizados para compreender a proveniéneia dessa concepsio. * Profeasora do DEFICDS/UFSC, integrante do Nilo de Ketudos Pedagégicos em Educasdo Fisica ¢aluna do Programa de Doutorade Interdisciplinar em Ciéneias Humanas da UFSC. REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DO ESPORTE 17 (@), MAIO 244 ALGUNS INDICIOS DO TRATO COM 0 CORPO EM PERIODOS HISTORICOS MAIS ANTIGOS Para se compreender a forma e a intengéo com que se faz.o cultivo do corpo na atualidade, & preciso se perceber 0 contraste com o trato dispen- ssado pelos antigos gregos. As relagées que eles estabeleciam com seu préprio corpo, faziam parte de uma concepgao que ficou conhecida em filosofia como estética da existéncia. Entre os seus ide- ais, a busca pela felicidade era uma das méximas, entendida como um desenvolvimento pleno ¢ har- ménico e em profunda interagdo com 0 cosmos, sendo que, para isso, nao havia receitas definitivas ¢ invariaveis. Pelo contrario, atingir a felicidade era uma busea individual, tragada ao longo de sua vida pelas decisées que iam sendo tomadas. Os conceitos de beleza, verdade e bern eram, naquela sociedade, profundamente imbricados. Nessa pers- pectiva, nao era possivel ser saudavel, em tudo que esse ter- ‘mo implicava,seosdemaiscom- ponentes nio estivessem pre- sentes: “s6 se pode viver bem, se a vida for verdadeira e bela; se pode ser belo, mas para isso € preciso ser justo e saudavel” Apenas com essa formula era possfvel almejar a felicidade. Os procedimentos recomenda- dos eram, por isso, bastante abrangentes; regimes que eram seguidos ao longo de toda existéncia e que diziam respeito a todas as atividades humanas. Essa estética geral da exis- ‘téncia, a qual Foucault (1984:97) ce refere, obteve ‘tamanha importdncia em fungio de seu principio fundante: 0 equilibrio corporal se encontra em relagdo direta com a harmonia da alma. O cultivo do préprio corpo $6 se justificava se contribuisse, ‘também, para com o desenvolvimento da alma; 0 objetivo era a evolugao do individuo integral. Os primeiros séculos da era crista mantém ‘uma continuidade com a cultura grega clissica, sua inspiragao primeira. A exposieo do corpo nu ¢ comum em varios rituais, dos banhos aos exerci- ios e batizados nas Igrejas, até por volta do século ‘VII (Veyne, 1989). Varias modificacées jé se fazem sensiveis, especialmente, no que diz respeito ao fundamento moral do trato com 0 ¢orpo, que come- ‘¢a a ser visto como fonte de erotismo. Ocorre um euidado maior com o corpo e uma nova maneira de salva (.. “D corpo nao é mais aquele que se esforga ou nao para ser feliz € realizado, 0 que é nobre ou vassalo, que se pune ou que se ), a concretizapao da orga de trabalio, mercadoria fundamental nesta nova ordem. focalizar a atividade sexual que a aproxima das doengas edo mal em si. Todas as préticas corporais, 06 exercicios, nesse periodo, procuram ampliar 0 controle sobre si (Foucault, 1985:234) Quando se pensa na Europa Feudal, com a ferrenha dominagio da Igreja, pode-se perceber ‘uma outra perspectiva de corpo, bastante diferen- ciada da apontada acima. Danielle Bohler aponta indicios de uma relagio.com 0 corpo, carregada de preconceitos. J nao se apresenta mais a exis cia como integral, onde o cuidado de si pressupu- nha um “cuidado com o corpo e com a alma” que deveria ser encaminhado durante toda existéncia do individuo; pelo contrério, preocupar-se com 0 corpo era afastar-se das coisas da alma. A andlise feita por essa autora das obras de arte demonstra que “pola relagao intima com o corpo e paralels- mente com o mundo ordenado segundo leis, os nus medievais, sempre banhados de vergonha, levam o selo de proibigdes e de tabus que atuam segundo uma clivagem sexual” (Bohler, In Duby, 1990:366). A transeendéncia secular, a renga em um mundo regido por leisimutveiseacimados homens, acrescide ao poder normativoda Igreja,tfastava os individuos da autonomia necesséria parauma perspec- tiva de euidado de si e de re ponsabilidade pela realizagiio plena de sua propria existén- cia, Permanecem incentivadas, apenas, a prepara $40 militar e 08 jogos de guerra, numa demonstra- [20 do espirito que prevalecia na época. ‘Uma das primeiras alteragées, possivel de ser ‘observada jé na Renascenga, 6 um novo modelo de valorizagio do corpo. Os jogos da nobreza, até ‘entaocaracteristicamentede forcaeagressividade, Jembrando grandes batalhas, passam a ser consti- tuidos por gestos precisos, com respeito rigoroso ‘208 tragados e a linha geométrica entire 0 corpo e 8 Janga, inclusive com o abandono da armadura e a valorizagao explicita do vestuario. “As alteragbes dos jogos mostram, de fato, como a cultura do corpo 6, ela mesma, transformada no seio das elites, entre os séculos XVI e XVII: A atengao progressiva ‘a0 vestuario ¢ a destreza, em detrimento da forea bruta” (Vigarello, 1986:43). O corpo e seus movi- ‘mentos e aderogos comegam a adquirir outro cédi- go de valores, ainda que limitado aos ambientes piiblicos. REVISTA BRASILBIRA DE CIENCIAS DO ESPORTE 17 (3), MAIO6 25 A preocupacdo com as roupas permanece sendo, até o século XVIII, uma preocupagio.com os outros. O vestir-se representava uma parte do como estar em piblico, atendendo muito mais a uma convengaio preestabelecida para diferenciar as demareagdes sociais do que uma forma de ex- pressao do corpo que se reveste. Richard Senet. aponta que: “as pessoas visualizavam as roupas como uma questo de artificio, ecoragio.econven- ‘0; 0 corpo servia como um manequim ao invés de ser uma criatura viva e expressiva” (Sennett, 1988.89), Esse autor informa que a representagao chegava a tal ponto que a Franga e a Inglaterra tinham leis suntudrias que determinavam o traje adequado a cada estrato da hierarquia social, a cada oficio, proibindo-o aos demais, Nesses trajes, ‘status de cada trabathador era estabelecido pelo ‘iimero de fitas e botbes que usava. A.utilizagao do corpo e das roupas era partedas representagées de ‘uma estrutura social aparentemente imével ¢con- formada, concepslo que prevalece até o fim do Antigo Regime. ores da histéria ocidental. 0 trato com 0 corpo passa a adquirir importancia para as relagdes que se trava com 0 outro, distoando dos periodos ante- riores em que o fundamento era a relagso consigo préprio, ainda que fosse para evité-lo, como no caso da Idade Média, para nfio incorrer em pecado perante as leis divinas. Os multiplos aderegos sobre 0 corpo, buscando enfeité-lo e marcando formasderepresentacao, também, demonstracssa reocuparao com o estar em publico, espago para o ‘qual o corpo era instrumentalizado, ‘Nosse perfodo, encontra-se uma tensSo entre a resignagao aos ditames do corpo e a pregagdo da Igreja que vai encontrar na Medicina um compo- nente importante. Até a metade do século XVIII, 0 discurso médico mantém as bases metafisicas da Igreja, reafirmando a supremacia da alma. A ne- cessidade de domesticar o corpo posta pela Igreja ¢ reforgada pelo discurso médieo, vai gerar peda- gogias do corpo. Alguns Métodos Ginasticos da- quele perfodo deixam perceber essa intengao, mais ligada aos valores “espirituais”, em contraste com seus subsequentes. Essas pedagogias do corpo ‘mostram “como se instauram outras formas de disciplina visando a interiorizagio. Trata-se agora de tocar mais a alma do que o corpo” (Perrot, 1991:158). Paralelamente, a violéncia fisica impe- ra na escola, no sistema penal ¢ nas familias, especialmente nas classes populares urbanas ¢ pequeno burguesas, mostrando uma certa pers- pectiva de corpo. Nessa perspectiva, o corpo se coloca como algo a ser subjugado. AS IMPOSICOES CORPORAIS Em poucas décadas, reverte-se a situacao. ‘comum em boa parcela dos historiadores, a com- preensdo de que a Revolugéo Francesa e a ‘estruturaeao do capitalismo industrial represen- tam um divisor de “éguas” nesse campo da cultura, ‘As concepgies de corpo e, paralelamente, de satide que se estruturam nesse perfodo, apresen- tam fortes marcas de uma ordem econémica to diversa quanto a do capitalismo. Foucault (1986), parte da premissa de que as politicas de satide que se organizam a partir do século XVIII, tm dois focos de atengao: o desenvolvimento de uma medi- cina privada, formada a partir dos interesses do mercado que se estrutura ¢ 0 desenvolvimento de ‘um medicina voltada para 0 corpo social que se agiganta, Ambas as medicinas que se organizam, sio parte de uma estratégia global que considera “as doencas como problema politico e econémico” (Foucault, 1986:194), Essas caracteristicas da doenca como proble- ma politico e econdmico, colocam a questo do corpo a partir de um prisma completamente novo, tanto para o corpo do individuo como para 0 corpo da sociedade, O corpo nao é mais aquele que se ‘esforga ou néo para sor foliz @ realizado, o que é nobre ou vassalo, que se pune ou que se salva. O corpo do individuo ¢ a concretizagao da forga de trabalho, mercadoria fundamental nesta nova or- dem; 0 corpo social ¢ a garantia de reprodugao dessa mercadoria.|Suas caracteristicas, portanto, devem ser de docilidade e utilidade, adequadas ao problema politico e econdmico que ele representa. “O controle da sociedad sobre os individuos nao se opera simplesmente pela consciéncia ou pela ide- ologia, mas comega no corpo, com 0 corpo. Foi no biolégico, no somatico, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedado capitalista. O corpo 6 uma realidade bio-politica. A medicina 6 uma estratégia bio-politica” (Foucault, 1986:80). A necessidade de organizagdo da sociedade e de adestramento dos corpos tendo em vista seus novos objetivos politicos e econdmicos, 86 6 possivel REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DO ESPORTE 17), MAIO‘06 26 de ser compreendida na medida em que se perceba 0s acontecimentos que caracterizaram 0 mundo urbano. A desordem impera nas cidades, nesse momento histérico que marca o inicio do séeulo XIX, como resultado dos fatos politicos e econémi- cos marcados pelas Revolugies Francesa ¢ Indus- trial. Essa desordem é exaustivamente discutida por Sennett (1998), que aponta alguns de seus ‘componentes. Entre eles, o inchamento das cida- des; a auséncia do respaldo dos sobrenomes daque- {es provenientes do meio rural; a distribuigao da populagao em novas formas urbanas; a destruicao, por parte do mercado, de atividades econémicas, estaveis ¢ a freqdente destrui¢do do status entre geragées. Sem a referéncia da corte, sem 0 conhe- cimento sobre as pessoas que se encontra na rua, sem pontos comuns para entravar conversas ou depositar confianga, sem conhecer a administragao € 0 consumo das mercadorias em série; o dominio iiblico incorporado pelas cidades parece ser ocaos aserevitado pelo individuo. As alteragdes nesse dominio s30 répidas e violentas. As doen- ‘as, a mendicéncia, a falta de ‘saneamento bésico e de mora- dias, as possibilidades de fa- encia e a auséncia de forma- ‘980 profissional, so temores cotidianos. Durante esseperfodo, fica clara uma tentativa de medicalizagiio da Sociedade ‘que se apoia, em um primeiro momento, numa rede de pessoas e instituigées que ‘esto imbufdas de um espirito filantrépico e que atuam como auxiliares médicos, gerando intime- ras categorias profissionais que se estruturarao ‘em seguida, como esclarece Foucault: “Tomemos 0 exemplo da filantropia no inicio do século XIX: pessoas que vém se ocupar da vidas dos outros, de sua saiide, da alimentagao, da moradia... Mais tarde, desta fungdo confusa safram personagens, instituigdes, saberes... uma higiene piblica, inspe- tores, assistentes sociais, psicdlogos. E hoje assis- timos a uma proliferagao de categorias de traba- Ihadores sociais. Naturalmente, a medicina de- sempenhou o papel de denominador comum... Seu discurso passava de um a outro” (Foucault, 1986:151). Juntamente com a filantropia, encon- travam-se as ordens religiosas envolvidas forte- ‘mente nesse trabalho de reordenamento social liderado pela medicina. No interior dos hospitais e de um grande niimero de escolas, oandamento das ‘A midia exerce um efetto poderoso nna sua difuséo (do modelo corporal ‘de consumo’) fazendo com que a busca por esse ‘modelo dominante, homogéneo no Ocidente, torne-se uma necessidade quase inquestionével ‘para os individuos." atividades depende quase que exclusivamente dos religiosos, podendo-se observar, em ambas as ins- tituigées, 0 forte cunho ascistencialista presente, que vai cedendo espago ao disciplinamento impos- to por uma nova l6gica. Apesar disso, ambas as matrizes- filantropiae sacerdécio -deixam marcas nos “personagens” que dai surgem. Entre esses, cabe destacar o papel desempenhado pela Enfer- ‘meira, no cuidado do corpo doente, e pelo Instrutor de Gindstica (como era chamado nas escolas) no cuidado do corpo saudavel; duas faces da mesma ‘moeda reconhecida como eugenia da raga. Am- bos 0s profissionais so extensées do poder médico ¢ atuam na higienizacao e ordenamento dos cor- pos; disciplina é a palavra de ordem. A tarefa desempenhada no interior das hospitais pela Enfer- magem, de auxiliar na transformagao do sujeito “paciente” em um objeto passivo de ordenamento racional pode ser analisada, em contraponto, com ‘o mesmo papel desempenhado por outra disciplina ~a Edueagao Fisica - tal como Soares (1994) aponta. Da perspectiva dos indi- viduos, 20 se defrontarem com ‘a animosidade do meio urba- no e com as exigéncias das politicas sociais, como fruto das pressées econémicas,uma nova perspectiva de corpo vai se estruturando, Essa pers- pectiva se fundamenta numa nova compreensao que o indi- viduo tem de si mesmo e da finalidade desua existéncia sobreaterra, marcada, a partir de entao, pela imanéncia secular. “No século XIX, a vontade de crer passou de uma religido sem idolos para uma condigao mais rofle- xiva: as crengas tornaram-se cada vez mais con- entradas na vida imediata do proprio homem e nas suas experiéncias, como uma definiedio de tudo aquilo que se pode fazer crer. A imediatez, a sensacdo, 0 concreto” (Sennett, 1988:191). © conjunto das impressdes imediatas do sujeito constitui-se em sua personalidade e passa fa ser um importante motor na histéria das interagdes humanas, inclusive, do individuo consi- ‘go mesmo. Essa concepeio de personalidade presa as aparéncias vai gerar, num primeiro momento, ‘um recato vitoriano, caracterizado pelo excesso de vestudrio, pelo desejo de cobrir-se, de provocar ‘uma deformagio fisica por meio das roupas, para REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DO ESPORTE 17), MAIO96 2a evitar que a personalidade se manifeste no espago iblico tao ameacador. O reforgo a essa conceprio provém de novas disciplinas que se estruturam, tal como a etologia, tratado sobre os costumes a partir das caracteristicas fisicas, desenvolvida a partir dos estudos de Darwin; mais tarde a frenologia, utilizada por Freud e a cenestesia, de uso jurfdico. Alan Corbin (In Perrot, 1991:450-2) ‘mostra que os segredos intimos despertam o medo da demonstrago publica, de se expor aos outros. Paralelamente, cresce 0 desejo de descobrir o p prio corpo, suas caracteristicas, sensagBes e praze- res, Resulta disso, a conceppao de que o intimo 6 0 tesouro, 0 pliblico é 0 falso. O espago intimo passa a ser 0 espago em que 0 corpo pode se manifestar - ‘6s cabelos soltos, as roupas confortaveis, a mani- festagdo dos humores. Com a execragao do piiblico 0 predomfnio do privado, 0 corpo passa a ser a maior referéncia e o maior ob- Jetivo, j4 que ele representa 0 que 0 individuo acredita que ser na realidade; Os prazeres obtidos a partir do corpo e do ‘movimento sio, cada vez mais, considerados como importan- tes. A contradicio se estru- tura mais fortemente na medida em que as insti- tuigdes intencionam controlar corpo, moldando- © uma postura de severidade e corregé petspectiva é claramente identificada nos méto- dos gindsticos daquele periodo. O objetivo nao é mais atingir a alma, mas levar as pessoas a adota- rem um comportamento moraimente aceito pela sociedade, Paralelamente a isso, 0 desejo de libera- s80 do corpo, a busea de compensagao pelas impo- sigées da vida urbana e das condigdes de trabalho, tornam-se resisténcias a essa iniciativas institucionais. “Um surdo movimento de liberacao acompanha em contraponto a historia das corre- ¢%es;ele acompanhaoascenso dessa subjetivizacao do corpo assinalado pelos historiadores da psicolo- ia. Assim, 0 século XIX assiste a elaboraggo ou acentuagao de uma gama de disciplinas somAticas €, ao mesmo tempo, de processos de resisténcia cujo repertério exaustivo os historiadores ainda esto longe de estabelecer” (Corbin, In Perrot, 1991:607). Para Alain Corbin, o auge desse proces- “A partir do desejo pelo proprio corpo, samado a0 modelo de torpo que é incessantemente perseguido, uma geragao de ‘narcisos’ pode ter sido 50 ocorre com a idealizagao da gindstica como “dever nacional”, praticada por milhGes de pesso- as, especialmente pelos escolares. A ASCENSAO DE “NARCISO” © discurso dos médicos, adequado a nova ordem social, distancia-se da Igreja e nao trata mais das questdes da alma. Juntamente com os ‘moralistas, defendem a importancia das praticas ‘corporais e da higiene para o bom andamento da Sociedade. Esse discurso atinge, inicialmente, a burguesia, As pregagdes pela higiene e pela sade, coincidem com a condigtes materiais para 0 seu ‘cuidado no seio dessa classe. Como seu tempo livre era maior, especialmente entre as mulheres, sua vida de representagao era mais forte, resultando ‘numa importancia maior para a aparéncia fisica do que nas demais classes. Apoiada nesses fatores, gradativamente, as préticas corporais se emancipam do Ambito médico na busca pelo prazer, pela liberagio do cor- po e pelo bem estar. O habito de praticar atividades desse ‘tipo e os padrées de beleza da burguesia, nesse campo como em outros, se difundem na direcdo da base da “piramide social”. Seus padrées passam aser incor- porados pelo conjunto da Sociedade. Gerard Vincent (1991:309-11) levanta in- Gicagies sobre esses padrées de beleza dizendo que © principio da verticalidade, buscado na postura, surge nesse perfodo, na medida em que o mundo passa aser urbano, O meiorural, através do traba- tho no campo, levava a um encurvamento dos individuos e, portanto, determinava sua estética ‘numa outra diresao. A burguesia, classe tipica do ‘mundo urbano, adota uma postura vertical, acen- tuada por sua “vontade de se estabelecer”, de se afirmar em puiblico. Ocorre ainda, que os ideais de ‘rendimento e controle que se difundem pela socie- dade, através do mundo do trabalho, influem tam- bbém, na imagem de carpo dominante. A conceprao corrente é a de ser elegante, magro e dinamico. O periodo entreguerras 6 fundamental para a estruturagio desse modelo corporal numa socieda- de em que 0 consumo se torna a maxima. Mas, 6a partir das campanhas publicitdrias que ele é REVISTA BRASILBIRA DE CIENCIAS DO ESPORTS 17(3), MAIOBS 8 interiorizado. A midia exerce um efeito poderoso na sua difusdo, fazendo com que a busca por esse ‘modelo dominante, homogéneo no oeidente, torne- se uma necessidade quase inquestiondvel para os individuos. O alento final parao engajamento das pessoas nas praticas corporais ocorre, principal- mente, com o maior ntimero de oportunidades de ‘mostrar o corpo. Essas oportunidades ocorrem com a popularizagaio do habito de frequentar os balne- frios, através do camping e das férias remunera- das na déeada de essenta. Dessa maneira,ocorpo efetivamente sai do dominio privado e entra, triun- fante, no puiblico. 0 corpo valorizado quer viver sua liberdade e sua sexualidade, como contradigao do seu uso e dominagio. A essa revolta do corpo se contrapde uma nova forma de exploragao que, de acordo com Foucault, é econémica ¢ ideolégica, atingindo, desde os produtos para bronzear até os filmes pornograficos. “Como resposta a revolta do corpo, encontramos um novo investimento que nao tem mais a forma de controle- repressio, mas de controle- estimulagio: fique nu... mas sejamagro, bonito, bronzeado” (Foucault, 1987:146). © corpo nao 86 ¢ aceito, ‘como passa.asercultivadopara atingir 0 modelo predominan- te. “A estética da magreza 6 imposta pelo sistema de midia, que intima as mulheres a se- guir dicta e fazer gindsticas sempre novas: aerdbica, acrogindstica, antigindstica, energic dance, gym tonic, musculacéo, alongamento, aerobica turbo, etc, Al- guns nomes indicam a origem americana, mais precisamente da California. Esse culto do préprio corpo exige sacrificios: em primeiro lugar finaneei- ros(proporcionalmente, gasta-semenosemroupas e mais para manter a aparéncia); a seguir éticos, visto que os meios de comunicagaonos repetem que ‘a pessoa tem o corpo que merece, o que leva a um novo sentido de responsabilidad. Esse corpo a ser produzido, desnudado, na praia, deve estar de acordo com os cénones do momento” (Vincent, In Prost & Vincent, 1992:311). E qual é 0 modelo dos ‘cdnones do momento? Vincent aponta em seguida: Atendéncia 6a sociedade unissex. 0 modelo predo- minante 6 aquele da virilidade, a partir do predo- minio do masculino, nesce tempo histérico. “A silhueta da moga se aproxima da do rapaz. A roupa €muitas vezes igual, eo corpo indefinido expressa “Essas preacupaedes culminam com a nogao de que 0 trabalho com as préticas corporais, baseadas no culto a0 corpo, ‘sendo impedem, dificultam a construgao de uma Nova Sociedade, antiga utopia, eternamente renovada.” a adaptagio das formas femininas aos moldes masculinos” (Vineent, In Prost & Vincent 1992:316). Essa indicagao é confirmada com aané: lise doreal. Abusca pela defini¢ioda mustulatura, a adogio de um ritmo vigoroso eo desenvolvimento de qualidades comoa forgaea agressividade, bases do trabalho das academias e da maioria dos espor- tes, atestam essa hipétese. A mulher permanece, apesar das “aparéneias”, atrazer consigo oestigma da fraqueza, tal como Adorno ¢ Horkheimer (1985:105) identificaram, tornando-se, inclusive, ‘uma justificativa para sua opressdo, sob o tema da dominagao da natureza que se assenta numa hie- rarquia social, onde o homem é 0 superior. A indiistria cultural produz uma necessidade em seus consumidores, a0 mesmo tempo em que suas mereadorias so produzidas de maneira a se identificar com essa necessidade, conferindo um maior poder a essa industria. Grande parte do trabalho da publicidade é encaminhado no sentido de levantar quais as caracte- risticase desejos dos consumi- dores, selecionandoalgunsele- mentos comuns que formarao © estereétipo do consumidor, ‘agora mundial, nas eampa- nhas publicitarias. De acordo com Matterlart (1992:252), esse esterestipo se transfor- ‘ma no “tipo ideal”, j4 que pos- sui um conjunto minimo de ssimbolos e estilos que possibi- litam a identificagéo de um grande nimero de pessoas. Ascampanhas publicitarias utilizam esse tipo ideal que, em geral, exprime as percepgdes de juventude, beleza, sensualidade e satide, na forma do que ele denomina de “mercadorias simbélicas”. Criam-se, assim, novos segmentos mundiais de consumidores e novas necessidades, ao mesmo ‘tempo em que se transplanta costumes e simbolos de um pais para outro. A partir desse investimento da industria cultural, amplia-se o mercado das praticas corporais, especialmente, aquelas que se dedicam a reiterar esse modelo de corpo ¢ as intervengées sobre ele, conforme divulgado pela midia, ‘Umoutra perspectiva dessa questiio das pré- ticas corporais € encontrada em Foucault. Para ele, o poder investi nos corpos dos individuos 20 longo do tempo, criando uma forma especifica de consciéncia do proprio corpo, ao mesmo tempo em que faz uma exploragio econdmica. Mecanismos REVISTA BRASILEIRA DB CIENCIAS DO ESPORTE 17 (@), MAIO/96 249

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