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Como o cinema “fala”

Por André Setaro

A maioria das pessoas que vai ao cinema recebe uma avalanche de imagens e
não se encontra apta a identificá-la enquanto uma linguagem. O que interessa,
apenas, é a história, a intriga, o desdobramento das situações - aquilo que se
chama de ’fábula’. Assim, o espectador comum não percebe que o filme tem uma
narrativa e é esta que, por assim dizer, ’puxa’ a fábula - a história. Por narrativa se
entende a maneira pela qual o realizador cinematográfico manipula os elementos
da linguagem fílmica. Ou seja: o conjunto das modalidades de língua e de estilo
que caracterizam o discurso cinematográfico.

O que precisa ficar bem entendido é o seguinte: o que merece crédito na obra
cinematográfica não é o que se diz 'no' filme, mas, sim, o que o filme 'diz'. E este
'fala' por meio de sua linguagem específica, assim como na literatura o escritor se
expressa por um conjunto de palavras que formam frases, orações e períodos. A
expressão daquele que escreve se dá através da sintaxe. E o cinema também tem
uma sintaxe que se cristaliza pelo relacionamento dos planos, das cenas, das
seqüências. Assim, os elementos básicos da linguagem cinematográfica, os
chamados elementos determinantes, podem ser assim considerados: a
planificação (os diversos tipos de planos - geral, de conjunto, americano, médio,
close up...), os movimentos de câmera (travelling, panorâmica, na mão...) e a
angulação (’plongée’, ’contre-plongée’...). E a montagem, existindo também os
elementos componentes, mas não determinantes (fotografia, intérpretes,
cenografia...).

É necessário, para uma melhor compreensão de um filme, aprender a reconhecer


a linguagem do cinema e a captar qualquer mínima manifestação sua. Importa
mais estar atento ao comportamento que a câmera adota em relação a
determinado personagem do que seguir o seu comportamento na tela. É mais
importante a verificação dos sinais efetuados pela câmera referente ao
personagem do que tentar entender o que este está a fazer no desenvolvimento
da história. A câmera dificilmente renuncia a uma opinião sua, mesmo quando
parece estar silenciosa e perfeitamente alheada. Os modos que dispõe para
'qualificar' a realidade são múltiplos e nem sempre imediatamente compreensíveis.

Um exemplo está em Frenesi (Frenzy, 1972), penúltimo filme de Alfred Hitchcock,


um cineasta inventor de fórmulas, um artista da ’mise-en-scène’, cujos significados
muitas vezes emergem do comportamento da câmera e, por extensão, do uso que
faz da linguagem cinematográfica. Assim, em Frenzy, o movimento aparentemente
vagabundo da câmera tem a função de indicar a atitude moral assumida pelo autor
- no caso o mestre Hitch - relativamente à matéria tratada. Numa cena dessa obra
exponencial, uma mulher (Anna Massey, a namorada do falso culpado Jon Finch)
é assassinada em seu apartamento pelo hóspede (Barry Foster, o estrangulador
que o espectador já conhece) ocasional que ela própria convidara confiando na
sua extrema simpatia. A câmera acompanha os dois quando se dirigem ao prédio
onde ela mora - o público já pressente o pior, pois ciente de que o homem é um
assassino perigoso, mas, entrando neste, a máquina de filmar abandona os dois ’à
sua própria sorte’, pois começa a recuar lentamente, sai do edifício e se detém
apenas quando o exterior deste fica enquadrado num ’plano geral’. Todo o
movimento se procede através de um movimento de câmera chamado ’travelling’,
a princípio ’para frente’ e, quando do recuo, ’para trás’. O grito da pobre moça é
abafado pelos ruídos do bairro popular onde se localiza uma feira muito
barulhenta. Que outra coisa pretende dizer Hitchcock com este ’travelling em
derrière’ se não que o Mal está entre nós e que opera das maneiras mais
insuspeitas? Trata-se, na verdade, de um caso em que a ’metafísica’ do autor
recorre, para se manifestar, à ’física’ de uma óbvia escolha estilística.

Hitchcock procura também, com seu humor negro habitual, ’brincar’ com o
espectador, que sabe ser um sado-masoquista e adoraria, no caso, presenciar o
estrangulamento da mulher pelo perverso homicida. A significação, por
conseguinte, se faz pela linguagem, pelo ’comportamento’ da câmera em relação
ao personagem. Se neste exemplo, a significação decorre de um movimento de
câmera, em outro, desse mesmo filme, ela advém pela montagem na seqüência
na qual o estrangulador procura, dentre muitos sacos cheios de batatas, aquele no
qual se encontra o cadáver da mulher que matara no apartamento a fim de lhe
tirar um broche de suas mãos, as quais, no momento da agonia, agarram o objeto.
A manipulação de Hitch é tal que o espectador ’torce’ para que o brutal homicida
encontre, tal a sua aflição - e a aflição provocada pela montagem, pela ’mise-en-
scène’, o broche que o denunciaria como criminoso.

Em O Açougueiro (Le Boucher, 1969), de Claude Cahbrol - um discípulo de


Hitchcock e autor, com Eric Rohmer, de um livro importante sobre o diretor de
Vertigo -,há uma cena na qual o protagonista - um carniceiro que se sabe
torturado pela mania homicida - confessa o seu afeto à ignara professora da aldeia
- ele é Jean Yanne, ela, Stéphane Audran, naquela época companheira do diretor.
A declaração tem lugar num bosque onde os dois se deslocaram para colher
cogumelos. A atmosfera seria das mais tranqüilizantes, não fora passar-se -
durante o colóquio entre ambos - algo que não pode deixar de alarmar o
espectador atento. E esse algo não se refere ao comportamento das personagens
- que continuam a dialogar num cenário idílico - mas, precisamente, ao
comportamento da câmera. Esta última, quase inadvertidamente, começa a
deslocar-se lateralmente até o primeiro plano de um tronco de árvore se interpor
entre ela - a câmera - e o par, escondendo o homem cujas palavras, contudo,
continua-se a ouvir. A vista é desimpedida com a saída do tronco do campo da
visão, mas pouco depois desaparece novamente quando o movimento se repete
em sentido contrário, conduzindo a câmera à posição inicial. Eis um caso em que
um simples ’travelling’ se encarrega de denunciar ao espectador a atitude reticente
da personagem, 'encobrindo-a' da vista no momento em que 'se revela' ao ouvido.
Denúncia essa dirigida ao público e não, infelizmente, à desventurada professora,
que se manterá por um bom pedaço na ignorância das verdadeiras intenções do
carniceiro degolador.

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