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s Theodor Adorno ec a psicologia do anti-semitismo Douglas Garcia Alves Jt. para a lray Introdugao “A psicologia ant-semita fo, en grande parte, substituida por um sim- ples ‘sim’ dado ao ticketfascista”(Dialétion do Esclarecimento, p. 187). “O poder magnético que as ideologias exercem sobre os homens. explica-se para além da psioologia” (Minima Moralia,p. 94). “O horror esté além do alcance da psicologia® (Minima Moralia,p. 144). Se tomamos ao pé da letra as dectaracdes acima, 0 propésito de uma consideragao psicoldgica do anti-semitismo parece desde o inicio condenado ao fracasso. Cada uma delas assinala o cardter problemitico de uma possivel psicologia do anti-semitismo. Se a psicologia anti-semita é substituida por uma espécie de adesdo automntica @ ideologia fascista, como defender uma investigagdo da dinamica subjetiva do anti-semitismo? Da mesma maneira, se esse poder de fascinio da ideologia se explica para além da psicolo- ia, entéo uma explicagso psicolégica do fenémeno parece estar descartada. Qu ainda, poderiamos perguntar: se 0 horror envolvido na morte de milh6es de seres humanos em camaras de gas ndo pode ser compreencldo por consideragSes psicolégicas, no seria toda psicologia do anti-semitismo uma pura perda de tempo? Para entendermos melhor essas questées, 6 necessério voltarmo-nos para os textos de onde foram retiradas aquelas citagées, © quo fornecem uma teoria daquilo que ‘Adomo chamou de liquidagao do sujeito em curso na modemidade. Dessa maneira, ser possivel observar que Adomo, aa contrério do que parecem indicar aquelas cita- (ees, ndo descarta uma psicologia do anti-semitismo. Além disso, como examinare- mos adiante, ele préprio, num trabalho em conjunto com um gupo de cientistas da Universidade de Berkeley, chega a propor, nos anos quarenta, algo como uma psicolo- gia do anti-somitismo, contrada nas nogdes de esiereotipia, personalizagao 0 ALVES, JR., Douglas Garela. Theodor Adorno @ a peleologia do ant-zemitsmo projetividade, Nosso objetivo aqui sera examinar essas questdes no pensamento de ‘Adorno e indicar em que medida elas chegam a propor uma nova consideragio do pslcolégico, que ganha relevancia através de um conceito filoséfico caro a Adorno, 0 de nao-idéntico (Nichtidemiisch) 1. Discussao |."A psicologia anti-semita foi, em grande parte, substituida por um simples ‘sim’ dado a0 ticket fascista (DE', 187).” 0 que isso quer dizer? Em primeiro lugar, o ticker, a lista pronta de candidatos representa aqui o modelo do que Adorno chama, no mesmo texto, de semfcultura: a tendéncia, prépria da modemidade tardo-capitalista, a apre~ sentar blocos toscos de informago como verdades acabadas, prontas para 0 consu- mo de massa, Essa tendéncia, quo envolve padronizagao @ exclusdo de tudo aquilo que nao se dobre ao esteredtipo facil de ser digerido por um publico que é nivelado pela média, se acha presente tanto no mundo do entretenimento, através do cinema, das novelas, da misica ligeira etc, como no mundo da politica, que passa a ser apre- sentado 20 piblico segundo os mesmos moldes da publicidade e do show. Ou seja, a polltica é traneformada em algo como um setor da indistria do entretenimento. O ticket, alista pronta de candidatos anuncia-se publicitariamente a si mesma, como os produ- tos da industria cinematografica e as revistas de moda. E como estas, 0 ticket é totali- trio, no sentido de que impoe a necessidade de responder alirmativamente, de con- formar-se a ela, jé que uma alternativa possivel simplesmente nao existe. Nas pala~ vras de Adamo e Horkhelmer. ‘Quando ainda se deixa uma aparéncia de deciséo ao individuo, esta jd se encontra essencialmente prodeterminada. A ineompati- bilidade das ideologias, trombeteada pelos politicos dos dois blo- cos, néo passa ela propria da ideologia de uma cega constelaggo de poder... escolher um ticket, ao contrério, significa-se adaptar a uma aparéncia petrificada como uma realidade e que se prolonga a perder de vista gragas a essa adaptagao... Hoje, os individuos recebem do poder sous tickets ja prontos, assim como os consu- midores que vao buscar seu automével nas concessionarias da fabrica’ (DE, 191), " Abreviatura que seré uilzada neste trabalho para Dialética do Esclarecimento, sempre seguida ddondmaro de pagina da ecieao indicada na bbllogratia, ao final, Demais abrevituras uilizadas: AAP para Porsonalidade Autoritéria, MM para Minima Moralia© SP pata Acerca de la relacidn ‘entre sociologia y psicologia REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. Bale Horizont, 9:50:68, ago 2001 E importante notar que Adorno e Horkheimer estao apontando para um processo em ‘curso no ambito da cultura como um todo, e que tom uma repercussdo direta sobre a. Psicologia individual. Nela tem lugar um processo que tende a liquidlapao do sujeito como sujet livre, capaz de escolher autonomamente, com base em sau proprio en- tendimento, suas diretrizes politicas. Em que medida esse processo tem importancia ara uma consideragao da psicologia do anti-seritisma? Vamos por partes. Em primeiro lugar, Adorno @ Horkhelmer, na esteira do idealismo aleméo, distinguem sujelto de individuo, Na perspectiva assumida por eles, sujeitoé 0 oncsito que designa, com Kant, a sede da ago moral, o ser humano dotado daquilo que Kant chamava de espontaneidade: a capacidade de iniciar ages ao mesmo tem- po respeitando a causalidade da natureza e superando-a, na medida em que introduz, ‘com sua ago, prine(pios inteligiveis, auténomos em relag&o ao puro mundo natural. Por outro lado, individuo designa aquela realidade meramente empirioa do sujeito, Portador de inclinagdes, apetites, um temperamento etc. Para nossos propésitos, 0 importante, aqui, é fimar a diferenga entre sujeito - como sujeito auténomo - @ indivi duo como sede de processos psicoligicos que podem ou ndo ser orientados no sentido da autonomia do sujeito. Nas palavras de Adorno e Horkheimer: *O senso de realidade, a adaptagao ao poder, nao 6 mais o resul tado de um processo dialétioo entre o sujeito @ a realidade, mas é imediatamente produzido pela engrenagem da industria. O pro- cesso 6 um processo de liquidagdo em vez de superagio, & um processo de negagao formal em vez denegacdo determinada. Nao lhe foi concedendo a plena satistagdo que 0s colossos desenca- deados na produgao superaram o individuo, mas extinguindo-o como sujeito” (DE, 191). Em outras palavras: uma cultura marcada pela padronizagio @ pela press & confor- midade tenderia a produzir cada vez menos sujeitas auténomes e cada vez mais indi viduos integrados. A liquidagao do sujeito nada mais seria do que a produgéo em massa de individualidades adaptadas ao existente. € aqui que compreendemos o elo centre esse processo e a psicolagia do anti-semitismo. Ora, o que seria o anti-semitismo, erguntam os autores? Antes da tudo, uma aribuipo delirante de caracteristicas ma- lignas a uma determinada classe de seres humanos. O anti-semitismo tem muito pou- * "A raziio cria para si mesma a idéla de uma espontaneldade que pode, por si mesma, iniiar uma agdo sam que seja necessdrio antepor-ha uma outra eaisa quo, porsua vez, a determine para a acao segundo a lei da conaxdo causal. Crtioa da Razéo Pura, 551 B. F ALVES, JR,, Douglas Garcia. Theodor Adomo @ a psicologia co ant.somiemo oa ver com o seu alvo, 0 judeu, ¢ tudo a ver com seu propagador,o ant-semita. Octo 20 diferente, projetividade, esterectipla, rigidez: esses os tragos da psicolagia antl- semita. O ticket ant-semita propicia uma resposta ideal @ esse tipo de mentalidade. rnesse sentido que se torna possivel compreender porque “a psicologia enti-semita fo, {em grande parte, substituida por um simples ‘sim’ dada ao ticket fascsta” “Por isso no desapareceram com 0 indlvicuo seus determinantes Psicoldgioos..o proprio tckeré uma rada da engrenagem, Tudo 0 ue, no mecanismo psicolégico, foi sempre compulsivo, sem iber- dade o irracional esta adaptado asso de maneira precisa. O tcket reaciondiio que contém 0 anti-semitismo 6 adequado a sindrome destrutivo-convecional. Originariamente, eles representam menes ‘uma reagao contra os judeus do que a formaco de uma orienta- {40 pulsional ao qual s6 0 ticket fornece um objeto adquado de perseguigdo” (DE, 192, gifo meu). Podemos perceber que, desse modo, dé-se uma espécie de inversdo daquilo que poderiamos esperar, isto 6, de um anti-semitism originério e intrinseco & pslcologia de caros indviduos. Ao invés, o que é origindrio seria 0 esquema do ticket, capaz de produzir uma psicologla ant-semita de acordo com suas préprias conveniéncias de canalzagéo das tendéncias conformistas @ agressivas de uma massa de indvicuos paicologicamente fustrados eintelectualmente confusos com a modemidade cultural @ econémica, & a mentaidade de ticket que é anf-semita, € a parr dela que se pode falar de uma psicologia do anti-semita (DE, 193). IO poder magnético que as ideologias exercem sobre os homens... explica-se para além da psicologia (Minima Moral, p. 94)". Adorno se pergunta: qual é a telago entre a escolha de uma ideologia politica ou sobre grupos minortérios, por um lado, ¢ ten- déncias profundas de personalidade, de outro? O proceso que leva o individuo a aderir a uma determinada ideologia seria um processo puramente psicolgico? E 0 ‘que Adorno investiga na pesquisa coletiva A Personalidade Autonténia, Se retomarmos suas conclusdes sera possivel entender aquela afiimagao das Minima Moral. Para sermos breves, as resumitemos nos seguintes ponios: 1) O processo de adesio a uma ideologia politica, reigiosa ou social & psicologicamente determinado; 2) A determinago psicolégica do process reside em tendéncias profundas de personali- dade, que tém a ver com padres de identficacao, ostrutura de personalidade e organi- ago libidinal do individuo; 3) Essas condigdes estruturantes $0 resultado de proces- 808 de socializago muito precoces na vida do individuo, que atuam de maneira @ formar [EVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. Belo Horizonte, 50-58, ago /2001 uma configuragéio psicoligica mais ou menos estavel e resistente & mudanca; 4) O am- blente cultural fornece os estimulos ideol6gicos que séo selecionados segundo aquele padrfo psicoligice eristalizado no individuo; 5) Com a uniformizagao em curso na socie- dade contempordnea é possivel a um individuo psicolagicamente ndo-autoritério aderir a plataformas politicas reacionérias, por ignordncia ou lassiddo ~ ou seja, © peso da cultura atua também como um determinante poderoso ; 6) Em suma, a adesao idool6gi- ca é resultado de um procasso a uma vez social e psicolégico, cultural e subjetivo. Assim, o “além da psicologi remeto ao pélo da cultura, como principio sintetizador de tendéneias a que os individuos tom muito pouco como resis. Em cima andlise, a pressao & uniformidade 6 t&o grande que acaba por relativizar aquelas tendéncias no individuo que pederiam so opor a ela. € a concluséo de Adorno segundo a qual “Por haver softido nosso ambiente cultural um proceso de uniformi- zagdo até agora nunca visto, em conseqtiéncia do impacto do contro- le social e da concentrapo tecnolégica, cabe supor que os habitos de pensamento do individuo refletem por igual tal estandardizagao & ‘a.cua dinamica de personalidade. E 6 certo que a personalidade indi- ‘vidual pode ser produto desta mesma estandardizagao em medida ‘muito maior que um observador desprevenido possa crer” (AP, 614), Portanto, uma considerago parece se impor: uma psicologia do anti-semitismo deve partir tanto do pélo do individuo como da cultura que © constitu. A dinémica subjetiva do anti-semitismo s6 6 compreensivel se atontarmos para aquela situacao objetiva configurada pelas tendéncias de uniformizacao ¢ integracao automatica fomentadas pela cultura como um todo, fendmeno a que jé aludimos acima @ que Adorno designa ‘como semicultura’. Na Personalidade Autoritéria essa dindmica é descrita em termos de esterectipia, personalizagao @ projetividade. Essa configuragao da psicologia do anti-semitismo, Como se vera, 6 profundamente tibutaria de tendéncias do clima cultural geral. Assim, a estereotpla, primeiramente designa a propensdo do individuo ant-serita a enxergar © outro, no caso 0 judeu, segundo as lentes do cliché pré-fabricado: o judeu como um Certo tipo fisico, certos habitos ete. Ocorre que, para o preconceito anti-semita a expe- riéncia pessoal com os judeus nao tem lugar: ola 6 deformada pela mentira do esteres- tipo, de modo que um judeu percebido como “bom” ja ser automaticament classifica: do como a excago que continma a regra. Fol possivel observar na pesquisa com 08 5 Ch DE, 18288, ALVES, JR, Douglas Garcia, Theodor Adomo e a psicologla do ant-semitsmo sujeitos que a estereotipia acaba por formar um esquema de apreensio do outro. No caso especitico, o esquema ant-judeu se cristaiza em trés crengas basicas: 1) a de due hé um “problema judeu” na sociedade; 2) a de que os judeus so todos iguais; 3) ‘ade que se pode sempre reconhecer um juscu no meio de outras passoas (AP, 58168). Como se pode faciimente perceber,o dvércio com relagao a experiéncia néio-deforma- da caracteriza esse tipo de orientago subjetiva, O estereétipo acaba por assumir um “caréter funcional” para aqueles individuos, na medida em que fomece um modelo pronto ¢ inquestionavel de conduta, sob medida para aqueles que néo conseguem se ‘rientar por seus préprios meios (AP, 572) Nese sentido, o mecanismo da personalizaeo vem conferir uma espécie de coeréncia, na verdade rigidez, ao esterestipo. Com eteito, 0 individuo preconcsituoso, ao crer que as razes de sua disposicao anti-semita se encontram na sua prépria experiéncia pes- ‘s0al personeliza 0 que na verdade é um fantasma: o seu temor @ édio as difusas forcas de dissolugao encarnadas supostamente na figura do judeu (AP, 581, 589). Ao persona- lizar os motivos de seu preconceito o anti-semita Ine confere uma aparéncia de recionalidade, vale dizer o justifica. Assim, seriam os judeus 08 culpados pelo seu pre- conceito: eles “izeram por merecer” (AP, 581). Um dos sujeitos entrevistados, dentre os muitos exemplos fomecidos por Adomo, expressa da seguinte forma essa tendéncia: “Nunca pude entender porque Hitlor foi tio brutal com eles. Tem que ter hhavido algo, uma razdio que o provocasse. Alguns aizem que Hitler que- ra mostrar sua autoridade, mas eu duvido. Suspelto que os judeus con- {ibuiram muito para que 2s coisas fossem assim" (ctadoem AP, 591). A projetividade embutida nesse tipo de afirmag&o expressa um trago fundamental da dinmica subjetiva do anti-semitismo. Ela designa a tondéncia a atribuir ao judeu soja uma soxualidade desenfreada, seja designios de agresséo, bem como uma longa sé- Tle imagindria de tragos ‘Judeus’ como excessiva parciménia, ‘espirito de cla’ intelectualismo exagerado etc. (AP, 577,581s8). A configuragao psicolégica do at semitismo seria préxima a da paranéia, em sua alienagao do real, compulsividade & totalitarismo, sendo a projatividade: 1.8 expresso de um trago psicolégico que, provavelmente, so- mente se poderia compreender plenamente em relacao a teoria da parandia @ ao ‘sistema’ parandide, que sempre tende a incluir tudo, a nao tolerar nada que o sujeito néo possa identificar me~ diante sua formula propria’ (AP, £93) REVISTA DE ESTUDOS JUDAICOS. Belo Horizont, 50-58, ag0./2001 Nesse sentido, a atribuigsio de uma série de culpas ao judeu responderia a necessida- des internas do anti-semita, na qual a projego da prépria agressividade e culpa é racionalizada naquelas fantasias de agresso onde os judeus sempre ‘fizeram por merecer’ (AP, 693s). De maneita anéloga, o judeu & identificado com aquilo que nao & Puro, com a sujeira © a doenga, com tudo o que ameaga a imagem de coesdo parandide do grupo a que pertenco o anti-somita: "Assim como as idéas que tem como tema central o ‘sangue judeu! ‘Wao desde o temor de que a raga se corrompa’, conceito no qual o termo sangue tem somente um sentido figurado, até ahisteria de que 9 sangue doado por judeus ‘envenena o corpo’, as imagens corres- Pondentes agressividade se estendem desde as que pintam os judeus como empurrando com os cotovelos os demais quando esto Ruma fla até suas supostamente desapiodadas praticas comerciais. ‘Tal coisa assinala o trago ‘mitol6gico’ do anti-semitisma" (AP, 601), Esse complexo parandide, na verdade tetia a ver com mados muito primitives @ com uma reduzida plasticidade do ego. Um desenvolvimento libidinal prablematico, em que a identificagao com a imago patema foi apenas parcialmente sucedida impde um superego rigido e punitivo. Assim, sem recursos préprios para lidar com suas ansiedades basicas, 4 projetividade assume uma proaminéncia na vida psfquiea do individuo anti-somita: “seus desejos radicais de que se extermine os judeus estéio provavel- "mente concicionados por profundos traumas da primeira infancta: pro- jegdes do sou proprio temor de castragao, Sua exagerada identiica- {?80 com o endogrupo parece concomitante com um subjacente sent ‘mento de debilidade: simpiesmente ndo deseja conhecer aquilo que é diferente, ao que parece, porque o considera petigoso" (AP, 596). 2. Implicagées Ui, Se retomarmos os termos da questio tal como desenvolvidos até aqui, veremos como se toma compreensivel a afitmapao edomniana segundo a qual “o horror. esta além do alcance da psicologia (Minima Moralia, p. 144)". Com efeito, se as tendéncias Psicolégicas individuais aparecem como simples condutoras de processos multe mals _amplos da estfera total da sociedade, impte-se a necessidade de uma nova considera- {0 do psicolégico. Esse nao ¢ simplesmente suprimido mas, ao invés, considerado Como instancia ao masmo tempo iredutivel ao social e mediada pelo social. € a com- preensio adomiana do psicoldgico como o néo-idéntico (Nichtidentisct). CARONE F ALVES, JR., Douglas Garcia. Theodbr Acomo e a psicologia do ant-semifsmo (1996) percebe essa tensdo ac falar de uma psicologia negativa em Adorno, para a qual, segundo as palavras de Adorno, “o sujelto psicolégico deixa de ser meramente psicolégioo" (SP,56). Ou seja, a subjetividade do individuo psicol6gico nao pode ser ‘concebida como um momento fechado em si mesmo mas, antes, ola é o particular no qual o universal das tendéncias sociais so encarna, Ao mesmo tempo, a esse particu: lar enquanto condutor das tendéncias do todo permanece sempre um elemento nao- sSubssumivel a esse todo. O psicolégico 6 esse momento de resisténcia e de negagao: Medido pelo conceito, o individual tomou-se de fato tao nulo como 18 0 antecipava a filosofia de Hegel; sub specie individuationis, Porém a contingéncia absoluta, essa sobrevida anormal ¢ tolera- da, € ela propria o essencial (MM, 98), O psicolégico ae mesmo tempo como aquilo que © processo de totalizagao universal faz ‘tender a0 nulo e como o essencial sinteliza em seus minimos elementos a compreenso ‘adomiana da questio, Nesse sentido, 0 conceito do psicolégico inclui a antitese entre a ltracionalidade psicol6gica (0 néo-idéntico no sujelto) e a pseudo-racionalidacle do todo (GP, 46). Qualquerculto do psicolégico com estera isolada compactua com a desumanizagao fem curso, na medida em que sustenta a ilusdo de que o destino de cada um depende apenas de sua propria psicologia (SP, 47). Num processo em que a sociedade caminha cada vez mais rumo a integragao © dominio do psicolégica, que nunca fol um dominio fochado, se rende, sob a forma da censura interiorizada, aquelas tendéncias dominantes do todo. Assim, o psicolégico enquanto dominio do nao-idéntica - ao mesmo tempo, tam- 'bém, do utiizével pelo interesse da dominagdo, encerra a promessa de uma superagio esse estado de coisas. Promessa que somente tem sentido se puder transoender a si- tuagao social responsavel pela liquidago tendencial do psicol6gic AA falta de sincronia entre o inconscionte @ a consciéncia é em si ‘mesma um estigma do contraditério desenvolvimento social. No in- cconsciente se sedimenta o que nunca progride no sujeito, 0 que tem de pagar a conta do progresso 0 do esclarecimento, © residue ‘se tomna algo ‘intemporal’. Nole s2 refugiou também a exigéncia de folcidade, que se apresenta de fato como ‘arcaica’, tfo pronto se irige para uma desfiguada forma de satisfagéio (SP, 53). Nesse sentido, assoma a preocupagdo adomiana com o que ele chamou de recupera- 40 do momento de natureza no sujeito. Essa temética atravessa grande parte da obra de Adorno e dificilmente poderia ser resumida aqui, Para nossos propésitos, basta indicar que, para Adomo, a constituigao repressiva do Eu idéntico a partir do dominio EVISTA DE ESTUDOS JUDAIGOS. Belo Horizonte, 8:50-58, ago/2001 das pulses € contrastada com uma outra forma possivel de individuagao, em que a rentincia ao impulso fosse, ao mesmo tempo, expressao néo-deformada daquelas necessidades puLsionais recalcadas pela civilizagao, das quais a brincadeira infantil, co teatro, a atividade intelectual desinteressada so exemplos paracigmaticos* (Odea de uma vida ndo-mutilada aparece, em negativo, de toda essa discussao a respei- ‘0-da psicologia do anti-semitismo. Vamo-nos inesperadamente langados ao fundamento tealégico judaico do pensamento de Adorno, centrado no pensamento da redengéo do soffimento humano, o que jé seria tema para um outro estudo. Assim, como um sinal, finaizamos com um fragmento que expressa bem essa visada teolégica que emerge da considerago dos problemas relacionados uma psioologia do anti-semitismo em Adomao: "Do Eujé nao se deveria falar como de um fundamento ontol6gico, mas quando muito apenas em termos teol6gicos, em nome da imagem @ semelhanga a Deus. Quem se aferra ao Eu puro e se desembaraca dos conceitos teolégicos contribui para legitimar a diabdiica positvidade, 0 interesse nue cru" (MM, 136). Referéncias bibliograticas ADORNO, T, Acerca de le relacion entre sociologia y psicologia. In; JENSEN, H. Teoria critica del sujeto. México: Siglo Veintiuno, 1986. ‘Minima Moral; reflexdes a partir da vida danificada. Trad. Luiz Bicca. So Paulo: Atica, 1992. HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento, Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ecitor, 1985, . SANFORD, N., BRUNSWICK, E. F,, LEVINSON, D. La personalidad Auto- ritéria. Trad. Dora y Aida Cymbler. Buenos Aires: Editorial Proyeccion, 1965. CARONE, |. A questio da ideologia em ‘A parsonalidade autortaria’ 1996. (Mimeogr) KANT, L,, Critica da FRazao Pura. Trad, Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. S40 Paulo: Nova Cultural, 1987-88. “Resse respalto Ct. IMM, 60, 78, 83, 200; e DE, 161, 169, 173, 6 Os testemunhos dos sobreviventes judeus alemaes residentes no Brasil — uma analise semiética' Izidoro Blikstein Eu gostaria, em primeiro lugar, de exprimir meu reconhecimento profundo & Fundagaio Auschwitz a Fundagao pela Meméria da Deportacao de terem me convidado a parti- cipar do Segundo Encontro Audiovisual Internacional sobre o Testemunho dos Sobre- viventes dos Campos de Concentragao e de Exterminagdio des Judeus. O meu relaté- rio sobre os testemunhos dos sobreviventes judeus alemaes residentes no Brasil com- pde-se de trés partes: 1) observagdes metodoligicas; 2) relatério quantitativo; 3) ava liagdo qualitativa, 1. Observages motodolégicas Gostaria de apresentar algumas observag6es preliminares relativas ao nosso projeto de gravagio audiovisual e de andlise semidtica dos testemunhos dos sobreviventes judeus alamaes, residentes no Brasil. Antes de tudo, me parece necessétio justificar a escolha: por que os judeus alomaes? Entre os varios excelentes resultados dos proveitosos debates sobre os trabalhos apresentados no Primeiro Encontro Internacional (setembro de 1994), nos demos conta de uma questo que nos pareceu fundamental anecessidade de um controle — baseado nos principios teéricos e metodolégicos ~ da imensidade e da variedade dos dados que podemos extrair dos tastemunhos. Na ver- dade, sabemos muito bem que ndo é suficiente colocar uma maquina fotogratica dian- te da testemunha ¢ deixé-la falar: sempre respeitando o testemunho na sua inte- gralidade, nos pareceu pertinente que as gravagdes fossem feitas a partir de um ponto de vista determinado, senéo correriamos 0 risco, segundo a adverténcia do Y. Thanassekos e de M. Cling, de *..er como resultado a formacao de uma massa impressionante de dados fugitives, dispersos, desorganizados, vulneréveis a even- tualidado das circunstancias, dados estes compartimentados dentro * Palestra traduzida do francés por Aléxia Duchowny.

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