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Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP)

Introdução aos Estudos da Educação: enfoque histórico (EDF 0287)


1º sem./2022 – Turma 143 – Profa. Maurilane de Souza Biccas

Leticia Madeira Sousa Fernandes


Nº USP: 11227466

Negro Drama: necropolítica e afrocentricidade

Negro Drama, uma das canções mais emblemáticas dos Racionais


MC’s, integra o quinto álbum de estúdio do grupo, Nada Como Um Dia Após O
Outro Dia (2002). O disco, que sucede o paradigmático Sobrevivendo no
inferno (1997), conhecido por sua densidade política ao tratar do massacre do
Carandiru, continua a estabelecer o protagonismo periférico nas músicas que o
constituem, de maneira até então inédita no cenário musical brasileiro. O grupo
não apenas tematiza o cotidiano das periferias. Como coloca o sociólogo
Tiaraju D'Andrea (2013), as crônicas potentes dos Racionais contribuem para a
fundação de uma nova subjetividade, permitindo o surgimento do que ele
chama de “sujeito periférico”. Isto é, o cidadão que mora na periferia passa a
assumir e ter orgulho de sua condição e, assim, começa a agir politicamente a
partir dela:

O termo "periferia" passaria a designar não apenas "pobreza e


violência" - como até então ocorria no discurso oficial e acadêmico-,
mas também "cultura e potência", confrontando a lógica genocida do
Estado por meio da elaboração coletiva de outros modos de dizer.
(OLIVEIRA, 2018: 23)

Dessa forma, o rap nacional, especialmente através dos Racionais MC’s,


ultrapassa a função de meramente representar a realidade periférica. A partir
das situações tratadas em suas músicas, os moradores da periferia recuperam
sua própria imagem, constroem uma voz para si, implicam-se no processo de
pensar e agir de maneira crítica sobre o contexto em que se encontram. Em
Negro Drama, particularmente, a questão da violência policial empreendida
contra a população periférica merece destaque. A situação é vista como
resultado de um processo histórico, no qual o extermínio dos moradores das
periferias, majoritariamente negros, está intimamente ligado ao passado
escravista do país. Os versos a seguir tratam justamente da violência policial e
sua relação com o racismo estrutural:

Periferias, vielas, cortiços


Você deve tá pensando
O que você tem a ver com isso?

Desde o início, por ouro e prata


Olha quem morre, então
Veja você quem mata
Recebe o mérito a farda que pratica o mal
Me ver pobre, preso ou morto já é cultural
Histórias, registros e escritos
Não é conto nem fábula, lenda ou mito

Como dito na música, existe alguém que morre e alguém que mata. A
morte da população negra, banalizada nas periferias contemporâneas, é
prática que acontece desde o período colonial. Prática através da qual,
inclusive, a sociedade brasileira se constituiu. Isso pode ser relacionado ao que
o filósofo Achille Mbembe conceitua como necropolítica. A necropolítica,
baseada nas noções foucaultianas de biopolítica, é o poder de ditar quem pode
viver e quem deve morrer.
Além do controle da população realizado por meio do biopoder, como
coloca Foucault, Mbembe afirma que uma parcela da população é
deliberadamente escolhida para morrer. A morte de determinado grupo, então,
é vista como algo aceitável. Mas não são todos que estão sujeitos à
necropolítica. Os corpos deixados para morrer, segundo o filósofo, são
escolhidos por questões raciais. O risco de morte, em uma sociedade pautada
pela necropolítica, depende especialmente da cor da pele.
O extermínio dos grupos escolhidos pela necropolítica acontece em
espaços que o autor chama de “zonas de morte”. As estruturas sociais operam
para que determinados indivíduos permaneçam submetidos a condições em
que o risco de morte é potencializado. Como descrito em Negro Drama, é
comum, além de ser desejo do Estado, que a população negra e periférica seja
vista pobre, presa e, por fim, morta. Assim, o Estado, cujo poder deveria
estabelecer os limites entre os direitos e a violência, utiliza de seu poder, na
verdade, para criar essas “zonas de morte”:

Pesadelo, hum, é um elogio


Pra quem vive na guerra, a paz nunca existiu
No clima quente, a minha gente sua frio
Vi um pretinho, seu caderno era um fuzil, fuzil

Nas “zonas de morte”, a precarização da própria vida implica na


precarização da educação. A criminalidade presente nas periferias, que o
Estado pretende “eliminar” a partir do extermínio da população periférica, é
uma resposta à negligência por parte do próprio Estado. Os corpos negros, no
regime escravista, podiam ser abertamente exterminados. Com a abolição da
escravidão, as estruturas de poder passaram a assumir novas formas de
violência e preconceito contra esses corpos, mantendo mecanismos de
exclusão após o fim da escravidão para, assim, continuar exercendo controle
sobre a população negra.
A trajetória da educação do negro no Brasil é um exemplo disso. Em
1864, ocorre a proibição formal da frequência de escravos à escola oficial. Ou
seja, o acesso à educação é proibido somente aos escravos e, em tese, os
negros poderiam frequentar as escolas. Mas a realidade a as condições em
que as pessoas negras viviam na época dificultavam e impossibilitavam o
acesso e a permanência no ambiente estudantil, dado que, mesmo sendo uma
situação legalmente possível, o racismo, em suas diversas maneiras de se
apresentar no convívio social, fazia da educação uma realidade inviável para a
maioria da população negra da época. Com o fim da escravidão, nenhuma
providência foi tomada por parte do Estado para garantir a inclusão do negro
na sociedade brasileira. Assim, as famílias de negros livres não possuíam
nenhum amparo para conseguir se estabelecer social e economicamente,
sendo deliberadamente deixadas em situação de pobreza. Dessa forma, em
muitas famílias, as crianças negras precisavam participar da economia familiar,
sendo obrigadas a trabalhar em prol da sobrevivência. A educação, portanto,
era deixada de lado, tendo em vista que a própria subsistência, evidentemente,
era mais importante.
Assim, poucas oportunidades educacionais existiram para os segmentos
sociais negros no período pós-abolição, como afirma Surya Barros em sua
dissertação Negrinhos que por ahi andão: a escolarização da população negra
em São Paulo (1870 – 1920). Teoricamente, o Estado deveria cuidar da
educação das crianças, entretanto, na prática, ele falha, ou até se recusa a ser
responsável pelo ensino obrigatório, dado que boa parcela da população é
negra. Quando se trata de educar o negro, interessa analisar o que motivava a
ação branca sobre a educação dos ex-escravos. Barros menciona a
preocupação que se tinha com a transição do regime escravocrata para o do
trabalho remunerado, transição na qual, temendo impactos econômicos, eram
discutidas formas de adaptar os escravos à lógica do trabalho livre. A questão
era como manter a mão-de-obra negra em suas funções mesmo após a
libertação:

“Um dos meios aventados para a inclusão no mundo do trabalho livre


seria a escolarização dos futuros ex-escravos, já que a escola era vista
então como local de disciplinarização de corpos e mentes. Lendo mais
profundamente o debate, podemos perceber que uma preocupação dos
homens do período era: como manter o controle sobre essa massa que
não teria mais o chicote como forma de coerção?” (BARROS, 2005: 80-
81).

É possível ver, então, que a própria educação opera como um


mecanismo necropolítico. O acesso à escola, portanto, era uma estratégia para
manter o poder entre a parcela branca da população. “Isto é, a escola não era
legalmente proibida aos negros, mas sua presença era vedada através de
mecanismos sutis de discriminação.” (BARROS, 2005: 91). O trecho acima
sintetiza como o direito à educação em si não basta sem circunstâncias que
garantam sua efetividade.
Em diversos momentos, o comportamento das crianças negras era visto
com recriminação pela comunidade escolar, pois “influenciariam
negativamente” as crianças de “boa índole”. Essa situação, assim como a
pobreza, acabava por restringir o acesso da população negra à educação.
Além disso, percebe-se o esforço do Estado para a criação de uma “identidade
nacional”, pensamento marcado por noções de eugenia, no qual se buscava o
“branqueamento” da sociedade brasileira. Com isso, o Estado começou a
promover medidas que favorecessem a imigração de europeus. Os imigrantes
recebiam apoio do governo para permanecer e prosperar no país, ao passo
que o amparo à camada negra da população foi negado, amparo necessário
para permitir que condições de vida dignas para os ex-escravos fossem
garantidas após a abolição da escravidão no país.
Em 1988, quando o centenário da abolição foi comemorado, diversos
movimentos e protestos emergiram no país, na tentativa de denunciar as
condições de vida nas quais os negros viviam. Com isso, o movimento negro
conseguiu fazer com que duas de suas importantes reinvindicações fossem
incorporadas à Constituição, são elas a criminalização do racismo, presente no
Artigo 5, e o reconhecimento da propriedade das terras de remanescentes de
quilombos, presente no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias.
Em relação à educação do negro no país, destaco a lei nº 10.639, de 9
de janeiro de 2003, implementada já no governo Lula. O decreto estabeleceu a
obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira, o que
contempla “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil”.
A existência de um currículo afrocentrado é fundamental nas escolas
brasileiras. Isso porque a afrocentricidade seria ferramenta capaz de subsidiar
um currículo que seja favorável à diversidade etnicorracial do país, colaborando
para a desconstrução de situações de desigualdade social e racial. Além disso,
um currículo afrocentrado é uma possibilidade interessante para o combate ao
racismo. A educação pautada por epistemologias afrocêntricas, portanto,
carrega como objetivo permitir que a maioria da população brasileira se
reconheça na produção histórica e cultural do país. A prática redefiniria os
parâmetros que operam para legitimar determinadas produções de
conhecimento, parâmetros que validam epistemologias eurocêntricas quase
que automaticamente, ao passo que experiências outras permanecem
negligenciadas:

Deve-se enfatizar que afrocentricidade não é uma versão negra do


eurocentrismo (Asante, 1987). Eurocentricismo está assentado sobre
noções de supremacia branca que foram propostas para proteção,
privilégio e vantagens da população branca na educação, na economia,
política e assim por diante. De modo distinto do eurocentrismo, a
afrocentricidade condena a valorização etnocêntrica às custas da
degradação das perspectivas de outros grupos. Além disso, o
eurocentrismo apresenta a história particular e a realidade dos
europeus como o conjunto de toda experiência humana (Asante, 1987).
O eurocentrismo impõe suas realidades como sendo o “universal”, isto
é, apresentando o branco como se fosse a condição humana, enquanto
todo não-branco é visto como um grupo específico, por conseguinte,
como não-humano. (ASANTE, 1991: 171-172)

Um currículo afrocentrado, dessa forma, contribuiria para fazer inclusive


da experiência das periferias brasileiras um lugar legítimo de produção de
conhecimento. “A abordagem afrocentrada da educação vai avaliar os
parâmetros curriculares dizendo de que lugares estão partindo e que nenhum
lugar deve ser visto como periférico” (NOGUERA, 2010: 14). Ou seja, a
periferia, na educação, seria central. Essa maneira de pensar e educar, que
parte de manifestações periféricas para se constituir, possibilita a valorização
da cultura e da potência presente nas periferias do país e, sobretudo, favorece
a formação do “sujeito periférico” mencionado no início do texto.
Sobre o papel dos Racionais nesse processo, pode-se dizer que o grupo
foi extremamente importante para a formalização de uma voz coletiva, fazendo
música da periferia para a periferia. No cenário da música popular nacional,
como ressalta Acauam Silvério de Oliveira (2018), não é incomum encontrar o
protagonismo de camadas marginalizadas. A incorporação de manifestações
populares é, inclusive, aspecto fundante e característico da canção brasileira.
O rap brasileiro é muito diferente do samba, por exemplo. O samba, segundo o
autor, compactua com a premissa de integração e uniformidade nacional,
enquanto o rap está pautado na ruptura desse ideal. A produção dos Racionais
vai contra a ideia de uma coletividade brasileira, pois pretende criar uma
fraternidade dentro da comunidade periférica, não em escala nacional. Ela se
coloca contra o projeto de nação homogênea, que visa justamente a exclusão e
o extermínio da periferia no país.
O rap brasileiro, nesse sentido, rompe com a concepção de uma
progressão da canção popular brasileira, vinculando-se com mais intensidade
ao rap norte-americano, que se constituiu no final dos anos 1960, em Nova
York, no bairro do Bronx. Assim, os Racionais MC’s, na verdade, buscam a
construção de uma identidade por meio da ruptura com a falsa conciliação
nacional, estabelecendo uma comunidade negra que não compactua com o
projeto de mestiçagem:

Desde o princípio o rap nacional vai se reconhecer enquanto gênero


cantado por negros que reivindicam uma tradição cultural negra por
meio de um discurso de demarcação de fronteiras étnicas e de classe
que denuncia o aspecto de violência e dominação contido no modelo
cordial de valorização da mestiçagem. (OLIVEIRA, 2018: 25)

Desse modo, o rap desvia a música brasileira de um de seus


fundamentos mais problemáticos: o projeto de uma identidade nacional
pautada pela convivência harmoniosa de raças e classes. Projeto que, afinal,
nunca se concretizou e contribuiu para que a marginalização de determinada
parcela da população fosse naturalizada. Os Racionais assumem um
compromisso com a margem. Negro Drama exige que o ouvinte reconstitua a
história da sociedade brasileira, reconfigurando sua formação sob um novo
ponto de vista.

Referências bibliográficas

ASANTE, Molefi. Afrocentric idea in education. The Journal of Negro. Vol. 60.
No. 2, Spring 1991, pp.170-180.

BARROS, Surya Aaronovich Pombo. Discutindo a escolarização da população


negra em São Paulo entre o final do século XIX e início do século XX. Brasília:
MEC, 2005.

D'ANDREA, Tiaraju Pablo. A formação dos sujeitos periféricos: cultura e


política na periferia de São Paulo. São Paulo: FFLCH-USP, 2013.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018. 80 p.

NOGUERA, Renato. Afrocentricidade e Educação: os princípios gerais para um


currículo afrocentrado. Revista África de Africanidades, CidadeRio de Janeiro,
ano 3, n. 11, nov. 2010.

OLIVEIRA, Acauam Silvério de. O Evangelho Marginal dos Racionais MC´s.


Em: Racionais MC´s. Sobrevivendo no Inferno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2018.

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