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Vers une musique informelle (1961) Quase una fantasia/Escritos musicais II

(Em direção a uma música informal)


Tradução de Eduardo Socha

Inventei a expressão francesa musique informelle como pequeno sinal de gratidão ao


país no qual a tradição de vanguarda coincide com a coragem de produzir manifestos.
(p. 379)

Não é possível definir musique informelle em termos cristalinos e positivistas. Se a


expressão designa uma tendência, algo que está em devir, então ela mesma impede
definições [...]. Para esclarecer minha concepção de música informal, não posso
fornecer um programa de música atemática, nem uma lei da probabilidade para
distribuição de pontos sobre uma partitura, nem nada do gênero. No entanto, gostaria de
pelo menos indicar o horizonte desse conceito. O que se propõe aqui é uma música que
descarte aquelas formas impostas de maneira externa, abstrata, inflexível; que, ao
mesmo tempo, uma vez livre de imposições heterônomas, se constitua de maneira
objetiva e necessária no próprio fenômeno sonoro. Caso seja possível realizar essa
tarefa sem recair em uma nova forma de opressão, tal libertação deveria também
procurar se desfazer do sistema de coordenadas musicais sedimentado no interior dos
próprios fenômenos. (p. 379-380)

Diante de uma suposta objetividade musical, deve-se retomar aquele processo que
Schoenberg acabou interrompendo no momento em que sua genial invenção parecia dar
novo impulso a esse mesmo processo. Uma musique informelle deveria buscar
novamente, e sem concessões, a ideia de uma liberdade ainda não imaginada. (p. 382)

[...] “perda de tensão”. O enfraquecimento socialmente real do indivíduo, que todos


percebem, também se faz perceptível na arte. (p. 392)

Os esforços de Cage e de sua escola no sentido de erradicar todos os ꞇόποι não


pretendiam restaurar um ideal subjetivo-orgânico, uma vez que desconfiavam aí de certa
sobrevida dos ꞇόποι. [...] Tais esforços, porém, ainda não bastam para uma musique
informelle. Como blague, eles zombam da cultura na frente da humanidade, algo que
tanto a cultura quanto a humanidade de fato merecem. Mas não fazem isso como um
gesto de barbárie; antes querem demonstrar o que essa cultura e essa humanidade
fizeram uma com a outra. (p. 432)
ꞇόποι ‒ lugar(es) comum(ns) [índice da TE]

Em última análise, nada escapa das malhas da sociedade administrada. Ela integra tudo,
inclusive o que é mais contrário a ela. [...] Hoje é possível compor qualquer coisa que
venha espontaneamente à cabeça; cabe refletir sobre as razões que motivam essa escrita
e essa “espontaneidade”. De todo modo, o projeto de Cage e a música informal
convergem em pelo menos um ponto: no protesto contra a teimosa cumplicidade da
música com a dominação da natureza. (p. 432-4330

Seria mais fácil ridicularizar o traço de loucura do que reconhecer a utopia para a qual o
absurdo dessa provocação fornece abrigo: escapar da mentira da plenitude de sentido,
mas cujo sentido é simplesmente fornecido pelo sujeito. Seria difícil a uma musique
informelle evitar o elemento abstruso [desordenado], tanto quanto planejar esse
elemento. A música totalmente organizada e racionalizada perpetua a compulsão da
forma. A música informal não prescinde dessa organização, mas o abstruso torna-se o
destino fatídico de sua própria natureza questionável. (p. 433-434)

A aparência estética não pode ser eliminada da arte. Mesmo a arte sem aparência não
seria imediatamente idêntica à realidade empírica; a aparência sobrevive, mesmo
quando não deseja mais ser aparência. O elemento de irrealidade da arte não se
confunde com a ilusão e o engano execráveis. Em outras palavras, na arte, mesmo a
negação de sentido tem um sentido. A obra de arte não pode ser reduzida a fatos, pois
cada obra é sempre mais do que é. A prova disso está no fato de que mesmo aquelas
obras que procuram eliminar rigorosamente qualquer tipo de coerência, como o
Concerto para piano, de Cage, acabam criando, precisamente em função de seu rigor,
uma nova coerência. Nada nesse Concerto poderia estar mais distante da música
tradicional, e no entanto mesmo aí não faltam certas afinidades. (p. 436)

Todavia, se a arte realmente deseja revogar a dominação da natureza, se ela visa uma
situação na qual a humanidade não mais exerceria o controle através do espírito, então
só conseguirá atingir esse objetivo mediante a dominação da natureza. Apenas uma
música no controle de si mesma é capaz de controlar sua própria liberdade, de estar livre
de qualquer compulsão, inclusive da sua própria. Analogamente, apenas em uma
sociedade racionalmente organizada desapareceria, junto com a falta, a necessidade de
repressão por meio da organização. Em uma musique informelle, os momentos hoje
deformados da racionalização seriam superados em uma racionalidade positiva. Apenas
o totalmente articulado na arte fornece a imagem de uma realidade não mutilada e, por
extensão, a imagem da liberdade. Uma obra de arte completamente articulada, que
escapa da simples existência orgânica graças ao seu extremo domínio do material, é por
sua vez aquilo que está mais próximo do orgânico. (p. 438)

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