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Marco Aurélio Luz (Org.

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IDENTIDADE NEGRA
E EDUCAÇÃO

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N. Cham. : 301.2981 L994 i


2981 Autor: Luz, Marco Aurelio,
14i Título Identidade negra c e ducação.

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Identidade Negra e Educação

Doado por
“Prof. Dr Paulo Cezar Martins
Julho 12018

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Outros títulos dos º .
CADERNOS DE EDUCAÇÃO POLITICA:

E Folclore e política
Nélson de Araújo.

arquias
oligis
m Coroené
Wilson Lins, Cid Teixeira, Gustavo Falcón e Maria Alba
Machado Mello.

E Fisiologismo político e qualidade da educação


José Arapiraca.

m O professor leigo
Iracy S. Picanço, Maria Nelma de Castro Santana, Ana Maria de
Carvalho Luz, Olga Regina Vieira Sant'Anna, Odile Angelim
Gomes de Lima, J. F. de Sá Teles, Ana Maria Pita de Melo,
Robert Evan Verhine, Coriolinda Vasconcellos de Carvalho,
Jacy Celia de França Soares e Mary de Andrade Arapiraca.

E A tirania da escrita
Moniz Sodré.

E Escolas de produção comunitária


José Arapiraca.

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Pess
Marco Aurélio Luz (org,) (8º “0

IDENTIDADE NEGR À
E EDUCAÇÃO

Salvador, Balfia
1989

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04 gia id
99
) e! 1989 by Marco Aurélio Luz (Educação e pluricultura na
À, cional), Deoscoredes M. dos Santos (O caçador e os orixás do
3? mato), Sandra Maria Bispo (Algumas reflexões sobre a religião
o afro- brasileira), lê Aiyê (O conceito de política nos blocos
É: negros e afoxés), Narcimária Correia do Patrocínio (Por uma
U educação pluricultural), Ana Célia da Silva (Ideologia do em-
branquecimento), Vanda Machado (O negro, constituinte da
sua liberdade), Florentina Souza (Breves notícias de Luiz
Gama: “o Orfeu de Carapinha' ), Hamilton Vieira (Tranças:
a nova estética negra) e Januária Avelina Correia do Patrocínio
(Abolição: sim ou não?).

Direitos para a língua portuguesa adquiridos por


Edições Ianamá.

Editor da coleção: José Arapiraca.

Para fins acadêmicos, não comerciais, permite-se a livre repro-


dução, desde que mencionada a fonte.

Capa: ilustração de José Maria Sousa, a partir de fotografia


cedida pela Secneb.

: “Luz, Marco Aurélio (org.)


L979i Identidade negra e educação. Salvador, Ianamá,

p. (Cadernos de Educação Política).


ISBN 85-85 15 1-09-9.

Il. Cultura — Brasil. 2. Negro — Brasil. 3.


Educação — Negro —. Brasil. I. Título. II. Série.

CDD 301.2981

EDIÇÕES IANAMÁ
Av. EE.UU., 18 — Edf. Wildberger, conj. 318/24
40010 — Salvador, BA.

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APRESENTAÇÃO

“Identidade Negra e Educação” reúne distintos traba-


lhos que procuram estabelecer uma nova percepção
sobre as políticas educacionais e o sistema de ensino no
Brasil, um país caracterizado pela pluralidade cultural
e multiplicidade racial.
Até onde e como um país que se caracterizou histo-
ricamente como colonizado e escravista, e que adotou
uma política de embranquecimento desde a sua inde-
pendência, projeta os interesses neocoloniais e imperia-
listas de valores eurocêntricos no sistema de ensino?
De que forma se constitui o que chamamos de peda-
gogia do embranquecimento e em que medida essa
pedagogia é responsável pelo elevado índice de evasão
escolar e do relativo fracasso da educação no Brasil?
Esses são os principais temas desenvolvidos, que
procuram demonstrar, de um lado, a pujança do pro-
cesso civilizatório negro, constituinte da identidade da
maioria do povo brasileiro, e de outro, uma pedagogia
assentada em paradigmas etnocêntricos, evolucionistas,
eurocêntricos e racistas que têm aprofundado o des-
compasso entre a maioria da população e a sociedade
“oficial”, entre a Nação e o Estado, concorrendo para
o agravamento do genocídio causado pela politica de
abandono e enfraquecendo as aspirações de soberania

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6 APRESENTAÇÃO

nacional frente às correntes do cativeiro da ordem


internacional neocolonial,
Procuram, ainda, demonstrar as formas como se pro-
cessa a luta pela afirmação da identidade no âmbito
escolar e sobretudo estabelecer novos caminhos para
uma educação aberta à pluralidade cultural, ao respeito
à alteridade e ao direito à existência própria.
Salvador, 30 de janeiro de 1989.
Marco Aurélio Luz

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SUMÁRIO

Educação e pluricultura nacional


por Marco Aurélio Luz... 9
Odé ati awon orisá ibo
O caçador e os orixás do mato
por Deoscoredes M. dos Santos ( Mestre Diai).... 19
Algumas reflexões sobre a religião afro-brasileira
por Sandra Maria Bispo..........tees 25
O conceito de política nos blocos negros e afoxés
pelo Iê Aiyê......... eee rre rrenan 33
. Por uma educação pluricultural
por Narcimária Correia do Patrocínio .............. 43
Ideologia do embranquecimento
por Ana Célia da Silva........... eee enrantaanaa +.
+ O negro, constituinte da sua liberdade
por Vanda Machado ...........eeeeeeeereerermenmanss 654
Breves notícias de Luiz Gama:
“o Orfeu de Carapinha”
tada
por Florentina Squza..........- Terrestre 75
Tranças: a nova estética negra
por Hamilton Vieira ...s.....cescaeeneeeeeesereeeeeeeenes 81

Abolição: sim ou não? =


por Januária Avelina Correia do Patrocinio ....... 89

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EDUCAÇÃO E PLURICULTURA
NACIONAL
44% %
Marco Aurelio Luz

Um dos problemas mais graves enfrentados pelos países


do Terceiro Mundo e ex-colonizados diz respeito ao
sistema de ensino.
O sistema de ensino que foi implantado e desenvol-
vido nesses países em geral é uma herança do colonia-
lismo e, como tal, se constitui num aparelho ideológico
do Estado, voltado para reproduzir e divulgar os va-
lores evolucionistas, etnocêntricos ou eurocêntricos,
assim como para atender às necessidades técnicas de
uma economia atrelada ao mercado de trocas comer-
ciais neocoloniais.
Nesse sentido, o sistema de ensino se constitui num
mecanismo de tentativa de desculturação e, portanto,
de despersonalização dos habitantes desses países,
caracterizando-se como sério obstáculo para uma verda-
deira identidade e profunda independência nacional.
Outro aspecto importante a destacar é que esses paí-
ses se constituíram, de modo geral, a partir e em fun-
ção dos interesses das metrópoles européias em dividir
entre si as áreas territoriais de exploração das riquezas

* Professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade


Federal da Bahia, diretor da Sociedade de Estudos da Cultura Negra no
Brasil (Secneb) e representante do Conselho Consultivo do Instituto
Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Intecab).

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10 MARCO AURÉLIO LUZ

e da força de trabalho na forma específica do modo


de produção colonial mercantil e escravagista. Assim
sendo, muitos países ex-colonizados ainda lutam para
constituir sua nacionalidade, tentando harmonizar as
diferenças dos seus diversos povos com os seus respecti-
vos valores culturais.
Nestes casos enquadra-se o Brasil. Seu território foi
formado a partir dos interesses: colonialistas de divisão
de áreas de exploração concretizados inicialmente com
o Tratado de Tordesilhas.
O seu povo se constitui de populações originárias
basicamente de três continentes: América, África e
Europa, que dão continuidade e expandem seus pro-
cessos civilizatórios característicos. Portanto, a nação
brasileira se constitui e se caracteriza pela pluralidade
étnica e cultural.
Às tentativas colonialistas de desculturação, acultu-
ração e catequese através da história, apesar de todo
reforço repressivo e mesmo genocida do sistema oficial,
fracassaram. A nacionalidade brasileira se caracteriza
pela diversidade e pela pluralidade cultural do seu
povo.
No Brasil, todavia, assim como em muitos outros
países do Terceiro Mundo, persiste uma grande distân-
cia e mesmo uma grande defasagem entre o Estado € às
formas de organização sócio-culturais e econômicas
da grande maioria da população.
O Estado oficial brasileiro nasce da Proclamação da
Independência por D. Pedro I, “antes que algum
aventureiro lançasse mão”, isto é, para que o Brasil,
mesmo independente, pudesse continuar restrito à0
âmbito das políticas sócio-culturais e econômicas neo
coloniais.

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EDUCAÇÃO E PLURICULTURA NACIONAL 1

Em verdade, passada a época da influência hegemô-


nica portuguesa nas relações internacionais do Brasil,
pouco houve de mudanças no que diz respeito às carac-
terísticas do Estado, que continuou preso às influên-
cias neocolonialistas.
Assim, o país se caracteriza, de um lado, por uma
sociedade oficial assentada no desejo de predominância
dos valores civilizatórios europeus e, por outro, de uma
sociedade não reconhecida e não legitimada oficial-
mente, assentada nos valores civilizatórios de origem
negro-africana e ameríndia. No que se refere, então, à
política educacional e cultural do Estado, o que vemos
é a hegemonia quase absoluta dos valores europeus.
Uma das consequências mais graves dessa hegemonia
é o índice alarmante de evasão escolar, em média supe-
rior a 70% e que, nas regiões Norte e Nordeste do país,
alcança mais de 80% no primeiro grau.
Esse quadro caracteriza um sintoma dos obstáculos
existentes para o aperfeiçoamento dos mecanismos de
mobilidade sócio-econômica e fundamentalmente para
a realização de uma verdadeira integração nacional.

Diferentes formas de transmissão do saber

Enquanto, na cultura européia, a transmissão do saber


se dá através da mediação do texto, isto é, da forma de
comunicação escrita, nas culturas negra € ameríndia
a transmissão se dá de forma direta, dinâmica, pessoal
e ou intergrupal.
Se, nessas culturas, que denominamos de culturas
da participação, o tempo de transmissão se caracteriza
pela comunicação ligada a uma experiência vivida, aqui

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12 MARCO AURÉLIO LUZ

e agora, e que culmina nas situações rituais que marcam


o fortalecimento da identidade e o lugar e a função do
indivíduo na sociedade, no ensino oficial o tempo está
demarcado pelo ano letivo, pela impessoalidade das
relações do ensino de massa e pela passagem de série
através dos exames que têm como referência básica o
desenvolvimento do aluno no âmbito da comunicação
escrita.
Enquanto nas culturas da participação as relações de
transmissão do saber atualizam as hierarquias sociais
que situam os poderes e deveres dos mais velhos em
relação aos mais novos e vice-versa, no ensino oficial
o que se legitima apenas é o meio de comunicação, à
escrita, que cristaliza o poder da razão de Estado.
O exercício da legitimação desse poder culmina na
universidade, onde as bibliografias, as citações, princi-
palmente de autores europeus, dão legitimação a “ver-
dades” e resultam em poderes institucionais aos que
escrevem dessa forma artigos e teses. Portanto, o que é
legitimado, na verdade, é o próprio poder impessoal
do Estado através da escrita.
No que se refere à cultura negra, que é predominan-
te na maioria do povo brasileiro, ela se caracteriza por
constituir sua visão de mundo através de uma complexa
e riquíssima simbologia.
Essa simbologia se apresenta principalmente no
âmbito das instituições religiosas, posto que no sistema
cultural negro a religião se caracteriza como núcleo
central e irradiador de valores civilizatórios.
A linguagem das instituições religiosas constitui-se
numa arte sacra negra, que combina, de forma própria,
dramatização, dança, música, poemas, código de cores,

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EDUCAÇÃO E PLURICULTURA NACIONAL 13

emblemas, esculturas, vestuário, parafernália que


contribui para magnificar o sagrado.
Essa linguagem, que comunica o saber da visão de
mundo negra, em muito se diferencia dos elementos
de comunicação que caracterizam a transmissão do
saber no sistema de ensino oficial.
Nesse sistema, sobressai a nudez da sala de aula com
suas carteiras e o quadro negro, onde a palavra escrita
e oral é o único elemento simbólico que participa da
comunicação.
O professor, individualmente, legitima o poder do
Estado e caracteriza-se por ser mero tradutor ou trans-
missor dos conteúdos dos livros adotados, enfim um
mediador da palavra impressa.

Diferença dos conteúdos

Evidentemente que há muita diferença entre os con-


teúdos que formam a visão de mundo negra e a
projeção ideológica neocolonialista da escola oficial,
caracterizada especificamente pelo recalcamento da
presença dos processos civilizatórios constituintes
da Nação, elegendo como universal o processo civiliza-
tório europeu.
Assim, é que nos materiais didáticos utilizados não
há possibilidade alguma de identificação para a grande
maioria das crianças brasileiras. Há uma grande defasa-
gem entre sua realidade nacional, representada como
se O país fosse uma nação caracteristicamente européia,
com o predomínio absoluto dos valores estéticos,
éticos e científicos do Ocidente. Essa representação,
contudo, está em mora com os fatos.

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14 MARCO AURÉLIO LUZ

Na realidade, ela é a grande responsável pela evasão,


escolar, pois a criança não se vê,contemplada nesse
contexto, nem a sua família, sua religião, sua comuni-.
dade, nem sua sociedade.
Para manter, então, sua integridade psicossocial, a
criança, sentindo-se rejeitada, evade-se e prefere perder
algumas possibilidades de mobilidade social individual,
a submeter-se a padrões culturais exógenos ao seu pró-
prio contexto.
Há, todavia, uma pequena minoria que resolve
enfrentar essas condições; tornam-se, porém, almas no
exílio, acabando por se afastarem da própria família
e da comunidade a que pertenciam e carregam consigo
a sequela dos complexos advindos de uma identidade
fracionada.

Superação dos obstáculos etnocêntricos


na educação

Dentre as tentativas existentes para superar a gravidade


da situação enfrentada pela educação no Brasil, no que
se refere à sua pluralidade cultural, sobressai o projeto-
piloto e pioneiro da Sociedade de Estudos da Cultura
Negra no Brasil (Secneb).
O projeto educacional Minicomunidade Obá-Biyí')
visa harmonizar o fortalecimento da identidade cultu-
ral comunitária aos interesses e necessidades de mobili-
dade econômica e social e de conquista de maiores
espaços na sociedade oficial. Em funcionamento desde

| ; Obá-Bi io
O projeto Minicomunidade
dade em 1986, ade Obá-Biyí sofreu solução de continui

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EDUCAÇÃO E PLURICULTURA NACIONAL 15

abril de 1978, o projeto vem alcançando resultados


altamente satisfatórios, em que pesem as dificuldades
de recursos para sua manutenção.
O projeto, que assiste a cerca de mais de 130
crianças, desde o maternal à alfabetização e desenvol-
vimento integrado, atendendo até a idade-limite de
quatorze anos, caracteriza-se por implantar e desenvol-
ver um currículo pluricultural, baseado nos valores
culturais comunitários da tradição dos orixás, consti-
tuindo uma nova linguagem pedagógica.
A coordenação do projeto está a cargo do grupo
de trabalho em educação da Secneb, constituído por
Juana Elbein dos Santos, Regina Helena Gonçalves
Pires, Marinalva Cerqueira de Almeida, Deoscóredes
Maximiliano dos Santos e eu próprio.
Em linhas gerais, essa nova pedagogia se caracteriza
pela escolha de um tema semestral relacionado com o
calendário cultural e religioso da comunidade. Embora
o projeto não esteja comprometido com nenhuma
orientação religiosa, é do universo simbólico específico
da comunidade, de seus valores culturais, que são ex-
traídos os diversos temas.
Os temas se constituem de referências aos princípios
que regem o Universo. De acordo com esses princípios,
é selecionado um conto do patrimônio cultural da
comunidade que os represente, adaptado pelo grupo
de trabalho em texto e em auto coreográfico, consti-
tuindo-se no núcleo irradiador das atividades didáticas
e criativas.
Reunido com os funcionários e professores, O grupo
de trabalho coordena e acompanha as ações que visam
estabelecer a programação semestral. À partir do tema
e do conto escolhidos, os integrantes do projeto deve-

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16 MARCO AURÉLIO LUZ

rão adaptar os conhecimentos e informações do currí-


culo oficial. No que concerne à forma de comunicação,
deverão procurar aproximar-se da pedagogia comunitá-
ria, que não se baseia na mediação do texto escrito.
É aí que a montagem do auto coreográfico ganha em
significado pedagógico, posto que se baseia nas formas
dramáticas e simbólicas comunitárias. A montagem
atinge a característica de aprendizagem da comuni-
dade, na qual a relação vivido—-concebido se dá aqui e
agora; aprende-se vivendo a experiência da montagem.
Assim, a leitura dos textos, desenhos, colagens,
esculturas, feitura de figurinos e cenários, compreen-
dendo processos de tintura de tecidos, confecção de
roupas, fabricação de instrumentos, aprendizagem
de cantigas, danças e músicas polirrítmicas, constituem
um processo nuclear das atividades curriculares.
Essas atividades culminam, no encerramento de cada
semestre, com o Festival de Arte Integrada Minicomu-
nidade Obá-Biyí, quando são convidados os pais €
integrantes da comunidade e do bairro adjacente para
participarem dos resultados alcançados.
De modo bastante sumário, é este o âmago da pro-
posta de um projeto que já pode oferecer os seguintes
resultados, divulgados pelo grupo de trabalho, no
Evento Secneb 83:
= a Minicomunidade Obá-Biyf concorre efetiva:
mente para um desenvolvimento harmônico da criança,
ao incentivar uma percepção valorizada de seu próprio
mundo cultural, que lhe permite colocar-se melhor na
escola oficial e na sociedade que a cerca;
m entre as crianças que frequentam ou frequenta
ram a minicomunidade, houve sensível diminuição
do índice de evasão escolar e melhor aproveitamento

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EDUCAÇÃO E PLURICULTURA NACIONAL 17

da escola pública, tendo alguns jovens ultrapassado a


barreira das primeiras séries, cursando agora o segundo
grau;
m os jovens maiores de quatorze anos, desejando
continuar integrados ao projeto, formaram um grupo
de jovens da Obá-Biyí e já realizaram curso de artes cê-
nicas, com adaptação e montagem da peça “A Vende-
dora de Acaçá”, do conto de Mestre Didi (Deoscóredes
M. dos Santos), curso de projeção de cinema, cine-
clube com sessões semanais, curso de fotografia com
exposições etc. Alguns desses jovens começam a atuar
como monitores na Minicomunidade Obá-Biyí;
m através dos trabalhos de pintura, colagem, escul-
tura, dramatização, dança, música, visitas a museus,
acesso a peças de teatro etc., as crianças vêm perce-
bendo novas oportunidades e desenvolvendo, com
maior amplitude, suas possibilidades e interesses.

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ODÉ ATI AWON ORISA IBO
O CAÇADOR E OS ORIXÁS DO MATO
Deoscoredes M. dos Santos ( Mestre Didi)

Os Alabês (tocadores) começam batendo nos atabaques


o toque corrido, três vezes seguidas. O Solo e o Coro
começam a cantar:
SOLO — Odé ló si bô [O Caçador foi para o mato).
Pápá eran fun uá à [Matar caça (carne) para nós).
CORO — Idem.
O Caçador sai da cabana e se dirige ao mato,
dançando, carregando o arco e a flecha e o seu
emblema, iruqueré. Nesse momento, todos os animais
fogem, procurando se esconder por detrás das árvores,
na densidade do mato.
O Caçador, depois de ter percorrido todo o mato
sem encontrar uma só caça, exclama, enquanto o Coro
pára de cantar e os atabaques continuam tocando bai-
xinho :
CAÇADOR — Por que não consigo ver uma só
caça? Nunca me aconteceu isso. Será que é porque eu
deixei de dar sempre o presente para os Orixás do
mato? O jeito é eu ir consultar o meu amigo Babalaô
para saber o que está acontecendo.
O Caçador chega na casa do Babalaô. Os Alabês
param de tocar.
CAÇADOR — (batendo palmas, diz três vezes):
Oré mi 6!

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20 DEOSCOREDES M. DOS SANTOS

BABALAÔ — (fazendo como se estivesse abrindo


a porta, responde): O! oré mi. Eku abó [O que é que
traz ocê por essas bandas?)
CAÇADOR -— Estou desesperado. Imagine que,
desde a madrugada até agora, estive percorrendo o
mato e não encontrei uma só caça. Preciso que o irmão
faça uma consulta para eu saber o que está aconte:
cendo.
O Babalaô se senta, apanha os búzios e começa a
jogar. O Caçador, quando o Babalaô começa a jogar os
búzios, coloca dinheiro no chão onde está sendo feito o
jogo.
BABALAÔ — (grita saudando os Orixás do mato):
Ogun ê! Bué! Ókê-arô!
O Coro repete a saudação e os Alabês acompanham
tocando.
BABALAÔ -— A min arimão, nun a nada conta
ocê. Os Orixá dono do mato tem dado caça prá ocê é
ocê se isqueceu de presente que tem de dá pra eles in
troca. Agora se ocê quiser voltar a encontrar caça prá
matá cumo ante, ocê precisa levar aquele presente de
isso
fumo, cachaça e mé de abeia, e ir colocar tudo
um pé de Rôkô, entregando aos Orixá do mato.
Os Alabês tocam o toque corrido, baixinho.
CAÇADOR — Oré mi, muito obrigado. Os Orixi
do mato aumentem sua saúde e sua sabedoria.
Os Alabês, quando o Caçador entra na cabana,
param de tocar. Logo que o Caçador prepara os ingre
dientes e vai saindo da cabana, começa o cântico.
SOLO — Odé ló si bô [O Caçador foi para o mato)
Papá eran fun uá á [Matar caça (carne) para nós)

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O CAÇADOR E OS ORIXÁS DO MATO 21

CORO — Idem.
Os Alabês acompanham, cantando e tocando; toque
corrido.
CAÇADOR — (sai dançando e vai colocar o pre-
sente no pé da árvore Rokô, ou Gameleira; quando
entrega o presente, diz): De acordo com o que Babalaô
me mandou fazer, aqui estou entregando este presente
para todos os Orixás do mato.
SOLO — Tani pa éran [Quem está caçando?)
CORO — Odé Obá ibô [O Pai Caçador que está no
mato)
Os Alabês acompanham cantando e tocando o toque
aguerê. Os animais começam a aparecer e vão até o pé
de Rôkô, mexer com o presente.
O Caçador começa a caçar, dançando o toque ague-
rê. Depois de ter matado um bocado de caças, volta
para a cabana muito contente, pensando ter conseguido
agradar os Orixás do mato. Enquanto o Caçador volta
para a cabana com a última caça, canta-se:
SOLO — Odé dê nilê [O Caçador chegou em casa).
CORO — Bê a unjê [Trazendo comida)
O Caçador dança um pouco e depois vai preparar
uma pequena caça para comer. Os Alabês e o Coro con-
tinuam cantando e tocando até quando o Pinto entra
na cabana; toque corrido.
O Caçador está cozinhando a caça e começa a chu-
viscar. O Pinto entra na cabana e fica ao lado do fogo,
tremendo. Os Alabês e o Coro param o cântico e o
toque.
CAÇADOR — (quando vê aquele Pinto ao lado do
fogo, fica assustado e vai até a porta da cabana,

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22 DEOSCOREDES M. DOS SANTOS

dizendo): Isso não está me cheirando bem. Por aqui


não tem nenhuma galinha, não sei o que é que esse
Pinto veio fazer aqui.
Quando o Caçador termina de falar, se ouve uma voz
chamando:
VOZ — Estêvão!

O Pinto quando ouve a voz chamando por Estêvão,


fica olhando, mirando, é quando se ouve novamente a
voz chamando:
VOZ -— Estêvão!!

O Pinto fica reparando tudo. Na terceira vez que a


voz chama:
VOZ -— Estêvão!!!
PINTO — (respondendo): Oi, home!
VOZ -— Venhae traga os outros.
PINTO — Ele também?
VOZ — Dessa vez não. Ele fica pra depois.
PINTO — (tocando em cada uma das caças aba-
tidas, canta; toque tanibobé): Ô didê [Levanta-se!)
CORO — Bábá un pê [O pai está chamando...).
As caças já abatidas, menos a que foi tratada para
cozinhar, se levantam e acompanham o Pinto, dan
gando, para dentro do mato.
CAÇADOR — (desesperado e com medo de tudo
aquilo que está acontecendo, quebra tudo, desmancha
a barraca, ajunta as coisas que pode carregar e foge do
mato para a cidade, cantando; toque corrido): Kô fé pá
7 punto [Não quero mais caçar, vou embora).
— (bis),

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O CAÇADOR E OS ORIXAS DO MATO 23

CORO — Kô ló kô ló ó [Ele vai embora]. Kô fé pá


éran [Ele não quer mais caçar). Kô ló [Ele vai embora).
Encerramento: todos dançam juntos; toque ijicd.
Emi omô Odé [Eu sou filho de caçador). Obá nilé
Ketu [Rei da nação Ketu]. Emi omô Odé é [Eu sou
filho de caçador). Olôri Odé [Chefe de caçadores).

N. do Org. — Mestre Didi, alapini, atual coordenador geral do Ins-


tituto da Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Intecab) e diretor da
Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil (Secneb), dando con-
tinuidade às suas atividades de sacerdote-artista, seja criando obras de
escultura inspiradas na arte sacra negra, seja escrevendo contos ligados
às tradições culturais das comunidades-terreiro, preparou, para a Mini-
comunidade Obá-Biyí, o auto coreográfico “Odé e os Orixás do Mato”,
adaptação do conto de sua autoria do mesmo nome. Nesta dramatiza-
ção, mestre Didi continua a desenvolver sua experiência de fundador
do afoxé Pai Burocô, um dos mais tradicionais da Bahia, e que expressa
uma dimensão específica dos aspectos teatrais da cultura negra. A exe-
cução da obra pelas crianças da minicomunidade foi realizada ao ar
livre, e elas co-participaram da feitura dos figurinos e cenários e foram
os atores do auto,

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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE
A RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA
Sandra Maria Bispo

A elaboração deste trabalho encontra sua plena


concretude no comportamento, comentário ou mesmo
pesquisa em uma casa de tradição religiosa, cuja relação
maior se reflete na integração de seus participantes à
vida da grande sociedade.
Portanto, partindo da perspectiva de preservação,
tentamos traçar um perfil vivencial cotidiano em uma
comunidade de candomblé, como núcleo catalisador do
espírito de insurgência, da transferência do saber e
de diferentes modos de sobrevivência.
Nessa mesma linha, refletimos sobre o resgate, atra-
vés da oralidade, e compreensão da identidade cultural
religiosa das pessoas negras participantes dos terreiros
de candomblé na Bahia.
Ao elaborar um trabalho escrito, enfocando algumas
reflexões sobre a história de um terreiro, nossa inten-
ção é que seja uma contribuição educativa para melhor
compreensão de um espaço-axé, considerando sua vin-
culação com a sociedade como um todo.
A sedimentação histórica de um terreiro mostra a
estrutura da comunidade transparente e fixada como

* Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia,


socióloga, professora de 1º e 20 graus, membro do grupo de pesquisa
da Coordenação de Extensão da UFBA e membro do Instituto Nacio-
nal da Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Intecab).

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26 SANDRA MARIA BISPO

marco de força vital há vários séculos. A força do axé


é a referência existente que denota a relação com as
verdadeiras raízes culturais africanas na Bahia.
Isso significa que encontramos os valores culturais
não apenas na arquitetura da casa como em todas as
formas de comunicação das pessoas que convivem e
vivenciam o espaço sagrado. E, mais ainda, na identifi-
cação das formas de expressão e símbolos com que, em
particular, a comunidade modela a identidade dos seus
membros.
Ressalto que o termo “terreiro” inclui, por força de
sua extensão, o lugar onde vive o povo-de-santo e seus
parentes, bem como outras pessoas, se for o caso.
Como participante do terreiro, que é lugar sagrado,
considero todos os elementos que o compõem: o chão,
o ar, as árvores, a comunidade religiosa etc.
É inegável que a ampliação da força da comunidade
em um terreiro tem sua fonte de energia no todo que
o compõe, partindo daí inicialmente como núcleo de
insurgência onde se materializa o axé através do culto
religioso.
A ampliação do culto insere a comunidade num
conjunto de relações vitais de educação, cujo desenvol:
vimento caracteriza a personalidade dos indivíduos que
convivem com a transmissão e preservação dos valores
religiosos. Nesse processo de convivência e transmissão
de valores, preparam-se os indivíduos para o desempe-
nho condigno de papéis sociais e isso ocorre tanto no
solo do culto quanto na organização social da sobrevi
vência.
O candomblé tem raízes profundas e ancestrais.
Portanto, qualquer mudança referente deverá ser co
medida, observando-se esse aspecto. É uma religião

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... SOBRE A RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA 27

concreta, herança africana, com base no real, na rela-


ção com a natureza. E uma religião viva, cheia de ener-
gia. É força que emana da própria terra e conduz a vida
e o destino dos seus filhos.
Possivelmente, se fosse feita uma pesquisa de opi-
nião pública sobre a vida em um terreiro, certamente
não faltariam indagações, dúvidas ou talvez até medo
quanto ao assunto. Essas dúvidas, indagações ou medo,
por certo, estariam vinculados ao desconhecimento ou
folclorização a que tem sido exposta a religião afro-
brasileira durante todo o tempo, gerando uma visão
preconceituosa diante do seu processo de recriação.
A religião dos orixás não é solta no tempo e no
espaço. Ela é expressão concreta da força de um povo,
particularmente do povo-de-santo que, através da cren-
ça e resistência, não se deixa dominar nem pelo medo,
nem pelo folclore; ou até mesmo pelas formas repres-
soras ao culto afro-brasileiro, considerando sua contex-
tualização histórica.
Lembrando um pouco a origem histórica da religião
afro-brasileira, revemos a função do catolicismo no
Novo Mundo. O catolicismo, frente à necessidade de
possuir novos adeptos que, “em nome de Deus”,
pudessem garantir a sua soberania e poder, se implanta
como religião obrigatória, proibindo o homem negro
e seus descendentes de praticarem a sua religião de
origem, pois o negro representava a base econômica
de toda a sociedade, não podendo fugir às formas de
controle social estabelecidas.
O grupo católico tem, entre si, as mesmas idéias,
encara a religião afro-brasileira como aquela em que se
praticam coisas diferentes, de forma tal que não conse
guem, os católicos, reconhecê-las como prática cultu-

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28 SANDRA MARIA BISPO

ral. Por outro lado, o grupo de praticantes da religião


afro-brasileira sobrevive à sua maneira, ocupa o espaço
natural e descobre formas de sobrevivência, resistindo
através dos tempos.
Acreditam em deuses aos quais designam orixás e
prestam todo um ritual de crença, fé e energia vincu-
lado à natureza. Nesse processo, a formação e a prática
do indivíduo implicam a consciência do saber, as vanta-
gens e formas de participação, despertando perspec-
tivas cada vez melhores na sua interação com o meio
ambiente. A ialorixá ou o babalorixá, em geral, exerce
o papel de articulador e organizador cultural de fato,
pois religião é cultura e, portanto, trabalho e orga-
nização.
A violência contra a religião afro se concretiza na
necessidade da criação de irmandades negras que aco-
modariam uma relação onde há predominância da
cultura oficial, que ainda hoje é branca. Assim, asso-
ciando-se aos santos da igreja católica, a comunidade de
raízes afro-brasileiras era aceita porque a fé cristã
constituía uma das condições mais importantes para
que o negro fosse visto como um ser dotado de alma.
Em verdade, cada grupo traduzia nos termos de sua
própria cultura o significado dos objetos, cujo sen-
tido original foi forjado na cultura do povo católico.
Vemos, assim, a religião afro-brasileira e a religião catô-
lica, oriundas de culturas diferentes, resultando, até
certo ponto, em choque cultural. Vale reafirmar que
não houve sincretismo, visto o não amalgamento entre
essas duas religiões.
É evidente que o homem, para sobreviver, antes de
mais nada, precisa utilizar-se da natureza de forma
racional, pois precisa comer, beber € abrigar-se. Por

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IRA 29
... SOBRE A RELIGIÃO AFRO-BRASILE

outro lado, forças exteriores e sobretudo da natureza


dominam a vida cotidiana. Nesse processo, OS homens
se agrupam, organizam seu universo, apreendendo e
interpretando sua realidade. Particularmente, o negro
africano e seus descendentes, participantes de um ter-
reiro, organizam-se não somente na sua correlação com
o sagrado, como também com o ambiente natural e
humano e assim com a ordem cultural e social.
Claro está que, se, por um lado, o homem incorpora
a natureza para sobreviver, esse mesmo homem sente
a necessidade de organizar o mundo a partir de um
esquema interpretativo cultural de valores. Desse es-
quema emerge o conhecimento enquanto consciência.
O referencial de aprendizagem dos mais velhos dá-se
a partir de sua relação constante com o real, com
elementos naturais, como o ferro, as pedras, o rio,
o mar, as árvores, a chuva, enfim tudo que emana do
natural. Cada elemento natural corresponderá a um
referencial de crença que, como um todo, possui
mecanismos, formas, caminhos e razão, os quais, para
aquele que não tem a vivência e convivência com a
realidade processual religiosa, poderão passar desperce-
bidos ou mesmo gerar toda uma gama de preconceitos
decorrentes de profundas distorções que se perpetuam
nas emoções, pensamentos e representações.
Essas distorções, uma vez que interferem nas emo-
ções, poderão dar a idéia de medo, medo daquilo que
não se conhece e, portanto, o medo do desconhecido, O
que possivelmente ocorreria em qualquer situação nor-
mal. Apesar de tais distorções que se perpetuam através
de representações negativas e folclorizadas, a religião
afro-brasileira traz em si o seu próprio discurso, isto é,
desfruta de uma linguagem própria para dizer algo de

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30 SANDRA MARIA BISPO

si mesma. Fala por si através de todo um processo


iniciático, toques, cânticos e atitudes, possuindo auto-
nomia necessária ao traduzir-se por representações e
símbolos.
Parece-nos claro que a religião dos orixás distancia-
se do conceito de religião como ópio do povo, por sua
natureza construtiva, que afirma a identidade do indi-
víduo, ao tempo que organiza o grupo como mode-
lador dessa identidade. Considerando a possibilidade de
aproveitamento da tradição oral como veículo de trans-
missão de fundamentos religiosos e da identidade cul-
tural, presto-me ao testemunho de que, em geral, as
comunidades religiosas afro-brasileiras vêm tentando
manter, há anos, a tradição do seu axé com seriedade
e zelo e, por isso mesmo, têm merecido o respeito dos
adeptos. Vale ressaltar que os dirigentes das casas reli-
giosas, em geral, exercem o papel de guardiões dos
nossos valores culturais, com autoridade e poder de
mantenedores da religião.
Daí a necessidade de preservação e resgate da me-
mória sacro-cultural da comunidade de um terreiro,
que, além de ser um testemunho vivo de insurgência
e afirmação da identidade cultural afro-brasileira, é,
sobretudo, monumento histórico e cultural brasileiro
e, como tal, deve ser respeitado e preservado por todos,
inclusive pelos órgãos oficiais competentes.
A própria necessidade que o homem tem de organi-
zar-se a partir de um esquema interpretativo de valores
constitui forte razão, segundo Rubem Alves, em “O
Suspiro dos Oprimidos”, para que os homens criem
os universos simbólicos, a religião, e façam a história.
Na verdade, os universos simbólicos, a religião e a
própria história são expressões do esforço humano no

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«. SOBRE A RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA 31

sentido de condicionar a natureza, o tempo e o espaço


em função de si mesmo.
No resgate de sua história, o negro afro-brasileiro
utiliza uma linguagem também simbólica, baseada na
concepção do homem e do seu papel no seio do univer-
so, isso na medida em que pleiteia fugir ao estudo
contextualizado. Portanto, faz sentido o nosso apoio à
afirmação de Marco Aurélio Luz:
A civilização negra se caracteriza por exprimir uma concep-
ção espiritualista do mundo, onde a constituição da indivi
dualidade, as relações sociais, as relações com a natureza e o
universo estão revestidas de uma dimensão sagrada, acom-
panham até mesmo as inúmeras atuações profanas daqueles
que vivem este universo cultural, estejam eles vinculados
a esferas políticas, sociais ou econômicas...

Zelando pela integridade do culto aos orixás alguns


babalorixás e ialorixás definem seus filhos na socie-
dade, mantendo a dimensão e a dinâmica própria das
heranças que lhes são conferidas. Apoiados na herança
da oralidade africana, funcionam como conservatório
da acumulação cultural, garantindo a fiel transmissão
dos fundamentos da religião, numa linguagem emocio-
nal e também reflexiva.
A memória da sociedade é a comunidade viva de
gerações sucessivas, é o que anima o universo humano
e religioso na mesma medida. A religião em si, por sua
própria base cultural, às vezes ajuda a explicar, ocultar
ou mesmo inculcar de geração a geração a necessidade
da existência de sua ordem.

* Cultura negra e ideologia do recalque, Rio de Janeiro, Achiamé,


1983, p. 38.

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32 SANDRA MARIA BISPO

No Brasil, a similaridade entre os costumes de vários


grupos de nações de origem africana, que aqui se
encontravam, tem sido mais forte que as diferenças
e esse princípio aponta uma unidade na diversidade.
Digo isso porque, através desse princípio de unidade na
diversidade, tem-se conhecimento de que grupos negros
se organizaram fazendo surgir novos terreiros de can-
domblé, a exemplo da Casa de Oxumaré, muito antiga e
famosa, cujo patrono é esse orixá, conforme citação de
Vasconcelos Maia em seu livro “ABC do Candomblé”
Finalizo lembrando a necessidade da continuidade e
aprofundamento das discussões a respeito da religião
afro-brasileira, pela sua função religiosa, social, política
e econômica, reafirmando e divulgando o seu grande
valor, pois: “A escrita é uma coisa e o saber, outra. À
escrita é a fotocópia do saber, mas não o saber em si...
é herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram à
conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos
transmitiram... ” (Tierno Bokar).

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O CONCEITO DE POLÍTICA .
NOS BLOCOS NEGROS E AFOXÉS
Iê Aiyé”

Começando-se com a história escrita e não-escrita dos


blocos negros e afoxés, veremos que sua existência tem
sido essercialmente política e de resistência.
A tendência que existe em menosprezar o aspecto
político dos blocos negros e afoxés parte da folcloriza-
ção e despolitização do negro, que a sociedade baiana e
brasileira usam, através dos seus agentes, para manter
o status quo das classes dominantes.
O nascer dos blocos negros e afoxés na Bahia,
especificamente em Salvador, foi uma atitude política
dos negros brasileiros de conquistar um espaço que lhes
era negado, um espaço cultural e de lazer.
Ora, sabemos que em sociedades multirraciais como
a nossa, a cultura, a raça, assume um contexto polí-
tico muito importante, toda vez que é negada por um
dos seus componentes ou que é sobreposta por um dos
grupos oprimidos. Tais idéias mostram-nos o porquê
dos blocos negros e afoxés jamais perderem o seu
sentido político forte e vigoroso.
Os primeiros afoxés e blocos negros do século
passado, a exemplo do Pândegos da África, sofreram
violenta repressão policial e uma violenta campanha da

* Trabalho apresentado pelo Ilê Aiyê no evento Secneb 82, publi-


cado no jornal “Nego”, do Movimento Negro Unificado.

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34 ILÊ AIYÉ

imprensa local, conforme jornais da época, que alerta-


vam para o risco de africanização da nossa Bahia e do
carnaval.
Houve choques com a polícia, mas as entidades
deixaram o seu protesto, a sua existência, forçaram
a democratização do carnaval, pois se o mesmo era
altamente elitista e praticado quase que exclusivamente
por brancos e mestiços assimilados, com os blocos
negros e afoxés passou a ser popular, público e prati-
cado por negros, brancos e mestiços. Este foi o prin-
cipal efeito político dos blocos negros e afoxés, que
revolucionaram a sociedade aristocrática, de classes
racistas que existiam e existem em Salvador.
Passado o período inicial, assistimos, nas décadas de
trinta e quarenta, ao ressurgimento dos blocos negros
e afoxés, com uma conscientização política mais forte,
porque já agora seus fundadores faziam parte de sindi-
catos e outras agremiações, como o Sindicato dos Esti-
vadores e Portuários.
Um exemplo desta nova atuação política está no
Filhos de Gandhi, homenagem ao grande líder da Índia
e ideólogo da não-violência. O Filhos de Gandhi
pretendia aplicar esta filosofia quando foi agredido pela
fimeiro ano que saia às ruas, por ser com-
posto basicamerte-de negros; trabalhadores é pessoas
oas -
-que faziam parte de sindicatos atuantes, e também pela
maneirade dançare cantar; 0 que descortentou a toda”
-a Sociedade baiana que achavauma maneira muito afri-
“Câna, negra demais, bulia com-a-cabeça das. pessoas e.
era uma afirmação política do candomblé, ijexáee dos
negros, enfim uma manifestação cultural diferente
das manifestações das classes dominantes e portanto
> precisava ser reprimida. meme
yyuima Ena : danilt
Jal vu ant
do Iremia do Flo ds Om e CY
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O CONCEITO DE POLÍTICA NOS BLOCOS... 35

Vimos aí, claramente, que os blocos negros e afoxés


e a repressão policial e jornalística sempre estiveram
ligadas por um vínculo estreito que comprova cien-
tificamente o papel dos blocos e afoxés, pois, em so-
ciedades multirraciais e pluriculturais, manifestações
aiasuma
urlevar
podem
cult luta de libertação, «então
reprime-se toda manifestação culturque alse apresenta
em ato político, ou tenta-se mantê-las controladas sob
átutela do Estado ou de institutos de estudos acadêmi-
cos que paralisam as entidades em seu vigor.

Os blocos negros e afoxés politicamente, hoje

Ressurgindo nas décadas de sessenta e setenta, tiveram


formações variadas, passando dos blocos de índios
— Caciques, Apaches do Tororó, Tupys — aos cha-
mados blocos afro — Ilê Aiyê, Malê Debalê, Puxada
Axé, Senzala — e os afoxés modernos fortemente inspi-
rados no Badauê, o primeiro afoxé a introduzir (1979)
elementos novos, como instrumentos de som e carros
alegóricos.
Somos, nós, produtos políticos de alguns fatores
nacionais e internacionais:
m Nacionais — A longa noite caída sobre o Brasil
em 1964, não tirou do elemento negro a capacidade-de
resistir € criar cultura, mesmo nas mais adversas
condições sociais, econômicas e políticas.
MW Internacionais — 1) À grande movimentação
dos. negros norte-americanos
em sessenta e setenta,
obrigatoriamente forçou a formação de uma pequena
elite negra (pobre) dos grupos de dança (soul, black-.
soul),
de adeptos do box (Mohammed Ali) -e-de-músi-

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36 ILÊ AIYÉ

cos que contribuiu


para o “estalo” do negro na Bahia
é no Brasil; 2) a longa lista dos países africanos que
conseguiram conquistar sua independência, alguns dos
quais pela via revolucionária, a exemplo da Guiné-
Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Zimbabwe e
Gana, trouxe para o negro brasileiro, e principalmente
em Salvador, a mudança da imagem do negro africano
e portanto da África Mãe-Negra, ficando claro para as
entidades que ser negro africano não era ser passivo,
omisso, subdeserivolvido, mesmo-conr as distorções dos
meios de comunicação,e que a experiência de luta afri-
cana poderia reproduzir-se aqui, já que éramos maioria
da população. o
— Dentro destes contextos e outros não citados, surge
em 1974 o Bloco Negro Ilê Aiyê, no Curuzu, bairro da
Liberdade, formado por um grupo de jovens negros,
para brincar o carnaval e para atividades políticas e
culturais. Novamente a repressão: o bloco seria regis-
trado com o nome Poder Negro, mas não puderam
registrá-lo. No primeiro ano em que foi-às-ruas, os
jorrráis racistas “dá cidade TAttar era entra
ro da sua visão de classe dominante —
“Logo após, a explosão cultural deu-se com tamanho
vigor político que este surgimento deu forças à
formação do Movimento Negro Unificado (MNU), em
Salvador. Hoje, politicamente, existem vários tipos
de atuação, que não deixam de ser facções dos blocos
negros e afoxés.
Existem os independentes, um número reduzido,
entre os quais o Ilê Aiyê e o Malê Debalê, que
produzem suas atividades fora do circuito comercial,
folclórico, e dep
não endem de políticos parlamentares
para-sobreviver,
mas sofrem assédio constante de enti-

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36 ILÊ AIYÊ

cos que contribuiu para O “estalo” do negro na Bahia


e no Brasil, 2) a longa lista dos países africanos que
conseguiram conquistar sua independência, alguns dos
quais pela via revolucionária, a exemplo da Guiné.
Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique, Zimbabwe e
Gana, trouxe para O negro brasileiro, e principalmente
em Salvador, a mudança da imagem do negro africano
e portanto da África Mãe-Negra, ficando claro para as
entidades que ser negro africano não era ser passivo,
omisso, subdesenvolvido, mesmo-com as distorçõesdos
meios de comunicação, eé que. a dxperienaia de luta afri

da população.
“Dentro destes contextos e outros não citados, surge
em 1974 o Bloco Negro Ilê Aiyê, no Curuzu, bairro da
Liberdade, formado por um grupo de jovens negros,
para brincar o carnaval e para atividades políticas e
culturais. Novamente a repressão: o bloco seria regis-
trado com o nome Poder Negro, mas não puderam
registrá--lo.No primeiro aro em que foi-as ruas, os
jornais racistas da cidade crcriticaram esta entidade,
dentro da sua visão de classe dominante. — ———
“Togo após, a explosão cultural deu-se com tamanho
vigor político que este surgimento deu forças à
formação do Movimento Negro Unificado (MNU), em
Salvador. Hoje, politicamente, existem vários tipos
de atuação, que não deixam de ser facções dos blocos
negros e afoxés.
Existem os independentes, um número reduzido,
entre os quais o Ilê Aiyê e o Malê Debalê, que
produzem suas atividades fora do circuito comercial,
folclórico, e não dependem de políticos parlamentares
para sobreviver, mas sofrem assédio constante de enti-

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O CONCEITO DE POLÍTICA NOS BLOCOS... 37

dades brancas e de políticos para o instituto da tutela


ou protetorado, forma de exploração muito comum em
África, e aqui no Brasil, na Bahia, nas décadas de
trinta e quarenta. Esta tutela ou protetorado se dá em
dois níveis:
E promessas de concessão de sedes, instrumentos de
bateria, materiais, terrenos para ensaios e dinheiro,
em troca de votos e apadrinhamento, aparições públi-
cas de candidatos e futuros candidatos. Este fato vem
acompanhado da infiltderaç ão
elemen tos policiais e
de cabos eleitorais e da visão de dirigentes (alguns) que
acham que devem depender de padrinhos ou do Estado
para a realização das atividades;
= ——

s ao nível cultural, a tutela é mais agressiva e sutil


ao mesmo tempo, pois manifesta-se através de institui.

a e

novo, essas instituições foram tomadas de surpresa,


mas já dão mostra de recuperação, tentando estabelecer
contatos com elementos mais dinâmicos, promovendo
atividades onde os blocos e afoxés possam colocar-se,
para subsidiar as teses acadêmicas.
O segundo bloco de entidades apresenta-se com
características bastantes diversas:
8 primeiro, quanto à formação: a maioria é originá-
ria do Ilê Aiyê ou do Apaches do Tororó, o que faz
com que a política destas entidades siga de perto as
formações políticas das diretorias do Ilê e do Apaches.

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38 ILÊ AIYÊ

m com suas estruturas humanas e físicas mais frá-


geis, não resistiram ao assédio e permitiram que
políticos profissionais (vereadores, prefeitos, depu-
tados federais e estaduais) atuassem lado a lado com
as entidades fazendo das mesmas grupos sem vida e
dependentes, no que tange à política e aos anseios da
maioria dos associados,
E com uma composição humana de poucos conhe-
cimentos teóricos sobre a África negrã e sobre os
negros, tiveram que recorrer a intelectuais brancos,
negrólogos e negreiros, para conseguir informações
sobre a sua própria cultura, e estes intelectuais passa-
ram a ser padrinhos, madrinhas e conselheiros, transmi-

nhos e conselheiros são contrários a uma participação


é conscientização política dos negros, com receio de
perderem seus privilégios, impedindo-a-e bloqueando
com as entidades negras mais
os-contatos destes negros mae e ———a

politizadas.
= Estas entidades são bem mais numerosas que as
entidades independentes (as razões acima explicam o
porquê) e trazem no conjunto dois aspectos políticos:
1) POSITIVO
m Permitir uma ampla difusão da cultura negro-
africana, a reaproximação dos negros e a formação de
entidades como forma de organização. O negro passou
a confiar mais no outro negro, quanto ao trabalho €
responsabilidades, enfim, os blocos e afoxés tornaram-
se instrumentos de reeducação sobre uma cultura de
participação dinâmica. Agora o negro volta a ser pro
dutor cultural, saindo da posição passiva e de objeto

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O CONCEITO DE POLÍTICA NOS BLOCOS... 39

folclórico para assumir a vanguarda da racionalidade


brasileira.
= À participação da mulher negra, de vital impor-
tância, pois, à medida que o homem negro, dentro
de entidades, combate o racismo, as discriminações
e a exploração, sua companheira também luta contra
a tripla discriminação que sofre como negra, mulher e
pobre. Os blocos negros e afoxés deram um passo
importante para a integração da mulher negra na
comunidade e a revalorização da mulher de um modo
geral, pois foram os primeiros não
a se constituírem só
de homens (à exceção do Filhos de Gandhi). Dentro
a
dos blocos negros e afoxés, a mulher é sacerdotisa
que orienta, coordena, dirige, comanda, costura, orna-
menta, é a conselheira e transmite aos filhos a forma
de atuação, as músicas e as danças. Os blocos negros
e afoxés foram os primeiros na luta feminista anti-
racista, pois começaram por cantar a mulher negra,
como nas músicas “Deusa de Ébano”, “Ginga”, “Mãe
Preta”, “Negra do Cabelo Duro”, “Menina do Olo-
dum”. Hoje, o homem negro é quem colhe os frutos
desta luta política, pois aceita mais a mulher negra,
como mulher e companheira, mãe e irmã, e consequen-
temente, busca menos a mulher branca como o ideal
de beleza e superioridade. A mulher negra assumiu,
também, sua negritude como essência de ser e beleza,
transou o corpo, aderiu às tranças e seu modo de ser,
deixou o cabelo natural, e assumiu ainda, o companhei-
ro negro, buscando menos o homem branco como o
padrão ideal de beleza.
s No setor artístico, houve uma revolta, um renas-
cimento cultural negro-africano, os valores humanos
despertaram como se num banho de mediunidade afro,

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40 ILE AIYÉ

com uma energia criadora mil vezes ampliada, gerando


créditos e públicos para a arte negra, um público negro
e não as élites intelectuais dos teatros e galerias.
= Ainda como fator positivo, vamos encontrar que,
apesar da rigidez dos nomes, os blocos afro e afoxés
permitem a qualquer pessoa participar: mestiço, bran-
co ou negro. A ausência dos brancos é devida à resistên-
cia destes em participar de “coisas de negro” e dirigidas
por negros. Este aspecto anti-rigidez permitiu também
que o homossexual negro trabalhasse nos blocos, ini-
cialmente, nos setores artísticos, e está hoje galgando
várias funções, aquebrantando mais os preconceitos
e machismos.
m Vale ressaltar, ainda, a importância dos velhos
negros como “bibliotecas vivas” e participantes, verda-
deiros guias, e das crianças, no processo de reeducação
política e social do futuro da luta negra.
m A questão dos recursos: politicamente, os blocos
afros e afoxés tratam das finanças de uma maneira
corporativa, onde todos contribuem para o desfecho
final, valendo o trabalho, dinheiro, atividades manuais
e intelectuais, casa para reuniões, instrumentos, móveis
e objetos.
m As campanhas para o carnaval, que envolvem uma
complexa harmonia viva entre as pessoas dos blocos
ou afoxés, num objetivo único: um ótimo carnaval.
= A liberdade de criação: as entidades não deter-
minam coreografias, nem a maneira ou postura de seus
componentes e ou associados, elas sugerem, € cada um
tem a caminhada para descobrir a si mesmo.
m Os blocos e afoxés foram e estão sendo o grande
veículo de conscientização cultural, social e política
dos negros em Salvador, nos últimos cinquenta anos.

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O CONCEITO DE POLÍTICA NOS BLOCOS... 41

2) NEGATIVO
m O número excessivo de entidades de pequeno
porte e estrutura frágil, que distorcem todo o movi-
mento e tiram a credibilidade junto à massa negra.
a A falta de uma sede ou base definida de atuação
faz com que as entidades choquem-se entre si. Por
exemplo, no Pelcurinho, várias entidades tentaram
tirar a área de ensaios do Olodum, usando políticos
e tráfico de influências.
Es O pouco intercâmbio entre as entidades negras
existentes no Brasil e as existentes em Salvador.
a O tribalismo: cada bloco se tornou uma tribo,
onde o “eu sou” pesa mais que a unidade por objetivos
comuns. Exemplo: nas festas de largo, as barracas do
Araketu e do Badaué sofreram constantes repressões
políticas e não conseguiram defender-se em conjunto,
conter essas agressões, pois o contato entre, eles é
pouco ou nenhum.
“8 As divisões de diretorias de blocos, frequente-
mente, a fim de fundar novos blocos ou afoxés.
s À concorrência entre alguns, em busca de títulos
afro, prêmios e medalhas não condizentes, estimula o
luxo, a competição, fazendo com que algumas enti-
dades estejam totalmente endividadas em agências de
poupança e bancos oficiais.
s Algumas entidades já estão dominadas por mes-
tiços que usam a cultura negra, mas não aceitam a
participação do negro na direção de seus blocos, nem
admitem serem negros e pregam a mistura das raças
como algo sensacional, Já notamos o surgimento dos
carnavalescos baianos e a ditadura de alguns deles em
“várias entidades.

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42 ILÊ AIYÊ

= O ufanismo da cultura negra, sendo esta um dos


mais importantes fatores do povo brasileiro e da cultu-
ra brasileira, não é melhor nem pior, e precisa se valo.
rizar como tal. .
m A visão da escravidão, da Lei Aurea e da princesa
Isabel passada através de músicas, ainda é muito amena,
não traduzindo uma visão crítica dos fatos.

Conclusão

Ora, se revoluções foram feitas semeando idéias e práti


cas, os blocos negros e afoxés constituem uma revolu-
ção cultural, social e política, por uma nova sociedade,
solidária, humana e essencialmente anti-racista.
A luta continua, povo negro na diáspora.
Axé!

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POR UMA EDUCAÇÃO PLURICULTURAL
Narcimária Correia do Patrocínio*

O objetivo deste trabalho está ancorado numa tentativa


preliminar de discussão de algumas ideias acerca do
papel da escola numa sociedade eminentemente pluri-
cultural.
Nossa preocupação central está referida à problemá-
tica da escola, que se limita a confirmar e a reforçar
um habitus da cultura oficial eurocêntrica, provocando
a manifestação de um universo pseudoconcreto ou de
um simulacro em volta das crianças, representado por
temas ideológicos como: democracia racial, bondade
da princesa Isabel, as contribuições folclóricas da raça
negra, a África projetada como primitiva etc.
Tal discurso não corresponde às reais condições de
vida do negro, lhe é completamente estranho e não
pode; portanto, relacionar-se com os seus interesses,
pois não se refere à história das civilizações africanas,
aos valores civilizatórios negros, à beleza negra, aos
quilombos, aos grandes heróis negros e, principalmen-
te, à luta desencadeada pelas comunidades negras no
sentido de reforçar a cultura afro-brasileira. Aliás, essa
cultura foi caracteristicamente violentada, negada,
oprimida e desfigurada ao longo dos anos pelo mercan-

* Técnica ém pesquisa do Instituto Anísio Teixeira e mestranda da


Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia.

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44 NARCIMÁRIA CORREIA DO PATROCÍNIO

tilismo escravista, pelo racismo e pela politica e


ideologia do embranquecimento.
O universo escolar parece estranho e alheio aos
negros, porque repete. reforça, prolonga e valoriza
as condições de existérreia do mundo branco.
A constatação básica da qual parte a nossa crítica
é de que:
(...) a imagem da África e do africano promulgada pelas
escolas anglo e latino-americanas é uma imagem grotesca,
humilhante, além de falsa, que mina ou impossibilita toda
aspiração da criança negra à realização humana. Na própria
Á frica, essas distorções prevalecem nos sistemas educativos
herdados do colonialismo. Contestar e banir este sistema de
mitos racistas na educação da,criança negra, e substituí-lo
com uma afirmação autêntica 4 identidade verdadeira e
positiva do africano, é uma função orgânica e primária da
organização política, porque, como um sistema, ele corrói
diretamente o potencial de um povo rumo à realização do
seu protagonismo histórico. !
Por consequência, a escola que se proclama única €
democrática constitui-se numa mistificação; não há
qualquer relação entre o que ela afirma fazer e o que
realmente faz; a sua ideologia democrática é o oposto
da sua existência reprodutiva. A escola consegue
dissimular muito bem a função que desempenha.
Trata-se de uma escola montada, maquinada para.
confortar e fortalecer aqueles que se submetam à visão
eurocêntrica de mundo. . |
Tudo isso mostra que a escola, tal como está
constituída, é um reflexo da política de desculturação,
entendida como:

Lp
Elisa Larkin Nascimento, Parafricanismo na América do Sul
Petrópolis, Vozes. 198 3,p. 36.

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POR UMA EDUCAÇÃO PLURICULTURAL 45

[...) processo consciente mediante o qual, com fins de ex-


ploração econômica, se procede a desagregar a cultura de
um grupo, para facilitar a ex propriação de riquezas naturais
do território em que está estabelecido e ou para utilizá-lo
como força de trabalho barata não-qualificada. O processo
de desculturação é inerente a toda forma de exploração
colonial ou neocolonial (...)?

“Acrescentaríamos: não só com fins de exploração


econômica, mas também de dominação política, cultu-
ral e étnica.”*
Portanto, a escola tem por função vedar a expressão
direta, em relação à criança megra, do seu mundo e da
sua vida. É em redor desta repressão que se organizam
todas as práticas pedagógicas, aqui a recalcar “de certa
forma, o valor próprio da cultura negro-brasileira, a sua
real dimensão, e a complexidade e riqueza do processo
civilizatório negro”.?
A expressão falada da criança negra é desencadeada
muitas vezes no seio de sua família, através da tradi-
ção oral comunitária, a partir de textos e contos que
“são transmitidos e apreendidos lentamente através da
convivência e da iniciação ritualística”. Como forma
pedagógica específica negra, os textos e contos das
comunidades têm uma finalidade e uma função:
(...) antes de serem formas de arte, [os textos] são formas
que levam a carga de significar as múltiplas relações do
homem com seu meio técnico,e ético. Eles ilustram uma
maneira pela qual os nagô procuram promover a adaptação
ou socialização de seus integrqntes, através do aspecto

2 Manuel Fraginals apud Marco Aurélio Luz, Cultura negra e ideolo-


* gia do recalque, Rio de Janeiro, Achiamé, 1983, p. 67.
* Marco Aurélio Luz, op. cit., p. 67.
q Idem, ibidem, p. 27,

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46 NARCIMÁRIA CORREIA DO PATROCÍNIO

pedagógico, assegurando, assim, uma forma própria de


obter a coesão social Os contos ilustram o acervo de textos
místicos, acontecimentos históricos (inclusive os ocorridos
na órbita da sociedade global com seus integrantes) que,
marcados por sua iniemporalidade narrativa e sua caracte-
rística fantástica de representações, reforçam e ensinam os
padrões indicativos dos comportamentos necessários à coe-
são do grupo.*
Todo esse acervo de comunicação oral é mutilado pela
escola, que lhe nega todo valor e penaliza a criança
negra.
Isso significa que se corta sistematicamente a palavra
a quem a quiser tomar sem obedecer às leis do texto
escrito. Assim, se exige o imobilismo destas crianças,
criando-lhes um sentimento de culpa, muitas vezes
relacionando o fracasso escolar à própria criança e à sua
família. A repressão exercitada por parte da escola
sobre a linguagem comunitária e, simultaneamente, da
sua representação e forma de vida, leva as crianças
negras a recalcarem-se diante dos desafios e a viverem
nos como problemas relacionados à sua origem familiar
de ancestralidade africana, inculcando um complexo de
inferioridade que tende a levá-la a não acreditar em Si,
no seu jeito de ser e na sua história etnocultural.
Organizada pelo Estado, esta escola possui uma lin-
guagem que só foi criada para esse fim, configurando-st
como verdadeira barreira social. Procura-se domesticar
e eliminar os valores civilizatórios negros através de um
(...) neologismo aparentemente simples: “civilização”, nas
cido, curiosamente, apenas na meta de do século - vil
do verbo
simultaneamente na França e Inglaterra, derivado

$ Marco Aurélio Luz, Op. cit., pp. 4243.

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POR UMA EDUCAÇÃO PLURICULTURAL 47

“civilizar”, [que] se transformaria, emcentúria e meia, em


arma e em instrumento ou ideologia de dominação. Dessa
arma ou instrumento ousideologia de dominação surgiria
o colonialismo, as guerras colonialistas na África e Ásia, a
escravidão de povos inteiros para a exploração econômica
e humana. E como atua a violência instrumental da arma ou
ideologia? Buscando, primeiro, a obnulação da memória
e, em seguida, a implantação das próprias formas culturais
das potências civilizadoras nos povos submetidos. Não é
outra a ação e o efeito da chamada aculturação. ([...) O
negro foi aculturado dentro de linhas específicas de pressão
espiritual. Sua religião e sua cultura, seus valores e sua con-
cepção do mundo foram pulverizados até sua redução a
matéria de folclore e antropologia, através da deformação
pitoresca do sincretismo.

Através desse supremacismo ariano, que procura


suprimir e silenciar a consciência negra, parece-nos que
a escola,
(...) seus métodos, os locais, a arrumação do espaço
reduzem o aluno à passividade, habituando-o a trabalhar
sem prazer (apesar das pretensões de um “ensino vivo” e de
algumas tentativas de renovação). O espaço pedagógico é
regressivo, mas esta “estrutura” tem um significado mais
vasto que a repressão local: o saber imposto, “engolido”
pelos alunos, “vomitado” nos exames corresponde à divisão
do trabalho na sociedade burguesa, serve-lhe portanto de
suporte. 7

Daqui se conclui que


(...) as práticas escolares e seu ritual são um aspecto
essencial do processo de inculcação ideológica; deveres,
disciplina, castigos e recompensas, atrás de sua aparente

é Elisa Larkin Nascimento, Op. cit., p. 13.

1 Henri Lefebrve, “A Reprodução das Relações Sociais”, s/l. n/d.


(mimeo), pp. 58-59.

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48 NARCIMÁRIA CORREIA DO PATROCÍNIO

função educativa técnica, asseguram a função essencial


ainda que oculta de realizar na escola a ideologia burguesa,
de submeter a ela todos os indivíduos e neste sentido de
representar a seu modo a produção, o direito, o Estado
burguês. 8

Mas a escola é, também, e ao mesmo tempo, um


local de lutas, onde emergem constantemente múltiplas
forças contraditórias. Trata-se de um terreno de luta
entre opressor e oprimido, onde se defrontam forças
progressistas e conservadoras, onde se refletem também
a exploração e a luta contra a exploração. “(...) A
escola é simultaneamente reprodução das estruturas
existentes, correia de transmissão da ideologia oficial,
domesticação, mas também ameaça à ordem estabele-
cida e possibilidade de libertação.”? Seu papel repro-
dutor não a aniquila, pelo contrário, indica pistas para
o combate, a possibilidade desse combate que já foi
desencadeado e como continuá-lo, observando as
relações de força, acompanhando o momento histórico,
que possibilitará uma instabilidade mais ou menos
aberta à nossa ação.
Resta-nos ressaltar a viabilidade, onde a criança
negra deixa de ser um corpo estranho, destinada ao
fracasso escolar. O Brasil é o segundo maior país negro
do mundo, com mais de 80 milhões de pessoas de
“ascendência africana. Daí a necessidade de transformar
a escola em local de luta, o terreno em que se procurará

8 Christian Baudelot e Roger Establet, L'école capitaliste, Paris,


- Maspéro, p. 59.

hi Georges Snyders, Escola, classe e luta de classes, Morais, Rio de


Janeiro, 1981,p. 106.

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POR UMA EDUCAÇÃO PLURICULTURAL 49

»desenvolver no negro uma autoconsciência histórica e“


política, ou uma comunicação e solidariedade prática
com o resto do mundo africano. O papel da escola
passa a ser o de oferecer ao negro brasileiro uma fonte:
de informações para começar a preencher o vazio
resultante do isolamento que lhe foi imposto por essas
táticas de dominação. É
Nesta perspectiva
(...) nunca é demasiado destacar o valor e o lugar que 7
religião ocupa no processo civilizatório negro. A religião se
caracteriza como um eixo, um elemento central (...) deste
processo. A religião é ponto básico, é fonte de afirmação
dos valores civilizatórios negros e núcleo de resistência às
variadas formas de aspirações neocolonialistas (...) Em
relação ao processo cultural, a religião é fonte dinamizado-
ra de um ethos, indicadora de comportamentos e hábitos,
enfim de uma maneira negra de ser. Ela estabelece e
proporciona uma ética própria. 1 mprime formas de relações
sociais, estipulando formas próprias de organização e
hierarquias, estimula a vida comunal Estabelece padrões .
estéticos próprios e formas específicas de comunicação e de
acesso ao riquíssimo sistema simbólico, pleno de conheci
mentos e sabedorias, caracterizando uma pedagogia negra
iniciática. (...) A religião negra constituise num ponto de
resistência de luta do homem negro em busca de sua
libertação e de real e universal integração. 10

É importante notar que essa referência civilizatória


negra, dispensada pela escola, está comprometida com
a verdade e a luta por uma sociedade mais justa, em que
se respeite a diversidade cultural. A cultura negra é um
dos fatores que pode impedir a escola de pender para a
ideologia colonial do supremacismo branco, desde que

º Marco Aurélio Luz, op. cit. p. 38.

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50 NARCIMÁRIA CORREIA DO PATROCÍNIO

a pressão e as experiências vividas pelas crianças negras


sejam um obstáculo ao disfarce democrático escolar.
Portanto, a cultura negra é o ponto de chegada e de
» partida, a luta real, possível e necessária no cotidiano
-/ escolar. Lutar para desmistificar os conteúdos veicula-
| dos na escola, lutar para denunciar e esmagar a
segregação no interior da escola, pela conscientização
dos agentes pedagógicos sobre a referência histórico-
cultural afro-brasileira, pela recuperação da memória
ancestral africana, para minar o mito da democracia
racial, enfim, para reconstruir a verdadeira história do
negro, distorcida pela política de desculturação.
Mas há mais coisas a serem observadas. Não se
pode adotar uma postura de consciência ingênua nessa
questão, esquecendo-se de que

(...) a escola é um dos organismos da superestrultura €,


como tal, é uma das instâncias onde a prática social global
se processa A prática educativa escolar é, portanto, uma
das modalidades dessa prática social global e não uma “enti
dade" à parte desta prática mais ampla, uma entidade que
estaria precedendo à prática social como um todo. Se as
transformações sociais se dão na prática social global, dão
se em toda e qualquer de sttas. modalidades, inclusive na
lembrar
na prática educativa (...). Por outro lado, é preciso
ainda que o comportamento do indivíduo é determinado
pelas múltiplas circunstâncias que constituem à pt
social global na qual se encontra. No entanto, não Se pode
esquecer que essa determinação não é absoluta na formação
eutonona
da consciência do indivíduo. Existe uma relativa
em relação a essa determinação, levando-o a reagir So á
elas As lutas de classe mostram bem esse fenômeno.

n 1

Betty Oliveira, “A Prática Social Global como Ponto de PartiIdi


do
e de Chegada da Prática Educativa”, Tecnologia educacional Rio 4º
Janeiro, n. 66-6 7, nov.-dez. 1985.

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POR UMA EDUCAÇÃO PLURICULTURAL 51

É preciso enfatizar aqui a necessidade de compreen-


der a prática educativa como uma atividade mediadora
no seio de uma prática social global. Uma prática
educativa que pretenda instrumentar o indivíduo, en-
quanto ser social, para atuar na circunstância histórico-
geográfica na qual está inserido.
Considerando-se esses aspectos, podemos propor um
quefazer pedagógico que proporcione uma educação
em que a sistematização do conhecimento nasça da
experiência pluricultural da nossa sociedade e perma-
neça em continuidade com ela. Onde o aluno use a sua
experiência pessoal completada, enriquecida com o que
aprende.
Assim a escola passará a ser a síntese do patrimônio
coletivo pluricultural.

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IDEOLOGIA DO EMBRANQUECIMENTO
Ana Célia da Silva*

No tempo em que as relações econômicas entre brancos


e negros eram de troca e não de exploração, antes da
colonização européia, o ser negro era uma diferença
que não se traduzia em inferioridade.
O escravismo determinou, no europeu, a necessidade
de “justificação” da apropriação da vida e da destrui-'
ção de um processo civilizatório milenar africano.
A partir daí, o africano passou a ser considerado um
ser sem alma, sem humanidade, mais próximo dos
animais, instintivo e sem razão, um ser inferior, cuja
escravização se constituiria em oportunidade de huma-
nização e salvação, através de sua inserção no processo
civilizatório “superior” europeu.
A Igreja desempenhará um importante papel na
justificativa da escravidão. Com o seu aval, a escravidão
negra será entendida como um ato piedoso. A Igreja foi
uma grande aliada do regime escravocrata.
Joaquim Nabuco, em O Abolicionismo, registra O
desempenho da Igreja:

* Professora da Secretaria de Educação do Estado da Bahia, mestre


em Educação pela Universidade Federal da Bahia e membro do Movi-
mento Negro Unificado,

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54 ANA CÉLIA DA SILVA

Entre nós, o movimento abolicionista nada deve, infeliz.


mente, à igreja do Estado: pelo contrário, a posse de
homens e mulheres pelos conventos e por todo o clero
secular desmoralizou inteiramente o sentimento religioso
dos senhores de escravos. No sacerdote, estes não viam
senão um homem que os podia comprar e, aqueles, a última
pessoa que se lembraria de acusá-los A deserção pelo nosso
clero, do posto que o Evangelho lhe marcou foi a mais
vergonhosa possível: ninguém o viu tomar a parte dos
escravos, fazer uso da religião para suavizar-lhes o cativeiro
e para dizer a verdade moral aos senhores. Nenhum padre
tentou nunca impedir um leilão de escravos, nem condenar
o regime religioso das senzalas (...).1

A escravidão negra representou um grande negócio


entre a Santa Sé e a Coroa de Portugal. O papa Nicolau
V, em janeiro de 1454, autoriza o mercado escravo de
africanos, pela bula “Romanus Pontifex”, argumen-
tando que o negro batizado e “resgatado” para a fé
católica é negro salvo para a eternidade. Por trás disso,
Portugal pagava juros e comissões sobre o tráfico.”
Além da Igreja, pensadores e intelectuais legitima-
ram a ideologia de inferiorização do negro, dando-lhe
caráter “científico”. Aristóteles acreditava que certas
raças nascem para a escravidão, e é muito citado para se
explicar que O racismo é tão velho quanto o mundo,
porque a historiografia oficial sempre tentou livrar à
sociedade escravista dos séculos XVI a XIX de ter
colocado o racismo na escravidão, utilizando-se de uma
raça dada como inferior e destinada “naturalmente” ao
º
1 o
J. Júl io Chi ave nat o, O negro de sil, 3.ed., São Pau lo, Brasil-
no Brarasi
ense, 1980,p. 112 .
: Idem, op. cit., p. 112,

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IDEOLOGIA DO EMBRANQUECIMENTO 55

trabalho, procurandoa origem do racismo em tempos


remotos.”
O fim legal da escravidão no Brasil colocou para a
minoria dominante e para os outros brancos imersos
na sua ideologia, o problema do negro majoritário na
sociedade e com peso social. Isso porque a maioria dos
negros já era crioula, .isto é, negros nascidos no Brasil,
dominando a língua portuguesa e com uma grande
maioria economicamente, independente, por terem sido
alforriados muito antes dar Abolição ou por serem
escravos de ganho, desempenhando as mais diversas
profissões. |
A este respeito, Herbert Klein demonstrou efetiva-
mente o alcance e a importância da posição social
ocupada pelo negro forro antes da Abolição. Assim, em
1872, data do primeiro censo nacional (dezesseis anos
antes da Abolição), o$ negros forros constituíam 74%
da população de cor. Essa classe de homens há muito
conseguira acesso a ocupações qualificadas e, às vezes,
até a posições proeminentes como artistas, políticos
e escritores. O ponto essencial a ser notado é que os
homens de cor livres estabeleceram um grau conside-
rável de mobilidade ocupacional e social, enquanto a
escravidão ainda predominava por todo o país.?
O medo de um país de maioria negra e das suas
consequências para a minoria branca dominante, a
visão recente da revolução negra no Haiti, a presença
das formas de viver, sentir e pensar diferentes do negro,
presentes na sociedade brasileira não-oficial, represen-

* Chiavenato, op. cit., p. 168.


* Herbert Klein apud- Thomas Skidmore, Argumento, ano1, n. 1,
out. 1973,

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56 ANA CÉLIA DA SILVA

tando o processo civilizatório africano aqui mantido


pelo povo negro, determinararn, no sistema, a necessi-
dade de destruir essas perigosas diferenças, de homo-
geneizá-las através do rolo compressor da ideologia do
poder branco, que, a partir daí, deveria tornar-se
hegemônico, bem como de eliminar, através da misci-
genação imposta e de outras estratégias, o elemento
negro, tido como mancha nefasta para a nação.
A partir daí, preconceitos e estereótipos são reafir-
mados no sentido de inferiorizar o padrão estético,
moral e cultural e todas as suas manifestações, especifi-
camenite a religiosa. A religião africana “sincretizada”,
ou seja, obrigada pela violência a esconder-se sob as
manifestações da religião católica imposta ao negro,
passou a ser perseguida com maior violência que antes.
Por outro lado, os inquices, voduns e orixás são asso-
ciados ao Diabo pelos cristãos. Q negro é estereotipado
como feio, mau, sem razão, instintivo e sem moral,
de uma forma violenta e abrangente, pelos aparelhos de
reprodução ideológica e instituições oficiais.
A inculcação do estereótipo inferiorizante visa à
produzir a rejeição a si próprio, ao seu padrão estético,
bem como aos seus assemelhados. Por sua vez, a cultura
e seus valores, uma vez inferiorizados, tendem a ser
rejeitados, porque passam a ser vistos pela ótica
imposta do dominador como primitivos, inferiores
ou “folclóricos”. e
Por outro lado, os aparelhos de reprodução ideoló-
gica e instituições tais como a escola, a igreja é à
própria família, passam a reproduzir a ideologia do
dominador, apresentando como único padrão aceito
de beleza, inteligência, bondade e perteição, O modelo
branco europeu, sua cultura e seus valores.

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IDFOLOGIA DO EMBRANQUECIMEN
TO S7

A inculcação de uma imagem negativa do negro e de


uma imagem positiva do branco tende a fazer com que
aquele se rejeite, não se estime e procure aproximar-se
em tudo deste e dos seus valores, tidos como bons e
perfeitos. Esse processo de fuga de si próprio e dos seus
valores é consequência da política de branqueamento
característica do Estado e das suas instituições oficiais.
A política de branqueamento que caracteriza o
racismo no Brasil se alimenta das ideologias, das teorias
e dos estereótipos de inferioridade -superioridade
raciais que se conjugam com a política de imigração
européia, para “apurar a raça brasileira” e com a
não-legitimação, pelo Estado, dos processos civilizató-
ros indígenas e africanos, constituintes da identidade
cultural da nação.”
A ideologia do branqueamento objetiva equalizar as
diferenças culturais, transformando os segmentos
diferentes, como o negro e o índio, em um só povo, O
povo brasileiro, vivendo de forma harmônica e consen-
sual, sob a hegemonia da classe minoritária dominante,
pretensamente ariana e européia.
Além da proposta de equalização das diferenças
como forma de evitar o conflito e estabelecer o
consenso sócio-cultural, a ideologia do branqueamento
tem a proposta de produzir uma nação branca num
futuro não muito distante, a partir do processo de
miscigenação, como uma das formas de eliminação
do povo negro na constituição da nação brasileira.
Intelectuais, ideólogos e cientistas, ontem e hoje,
respaldam a ideologia do branqueamento e a elimina

* Marco Aurélio Luz, “Ideologia do Sincretismo, Identidade e Plu-


ralsmo Cultural”, Tribuna da Bahia, edição de 01/11/86.

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s8 ANA CÉLIA DA SILVA

ção física e cultural do negro na sociedade brasileira.


No período pré-Abolição e após ela, intelectuais
preocupavam-se em branquear os negros. Homens
como Joaquim Nabuco, já saíam do processo da
libertação legal dos negros pensando em branqueá-los.
Ele foi um dos pioneiros em pensar o branqueamento,
seguido de outros como Rui Barbosa, Melo Franco e
até Euclides da Cunha. Em O Abolicionismo, Joaquim
Nabuco tem o cuidado de explicar o que se pretende
ao abolir a escravidão: absorver “o sangue caucásico
vivaz, enérgico e sadio”, que certamente embranque-
cerá o nosso povo. O mesmo pedia José do Patrocínio,
pretendendo, logo após, arrojar-se aos pés da princesa
Isabel em gratidão pela “bondade” da Lei Aurea, o
fundir-se de raças que eliminaria os preconceitos
existentes; Patrocínio, mulato, entendia que a opressão
racial acabaria com o branqueamento dos da sua cor.
Ao mesmo tempo em que o Brasil desenvolve essa
ideologia de genocídio racial e cultural, apresentava
para o mundo a face de uma nação, talvez a única, onde
a convivência entre as raças era harmônica e pacífica, a
integração se efetivava sem traumas e à miscinegação
se realizava através da atração e do amor entre as
diferentes raças.
Gilberto Freire forneceu ao Brasil e ao mundo um
quadro das relações raciais, difundido não apenas entre
a maioria da elite branca, como também entre muitos
negros. Vinte anos após Freire, uma nova geração de
cientistas sociais chega a conclusões diferentes das suas,

É Chiavenato,
op. cit, p. 173.

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IDEOLOGIA DO EMBRANQUECIMENTO 59

contribuindo para a destruição do mito da democracia


racial.
O sistema de clientela e patronagem mais vigentes
no período de Freire podem ser apontados como a
causa da receptividade das suas teorias sobre a demo-
cracia racial, bem como o sistema competitivo que se
desenvolve nos anos sessenta pode justificar o ataque
ao mito pelos cientistas sociais modernos, uma vez que
a “humildade” e “subserviência” do negro transforma-
ram-se em “agressividade” e “arrogância” na sociedade
competitiva industrial.”
O mito da democracia racial apregoa a igualdade de
oportunidades para brancos, negros e mestiços. Ele
contribui para camuflar a desigualdade racial, a discri-
minação praticada no acesso ao emprego e a conse-
quente falta de oportunidades de adquirir a formação
geral e profissional da maioria do povo negro, bem
como a manutenção do “seu lugar” nas atividades
consideradas inferiores e, -por isso, mal remuneradas.
O mito contribui para “obscurecer” (*) os proble-
mas radicais, o caráter paternalista das relações de
classes e das relações entre brancos e pessoas de cor,
dando lugar a que, ao invés de competição e oposição,
haja tolerância e condescendência de uma parte e
conformidade da outra.

* Emília Viotti, “Da Monarquia à República: Momentos Decisivos”,


São Paulo, Grizalbo, 1977 (mimeo).

* As aspas são nossas.

ê Van den Berghe apud Thales de Azevedo, Democracia racial,


Petrópolis, Vozes, 1975.

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60 ANA CÉLIA DA SILVA

É camuflando a realidade com a ideologia da


não-discriminação que o Brasil alcança, sem tensões, os
mesmos resultados que outras sociedades abertamente
racistas.”
A manutenção do mito da democracia racial interes-
sa à classe dominante, porque é uma forma de confun-
dir, de escamotear até para o próprio negro, a sua
situação de discriminado e marginalizado das institui-
ções oficiais e da participação nas decisões de poder,
uma vez que se constitui em maioria no país.
Por outro lado, essa ideologia permite a mobili-
dade de uma minoria que é apontada como exemplo da
igualdade de oportunidades e da teoria do esforço
individual, porém o preço a pagar é a perda da
identidade.
Embora socialmente móveis,.os negros tinham,
entretanto, que pagar um preço por sua mobilidade:
tinham que adotar a percepção que os brancos pos-
suíam do problema racial e dos próprios negros.
Tinham que fingir que eram brancos. Eram negros
especiais, “negros de alma branca” » expressão comum
empregada pelos brasileiros da classe “ “superior” branca
sempre que se referiam aos seus amigos negros.!º
Contudo, não é apenas através da política de
branqueamento que o Estado brasileiro tenta eliminar a
raça negra e a sua cultura. Podemos caracterizar como
genocídio a política de abandono a que são submetidos
os segmentos oprimidos da população, negros e mesti-
ços cm sua grande maioria, que efetivamente realiza O

á Ddiazieyo apud Azevedo, op. cit.

9 Viotti, op. cit.

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IDEOLOGIA DO EMBRANQUECIMENTO 61

projeto de aniquilamento do negro e de outros segmen-


tos minoritários.
Também a eliminação física dos ditos marginais,
bem como de pessoas negras “confundidas” com
marginais pela polícia, em número que aumenta dia a
dia, assustadoramente; o desemprego, a fome e a
consequente marginalização; os altos índices de morta-
lidade infantil, determinados pela desnutrição e doen-
ças oriundas da fome; a política de esterilização em
massa promovida por cientistas brasileiros e institui-
ções financiadas pelo capital estrangeiro e até insti-
tuições estrangeiras (Benfam), com a complacência do
governo brasileiro; o isolamento afetivo da mulher
negra, determinado pela inculcação de estereótipos
negativos a seu respeito e pela consequente rejeição a
ela do homem negro e branco, fazem parte da estratégia
genocida de fazer desaparecer, no período mais curto
possível, o negro da sociedade brasileira.
“A mancha negra tende a desaparecer num tempo
relativamente curto em virtude da imigração branca em
que a herança de Can se dissolve.”!!

Resistência negra à política de branqueamento

O povo negro vem desenvolvendo no Brasil, durante os


séculos da sua permanência aqui, os valores do processo
civilizatório africano, expandidos pelas religiões afro-
brasileiras.

! joão Pandiá, 1930, político e o,historia dor, apud Abdias Nasci-


mento, Genocídio do negro Rio de Janeiro, Paz e Terra,
brasileir
1978.

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62 ANA CÉLIA DA SILVA

Fora das instituições e circuitos oficiais, onde


prevalece a cultura do dominador, constatamos a forte
presença de aspectos fundamentais da civilização
africana, os quais oportunizam o desenvolvimento de
uma sociedade paralela à oficial.
As religiões afro-brasileiras constituem a forma
de ligação com o transcendente de grande parte da
população brasileira. Essas religiões determinaram usos
e costumes africanos, como o vocabulário, a indumen-
tária, a alimentação, hábitos higiênicos, a medicina
natural (uso das folhas e chás). Por outro lado, a
família negra aqui constituída guarda profundos traços
africanos, seja na constituição de grandes famílias
dirigidas geralmente pela mulher, uma vez que o
homem, sem emprego e sem meios de sustentá-la,
geralmente se evade do lar, seja no hábito da adoção,
bem como na união da parentela em um só lar.
Por sua vez, a organização econômica negra, oposta
à organização capitalista, permite o trabalhar apenas
para viver, O divertir-se, as festas, O lazer, enfim, tão
depreciado e visto como preguiça e improdutividade
pela sociedade de consumo.
Também as organizações culturais e políticas e O
contato com os outros negros da diáspora africana vêm
possibilitando o crescimento da afirmação da identi-
dade, revelada nas posturas consideradas “arrogantes”,
nas roupas de estilo afro ou européias — mas estas
revelam uma adaptação ao padrão estético negro —, no
desuso pelos jovens da alteração de traços estéticos
para ficar “bonito”, como alisar o cabelo com ferro
“Quente ou com produtos químicos.
“A afirmação da identidade negra, a despeito das
tentativas de sua anulação pela política de inferioriza

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IDEOLOGIA DO EMBRANQUECIMENTO 63

ção do negro, conduz a uma luta pelo respeito às suas


diferenças e pela possibilidade de uma efetiva integra-
ção social, sem renúncia à identidade racial e cultural.
Por outro lado, essa luta por respeito às diferenças
e pela igualdade de oportunidades pode conduzir a
sociedade brasileira a avançar rumo a uma real demo-
cracia, vez que é impossível falar em democracia de
qualquer tipo num país onde a maioria da sua popula-
ção vive à margem do processo produtivo oficial e
relegada a uma das mais cruéis formas de discrimi-
nação, constituída pelo racismo aqui implantado e
insidiosamente negado.

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O NEGRO,
CONSTITUINTE DA SUA LIBERDADE
Vanda Machado”
Vocês querem que eu pense como vocês;
mas eu não sou vocês;
que eu reaja como vocês e eu não sou vocês.
E vocês não me deixam ser eu mesmo.
(De um poeta nigeriano).

A discriminação racial no Brasil difere de outras so-


ciedades semelhantes, na medida em que a ideologia
brasileira está calcada na falácia da democracia racial. A
função precípua dessa ideologia tem sido a de alimen-
tar o preconceito racial, legitimando a estrutura vigente
de desigualdades sociais, impedindo que a real situação
se transforme numa questão pública. Conseguentemen-
te, as desigualdades sociais não são apenas resultado de
diferentes pontos de partida de indivíduos brancos
e indivíduos negros — a herança escravista — mas
refletem, sobretudo, as desvantagens competitivas que
limitam as oportunidades que permitiriam ao negro
integrar-se totalmente na sociedade em que vive.
Para que a dominação do negro tomasse modos
de autenticidade, é que foi construída a ideologia da
incapacidade. Privando-os de direitos iguais, se fez
necessária uma argumentação que, uma vez por todas,
consolidasse as barreiras sociais que separam dois
mundos — o mundo dos brancos e o mundo dos negros.
Conseguentemente, a mobilidade social do negro,
barrada ideologicamente, foi tão acentuada que tem
sido perpetuada até o presente. Estudos e argumentos

' * Mestranda da Faculdade de Educação da Universidade Federal da


ahia,

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66 VANDA MACHADO

não comprovados contaram com o apoio de aparelhos


ideológicos, destacadamente a educação, que reduziram
o enorme contingente negro à miserável condição de
classe subalterna. Dentre as medidas adotadas por
grupos brancos, de idéias comuns, sobressai o processo
de desculturação. Atingir a cultura negra, dando-lhe
uma interpretação marginal, irracional e folclórica foi
O caminho mais curto, que produziria efeitos para a
consolidação da classe dominante.
Em meio de tão marcada hostilidade, séculos de
escravidão não bastaram para vitimar a alma do negro
no Brasil, alma negra, cujos antepassados guardaram
a sabedoria e a semente da insurgência. Deste modo, a
total sujeição nunca foi alcançada. A insurgência
contou sempre com uma arma disponível. Gerações
sucessivas combateram a escravidão com a força vital
do seu jeito de ser, vivendo sua cosmovisão, que se
reflete no seu canto, dança, poesia, ritmo e emoção,
elaborando sua própria história. Para usar as palavrás
de Lucien Febvre, “é o combate da história usando as
armas de que dispõe”.
A solidariedade étnica e religiosa se constituíram em
elementos promotores de rebeldia e de formação de
núcleos de negros que puderam resistir à escravidão
e ao processo de desculturação que lhes era imposto.
Daí é que, em que pesem os impedimentos para a so-
brevivência do universo cultural do negro, constatamos
hoje, também, que uma cultura se enraiza muito mais
profundamente que uma mentalidade ou uma ideolo-
gia. A cultura é algo específico de cada homem. E O
que regula a sua cosmovisão, a sua maneira de ser e de
se situar nó mundo.

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O NEGRO, CONSTITUINTE DA SUA LIBERDADE 67

Entretanto, uma mentalidade pode ser modelada ou


induzida. Foi assim, tomando por base idéias abstratas,
que alguns estudiosos buscaram dar significado cientí-
fico a uma falsa hierarquia racial, embora hoje compro-
vadamente inexistente. Posto que as suas investigações
teriam sido desenvolvidas para desqualificar o modo
de pensar e agir do negro, qualquer desvio do compor-
tamento padrão estabelecido pela cultura oficial, que
é branca, ainda pode ser supostamente admitido como
atributo da raça. Teorias com este propósito concorrem
para as desigualdades sociais que nos atingem. Em
nome de uma pseudo-ciência, é posto em confronto
o “pensamento racional do branco” e o “estado emo-
cional” que “caracteriza” o modus vivendi do negro.
Para justificar a hierarquia da raça, escreve Nina
Rodrigues:
(...) torna-se impossível acreditar que logo que sejam
afastadas todas as incapacidades civis, desde que a carreira
lhe seja aberta e não sejam nem oprimidos nem favorecidos.
nossos irmãos prognáticos possam lutar com vantagens com
seus irmãos melhores favorecidos de cérebro (...) Nossos
irmãos negros não poderão pois, chegar aos mais altos
lugares da hierarquia estabelecida pela civilização, ainda
que não seja necessário confiná-los para a última classe. À

De um modo geral, a ideologia da incapacidade


do negro afastou a análise das condições históricas
e fatores sócio-econômicos que envolvem a situação do
negro no Brasil. Por outro lado, nessa mesma ideologia
está embutido o comportamento desta sociedade, que
indubitavelmente é racista. Assim, dentro do enfo-

* Nina Rodrigues apud Huxley Freire Maia, Brasil: laboratório


racial, Petrópolis, Vozes, 1983, pp. 43-49.

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68 VANDA MACHADO

que do nosso trabalho, preferimos imprimir à nossa


reflexão o que disse François de VEspinay: “Se um
branco pensa com a sua cabeça, O negro pensa com
todo o seu ser”.? E, acrescentamos, o seu sentir está
contido num conjunto de instrumentos culturais de
sobrevivência, herança milenar que, cultivada e preser-
vada, lhe dá a identidade como pessoa.
- é O negro, seja qual for sua história de vida e a classe
social a que pertença, carrega consigo influências
ancestrais bem marcadas. Um negro é sempre um
negro. E estas influências ressaltam na sua condição
de ser, pertencer e participar de grupos específicos.
Grupos que se formaram ao longo da nossa história,
pela necessidade de insurgência, nos quilombos e
terreiros de candomblé. Ou grupos que se formaram
como agências de prestígio e ascensão social para a
população negra do século passado. Dentre estes
últimos, vale citar as irmandades religiosas e, mais
— particularmente, a Sociedade Protetora dos Desvalidos,
| na Bahia, instituição amplamente estudada por Júlio
| Braga, na obra do mesmo nome.?
Necessário se torna compreender a feição de cada
um destes grupos, e o fenômeno das suas organizações
como forma de luta. Compreender ainda a necessidade
de afirmação da personalidade do negro, bem como suá
participação numa sociedade que subtrai seu poder de
decisão sobre sua própria causa. Acrescentem-se, ainda,

é François Marie D'Espinay, De la religion des Orixá; une autre pa


role du Dieu Unique?, Lumiére & Vie, Paris, 1984, pp. 17 e 29.
* Sociedade Protetora dos Desvalidos, uma irmandade de cor, Salva-
dor, lanamá, 1987.

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O NEGRO, CONSTITUINTE DA SUA LIBERDADE 69

as considerações de Linton,” quando afirma que as per-


sonalidades e o jeito de pensar dos indivíduos, são plas-
mados sobretudo pela influência da própria cultura.
Portanto, no que diz respeito a certas convenções
e influências impostas pela sociedade, estas se consti-
tuem em mecanismo inócuo ou peça de engrenagem
opressora, de rotina na vida. Quanto à cultura, esta fica
acima de tudo que é convencional e opressor. Preservá-
la significa reflexioná-la como condição essencial,
como estrutura de desempenho pessoal, que poderá
permitir a esses indivíduos modos de aprendizagem de
sobrevivência capazes de produzir melhoria de condi-
ções próprias para a vida e integração política na socie-
dade. Desconsiderar esta cultura é substituir pelo vazio,
ou como diria Jung, é interferir para a “perda da alma”
de indivíduos. Isto porque uma cultura é a configu-
ração de conduta apreendida e resultado de conduta,
cujos elementos permanentes são partilhados e transmi-
tidos pelos membros de um grupo em particular.
Por cultura, então, entendemos:

(...) el conjunto de las formas adquiridas de comportamien-


to que un grupo de indivíduos, unidos por una tradición
comun, transmitem a sus hijos (...) Esta palavra designa
pues, no solo, las tradiciones artísticas, religiosas y filosó fi-
cas de una sociedad, sino tambien sus técnicas próprias, sus
costumbres políticos y los milusos que caracterizan su vida
cotidiana: modo de designación del presidente del Consejo,
procedimiento de revisión de la Constituciôón, etc. $

Jou,
y Ralph Linton, Cultura e personalidade, São Paulo, Mestre
1979,

y Margaret Mead, Societés, traditions et techniques, Paris, Unesco,


1953,p. 13,

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10 VANDA MACHADO

Vale atentar que a participação cultural e política


destacada de grupos negros aqui mencionados repre-
senta um marco que serve de referência da maneira
possível de sua participação na sociedade, participação
considerada à margem dos valores sociais vigentes,
participação dificultada para garantir a estratificação
desta sociedade. Em que pese o discurso pela afirmação
de uma pluralidade cultural como um desejo inscrito
pela população negra, a sua identidade, os seus valores
têm sido aviltados em suas formas mais autênticas,
principalmente pelo sistema educacional. Na verdade
isso não nos causa estranheza quando passamos a
considerar:
E que vivemos numa sociedade pluricultural, cujo
processo civilizatório tende a afirmar apenas valores da
sociedade oficial, que é branca; |
m que a educação tem contribuído para a cons
trução de pessoas “iguais”, numa perspectiva de domi-
nação, a fim de obter, principalmente, proveitos
materiais;
= que a escola, como aparelho ideológico do
Estado, na sua prática, tende a ignorar os valores
culturais negros, seu universo simbólico, inculcando,
nas crianças, os padrões e estereótipos de uma ideologia
de inferioridade; ,
= que o conhecimento é transmitido em “pacotes
pré-programados, sem muita relação com as vivências
das crianças negras.
Esse processo educacional é uma ação constante,
por ser institucionalizada, e tende a fragilizar OS
elementos construtores da personalidade desses indivi-
duos, afastando-os cada vez mais das decisões que
dizem respeito a seu próprio grupo.

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O NEGRO, CONSTITUINTE DA SUA LIBERDADE 71

' Portanto, a nosso ver, a consideração pela cultura


dos indivíduos é um dos caminhos, uma das vias pelas
quais se torna possível a qualificação da pessoa do
negro. Acrescentamos que, do mesmo modo, a apren-
dizagem significativa dos indivíduos dos diversos
agrupamentos negros se fará mais criativamente sem
fazê-los perder as características de sua identidade
cultural. E um dos meios, não o único, mas um dos
meios que permitem uma motivação genuína que serve
como ancoragem para a aprendizagem, estabelecendo-
se, ao mesmo tempo, o vínculo com as vivências
contidas na sua cultura.
e É somando-se traços culturais aos da personalidade
q dos indivíduos que se faz possível acelerar o pensamen-
to criador. Entendemos como pensamento criador
| conjuntos de habilidades cognitivas que caracterizam o
| pensamento produtivo e que se distingue do pensamen-
| to reprodutivoO processo educativo, com efeito, deve
| ser revisto no sentido de desenvolver as potencialidades
é. desses indivíduos. Se forem utilizados recursos ade-
' quados, esses podem favorecer não só à aquisição de
| conhecimentos, mas sobretudo o crescimento e a
| afirmação da identidade do educando negro. Com
| liberdade para pensar, a sua capacidade criadora poderá
| ser desenvolvida, afirmando-o como ser humano na
| busca de iguais oportunidades na luta pela vida.
| Dizendo de outro modo, a desconsideração pela cultura
“do negro impede as suas chances de participação na
sociedade e afirmação da sua identidade como pessoa.
Na verdade, os negros introduzidos no Brasil perten-
ciam a diversas etnias que provinham das mais variadas
regiões da África. Entretanto, havia fortes pontos em
comum. As suas religiões, os seus costumes, quaisquer

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n VANDA MACHADO

que fossem, mantinham profunda relação com certas


formas de família e organização clânicas. Fiéis à
cultura dos seus antepassados, os valores de sua
identidade foram transferidos dos mais velhos para os
mais novos e apreendidos facilmente pelas crianças. São
valores de uma identidade coletiva que faz parte de
uma herança comum como padrão de comportamento.
Padrão este que está contido no pensamento simbólico
e nas ações em quase todos os aspectos das suas
atividades cotidianas, ressaltando com mais profundi-
dade nas comunidades de candomblé.
Daí, segue-se a necessidade de apreensão desta reali-
dade e de se compreender a configuração da cultura
negra recriada pelo contingente escravo expatriado para
o Brasil, configuração cultural composta de padrões de
diversas etnias mais ou menos ajustadas e funcional-
mente interrelacionados.
Resistindo e insurgindo-se ao abandono da socie-
dade oficial, que é branca, os negros solidarizaram-se
entre si nos quilombos e nos terreiros de candomblé.
Esse é um dado histórico. A solidariedade brotou das
profundezas da alma coletiva dos seus ancestrais. E à
religião como instrumento, como instituição social,
propicia o agrupamento de escravos “libertos”, que já
não tinham quem lhes desse o de-comer no dia seguinte
à “abolição”.
Os anos se passaram. Cem anos. Das diversas
experiências comunitárias de insurgência e sobrevivên-
cia parece que se origina uma lição básica: a lição das
formas de luta e de associação dos negros no Brasil.
Daí, resultam também modos de insurgência contem:
porânea que se mostram no movimento dos favelados,
dos que lutam pela posse da terra e nas diversas

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O NEGRO, CONSTITUINTE DA SUA LIBERDADE 73

associações de bairros populares que se põem em


confronto com a realidade social existente. É uma luta
que tem um recrudescimento notável nestes últimos
anos. Luta que não é só pelo de-comer e para ter onde
morar. É a luta que se faz também pelo respeito à
cultura, à pessoa e por uma educação integradora. Luta
pela liberdade de pensar e participar das decisões
políticas na sociedade brasileira.
Enquanto visualizávamos a conclusão deste escrito,
nos demos conta da manchete do jornal “A Tarde”. E
lá, na 82 página da edição de 3 de fevereiro de 1987:
“Prática do racismo pode dar reclusão, decide Oo
Plenário”. A notícia tem a ver com o que estamos
trabalhando nestas folhas. O assunto nos remete para o
início da primeira página: “a discriminação racial no
Brasil difere...”, e para a última frase que havíamos
concluído: “... luta pela liberdade de pensar e partici-
par das decisões políticas na sociedade brasileira”. Tem
negro na Constituinte! O Plenário aprovou uma lei que
condena a prática do racismo, que constitui crime
inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão,
por 519 votos contra três e abstenção do presidente
Ulysses Guimarães. Carlos Alberto Caó, deputado do
PDT, e Benedita Silva, deputada do PT, ambos do Rio
de Janeiro e negros, são os autores do texto aprovado.
Segue o texto da Lei, transcrito do jornal “A Tarde”:
“A Lei punirá qualquer discriminação atentatória dos
direitos e liberdades fundamentais. A prática do
racismo constitui crime inafiançável e imprescritível
sujeito a pena de reclusão, nos termos da Lei”.
Eis que Ss.Excias., os negros brasileiros Carlos
Alberto Caó e Benedita Silva estão colocando os
pontos nos i's. É de costume, e mal costume, esperar-se

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74 VANDA MACHADO

que as “coisas”, quando não são feitas na entrada,


sejam feitas na saída. Acontece, porém, que a mentali-
dade sobre essas “coisas” está se transformando. E essa
imagem deletéria tende a se extinguir. Nossos irmãos
constroem, no Planalto, um basta para todo aquele que
ainda se orienta pela hierarquia das raças. Pois bem, na
“entrada” da nova Lei do país, no quesito dos direitos
humanos, o negro busca ocupar o seu espaço social,
exigindo o respeito e a dignidade que lhe são devidos
como pessoa.
Poderíamos, a partir dessa notícia, reescrever todo
o texto. Não o fazemos. Entretanto, queremos apenas
pedir a vocês, leitores brancos, negros. ou mestiços,
que já se deram ao trabalho de seguir estas idéias que
estamos desenvolvendo, que se proponham a uma relei-
tura deste comentário ou artigo, considerando o que
se segue:
E a discriminação racial no Brasil conduziu o negro
a um desnível sócio-econômico tão grande, que o
obrigou a purgar os preconceitos desta sociedade
confinado na “última classe social”;
E o racismo não é uma atitude apenas anti-humana,
mas também uma atitude anti-científica;
E conquanto seja solapada ao negro a sua partici-
pação nas decisões que dizem respeito ao seu próprio
grupo, ele vive hoje o continuum da sua cultura,
pensando formas de insurgência com a mesma força
dos seus ancestrais.
Finalmente, gostaríamos que este escrito servisse
como subsídio à reflexão de organizações sociais de
base popular, sindicatos e estudantes. Esperamos,
sobretudo, que estas discussões possam avançar nã
construção da liberdade de fato, que já se faz tardia.

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BREVES NOTÍCIAS DE LUIZ GAMA:
“O ORFEU DE CARAPINHA”
Florentina Souza*

Tendo vivido num século em que os mulatos e mesti-


ços, por temor à discriminação, procuravam a todo
custo esconder suas origens africanas, Luiz Gama
autonomeia-se “Pretinho da Costa”, “Orfeu de Carapi-
nha”, “Negro”, assumindo a sua negritude e usando-a
como arma contra os brancos que tencionavam ofendê-
lo quando o chamavam de “negro”.
Luiz Gama, tribuno autodidata, abolicionista, jorna-
lista, poeta, nascido em Salvador a 21 de junho de
1830, publica em 1859 seu livro de poemas, Primeiras
trovas burlescas de Getulino. Seus poemas, na sua
maioria, tematizam, denunciam e ironizam o precon-
ceito racial da sociedade brasileira em que vivia.
A poesia de Luiz Gama assume o papel de requerer
para si o epíteto de negra, como forma de resistir às
pressões e agressões do mundo branco; uma postura
pioneira na história da literatura brasileira. Podemos
afirmar que a sua poesia assume a identidade negra,
resistindo ao preconceito e à discriminação.
à
O poeta mostra-se excessivamente humilde quantoor
qualidade de seus versos, reconhece-se um poeta men

em Letras pela Universidade Federal da Paraíba e


* Mestra
professora da Universidade do Estado da Bahia.

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16 FLORENTINA SOUZA

e não pretende colocar-se no pedestal dos grandes


artífices do verso, coisa que não foi na realidade;
entretanto, sua poesia é espontânea e constitui-se a voz
corajosa e solitária a denunciar as mazelas de uma
sociedade que vivia embriagada pelo otimismo român-
tico, cujo véu idealizante e mistificador impedia a visão
objetiva da realidade. No poema “Prótase”, ele descre-
ve seus versos e a sua posição na sociedade:
São ritmos de tarelo, atropelados,
Sem retro, sem cadência e sem bitola
Que formam no papelum zigue-zague,
Com os passos de rengo maquitola.
Grosseiras produções d'inculta mente
Em horas de pachorra construídas;
Mas filhas de um bestunto que não rende
Torpe lisonja às almas fementidas

O autor revela sua condição de poeta comum que,


porém, se destaca por fugir à bajulação e louvor da
autoridade tão frequentes na tradição da cultura
literária brasileira.
Luiz Gama denuncia, em vários de seus poemas, 08
jogos de interesse e a discriminação que, por exemplo,
impediram-no de ingressar no curso de Direito; ele vai
além quando satiriza o comportamento da sociedade
diante de seu trabalho, tudo isto numa linguagem
corrosivamente sarcástica e irônica. Vejamos, por
exemplo, trechos de “Lá vai Verso":
Com sabença profiusa irei cantando
Altos feitos de gente luminosa,
Que a trapaça movendo portentosa
A mente assombra, e pasma à natureza!
Espertos eleitores de encomenda,
Deputados, ministros, senadores,

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BREVES NOTICIAS DE LUIZ GAMA... 77

Calfarros diplomatas — chuchadores,


De quem reza a cartilha da esperteza

Finórios traficantes — patriotas;


Espertos maganões de mão ligeira,
Emproados juízes de trapaça,
E outros que de honrados têm fumaça
Mas que são refinados agiotas.
Nem eu próprio à festança escaparei
Com foros de africano fidalgote
Montado num barão com ar de zote

E a sua poesia continua a lançar farpas contra as


agressões recebidas, apontando a hipocrisia e desones-
tidade reinantes:
Mordendo na sola
Empunha o martelo
Não queiras com branco
Meter-te tarelo

Que o branco é mordaz


Tem sangue azulado
Se boles com ele
Estás embirrado

Um dos poemas mais conhecidos de Luiz Gama


intitula-se “Quem sou Eu?”. Nele observamos todas as
constantes de sua poesia; é um momento de felicidade
criativa em que o poeta ironiza a linguagem agressiva
do branco e devolve-lhe a agressão, enquadrando toda a
sociedade na categoria de bodes — epíteto depreciativo
dado aos negros. Ele desenvolve no poema uma teoria
do “enegrecimento”. Assumindo-se “bode”, o poeta
constata: “Gentes pobre, nobres gentes / em todos há
meus parentes”. O poema apresenta O poeta como
solitário, mas orgulhoso de não participar do jogo

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78 FLORENTINA SOUZA

bajulatório; mostra também o incômodo que a sua fala


provocava na sociedade:
Eu bem que sei que sou qual grilo
De maçante e mau estilo
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me tarelo
Bode, negro, Mongibelo

(E a prova de que o trabalho de Luiz Gama


incomodava está no fato de que muitos dos jornais em
que publicava foram fechados, sob influência direta ou
indireta daqueles que se sentiam incomodados). A lira
mordaz do poeta afirma: “Bodes há de toda a casta/
pois a espécie é muito vasta”, e vai listando desde a
aristocracia brasileira (condes, duquesas, marquesas),
passando pela elite política (deputados e senadores),
pela elite religiosa, militar, atingindo até as entidades
mítico-religiosas, afirmando: “Tudo marra, tudo ber-
ra”, para concluir:
Pois se todos têm rabicho
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada
Pois tudo é bodarrada!
Luiz Gama é o primeiro poeta a invocar a musa
negra, a cantar-lhe as qualidades numa perspectiva
inovadora na literatura brasileira; o poeta não faz a
musa passar pelo processo de branqueamento como
O fazem outros, porém destaca-lhe as caracteristiscas
reais:

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BREVES NOTÍCIAS DE LUIZ GAMA... 79

Oh! Musa de Guiné, cor de azeviche


Estátua de granito denegrido,
Ante quemo Leão se põe rendido
Despido do furor da atroz braveza.

No poema “A Cativa”, ele mostra a negra como


musa casta e ingênua dos padrões românticos, traços
dificimente dados à mulher negra, vista na literatura
em geral como a serviçal ou como extravagante animal
sensual. Para Luiz Gama, a cativa tem a mesma beleza
e castidade da musa branca:
Como era linda, meu Deus!
Não tinha da neve a cor
Mas no moreno semblante
Brilhavam raios de amor.

E continua descrevendo “as madeixas crespas ne-


gras” e afirmando “em carmim rubro engastados, /
tinha os dentes cristalinos”. No poema “Minha Mãe”,
continua a exaltação da mulher negra sem negar as suas
características físicas:
Era mui bela e formosa
Era a mais linda pretinha
Da adusta Líbia rainha
E no Brasil pobre escrava
Seus lábios de roxo lírio
Escuro e ledo semblante

O poeta Luiz Gama faz uma poesia de denúncia e de


luta, uma poesia que inicia, no século XIX, a busca
da identidade negra no campo literário. Uma poesia de
negritude no sentido de reconhecimento de identidade,
fidelidade e solidariedade como apresenta Kabengele
Munanga no livro Negritude; usos e sentidos. Negritude
num sentido que Luiz Gama tão bem entendeu quando

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80 FLORENTINA SOUZA

usou a tribuna e a poesia como armas para defender


seus irmãos negros.
A poesia deste poeta negro, ímpar na sua época,
ainda hoje é quase que ignorada pelos manuais de
língua portuguesa e pelos estudos literários, talvez
exatamente por não participar da voz comum que
idealizava os problemas sociais vividos pelos negros;
talvez por incomodar aqueles que preferiam embran-
quecer os personagens para só então caracterizá-los
com pureza, firmeza de caráter e hombridade ou
propiciar-lhes momentos de ternura e amor. O negro
(com os traços físicos que o caracterizam) poderia ser o
servil Pai João, a bondosa Mãe Preta ou a sensual Negra
Fulô; nunca poderia ser mostrado como personagem
exemplar, como herói. Deste modo, Luiz Gama impõe-
se como a voz que denuncia o preconceito e orgulha-se
de ser “Orfeu de Carapinha”.

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TRANÇAS: A NOVA ESTÉTICA NEGRA
Hamilton Vieira*

Quando essa preta começa a tratar do cabelo /


E de se olhar / Toda trama da trança /
Transa do cabelo / Conchas do mar /
Ela manda buscar para botar nos cabelos...
(“Beleza Pura”, de Caetano Veloso).

Em Salvador, é raro ir-se a algum bairro, loja, colégio,


quadra de ensaio de bloco afro, que não se veja ao
menos uma bela moça com os cabelos ornados por
tranças ou qualquer outro penteado de inspiração
africana. Tal forma de expressão estética negra, há
pouco mais de quinze anos atrás jamais seria assumida
pela mulher de cor em geral, que consideraria, no
mínimo, antiestético pentear os cabelos evocando suas
“irmãs” africanas. O “quente” mesmo há vinte anos
«passados, era “fritar” os cabelos com ferrinhos de
chapinha ou alisar os cabelos com henê ou outra pasta
alisante, que deixasse a negra mais próxima dos padrões
de beleza da mulher branca.
Essa antiga postura (mas que ainda continua vigo-
rando), sem dúvida alguma, está ligada ao aprendizado
de embranquecimento que o negro passava (passa). As
pessoas negras que hoje estão na faixa etária dos trinta
anos, durante toda sua vida aprenderam através do
cinema que mulher bonita era Brigitte Bardot, Sophia
Loren, ou que homem bonito era Marlon Brando, Alain
Delon, tidos como autênticos representantes dos
padrões brancos de beleza.

* Hamilton Vieira é jornalista e pesquisador da cultura popular.

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82 HAMILTON VIEIRA

E o reforço da imagem do branco como modelo


máximo de beleza não era (é) apenas via cinema. Que
dizer das meninas negras que, até hoje, no Natal,
recebem de presente de “Papai Noel” “lindas” bonecas
invariavelmente loiras e de olhos azuis? Vide as bone-
cas Xuxas e Angélicas da vida, mitos televisivos atuais
“criados” para a garotada.
Com toda essa carga de informação ideológica,
onde o belo e o bom estão relacionados com o mundo
branco, como esperar ou exigir que as mulheres e
homens negros assumam valores estéticos mais ligados
ao seu fenótipo?
O psicólogo baiano Helson Ramos, na reportagem
“No Brasil se faz propaganda discriminando a raça
negra” (“Tribuna da Bahia”, edição de 20 de outubro
de 1978), escrita por nós, falou sobre os efeitos na
personalidade dos indivíduos negros da supervaloriza-
ção que é dada ao mundo branco na nossa sociedade:
“No nível psicológico, o desenvolvimento da persona
lidade do indivíduo negro sofre uma grande distorção
ligada ao problema de matrizes de identificação. Desde
os heróis [Xuxa, Angélica] * até o conteúdo da propa-
ganda veiculada por todos os meios de comunicação,
reafirmam e perpetuam uma série de valores culturais
brancos, que atingem o âmbito da própria estética, O
que é bem mais grave, criando dificuldades de autoes

* A observação foi acrescentada por nós.

é um conjunto lógico, sistemático e coerente de


1! Ideologia
representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta)
que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem
pensar e como devem valorizar, o que devem sentir, o que devem fazer
e como devem fazer. (Marilena de Souza Chauí, O que é ideologia,
s).
18.ed., São Paulo, Brasiliense, 1985, 128p., col “Primeiros Passo

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TRANÇAS: A NOVA ESTÉTICA NEGRA 83

tima e grandes sentimentos de menos valor nos indiví-


duos que estão assim diária e continuamente segregados
e marginalizados. Constantemente o negro vive O
conflito intrapsíquico de que as suas características
físicas não correspondem aos modelos estéticos veicu-
lados como ideais e desejáveis pela cultura”.

Volta por cima

Apesar de toda essa imposição estética branca, como se


explica então esta explosão de negritude, sobretudo
na Bahia, e especificamente no campo da estética da
mulher negra? O que teria levado, ou quais seriam os
motivos, fatores sociais, históricos ou mesmo psicoló-
gicos, que leveram a mulher negra baiana — e também
de todo o país — a usar trancinhas e outros penteados
inspirados na estética africana?
O fenômeno do uso de trancinhas afro, enquanto
movimento de afirmação de identidade, começou em
Salvador há exatamente quinze anos com o bloco Ilê
Aiyê, do bairro do Curuzu, Liberdade. E com as
discussões sobre as questões dos negros trazidas à tona
pelos movimentos negros de todo o país, na Bahia
encabeçados pelo Movimento Negro Unificado (MNU).
Dentro deste contexto, não podemos esquecer também
a ação dos inúmeros blocos afro de Salvador, criados
após o Ilê, que vêm contribuindo para à mudança
do comportamento do negro, sobretudo no campo da
estética. É comum ouvir nos ensaios de blocos, em
discursos dos seus presidentes e até mesmo através
das letras das músicas, a necessidade do negro assumir
suas características próprias.

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84 HAMILTON VIEIRA

No início, quando as mulheres negras começaram


a usar os penteados afro, muitos os rejeitaram. Os
patrões e professores torceram o nariz para as suas
funcionárias e alunas que aderiram à moda. Mas isso
está parcialmente superado. Todos reconhecem e se
rendem à beleza da negra, que “começa a tratar do
cabelo”, como diz a letra da música “Beleza Pura”,
do cantor-compositor santamarense Caetano Veloso.

Negritude

O uso de trancinhas afro pela mulher negra não se trata


de mero modismo, como poderia imaginar alguém que
não conheça o processo de tomada de consciência pela
mulher negra baiana, diga-se também, brasileira, em-
bora esta postura não seja aplicada a todas as mulheres
indistintamente. Basta observarmos, por exemplo, que
muitas negras ainda não aboliram o hábito de espichar
o cabelo.
Há poucos anos atrás, ao fazermos uma reportagem
para o jornal “Afro-Brasil” (circulou em Salvador de
1984 a 1987), “Tranças, uma revolução na estética
da mulher negra” (edição de julho de 1984), fizemos
várias entrevistas com mulheres. Afirmaram elas que
deixar de espichar o cabelo e aderir ao uso das tranças €
penteados afro significou assumir uma postura política.
Isso, a partir de uma tomada de consciência sobre à
problemática do negro. Para ilustrar a colocação,
transcrevemos trechos dos depoimentos de duas entre-
vistadas.
A pedagoga Edenice Sant'Ana, na época, vice-
presidente da Associação dos Professores Licenciados
do Estado da Bahia (APLB), ressaltou que para ela O

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TRANÇAS: À NOVA ESTÉTICA NEGRA 85

fato de ter algum dia espichado os cabelos foi mais uma


forma de violência que a sociedade impôs ao negro:
“Nós, mulheres negras, da minha época, nunca fomos
orientadas que tínhamos o direito de usar nossos
cabelos ao natural, sem o recurso do ferro”. Pros-
seguindo, a pedagoga complementou: “O processo
de embranquecimento do negro era tão natural que as
nossas mães nos mandavam cedo para os salões espichar
os cabelos, sem saber que estavam cometendo uma
grande violência cultural e biológica, pois geralmente
os cabelos passados a ferro perdem a vida”.
Em sua entrevista, Edenice fez ainda uma aborda-
gem histórica e ideológica sobre a “tortura do ferro
quente”, como denominou o hábito do uso do ferro de
espichar: “Tudo começou a partir da ideologia racista
da sociedade brasileira e da política imperialista e
racista da sociedade européia que colonizou pratica-
mente todos os povos. Eles criaram o conceito [ideolo-
gia]de que os nativos eram feios. Como a Europa
escravizou os povos negros, nós fomos obrigados a
acreditar em seus valores, que hoje devem ser ques-
tionados”.
A assistente social Maria do Amparo dos Santos,
então com vinte e cinco anos, funcionária da Fundação
Cultural do Estado, declarou que usar as trancinhas
afro, além de deixar a mulher negra mais bonita,
expressa uma forma de auto-estima: “Deixar de alisar O
cabelo foi uma tomada de consciênéia da minha
negritude, que começou quando passei a conhecer
jovens que não espichavam os cabelos, a frequentar os
ensaios dos blocos afro. Daí passei a me identificar
mais com as coisas do negro”.

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86 HAMILTON VIEIRA

Bairros populares

Quem primeiro assumiu os penteados afro foram as


jovens moradoras dos chamados bairros populares:
Liberdade, Curuzu, Beiru, Fazenda Grande, Pernam-
bués, Engenho Velho da Federação e muitos outros, €
também mulheres ligadas aos movimentos políticos
negros de Salvador, a exemplo do MNU, ou aos grupos
culturais negros, como os blocos afro.
O primeiro salão baiano especializado em penteado
africano foi o “Raízes”, criado em 1979, pela soció-
loga Ana Meire Aguiar, que também foi uma das
primeiras mulheres negras a usar penteados afro. A
socióloga explicou nas entrelinhas do jornal ““Afro-
Brasil” que muita gente se espantava ao vê-la usando os
penteados: “Alguns, inclusive, pensavam que eu fosse
africana do Senegal”.
No salão Raízes, que se localizava em um dos boxes
do edifício Mariglória, na rua Padre Feijó, Canela, bair-
ro de classe média de Salvador, trançaram os cabelos
com Ana Meire várias pessoas famosas, a exemplo da
condessa Luana de Noailles, a atriz-cantora Zezé Mota,
Gilberto Gil, Moraes Moreira e outros, o que veio ates-
tar a penetração e aceitação da moda afro.
Ao jornal “Afro-Brasil”, Meire explicou que o salão,
depois de dois anos de funcionamento (1979-1981),
teve de ser fechado devido aos altos custos do aluguel é
dos produtos naturais que usava no cabelo da clientela:
“Com isso, tínhamos que cobrar um preço mais alto
que o dos salões convencionais localizados nos bairros
dos nossos clientes. Infelizmente, a comunidade negra,
nossa principal clientela, não podia frequentar muito O
salão devido a sua carência econômica. Para continuar

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TRANÇAS: A NOVA ESTÉTICA NEGRA 87

a funcionar, teríamos que cobrar um preço alto, então


não deu”.
Vale ressaltar que geralmente as trancinhas afro são
feitas em salões improvisados nos fundos dos quintais
das trançadeiras. Há trançados em que são usados
arames ou galhinhos delicados de bambu, para dar a
forma desejada ao penteado, ou são enfeitados com
búzios e miçangas. Nestes casos, há penteados que se
tomam verdadeiras obras artísticas”.

Identificação étnica

Ana Meire Aguiar, que, em períodos diversos, fez


viagens a países africanos, como a Nigéria, Libéria,
Senegal e Gana, informou ainda que em algumas
sociedades os cabelos são usados para fins diversos:
“Na Nigéria, em algumas etnias, cada penteado tem um
significado simbólico. Se você é súdito não pode usar o
mesmo penteado da rainha. O penteado varia de acordo
com o grupo social. Vi, no Senegal, mulher de ministro,
de cabelos com mais de vinte centímetros, carregados
de ouro e jóias. Em algumas comunidades, as mulheres
quando desejam ter filhos usam certos formatos de
tranças”,
Na Bahia, embora as trancinhas afro sejam usadas
apenas como elemento estético, sua função política
é indiscutível. A mulher negra, ao usar o cabelo ao
natural, dispensando o recurso do alisamento e usando
penteados de inspiração africana, rompe com toda uma
pedagogia de embranquecimento onde lhe foi transmi-
tido que o ideal era se aproximar dos padrões brancos
de beleza.

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ABOLIÇÃO: SIM OU NÃO?
Januária Avelina Correia do Patrocínio

Abolir é extinguir, é terminar.


Bravos, acabou-se a escravatura!
E o negro, vítima da abominável farsa”
Nasce, vive e morre sofrendo.
Pobre criatura!
Que lhe foi dado pela sua bravura”
Abolição chegou!
Negros... ponham-se na rua...

Sem indenização,
Sem nenhuma proteção,
Correram alegres, desnorteados, chegando
[à exaustão.
Hoje, após um século, estão a perguntar:
Abolição, sim ou não?

Quando pensamos nos quatro séculos


Em que lindos negros valentes trabalharam,
Baluartes da economia da nação,
Deram riqueza e receberam a morte,
Deram tudo a um país, que não se preocupou
[com sua sorte.

* Técnica em Educação, professora da Secretaria de Educação do


Estado da Bahia e poetisa.

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90 JANUÁRIA A. CORREIA DO PATROCÍNIO

Negros que, de geração em geração,


Passaram para seus filhos com orgulho
Na sua oral tradição,
Contando o seu passado,
Falando dos seus ancestrais,
Negros que, após um século,
Se vêem injustiçados
E reclamam, gritam e cantam
Agitando-se desengonçados
Hesitantes, mas com ação;
Acreditando em si mesmos perguntam:
Abolição, sim ou não?

É lamentável ainda
Milhões de negros viverem
Comerem e dormirem como animais.
Esses coitados ainda
Não se erguem como em anos atrás,
Prejudicados por serem negros demais.

Maldito racismo exacerbado


Que assola todo nosso país
Esquecem-se de que o negro lhe trouxe riqueza?
E a tal abolição?
Que tristeza!

Por que não lhe são dadas condições


De viver condignamente e ter ilusões?
Abolição sem segurança ou indenização?
Que situação!...

Brasil.
O negro que nasce aqui é brasileiro

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ABOLIÇÃO: SIM OU NÃO? 91

E miscigenou sua população


Desenvolveu sua economia
É engrandeceu essa nação.
Ame seu negro.
Queira-o como irmão
Esse negro lhe deu riqueza,
Deu amor sangue e suor.
Brasileiro... entenda:
À cor não torna ninguém menor.

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+

N, Brasil, o estado não assumiu a nação;


isto é, a aceitação e legitimação da
pluralidade sócio-cultural que marca
a identidade do povo brasileiro.
Uma das conseqgiiências disso é a ineficiência
de inúmeras instituições, dentre elas o
sistema oficial de ensino, que na Bahia
registra o índice de 80% de evasão escolar
no 1º grau. | |
Este sistema está envolto pela ideologia
da chamada “democracia racial”, que fala
em igualdade de oportunidades, mas na
realidade apresenta como caminho para a
mobilidade social uma educação eurocêntrica
e totalitária caracterizada por uma peda-
gogia do embranquecimento que rejeita
completamente a criança negro-brasileira,
lançando significativo segmento populacio-
nal à margem da cidadania e no mercado
de trabalho desvalorizado.
Essa ordem de problemas, que constitui
verdadeiro impasse ao respeito à plurali-
dade nacional e à luta de afirmação da
identidade própria das comunidades negras,
é abordada de forma original neste livro.
ISBN 85-85151-(

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