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Four Theses on Aesthetics

Rizvana Bradley and Denise Ferreira da Silva


Por que repensar a estética agora, quando a catástrofe se tornou a palavra de
ordem do dia, e quando todo pragmatismo, exceto o mais restritivo, poderia
facilmente ser interpretado como pouco mais do que frivolidade burguesa? Não
será esta, afinal, a era dos "sintomas mórbidos" de Antonio Gramsci, em que as
muitas cabeças do fascismo estão se levantando em todo o mundo? Contudo, o
fascismo, que a modernidade liberal e a sociedade civil sempre exigiram, nunca
respeitou a separação mentirosa desta ordem entre o político e o estético. O
genocídio, agora como antes, é um projeto estético. A questão, então, não deveria
ser por que repensar a estética agora, mas sim como sobreviver ao regime estético
que esculpe e encerra a própria forma da nossa pergunta? "A questão1 da
negridade", para tirar da minha própria boca as palavras de minha cúmplice
Denise Ferreira da Silva, só pode ser enunciada através da perda da voz, ou melhor,
cedendo à poli vocalidade que já é sempre a condição de possibilidade de fala.
Assim, ao escrevermos juntas, Da Silva e eu não buscamos tanto uma síntese
teórica, mas sim uma reticulação2, um arrebatamento dos fios de nosso
pensamento, que já se retorciam e se esgarçavam no(s) texto(s) uma da outra.
Quatro teses, outra declinação da tríade Hegeliana. Nossa proposta aberta.
-Rizvana Bradley
Uma conversa pode e geralmente é entendida como um encontro, uma
convergência, mas que pode ser - e as melhores conversas (que também são outro
nome para colaborações) são - nada mais do que aquilo que acontece ali, naquele
momento, sob essas circunstâncias, para esses fins particulares. Essa conversa,
nossa convergência, não é tanto uma oferta, mas um convite ao leitor para
participar e aprofundá-la.
—Denise Ferreira da Silva
Infinidade
O mundo, como a onto-epistemologia totalizante que é a gênese, o limite e o
horizonte da modernidade, é um conceito totalmente estético. Trabalhar ou
protestar contra o campo da representação já significa se enredar na estética, pois
é por meio da estética que o terreno ontológico em que se diz que nos situamos se
torna experiência. Nesse registro, o Homem - o eu transparente, o sujeito universal
que faria o mundo, senão como lhe agrada - aparece, a propósito de Sylvia Wynter,
como nada menos que o homo aestheticus.
Essa é a figura ontológica consolidada no pensamento europeu pós-iluminista, cuja
pressuposta capacidade de autodeterminação e autodesenvolvimento é
indistinguível do deslocamento expropriativo do emaranhado ecológico que anima

1
Em inglês: The quest(ion)
2
Tessitura
a (bio) história e, ainda, equivale à capacidade de experiência estética e
julgamento.
O sensus communis do Sujeito, é claro, só emerge através da excomunhão
constitutiva do Selvagem (O CONQUISTADO3), do Negro (A mercadoria4), do
Primitivo (O OUTRO) e do Tradicional (O subdesenvolvido) - figuras que, no
entanto, vêm a assombrar o Homem como portadores de uma dissonância
ontológica, uma decadência imanente, poderíamos chamar de negridade5.
O que mais se pode dizer sobre o conquistado, a mercadoria, o outro e o
subdesenvolvido, além do fato de que se aplicam a todos os que não se enquadram
nas fronteiras espaço-temporais da figura do Homem pós-iluminista, ou seja, o Eu
transparente? Não muito, seria a resposta apropriada, se tudo o que for levado em
conta é o que é oferecido por meio das restrições do pensamento dicotomista. Isto
é, se a questão não fosse levantada sobre as condições sob as quais a força
protetora universal mantida pelo ético se estenderia a alguns humanos (supondo
que essa força seja legada pelo governante divino ou autor, em seu domínio da
forma transcendental que é razão). Se a questão não fosse levantada, isto é, sobre
por que a negridade é tão “naturalmente” visitada pela violência total e simbólica.
Quando a força categorial da negridade é confrontada com a violência total que sua
trajetória histórica não pode deixar de lembrar, ela não pode deixar de refratar e
fraturar o baixio transparente (o limiar da transparência) que protege a
ontoepistemologia do Sujeito em seus momentos científicos e estéticos. A
exposição total da negridade tanto habilita quanto extingue a força do programa
ético moderno, na medida em que a capacidade disruptiva da negridade é uma
questão6 em direção ao fim do mundo. A negridade é uma ameaça aos sentidos,
um questionamento radical do que vem a ser trazido sob os (termos do) "comum".
Se o mundo ordenado garante significado porque é suposto ser conhecível, e
apenas pelo Homem, se esse mundo é tudo o que o comum pode compreender,
então a nedridade (re)volta7 a existência para a expansão: nos destroços do
espaçotempo, corpus infinitum.
Re/De/composição
Pensar a obra de arte como poética, como “uma composição que é sempre já uma
recomposição e uma decomposição de composições anteriores e posteriores”,
requer estar posicionado para o advento do devir como matéria e sua interrogação
imanente da temporalidade das formas.1 Em contradição a entendimentos da obra
de arte como uma totalidade autônoma, ou aqueles que consignariam a obra de
arte a alguma iteração da forma finalis de Kant - isto é, a atribuição redutiva de um
propósito formal ao objeto - uma leitura poética enfatiza o terreno provisório onde
questões de forma , ausência de forma e abstração colidem. A obra de arte, uma

3
Em inglês: “the conquered”. Também pode ser traduzido por “vencido”.
4
Em inglês: “commodity”.
5
Em inglês: “blackness”.
6
Em inglês: The quest(ion)
7
Em inglês: “re-turn”
composição singular, não precisa simplesmente antecipar ou reiterar questões que
presumem os princípios formais da causalidade externa (causa efficalis), da
determinação interior (causa finalis) ou da percepção abstrata (causa formalis).
Pois esses sentidos, calcificados como as únicas ferramentas para compreender a
natureza (o reino da objetividade) e o mundo (o reino da subjetividade), têm
sustentado a tautologia do pensamento moderno precisamente por serem
tornados axiomáticos. Uma vez liberada da antecipação da ordem e da presunção
de significado, a obra de arte se liberta de suas obrigações representacionais para
com a natureza e o mundo. Como obra poética, a obra de arte estende os
questionamentos8 de causa materialis, o indeterminável da contemplação.
(Re)transformando-se em e como forma(s), um descritor poético da existência não
pressupõe linearidade nem seus predicados, separabilidade e determinação. A
reorientação que a arte poética convida expressa as infinitas re/de/composições
que o espaçotempo normativo excluiria.
As intensidades axiais de verticalidade e horizontalidade, a linearidade estrita, a
coloração primária, que sinalizam o legado formal da abstração, não indicam tanto
uma geometria restritiva ou cromaticidade truncada quanto um conjunto aberto,
onde, por exemplo, até a fidelidade de uma linha ou os vértices de um quadrado
podem ser executados com ênfase na improvisação. A obra poética deforma o
imperativo teleológico da intencionalidade e a demarcação racial da
(in)capacidade de julgamento estético que esse imperativo necessariamente
(re)inscreve. A obra poética tende à revelação de que tal esforço para reduzir,
disciplinar e conter a pesada materialidade do mundo já é sempre um exercício de
futilidade. Podemos pensar em serialidade e deformação não como desvios formais
dos principais paradigmas da arte modernista, mas como práticas estéticas que
promovem a decomposição do cânone histórico da arte e da canonicidade como
tal. Tal decomposição é alcançada não por um método de subversão, mas pelo
acúmulo de (re)voltas9 sub-reptícias10, que se acumulam ruinosamente sob o signo
da obra de arte autorizada. A proliferação em série de retornos expõe a obra de
arte autônoma como, ela mesma, nada mais do que uma re/de/composição, uma
“assemblage” contaminada de citações e de/formações.
Serialidade
O fracasso perene do homo aestheticus requer a renovação perpétua da estética,
uma operação que, independentemente de suas belezas ou horrores, não pode
deixar de ser a renovação da catástrofe. Mas essa história de revitalização estética
é precedida e superada por um outro tipo de inovação, que podemos chamar de
estética, ainda que a estética nunca possa explicá-la. O que, então, podera abrir e
ser aberto por uma investigação sobre as práticas negras de serialidade? O que
toma forma, ou é deformado, na "difusão do terror e da violência perpetrada sob a
rubrica do prazer, paternalismo e propriedade", como afirma Saidiya Hartman?2
Como chegar a um acordo com tal auto-modelagem serial sem recorrer a uma ideia

8
Em inglês: “question(ing)s”
9
Em ingLes: “(re)turns”
10
Feito às escondidas, conseguido por meios ilícitos, fraudulentos, clandestinos.
do aberto em que a ausência de bordas11 se torna apenas outro nome para
fronteira12, ou seja, um involucro, uma expropriação, uma justificação13?3 Pois a
historicidade interminável e a história impossível da negridade sempre precedeu a
horizontalidade da liberdade do Homem, como sua condição14 apagada e limite
inelutável. Como encaramos a re/de/composição insistente e contínua da figura
(negra), em meio à simultânea exaltação e redução ou relegação do figural ao
cenário da representação racial na arte contemporânea? Como podemos
compreender essas figurações como parte de um conjunto de intervenções - uma
serialidade epigráfica, como Fred Moten poderia colocar - que denota não a recusa
da violência imposta em série como fim político, mas antes o meio reanimado pelo
qual deve passar qualquer investigação estética da vida social da forma?4
Insistimos que, mesmo que tais meios carreguem o terrível fardo do terror difusivo
e o terror da difusão, a serialidade negra não pode ser pensada como redutível à
separabilidade, sequencialidade ou à determinação de formas e objetos
individuados . Em outras palavras, nosso pensamento estético se recusa a
presumir a serialidade negra como totalmente coincidente e coextensiva com a
imposição serial da violência antinegra que constitui o campo moderno da
representação e a história da forma, como se a enumeração violenta de corpos
negros fosse verdadeiramente um livro-razão ou uma contabilização de
ferimentos.
Aqui, a arte negra encontra uma relação antecipada com os movimentos de arte de
vanguarda e suas respectivas performances de recusa - a rejeição da despossessão
do modernismo, por exemplo, que também é uma cartografia da descartabilidade,
descaso, violação abusiva, apagamento cultural e morte social. No entanto, o
próprio fato de essas performances serem ambas negadas e recusadas pela
negridade põem em relevo a radical disjunção entre essas respectivas modalidades
e tradições de trabalho artístico. O trabalho artístico negro, que toma o tecido e a
substância da existência social como um meio alternativo de produção, refracta os
legados conceituais da totalidade autônoma da obra de arte, e se interroga sobre a
imagem deixada na retina. Em vez de pensar a negridade como diferença, apesar
da violência mundial, consideramos a recomposição e decomposição serial da
negritude como uma incitação a um gesto imaginativo15 totalmente divergente.
Nossa atenção crítica a esses incitamentos permanece sintonizada com uma
diferença gestual irredutível, tanto à violência serial do regime racial de
representação quanto à chamada “política” que clama por reconhecimento dentro
dele.5

Generatividade

Se a obra de arte poética não está mais preocupada com os perigos de se afastar da
onto-epistemologia da modernidade e sua representação da existência por meio
das certezas do ser, então como as considerações estéticas podem começar e

11
Em inglês: “Boundlessness”
12
Em inglês: “frontier”
13
Em inglês: “na enclosure, na expropriation, a clearing?”
14
Em inglês: “footing”
15
Em inglês: “gestic imagination”
permanecer com o "objeto" - que é ao mesmo tempo “coisa” assim como
“mercadoria” e “outro” - sem retornar ao Homem ou ao Sujeito, ao Humano ou à
Humanidade, ao Ego ou à Subjetividade. Se nosso pensamento estético começa com
o “outro” como mercadoria, como lembra Hortense Spillers, ele inevitavelmente
(re)confronta a violência que é a condição de possibilidade da modernidade,
devastando qualquer consolo que possa ser encontrado nas figurações da matriz
colonial, racial e cis-heteropatriarcal?6 Tal pensamento reinscreve inevitavelmente
a subjugação como origem e horizonte? Ou a estética, como tematizada na e como
existência negra, como uma orientação ética radicalmente disruptiva, encena um
confronto devastador com a filosofia moderna que, em última análise, visa seu
fundamento estético, teórico e ético? O que acontece quando a negridade orienta
as considerações estéticas, éticas e teóricas? Aqui estão duas proposições: (a)
Black Study revoca o sônico e o mobiliza contra o fechamento discursivo da
negridade na patologia; e (b) ao fazer isso, desorganiza o campo onto-
epistemológico do pós-Iluminismo. A negridade (como objeto) perturba o terreno
(estético) sobre o qual emerge o Eu transparente. Por isso, a análise e poiesis da
Black Existence desafia os princípios da Teoria Social e da Teoria Estética
precisamente porque, como referente à violência total, rompe o cerco que é o
discurso e expõe as limitações de ambas as versões pós-iluministas da ontologia
moderna, a filosófica e a sociológica.

Black Study reorienta a conversa no cenário artístico internacional


contemporâneo, ao introduzir às ferramentas críticas da filosofia contemporânea
um conjunto de conceitos, formulações e perguntas que contornam, sem ignorar, o
que de outra forma permaneceria o núcleo eurocêntrico não perturbado desta
última. Black Aesthetics - isto é, aquela que fomenta, facilita e modula a
"enunciação negra" - sinaliza um outro local para a análise da criação artística, da
existência coletiva e da prática política. Como tal, ela fornece a base para um
projeto que milita contra e mina seriamente a arquitetura política liberal moderna,
em suas violentas configuração e operação pós-Iluministas, bem como os duplos
fascistas que o liberalismo de uma só vez exige, solicita e desmente sem convicção.
A Estética Negra é uma afirmação que, em seu imanente desarranjo da gramática
da modernidade, marca e é marcada pela arte da passagem sem coordenadas ou
chegada, a arte da vida na partida.

Tradução de Marina Feldhues

1
Denise Ferreira da Silva, “In the Raw,” e-flux journal, no. 93 (September
2018) →.
2
Saidiya V. Hartman, Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in
Nineteenth-Century America (Oxford University Press, 1997), 4.
3
Cf. Tiffany Jeannette (Lethabo) King, “In the Clearing: Black Female Bodies,
Space and Settler Colonial Landscapes” (PhD diss., University of Maryland,
College Park, 2013).
4
Fred Moten, The Universal Machine (Duke University Press, 2018), 230.
5
David Lloyd, Under Representation: The Racial Regime of Aesthetics (Fordham
University Press, 2018).
6
Hortense J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar
Book,” Diacritics 17, no. 2 (Summer 1987): 64–81.

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