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DIREITO E LUTA DE CLASSES PETR IVANOVITCH STUCKA (1865/ 1932), fiho de camponeses, nusceu na Letdnia, nas proximidades de Riga. Participante ativo dos-lutas. revoluciondtias, fo um dos articuls- dores da fusiio do Partido Operatic Social- Demoeratica Letio como Partido de mesma deriominacio russe, ende militou entre os bolcheviques © chegou a thembro do. comité de Petrogrado. Comissirio do Povo para a Justiga no primeira governo revolucionirio liderado por Lénin, tornouse dirigente do governo sovittico nu Leténia, Ocupando di- versos cargos na URSS, dentre os quais o de Diretor do Instituto do Direito Soviético, além de varios. trabalhos:e artigos de conteddo po: Titico, publicou em 1921 sua obra principal A Fungi Revoluciondria de Direito ¢ do Es tado, cujo subtitulo € “Teoria Geral do Direi- to”, agora apresentedo sob'o titulo Direlio ¢ Euta de Classes. Colaborou na Enciclopédia Sovidiiea do Estado ¢ do Direito e redigiu o Curso de Direito Civil Soviética. Stucka, na estelra da perspectiva revolu- clondria marxista, coneebe o ditcite como um sistema (ou ordenamento) de relagdes sociais correspondent og interesses da classe domi- nante ¢ tutelado pela fora organizada desta classe: Deste modo, considera o dircito mais como um sistema de relacdes: sociais, © naa unto como um agregado de normas impostas pelo Estado. Perfazendo um curso de investi- gagéo de cardter estrutural, sublinha mais = ordem natural da sociedade originada por fatos do intercambio humsno do que & contetide das leis © dos regulamentos governamentais que realizam 0 “direito artificial”, voluntariamente constituldo, Nesse sentido, os “imperatives vo- litivos” do direito legislado sio: consideradas, pelo autor, como reflexo. das atividades socials ¢ econdmicas efetivas dos agentes histéricos de uma determinada formasio econdmico-sacial. Porém, ae prosseguir com sua caracterizacio do direito, introduz 6 conzeito de luta de clas- ses,-consignando a vida juridica como expres. afio dos interesses da classe dominante, ‘eujo sivtema ¢ garuntido pela forga do Estado enguenta forma organizada dessa classe, [sso ‘significa que o autor rejeita a tendéncia so- ciolégica, burguesa que néo considera a luta de classes, visto. que, argumenta, sem ter em conta os antayonismog e conflitos entre as > PETR IVANOVICH STUCKA DIREITO E LUTA DE CLASSES Teoria Geral do Direito Obra publicada de acordo com’os textos originais. Capa: Vilson F. Ramos Traducio: Prof. Silvio Donizete Chagas Diagramagio: Maria Aparecida Marins Produgio Editorial: José Aparecido Cardoso Revisao: Oswaldo Faria Maria Clara de Faria Helena Stella de Faria A tradugiio desta obra sé foi possivel gragas A bolsa de estudos que recebemos do CNPq para o curso de mestrado, na PUC/SP, conce- dida pelo ilustre Prof, Dr. Antonio Roque Carrazza Revisio da tradugio: Profs. Américo B. Stringhini e Maria Thereza de Faria Stringhini © 1988. Todos os direitos reservados para EDITORA ACADEMICA Rua Riachuelo, 201/8. and./s, 1 e 2 01007 — S&o Paulo — SP Fones: (011) 36-5922 — 958-5782 Atendemos pelo Reembolso Postal SUMARIO Prefacio 4 primeira edigdo . 2.20.6... eee eee ecco nen eae 5 Prefacio & terceira edigfo ....-....--.+.-- ees 9 Capitulo I — O que € 0 direito? 2.0... 0. ese e eee eee 13 Capitulo II — As relagGes sociais e o direito .........-5 25, Capitulo 1 — Interesse de classe ¢ direito .........--05 40 Capitulo IV — O poder organizado da classe dominante ¢ o direito .. 7 31 Capitulo V — O direito como sistema de relagdes sociais .. 68 Capitulo VI. — Direito e revolugao ..... 6... fase voese mrereneet 88 Capitulo VIE — Dircito € lei wees cece sree seers ee eee 0 Capitulo VII — Anélise da relagdo jurfdica ........---++: 135 Capitulo IX — Histéria da teoria juridica pré-revoluciondria 146 Capitulo X — Dircito ¢ jurisprudéncia . 66... cece eee 167 PREFACIO A PRIMEIRA EDICAO Poderia ser um mau costume antepor a todos os livros um prefacio do autor. Porém, com sinceridade, redijo um prefacio para o meu livro pela simples razio de que penso ser necessario dizer alguma coisa em sua defesa, pois receio que, de outro modo, ninguém se ponha a ler investigagées sobre assuntos tao contra-revolucionarios como os do direito, Os homens, tanto os que nada sabem ¢ alardeiam esta sua ignorancia, como os que dizem “saber tudo” a respeito de todos os problemas, mostram igual indiferenca a respeito dos pro- blemas essenciais da vida como sao os problemas juridicos. Parece-me que semelhante indiferenca se acha absolutamente fora de lugar. F. Engels identificou, de maneira geral, a concepgio burguesa do mundo com a concepgao “juridica”’. Pois bem: esta concepgao burguesa do mundo ocupa, porém, um lugar de honra relativamente a massas bastante amplas ¢ entre os resquicios que ainda sobrevivem desta concepgio do mundo, occupa um lugar de grande relevo a sua parte juridica. E nao pode ser de outra maneira, ja que a nossa consciéncia nao tolera vazios e enquanto nao for substitufda por uma nova concepgao do mundo, a velha concepgio continuaré dominando. Todavia, até agora a regido do direito per- maneceu virgem para os marxistas, a menos que se tomem em consideragéo os representantes do chamado “socialismo juridico”, que séo os mais perniciosos representantes da concepgao burguesa do mundo, embora atuem sob a bandeira de Marx e de Engels. Repete-se, pois, o que sucedeu com o conceito de Estado. Todos nés nos considerdvamos marxistas antes mesmo de ter aparecido o livro O Estado e a Revolugdo de Lénin, porém, nao duvido em afir- mar que somente este livro e a nossa revolugio nos abriram os olhos a respeito da fungao e do significado do Estado no periodo de transigdo para o comunismo. Agora ninguém ousaria pronunciar na 5 nossa presenga frases como esta: “nao me agradam problemas como 0 do Estado” ou outras semelhantes. Nao nos desagradaria que outro tanto sucedesse com o problema do direito. E isso deveria ser mais facil, pois, além dos fundamentos postos pelos préprios Marx ¢ Engels para os problemas do direito, podem-nos servir também de ajuda a prépria obra de Lénin e, mais uma vez, a nossa prdpria revolugao. Contudo, ainda nao faz muito tempo, esta disciplina era considerada em nossas universidades auténomas como algo completamente inédito. E quando, hé tempos, se compilou um plano de ensino do direito, houve um projeto que tragou uma diviséo do mesmo em direito em geral (ou seja, burgués, natural- mente) ¢ direito soviético (ou seja, especial ou, diria eu, nado natural). Nao empreendi este trabalho levianamente. Parti do pressuposto de que, em se tratando da teoria do direito, nao se pode silenciar sobre a ciéncia burguesa. E, sinceramente, nao me considero um teé- rico suficientemente preparado para semelhante trabalho, nem tampou- co suficientemente informado sobre a literatura juridica mais recente. Por outro lado, porém, a minha passagem pela direcéo do Comis- sariado do Povo para a Justiga da URSS, embora breve (de no- vembro de 1917 a janeiro de 1918 e de marco a agosto de 1918), © a tarefa a mim incumbida de “por fim ao velho ordenamento judi- cial ¢ abolir o direito”, obrigaram-me, de algum modo, a fazer o que outros, quaisquer que sejam as razdes, néo fizeram: expressar e expor teoricamente © que a nossa revolugio. realizou no campo do direito. Porém, a minha perplexidade aumentou ainda mais quando, ao examinar uma yasta € também recente literatura juridica burguesa, notei que as coisas se achavam no mesmo ponto de antes. Notei ainda que, nos Gltimos anos, esta ciéncia nao dera um Gnico passo & frente ¢ que a sua situagdo ¢ mais desesperadora do que nun- ca. Daf por diante tornou-se-me impossfyel renunciar ao trabalho em- preendido: foi-me recomendado e lancei-me & tarefa com resignacao. Estimulou-me sua realizagdo a circunsténcia de que, na Univer- sidade comunista ]. M. Sverdlov, se tenha introduzido, nos dois cursos de propedéutica, a “teoria geral do direito e do Estado”, cadeira para a qual deveria tracar, juntamente com outros, um pro- jeto de programa, Desconhecendo quem daria esse curso, achei neces- sério dar ao meu trabalho a forma de um pequeno manual para estudantes.” Na realidade, embora sinta que nés, os da velha geracao, Para evitar malentendidos devo assinalar que nao coube a mim dar esse curso. E o meu pequeno manual nem sequer foi adotado na univer- sidade comunista, uma vez que 0 encarregado do curso do 0 mencicnou nas “memérias* da universidade (Universidade do Volga) entre os trinta e um volumes: aconselhados. Embora mencione o meu trabalho noutro lugar 6 levaremos para a sepultura grande parte da yelha moral burguesa, quisera sinceramente que a nossa geracgio jovem, superando © suor das veleidades burguesas ¢, 0 que é mais importante, semiburguesas, chegasse a uma auténtica concepgao socialista do mundo, E desejaria particularmente que, assim como em todos os campos do conheci- mento e da consciéncia, também no campo do direito, ¢ especial- mente neste, nao nos limitéssemos @ “mudar o nome das ruas” ow a “inverter os letreiros” mas trabalhdssemos com afinco numa demo- ligo 'e numa reorganizagao radic Particularmente entre nds, nos problemas juridicos, esté amplamente difundida a frase freqiiente, segundo a qual determinada palavra se entende em sentido “soviéti- co”, ese Ihe dé, sem mais nem menos, a velha interpretagao burguesa. E sempre me vem espontaneamente & meméria a frase da célebre sdtira Pickwick Papers, do escritor inglés Dickens, segundo a qual entre os membros do circulo “essa palayra se entende exclusivamente no sentido “pickwick”. O conceito de direito soviético ¢ demais sério para set tratado sé por alto; € nem mais nem menos do que © direito revoluciondrio do proletariado em luta contra o direito contra-revoluciondrio da burguesia. Como base do meu trabalho tomei a definic¢io do direito adotada no Colégio do Comissariado do Povo para a Justiga, em 1919, para nossos principios diretivos do dircito penal, Deyo admitir que adotamos tal definig&o com certa pressa, sem fazer um exame mais profundo da questio. Porém, agora tive uma agradavel sur- presa ao ver que tal definicgao resiste em geral as criticas. Por isso renunciei as pequenas corregdes que nela poderiam ser introduzidas. Ao contrério, preocupei-me em analisar mais pormenorizadamente conceitos “comuns” como os de sociedade, classe, intetesse de classe etc., uma vez que, nao s6 entre os marxistas como mesmo na ciéncia juridica burguesa, ninguém realizou detalhadamente semelhante anilise. A nossa definigfo do dircito constitui uma primeira tentativa de dar uma definicao cientifica deste conceito, isto é, uma definigéo capaz de abarcar todo o direito, quer seja o dircito “geral” ou bur- gués, quer 0 direito feudal, quer o direito sovittico ete, O meu empenho de comparar esta definigéo, por um lado, com os resultados da ciéncia burguesa e, por outro, de evidenciar ao mesmo tempo e tenha se referido a ele sob outro nome com altisio benévola, alids, demasiado benévola, senti-me na obrigagao de reescrevé-lo para "uma nova edigdo, necessaria sem duivida. A falta de mengao explica-se evidentemente pelo fato de que ou julga que esti esgotado,.. ou que se trata de uma precaucao de “prefeito de estudos”. © cardter nao cientifico ¢ ambiguo, a incapacidade e 0 ilusério de toda a chamada ciéncia burguesa do direito, nao se propunha, nem podia se propor, a finalidade de esgotar 0 tema. Nao obstan- te, companheiros mais escrupulosos acusaram-me de ter dedicado demasiada atengiio a estes “especialistas” burgueses. Contudo nao posso concordar com esta critica porque estou convencido de que a concepgio burguesa do mundo, ou seja, juridica somente poderd ser destrufda na consciéncia das massas através da sua anilise critica. Para os cientistas que se aproximaram, em diversos aspectos, da nossa definigao, nada é mais convincente para os nossos fins do que poder mostrar-lhes, ao mesmo tempo, que a sua impossibili- dade de chegar a uma solugio se explica por causas objetivas. Gostaria que, dentro desta orientagdo, o meu trabalho servisse de estimulo para obras mais completas. Segundo o plano original, este meu trabalho devia constar de duas partes: uma primeira dedicada & teoria geral do direito ¢ do Estado e uma segunda dedicada a um objeto mais pratico: 4 exposi- ¢ao cientifica do direito iL” soviético, de modo que em ambos os casos o problema do direito em geral ¢ do direito civil em particular fosse examinado mediante uma comparagao das instituigdes juridicas da sociedade burguesa e da proletaria. Por enquanto estou entregando para imprimir somente a primeira metade da primeira parte do meu trabalho, “a teoria geral do direito”, acreditando no ser conyeniente atrasar a publicagaio da parte do primeiro volume, a “teoria geral do Estado”, e uma vez que dispomos ja dos conceitos essenciais do significado e da fung&o do Estado burgués e do Estado proletario, este atraso nao seré tao importante. Pensei que seria mais conve- niente empreender de inicio a exposigéo do direito civil soviético, uma vez que, por dificil que seja resolver este problema no momento presente, dada a nova direcdo adotada pela revolucio, este é justa- mente por essa tazio um trabalho ainda menos susceptivel de demora. Contudo, no que diz respeito as nossas publicacdes, 0 ho- mem propée e a grafica dispée. Moscou, junho de 1921 PREFACIO A TERCEIRA EDICAO Quando, em junho de 1921, escreyia o preficio da primeira edicfio, naturalmente nao podia esperar que houvesse necessidade de uma segunda e, posteriormente, de uma terceira edigio. Talvez pensasse, entao, que a prdpria luta contra a concepgao burguesa ou juridica do mundo seria mais facil do que na realidade o foi. Porém, dado o cardter semipublicista do meu livro, € evidente que realmente eu esperava houvesse batalhas bastante sérias. Agora escrevé-lo-ia, proyavelmente, com mais calma e com o espirito mais “cientifico”. Teria sido melhor reformular todo o volume, transformando-o numa auténtica, ou seja, drida, teoria geral do direito, mas com isso 0 livro teria perdido o seu significado original. Apesar dos seus pontos fracos, do que estou plenamente cons- ciente, contudo continua a ser um documento histérico. Por isso e, entre outras razdes, por nao dispor de tempo suficiente para me dedicar a uma reformulagdo radical, apenas me limito a certas cor- recdes de pontuacdo, a acrescentar algumas notas e¢ a corrigir um ou outro erro, Pelo que parece, a obra ainda é necesséria, pois que a luta por uma concepgdo nova, classista, do direito sé agora esté chegando as provincias, nao querendo dizer com isto que se possa dar jd por terminada no centro. © meu objetivo teria sido alcancado? Sim ¢ nao. Foi alcangado notadamente entre a juventude. Os jovens chegam mesmo a escrever que a concepgfio classista do direito ja esta fora de discussio, e este meu trabalho foi escrito quase exclusivamente para os jovens. Porém, a propria juventude ainda se encontra muito influenciada pelos seus antigos mestres e repete zelosamente a sua sabedoria juri- dica burguesa, limitando-se apenas a acrescentar-lhe um tempero classista. Do mesmo modo como um pintor espanhol precisou escre- 9 ver embaixo de um quadro seu “Isto é um galo”, entre nés é preciso colocar cuidadosamente a ctiqueta “direito soviético” nas teorias juridicas. Assim se vé melhor! Na ciéncia, tal como na vida, ainda esté muito em moda mudar-se 0 nome das ruas em vez de se tro- carem as pedras, ou pintar de vermelho as paredes velhas que estéo caindo em yez de reconstrui-las. Todavia, esta simples operagio esta cheia de perigos, contra os quais j4 Lénin nos pés de sobreaviso. Quando no seu testamento politico nos recomenda com insisténcia que empreendamos a recons- trugao do nosso aparato estatal a partir exclusivamente de bases cientificas, impde-se que apliquemos estas palavras também ao dircito, cigncia que se ocupa precisamente da forma de organizagio das nossas relacées estatais (ou seja, soviéticas) e sociais (isto é, relacdes de produg&o e de troca). Porém, a respeito da doutrina do Estado (e portanto também da teoria juridica), Lénin ja anteriormente na sua informagio ao XI Congresso do Partido (27 de margo de 1922) nos fizera um aviso especial. Cita as seguintes palavras dos smenovechovcy; ' “Qual é, porém, o Estado que edifica esse poder soviético? Os comunistas asseguram que & 0 comunismo e afirmam que se trata de uma questio de tatica: que os comunistas num mo- mento dificil irfo bajular os capitalistas privados, para depois ajus- tarem contas com eles. Os bolchevistas podem dizer o que quiserem, mas isso nao € tatica, porém evolugdo, degeneragao interna; chegariio a um Estado burgués comum, ¢ nés deyemos apoi-los”? Lénin diz claramente que estas palavras explicitas sao muito mais uteis para nds do que os melifluos embustes comunistas, do que o Komvran’é> Mas, quado conveniente ¢ para nds este Komvran’é* nos problemas juridicos! Lénin conclui esta parte da sua informag&o com as seguin- tes palavras: “Quando falei de emulagao comunista, nao o fiz sob o ponto de vista das simpatias para com o comunismo, mas no que se refere ao desenvolvimento das diferentes Jormas da economia, e daquelas adotadas pelo regime social. Isto nao é emulagao, mas uma luta desesperada, furiosa c, sendo final, pelo menos préxima da luta final; é uma luta de vida ou de morte entre © capitalismo ¢ 0 comu- nismo”.’ Parece-me que estou certo ao proclamar uma auténtica “guerra civil” ante o direito. 1. O autor alude ao Smeno vech (troca de pedras milenares), que foi publicado em Paris (1921-1922) por um grupo de politicos russos exilados. 2. V. L Lénin, Obras Escolhidas, Buenos Aires, Ed. Cartago, 1965; v. VI, pe 412. 3. Id. ibid, p. 412. 4. Komwvran'é significa mentira comunista (NT). 5. Id. ibid, p. 444. 10 No intervalo que transcorreu desde a primeira edicao apareceu uma sétie de livros que, de uma ou de outra maneira, completam © meu trabalho, mesmo apezat de em parte nfo concordarem com a minha posiga&o. Recordarei em primeiro lugar o trabalho Teoria Geral do Direito e Marxismo, de E. Pachukanis. O autor sustenta igualmente o cardter classista de todo o direito, mas fundamenta o seu trabalho de forma diferente e coloca questées distintas. Aproxima a “forma juridica” da “forma mercantil” e tenta desenvolyer um trabalho andlogo ao realizado por Marx na economia politica; “analisando basicamente as generalizagdes e abstragSes elaboradas pelos juristas burgueses, tenta evidenciar o significado auténtico, quer dizer, 0 condicionamento histérico da forma juridica”. Desta maneira o autor concluiu que o direito deriva da troca de mercadorias @ que nfo aparece antes dela, esquecendo a outra fonte do direito, as relacdes de dominio na propricdade privada dos meios de produgio (e da terra em primeiro lugar). Isto antes do mais. Por outro lado, © autor, que nao concorda com os defensores da ideologia jurfdica, fala ao mesmo tempo da “forma juridica” como de um “simples reflexo da mais pura ideologia”, esquecendo que a propria forma nao é um simples reflexo e que a ideologia juridica € 0 reflexo do direito enquanto forma concreta, Isto se explica porque o autor, embora analise somente o dircito da sociedade burguesa (a economia politica € para Marx exclusivamente a economia da época capitalista), tirou conclusdes relativas ao direito em geral, ou seja, aplicéveis também ao direito de outras épocas da sociedade classista. Porém, com esta ressalya, a obra & uma contribuigéo muito valiosa para a nossa literatura tedrica marxista, que até agora apenas nos deu uma teoria geral do direito, ¢ além disso incompleta e insuficiente. Cito brevemente este trabalho de E. Pachukanis, s6 para me justificar, uma vez que, como na primeira edic¢do, sigo uma linha distinta e, tendo em consideragdo que € um manual para o estudo da teoria geral do direito, nada de novo acrescento ao meu trabalho. As obras anteriores de “Teoria geral do direito” ou de “Enciclo- pédia juridica” visavam proporcionar ao leitor altamente selecionado conceitos gerais, abstratos (derivados da teoria e da filosofia), ou entdo, conceitos concretos, construidos, na qualificacfo dada por Engels no Anti-Diihring, com método idcolégico ¢ aprioristico: “Primeiro se forma um conceito do objeto a partir do objeto; em seguida, di-se a volta ao espelho ¢ afere-se 0 objeto pela sua imagem, © conceito”.® A estes conceitos gerais séo feitas algumas emendas e notas complementares, suscitadas pela insuficiente “cultura média” 6. F. Engels, Anti-Dithring, trad. port. Séo Paulo, Ed. Académica, ll dos ouvintes, relativos, por cxemplo, a liberdade de querer, ou expli- cagdes semelhantes que atualmente se transferem para a teoria do materialismo hist6rico e outras doutrinas. Fomos obrigados a iniciar © nosso curso de teoria marxista do direito com uma polémica, com uma luta de classe na “frente ideolégica”. E oferecemos nao apenas respostas perfeitas e acabadas mas também problemas claros. Alids, Marx ja tinha dito que a formulagao de um problema jé é a sua solugo. Este modo de agir serd a melhor defesa contra o “estudo dema- siado répido dos problemas”, contra o qual Lénin nos alertava. Naturalmente, somos obrigados a avancar rapidamente, porém nao demasiadamente. Nao podemos estudar as coisas num simples relan- ce, construindo conceitos unicamente a base de citagéio de livros, mas antes devemos estudé-los atentamente e, portanto, ponderando o equacionamento dos problemas, j4 que a nossa tarefa nao consiste apenas (nem tio pouco) em adquirir novas nogdes, mas em elaborar toda uma concepeio do mundo completa ¢ acabada. Afirmamos que todo © direito, no sentido corrente da palavra, € um conceito classista, e que perecerd com a sociedade de classes. Mas hoje ja sabemos que este processo de “extingao” do Estado e do direito é um processo bastante lento. Nao podemos nos contentar com breves citages segundo as quais a sociedade burguesa passa por um perfodo de transi¢ao da sociedade de classes para o socialismo © pata o comunismo ¢ que num belo dia se extinguird ao longo do caminho. Se nos recordarmos das palavras de Engels sobre a “concepeao juridica”, como concepgio classica do mundo da burgue- sia em geral, devemos nos preparar para uma longa luta, para con- seguirmos extinguir esta concepgio do mundo e substituf-la também no campo do direito por uma nova concepgio, A afirmagio de Lénin, de que sé mediante a conquista do poder estatal e a formagio de um noyo estado de tipo proletério, ou seja, do poder soviético, o proletariado realizaré uma “grande reyolugio cultural", € também aplicdvel, muito propriamente, ao direito como forma de organizagio das relagGes sociais, isto ¢, das relagdes de produgio e de troca. Seria ingenuidade acreditar na possibilidade de uma tao grandiosa reorganizagio das relagdes sociais, partindo-se pura e simplesmente das formas herdadas da burguesia. Tem de haver mais critica, e também autocritica, no campo do direito! 12 de junho de 1924. 12 CAPITULO | O QUE E O DIREITO? Como se sabe, a grande revolugao francesa comegou com a triun- fal proclamagdo da Declaragao dos direitos do homem e do cidadao. Realmente este direito da grande revolugao francesa, este direito para toda a humanidade, foi somente um direito do cidadao como classe, um cédigo da burguesia (o Cédigo Civil). Esse Codigo de Napoleai © grande contra-revolucionério, constitui efetivamente a formulagio sintética da propria natureza da grande reyolueao francesa e, podemos acrescentar, de toda revolugio burguesa. Trata-se do texto predileto, ou, se se preferir, quase da Biblia da classe burguesa, uma yez que contém a base da verdadeira natureza da burguesia, do seu sagrado direito de propriedade. Assim, aquilo que constitui atualmente um direito natural e inato da burguesia (um direito “hereditario”) foi, na Declaragio dos direitos do homem ¢ do cidadao, proclamado como direito natural, A razio disso esté baseada no fato de que como na ordem social feudal o proprietario feudal considera que ape- nas ele € homem, também no mundo burgués sé o cidadao,' quer dizer, aquele que é proprictério, o titular de uma propriedade privada, & reconhecido como homem no verdadeiro sentido da palayra. O al- cance desta qualificagéo, a extensio desta propriedade privada, que define © peso especifico de qualquer cidadao da sociedade burguesa, modifica-se com o desenvolvimento do capitalismo, Todavia, sé a “Revolugao social” constitui a negagéo desta qualificagao. No entanto, se o burgués considera o seu direito civil como um direito inato e o circunda de uma auréola de santidade, 0 senhor 1. *...nfo 0 homem como cidadéo, mas o homem como burgués, @ considerado como auténtico homem”. K. Marx, A Questéo Judaica, 1843, (trad. port., Sao Paulo. Ed. Académica). 13 feudal jura que somente o seu direito, o direito feudal, o direito da forca bruta, segundo uma expressio corrente, é direito natural, direito verdadeiramente inato porque € o direito “de grupo”. E cita pra- zerosamente © direito prussiano como sendo seu Novo Testamento, saido do laboratério do Direito Romano, antes da revolugio. Se recuarmos um pouco mais, por exemplo, aos séculos XV-XVI, Spoca das grandes reyolugdes camponesas na Europa (das “guerras: camponesas”), vamos constatar que os camponeses nao estavam pro- Priamente extasiados com o direito feudal que ganhava vida e vigor © que, antes pelo contrario e nfo obstante a consagracao deste direito pela Igreja, se rebelavam em nome dos seus “direitos e costumes particulares”. Nao sé odiavam o novo direito em si, mas também Os seus promotores: os doutores daquela época do sagrado Direito de Roma, tio citado pelo Cédigo Civil e pelo Landrecht da Prussia. Mais adiante veremos quéo duramente foram tratados estes criadores do direito aos quais chamavam de “ladrdes” e “bandidos”. O direito de propriedade feudal, essa versio feudal do Direito Romano ou esse direito feudal exposto em forma romana, do qual encontramos no ja citado Landrecht um fraco resquicio da ordem social burguesa- nobilidrquica da Alemanha, s6 se consolidou definitivamente sobre os caddveres dos camponeses rebeldes. Existem, pois, trés classes ¢ trés tipos de direito natural consa- grado, Mas quando, ainda ha pouco, os socialistas alemaes cantavam entusiasticamente “Avante os que honram o direito e a verdade” (Wohlan ver Recht und Wahrheit achtet) podemos estar certos de que nao pensayam nem no primeiro, nem no segundo, mas sim, no terceiro direito: pensavam no seu, isto é, no seu direito particular. E, por dltimo, quando em novembro de 1917 derrubamos a ordem social burguesa, lancamos literalmente ao fogo todas as leis do velho mundo e afirmamos que todos os direitos do passado ficavam, em principio, abolidos, apesar de continuarmos a falar de um direito, do direito soviético, da conscitncia juridica proletaria etc. Deste modo, surge naturalmente a seguinte questio: O que é, realmente, este proteiforme conceito de direito? Embora nao haja qualquer outra palavra que tenha sido tao pronunciada como a pala- vra “direito”, nao encontraremos facilmente uma resposta para a nossa investigagao sobre a natureza do direito. O homem comum . Assim, Savigny, expoente da escola historica, falou em 1840 da “feliz Alemanha, que nao foi atingida pelo processo da ravolugdo” e que, portanto, em vez de possuir 0 Cédigo Civil que “minava como um cancer a Franga” permaneceu submatida ao seu Landrecht, que “ia criando, grada- tivamente, @ sem revolugdo, algo de magnifico”. 14 limitar-se-4 a recorrer aos grandes volumes dos cddigos ou & classe especializada dos jurist Quem efetivamente teve durante séculos a autoridade neste campo foi, no verdadeiro sentido da palavra, uma auténtica classe privilegiada de juristas. Fabricava-se o direito como produto de grandes fabricas, ¢ para a sua interpretagao e aplicagado foram construidos verdadeiros templos, onde as solenes ceriménias dos sacerdotes do direito se desenvolviam com os mesmos métodos de uma grande producgao fabril. E apesar de tudo isso, a esséncia do direito continua a ser um mistério, algo incompreensivel para os simples mortais, embora tenham a obrigagao de conhecer todo o direito e este seja a norma das relagGes humanas mais comuns. Como resposta & questo, o jurista nos perguntara a que dircito concreto fazemos referéncia: se ao dircito civil, direito penal ou a outro. E, como um médico que avia a sua receita, talvez o jurista nos dé também uma parcela de yerdade e de justica, embora sem nenhuma garantia. Contudo, do mesmo modo que o médico nao dé uma explicagio sobre 0 contetido de sua receita, assim também o jurista nfo nos fornecerdé uma explicagéo geral sobre: o direito. Abordemos um jurista de maior competéncia. Inicialmente nos perguntaré a que direito nos referimos em particular: direito em sentido objetivo ou dircito em sentido subjetivo? Talvez ele nos diga que o primeiro, isto é, © direito em sentido objetivo, é “o conjunto de todas as normas sociais de um determinado tipo”, ou seja, das normas juridicas; ao passo que o direito em sentido subjetivo € “q liberdade de agir, a possibilidade de realizar 0 préprio interesse, reconhecida por essas normas ¢ accita por qualquer sujeito”. Mas, ficaremos perplexos porque, na realidade, nao conseguimos nenhuma resposta & questio do que seja o direito, Somente nos disseram que este misterioso conceito tem duas paries: uma parte subjetiva ¢ ou- tra objetiva. Perguntemos a outro estudioso ¢ cle nos ira citar uma série de caracterfsticas do direito, relacionadas a seu contetido, mas, em se- guida, nos alertaré que nenhuma destas definigdes resiste & critica, uma vez que “teoricamente podemos conceber solugdes juridicas construidas sobre prinefpios diametralmente opostos, ©, apesat de tudo, cada solugao encontraré um fundamento no direito”. Apesar de tudo, para nos tranqiiilizar, acrescentara: “Na realidade, a questao nao esta em saber qual ¢ a conduta que é exigida pelas normas juridicas, mas como é exigida a conduta imposta pelas normas juri- dicas” (Sersenevic). Dispenso o acervo de obras gerais ¢ especializadas que os juris- tas burgueses dedicaram aos problemas do direito e me atenho a um livro acessivel a todos e constantemente citado nas mais diversas 15 questées. Na Bol'saja Enciklopedija (Grande Enciclopédia) 1é-se: “Direito. O problema da natureza do direito faz parte dos problemas mais dificeis e até hoje ainda nao solucionados. Até agora, grande nimero de doutrinas, substancialmente diferentes, disputam entre si a supremacia da teoria geral do direito”. Isto significa que, até hoje, a respeito desse direito idéntico que “governa” a humanidade ao longo dos séculos e em nome do qual se realizaram movimentos, revoltas ¢ reyolugdes, conservam o sect valor as irénicas palavras de Kant: “Os juristas procuram até hoje uma definiggo para o seu conceito de direito”. Porém, os juristas, ¢ nao somente eles, acrescentaremos nés, continuam buscando definir a categoria eterna do direito. Mais adiante veremos por que fracas- saram, e, inclusive, puseram obstdculos (talvez inconscientemente, mas de qualquer modo foram obstdculos), quanto & busca de uma auténtica dejini¢do cientifica do conceito de direito. Quando, no Colégio do Comissariado do Povo para a Justiga, redigimos os principios fundamentais do direito penal da URSS e precisamos formular, por assim dizer, a nossa concepcao “soviética” do direito, escolhemos a seguinte definigio: “O dircito é um sistema (ou ordenamento) de relagoes sociais correspondente aos interesses da classe dominanie e tutelado pela forca organizada desta classe”. Com certeza se pode fazer uma defini¢ao mais perfeita do conceito de direito, Seria necessdrio dar maior destaque aos termos “sistema ou ordenamento” ou substituélos por outro que dé maior énfase 2 participagao consciente do homem na implantagao deste “sistema ou ordenamento”. Recentemente, em vez do termo “sistema” etc., em- preguei a expressiio “forma de organizagio das relacdes sociais, isto &, das relagdes de produgao ¢ de troca” Talyez fosse melhor salien- tar mais o fata de que o interesse da classe dominante é 0 contetido fundamental, a caracteristica essencial de todo o direito, Por Yiltimo, talvez pudesse cu usar a definigéio segundo a qual o direito é “um sistema ou ordenamento de normas que fixam ¢ protegem, contra a violacfo, 0 citado sistema de relagées sociais” etc. Embora censure esta ultima definicdo, que logo examinarei, ela baseia-s: apesar de tudo, num ponto de vista certo, isto é, clussista. Em conjunto consi- dero ainda hoje totalmente valida a definigZo do Comissatiado do Povo para a Justiga, porque inclui os principais componentes do conceito do direito em geral, e nao sé do direito soviético. O seu principal mérito. consiste em colocar, pela primeira vez, o problema do direito em geral sobre uma base cientifica, renunciando a uma 3. Cf. meu trabalho O Estado de classe e o direito civil, Moscou, 1924. 16 visao puramente formal e vendo no direito. um fenémeno social, que muda com a luta de classes, e nao uma categoria eterna, Esta defi- nigéo rejeita, em suma, a tentativa prépria da ciéncia burguesa de conciliar 0 inconcilidvel e, pelo contrério, encontra uma medida aplicdvel aos mais diversos tipos de direito, pois adota 0 conceito da luta de classes ¢ das contradigGes entre as mesmas. Os teéricos burgueses t¢m considerado freqiientemente e com atengao cada uma das caracteristicas do direito que salientamos, com excecao do interesse de classe, embora se tenham limitado apenas a “sentir 0 problema e abandond-lo” (farejar e dar o fora). E toda a jurisprudéncia, esse “conhecimento das coisas divinas e¢ humanas, ciéncia do justo e do injusto”,’ sem excluir a corrente sociolégica e ainda menos a socialista, ainda hoje caminha, num rotativismo constante, em torno de férmulas paupérrimas © ainda poe em diivida se é ou nao uma ciéncia. Responderemos sinceramente que nunca © foi @ que nao pode sé-lo: somente pode tornar-se uma ciéncia se adotar um ponto de vista de classe. E isto indiferentemente a que se trate do ponto de vista da classe operéria ou da perspectiva da classe hostil a esta: © que importa é que deve assumir um ponto de vista de classe. Pode fazé-lo? Nao, a jurisprudéncia nao pode fazé-lo porque ao introduzir o ponto de vista revoluciondrio (de clas- se) no conceito de direito justificaria, e inclusive, legalizaria a revo- lueao proletdria. Somente apés a vit6ria do proletariado os juristas burgueses comecaram a dizer timidamente que todas as classes tém © seu préprio direito.’ Porém, nao foi a teoria que os convenceu, mas a vitéria efetiva da revolucgao. Com efeito, apesar de entre os juristas terem existido socialistas que aceitaram formalmente o principio da luta de classes, a verdade é que o fizeram por motivos oportunistas e continuaram, apesar disso, a ser adyersdrios ativos de uma concepgio revoluciondria da luta de classes; passaram a conviver com essa corrente que a todo o momento atraigoa a revolugao, sob a mascara do marxismo. A estes juristas € inteiramente aplicavel o que Engels, juntamente com Kautsky, escreveu em 1887 num artigo contra o “socialismo juridico” burgués (Neue Zeit, n° 49).6 Na concepcdo atual do direito nao hd lugar para a revolucao; ¢, assim como os camponeses revolucionarios da 4. A definigao “iurisprudentia est divinarum et humanarum rerum notitia, aeque iusti scientia” pertence a Ulpiano (Dig., |, 1,10). 5. Veja-se 0 caso do professor Trajnin na revista O direito © a vida, ne 1. 6. Este artigo, depois de ter sido citado por mim, aparece em tra- dugdio russa na revista Sob a bandeira do marxismo, 1923, n° 1. 17 Alemanha desprezayam os seus médicos e os da Espanha falayam mal de seus juristas (os togados) ° da mesma maneira deve a revolu- cao proletdria precaver-se dos seus juristas. £ interessante notar que uma nulidade cientifica tao grande como o professor alemao Stammler, que conseguiu notabilizar-se com a sua caricatura burguesa do mar- xismo, considere que o principal, para nao dizer o tnico, defeito de Marx € a sua “insuficiente escola juridica”. Marx, que havia passado, nos anos trinta, pela velha escola romanista da Universidade de Berlim e nao sentia uma especial simpatia por essa ciéncia® como cra ensinada naquela época, numa carta de 25 de novembro de 1871 (a Bolte), em contrapartida define a luta de acordo com as leis pela reducdo da jornada de trabalho como uma luta politica e propoe uma profunda definigio do conceito de direito (definigao a que a ciéncia juridica jamais hayia chegado): “Assim, pois, dos movimentos econdmicos isolados dos operdrios nasce por toda a parte um movi- mento politico, isto é, um movimento de classe, cujo objetivo € aten- der aos scus interesses de modo geral, isto é, de forma obrigatéria para toda a sociedade”.’ Pode-se notar que nesta formulagao, que considera a conquista de uma legislagao operaria como parte do dircito, figuram todos os elementos assinalados anteriormente por nds. No entanto, olhemos rapidamente para o grande acervo de obras juridicas dedicadas 4 procura de uma auténtica definigéo do conceito de direito. Ainda que a maioria delas parta do conceito de relacao jurfdica, quase todas consideram o direito objetivo como um conjunto de normas, isto é, como uma colegdo de leis, de imperativos voliti- vos, com a tinica excecfo desses lunaticos com toga de cientistas (dai o nome de togados que !hes foi dado na Espanha) para quem o verdadeiro direito somente encontra explicagao na sua consciéncia ou intuigio ou vive numa forma natural (direito natural) nao se sabe onde, ao passo que a lei positiva nfo passa unicamente de uma ilusio. Todavia, © jurista romano (Paulo) ensinaya: “Non ex regula ius sumatur, sed iure, quod est, regula fiat”; isto é, que a lei nasce do direito e nao o direito da lei. E um jurista pratico (Silzheimer) escrevia (Die soziologische Methode in der Privatrecht- swissenschaft, Miinchen 1917): “Nao se considera que o ordenamento 7. Nas suas cartas sobre a revolugao espanhola Marx cita uma expressdo da época de Filipe Il: “Todos os males se devem aos togados”. E na Russia hd um provérbio camponés que diz: “Nao temas a lei: teme os juristas”, Na Franca, de 745 deputados, mais de 300 eram advogados (cf. Heyck, Perlament oder Volksvertretung, Halle, 1908). 8. E conhecido o seu dito “juristisch, also folsch*. 9. Marx a F. Bolte, 23 de novembro de 1871, in: Obras escolhidas, Moscou, ed, Progresso, 1966, Il, p. 471. 18 coincida intciramente com a realidade juridica, e de fato nao coincide em muitos aspectos, porque nem todo o ‘direito vigente’ (leis © conjunto das normas) estd vigorando e nem todo o direito vigente esta expresso (em leis)”. Assim, adverte-nos o jurista russo Iverskij: “ha artigos que falam e artigos que nao falam”."" De fato, parece que, a partir do momento em que na ciéneia juridica apareceu uma corrente sociolégica, pelo menos ficou defini- tivamente estabelecido o seguinte: o direito é precisamente um siste- ma de relagées sociais. Porém, esta tendéncia sociolégica desde a sua origem até chegar 20 conceito de relagao social e de ordenamento social, chocou-se com o conceito de sociedade (para ela também incompreensivel) ou com o fantasma vermelho da luta de classes, envolvendo-se novamente num circulo vicioso."' Assim, um dos principais expoentes do “‘socialismo jurfdico”, entre os professores burgueses, o vienense Anton Menger, recente- mente desaparecido, escreveu: “Todo 0 ordenamento juridico € um 40. “Ha também normas latentes (latente)”. schen Rechts, p. 29. 41, Nao so poucos os juristas burgueses que procuram a esséncia do direito nas relacdes sociais. Assim Kistjakovskij, na sua obra A cién- cia social @ 0 direito escreve: “No estudo cientifico-social do direito deve-se reconhecer que a realizagio do direito é 0 elemento fundamental, necessdrio, para o seu conhecimento @ que, portanto, é preciso partir de uma consideracéo do direito tal como se encarna nas relagdes juridicas”. Kistjakovskij adota, certamente, a tradigfo voluntarista, mas nao orienta a sua andlise para a vontade em si mas antes para a sua atuacdo. Citarei outros exemplos extraidos de obras pertencentes & chamada corrente sociolégica: “Toda norma juridica, ou pelo menos, todo o conjunto de relagdes juridicas pode ser considerado sob o ponto de vista juridico sob 0 ponto de vista sociolégico. As principais instituigdes juridicas {Rechtsgebilde) como, por exemplo, @ familia, a propriedade, o poder estatal e a posse correspondem a fendmenos socials gerais. Porém, a ca- racteristica do direito é que esté divorciada do material social, dos fatos e relagdes sociais dos quais & forma e ordenamento exterior. A principal causa deste processo de isolamento (Verselbsténdigung) 6 a complexidade das condicoes da vida, que aumenta com o progresso da civilizagao e que cada vez menos possibilita uma congruéncia, plena e duradoura, da regra geral com o caso individual. Como técnica, a jurisprudéncia é¢ a mais perfeita expressdo desta tendéncia do direito para a autonomia (...). Deste modo, surge 0 dualismo entre o direito e o seu contetido social (Substrat)” (M. Huber Beitrage zur Kenntniss der sociologischen Grundlage des Vélkerrechts, in Zeitschrift fur Rechtsphilosophie, \V). “O direito pretende abarcar a sociedade nio pelo que esta 6 e por aquilo em que esta se converte, sendo pelo modo como o realiza’. (Cf. Erges, in Zeitschrift fir Rechtsphilosophie, 1919, Il). “O. método sociolégico 6 simplesmente 0 co- nhecimento da realidade juridica (Rechts wirklichkelt)" (H. Silzheimer, Die Sociologische Methode in der Privatrechtswissenschaft, cit.). lhering, Geist des romi- 19 gtande sistema de relagdes de autoridade que se desenvolve no scio de um determinado povo no decurso da eyolugio histérica”, E, mais recentemente, o professor Erges (Recht und Leben, in Zeitschrift fiir Rechtsphilosophie, 1919, IV, 13) escreyeu: “O que nos proporciona © conceito de direito por nés enunciado nos seus tracos essenciais é a vida e a atividade de relagao (Zusammenleben und Zusammen- wirken) dos homens, orientada para assegurar os bens necessdrios @ satisfagao das suas necessidades. Chamamos isto de vida social (...). O direito é, pois, uma ordem da vida social, um modo de manifes- tagao da vida social”. Porém, linhas abaixo, Erges volta, uma vez mais, ao “direito como sistema de normas, isto ¢, como um sistema de linhas diretiyas ou motivagdes para as manifestacdes sociais da vida.” Deixemos de lado, por hora, o problema da sociedade e das relagdes sociais,’* que teremos ocasiio de examinar minuciosamente mais adiante, ¢ limitemo-nos a assinalar que também a ciéncia bur- guesa, ainda que timidamente, chegou a descobrir um conceito que deveria ser evidente: o direito é uma determinada ordem, um deter- minado sistema de relagdes sociais ou de relagdes muituas entre os homens ¢ nao somente um conjunto de artigos que regulam essas relagdes ou uma instituigéo juridica formalmente definida. Contudo, quando nao existe um ponto de vista de classe, estas relagdes dis- solyem-se, outra vez, em férmulas vazias. Tomemos, por exemplo, a definig&o do “direito-liberdade” de E. Trubeckoj: “O direito é 0 conjunto das normas que, por um lado expressam e, por outro, limitam a liberdade externa das pessoas nas suas recfprocas relagdes”. Ou ainda o direito como “interesse tutelado” de Korkunoy: “O di- reito determina os limites entre os interesses dos homens (...) e, portanto, determina unicamente a relagéo de homem para homem”. Ou, por tltimo, a definicao de Stammler, este “marxista as avessas “No seu significado, o direito é a regulamentaco\coercitiva da vida de relac&o (Zusammenleben), uma regulamentacfo considerada in- violayel (unverletzbargeltende)*. Tanto o sujeito como o objeto desapareceram. O resultado é uma definicao sem contetido do se- guinte tipo: “podeis ler bibliotecas inteiras sobre como o direito se distingue da moral ou a ciéncia juridica das demais ciéncias, pois a ci€ncia juridica esteve sucessivamente vineulada de maneira intima com a ciéncia natural, com as citncias histéricas e filosdficas, espe- cialmente com a filosofia e (recentemente) com a sociologia”. E se 12. Porém, geralmente, os juristas falam também de uma relagdo direta entre os homens ¢ as colsas, por exemplo nos chamados direitos reais. 20 tomarmos um estudioso sério, como Muromecey, fundador da sociolo- gia jurfdica russa, a sua definicio do ordenamento juridico (que toma em consideragao quer o direito como relagao social, quer a defesa, organizada ou nao, desta relacdo, entendendo a forma organizada de defesa precisamente como forma juridica, porém que aceita tam- bém o elemento do interesse que Ihering pds em relevo) nao se vai além de uma definic&o carente de contetido porque lhe € estranha uma concepgio classista dos fendmenos sociais. Somente a concepgio classista do direito introduz esta determinacio essencial, sem a qual a jurisprudéncia € unicamente uma técnica verbal, uma “escrava™ da classe dominante. O segundo elemento caracterfstico do direito consiste em ser garantido pela classe dominante mediante um poder organizado (normalmente 0 Estado) cujo objetivo principal, uma vez que nao é © tinico, consiste em proteger este ordenamento por corresponder aos interesses (ou melhor, para garantir os interesses) da prépria classe dominante. Parece que a respeito desta coercibilidade do di- reito teriam de concordar todos os que véem nele um conjunto de normas, isto 6, em tiltima andlise, um conjunto de leis promulgadas e reconhecidas precisamente por aquele poder. Todavia, para desen- volver explicitamente esta teoria foi necessdria uma tomada de posi- ¢a0 muito corajosa como a do professor alemao Ihering. Este pro- clama abertamente que a forga, a coacao, é uma caracteristica abso- luta do direito ¢ vé no préprio direito unicamente um interesse protegido. Com certeza, teve a intuigdo de que se tratava do interesse da classe dominante e de um poder de classe, mas & evidente que nao chegou a compreender plenamente este elemento de classe. Nao obstante, de fato, orientou-se incondicionalmente para a salyaguarda dos interesses de classe dos Junker e dos capitalistas prussiano-alemaes e, quando trata de interesses, acaba entrando no campo da teleologia, chegando a emitir juizos sobre os fins dltimos e um sem-ntimero de postulados, uma vez que “nenhuma nacio civil pode prescindir da Igreja” e “tampouco uma filosofia ou, em geral, a ciéncia (por exemplo, a teoria de Darwin) pode prescindir de Deus”, Fala do direito “como garantia das condigGes de vida da sociedade mediante a coagéio” mas o tipo de sociedade a que alude torna-se claro, quan- do, por exemplo, fala para o seu ptiblico da “precariedade do direito de propriedade” (isto &, do direito dos possuidores) frente aos “di- reitos da pessoa” (isto é, os direitos dos nao-possuidores). Aqui limita-se a uma tinica frase: “Esqueceria o cardter do piiblico a quem falo se dissesse uma tinica frase supérflua neste sentido”. Assim, mesmo o mais audaz e sincero representante da ciéncia juridica bur- guesa, e devemos admitir que Ihering é precisamente isso, nao chegou 21 (ou nao quis chegar) ao reconhecimento sincero do carter classista do direito e permaneceu preso no mesmo circulo vicioso. No amago da ciéncia juridica burguesa, 0 eelético, que capta daqui e dali em diferentes autores, conseguira, facilmente, assimilar toda a nossa de- finigao, mas em tal assimilagio que cada um dos seus elementos tomados isoladamente se contradizem anulando-se reciprocamente; sé na perspectiva classista revoluciondria esta definigfo ganha vida, libertando-se de toda a incoeréncia e de toda a hipocrisia. A esta altura, cabe perguntar se a nossa definigao corresponde A verdade. Inclui ela todo o campo do direito tal como o configuram a histéria e a vida? Certamente nao podemos aplicar o nosso conceito de direito a uma sociedade que desconhece as classes. Porém, vere- mos, em seguida, que, em semelhantes sociedades, nao existe o direito no moderno sentido da palayra ¢ que somente a aplicagao indiscri- minada da terminologia moderna & sociedade antiga gera “ilusdes” como esta. Dé-se aqui, por outro lado, uma simples repeticao dessa confusio de conceitos (que na ciéncia burguesa goza do favor geral) em razio da qual se encontram o capital, o proletariado etc., também no mundo antigo. E claro que sempre que atuam, de uma maneira ou de outra, a divisdéo da humanidade em classes ¢ o dominio de uma classe sobre outra, encontramos o direito ou algo parecido. Em nossa investigacao, fixamo-nos propositadamente no direito da época da sociedade burguesa ¢ da sociedade feudal que a precede, por ser o modelo do direito mais completo. No que se refere ao campo de acdo do direito consideramos que a objecdéo mais perigosa € a relativa ao direito internacional. Veremos, porém, que o direito internacional, que considerado genericamente € direito, est inteira- mente de acordo com a nossa definigfo e, quanto a isto, o impe- rialismo contemporaneo e particularmente a guerra mundial ¢ as suas conseqiiéncias abriram os olhos de todo o mundo. De fato, falamos de um poder organizado de uma classe sem denominé-lo Estado, precisamente para abranger um campo jurfdico mais extenso. Além disso, acrescentarei que junto com a hipocrisia que caracteriza a ciéncia burguesa, existem, tanto hoje como no passado, muitos estu- diosos que apresentaram sérias dtividas quanto ao lugar que o direito internacional ocupa no sistema do direito em geral. Permanece, contudo, uma outra objegao; que esta definigao sé é aplicdvel ao direito civil ou privado. Com efeito, a nossa definigao dirige-se certamente ao esclarecimento das relagOes reciprocas entre os homens, reconhecendo que o problema fundamental do direito é constituido pela relagdo de homem para homem, de onde se vé que, na sociedade burguesa, uma norma morta domina completa- mente o homem yivo: nesse caso o homem existe para o direito ¢ 22 A prioridade do direito civil tem sido, além disso, reconhecida, ja desde Gumplowicz, que escreveu (Rechtstaat und Sozialismus): “£ claramente indiscutivel que a lei que declara o direito como obrigatério nada mais faz do que atribuir ao direito priyado a qualidade de norma, embora isto nao esgote completamente o problema da origem do direito privado”. Isto signi- fica que o “direito privado” (como ordenamento das relagées sociais) existe antes da lei. Segundo o nosso modo de pensar, todas as outras instituigdes juridicas foram criadas com o tinico intuito de garantir este direito fundamental e, apesar de parecerem predominantes, t¢m apenas um carater auxiliar. E quando o Estado assume o papel de sujeito do “direito privado”, assim o faz, para usar uma expressdo de Engels, como personificagao do capital (Gesamtkapitalist). Sepultamos, portanto, 0 conceito eterno de direito, mas apezar disso a prépria ciéncia juridica burguesa por ele dobra os sinos. Ao mesmo tempo desaparecem os conccitos eternos © indeterminados de yerdade € justiga universal © o scu lugar é ocupado, entre nés, por conceitos puramente de classe. Porém, quando falamos de direito e de justica no sentido classista, referimo-nos a critérios revoluciond- rios com um contetido puramente classista ¢ nao certamente a esse dualismo timido, a essas duas almas que disputam entre si 0 coragao de todo o verdadeiro filisteu e que téo abertamente se revelaram nos seguidores do pensamento filosdfico revoluciondrio e nos seus imitadores juridicos. Quem assimilou o pensamento de Marx e de Engels sobre o capital, 0 dinheiro ete., cancebidos como relagdes sociais, facilmente compreenderé o que estamos dizendo sobre o sistema dessas relagdes Em contrapartida, isso deverd ser mais dificil para o jurista que vé no direito uma simples superestrutura técnica ¢ artificial, que domina extranhamente a sua base. O préprio Marx, inclusive, durante um breve espaco de tempo, pagou o seu tributo a terminologia das teorias voluntaristas do dircito, Na realidade, Marx havia se formado nas concepgdes juridicas dos anos trinta, que viam no direito uma expressao da vontade geral (Volkswille).'* Pela mesma razio, un ilustre expoente atual do materialismo histérico, M. N. Pokrovski escreve no seu valiosissimo livro Elementos de histéria da cultura russa, 1, p. 181: “Uma vez que as normas naturais da vida social nao o direito para o homem. 13, Na primeira edigdo, esta passagem dou origem a malentendidos. £ claro que nao se trata de qualquer “censura” nem de qualquer “acusagao de heresia". Marx usou a terminologia dos mais avangados representantes da ciéncia. Compreende-se que, hoje, empregariam uma linguagem diferente. Porém, como veremos, apesar de tudo defini, exata e claramente, o amago da questio. 23 continuam sendo desconhecidas, os homens procuram criar normas artificiais: ' aquilo que denominamos lei, direito”. Esta artificialidade € tanto maior quanto mais nos aproximamos da nossa época, por causa da crescente complexidade da economia e da sempre maior “complexidade” das relagdes da vida. Poder-se-ia dizer que pode ser desculpado por nao ser jurista, mas a minha resposta é: nfo, 0 companheiro Pokrovskij nao constitui uma excegiio; como todos os demais ndo-juristas, pensa de maneira juridica. Que se dird, entao, dos juristas? Sobre estes problemas falaremos mais adiante. Quem compreendeu que as instituigdes da propriedade, da su- cesséo hereditdria, da compra e venda etc., nfo passam de relacdes juridicas &, por conseguinte, formas das relagdes sociais dos homens, compreenderd também as relacGes sociais latentes, que se encontram além de toda proposicao meramente juridica da lei. Portanto, des- cobriré claramente a fisionomia contra-revolucionéria do direito feudal em luta contra os interesses sociais da burguesia, que em outros tempos foi revolucionéria, e também do direito burgués em luta contra o inferesse * revoluciondrio de classe do proletariado. Aqui nao ha lugar para o compromisso, ao passo que a primeira luta terminou, de certo modo, com um compromisso entre as classes em luta: “O polegar para baixo”; “socos nos olhos e pontapés no estémago”, 14. “A filosofia antiga jé havie levantado o problema para saber se © direito é um produto da natureza ou uma criacao da arte. (Gumplowicz, Rechtstaat und Sozialismus, clt. |, p. 63). 15. Grifo as palavras “direito” e “interesse” para chamar a atengdo sobre a sua contraposi¢ao e nao sobre sua confusdo. O Interesse de classe 86 se converte em direito depois da vitéria da classe e perde a sua caracteristica quando a classe perde o poder. 24 CAPITULO II AS RELACGES SOCIAIS E O DIREITO Dissemos que o direito é um sistema de relagdes sociais ou, ain- da, que trata de uma determinada ordem social. Porém, que significa para nds a expresséio “relagdes sociais”? Repete-se aqui, novamente, © que acontece com o direito; nao hd termo mais utilizado do que a palavra “sociedade”, e, no entanto, nao ha conceito mais indetermi- nado ¢ confuso do que o conceito de sociedade. Nao queremos falar aqui da sociedade no sentido puramente técnico, isto é, das chamadas sociedades-pessoas juridicas. Ao contrério, empregamos expressdes como “sociedade antiga”, “sociedade feudal”, “sociedade burguesa” 2, até mesmo, “sociedade futura’”; referimo-nos, pois, & sociedade humana em geral, e, portanto, ao conceito comum. Todavia, 0 termo sociedade tem, evidentemente, um sentido especial em cada um dos contextos, ¢ quando os estudiosos quiseram individualizar os caracte- res comuns a todos estes diferentes contextos, resumindo-os numa sé palavra, o resultado foi uma enorme confusao ou, ainda, uma defi- nigéo que noyamente nfo tinha um contetido real. Ora, como todos sabem, estes “lugares-comuns” sao exatamente os que na ciéncia bur- guesa sio tidos como finais. Por outro lado, todas as formas de ex- pressao, sem excluir a forma de expressao cientifica, possuem palavras com significados bem diferentes. Por vezes isto representa um incon- veniente, mas nem por isso deixa de ser um fato, que na realidade existe. Estes diferentes significados de uma mesma palavra nao de- yem, no entanto, ser levados até ao absurdo, assim que se torne necessério remeter a sua andlise pura e simplesmente para a ciéncia especial da filosofia. Neste sentido, hd uma maneira facil de evitar a dificuldade: determinar em cada caso especifico aquilo que enten- demos precisamente nesse caso e nesse ambito. A ciéncia burguesa, contudo, niio 0 fez; veremos, a seguir, por que nao podia fazé-lo. 25 No que se refere ao nosso objeto, o termo sociedade significa um grupo mais ou menos extenso de homens, que mantém relagdes reciprocas, ou melhor, uma determinada esfera das préprias relagdes mitituas em que entram esies homens. Porém, a definigao do circulo de homens e do tipo de relagdes miituas humanas que se devem incluir no objeto da ciéncia da sociedade (sociologia) suscita, entre os estudiosos, uma diversidade tao grande de opinides que talvez seja impossivel encontrar dois socidlogos que estejam completamente de acordo neste sentido. Um destes estudiosos (Maxweiler) diz aberta- mente que a palavra sociedade é “um puro equivoco quando se Ihe atribui qualquer significado especifico”, porque mal “tentamos pene- trar no seu significado, ela se evapora instantaneamente”. & sabido que os antigos gregos, segundo a doutrina de Aristé- teles, partiam do homem como membro da sociedade (como “animal politico”). Nao nos deteremos em saber qual era o sentido que Aristételes atribufa & palavra sociedade. Apenas salientaremos que a ciéneia burguesa, partindo do individuo isolado, do famoso Ro- binson, deu, por assim dizer, um passo atrds. E isso parece continuar sendo verdadeiro, com referéncia & teoria do “contrato social”, Para 9 filésofo antigo, as relagdes sociais eram claramente evidentes, en- quanto a ciéncia burguesa age com uma infinidade de fetiches. Na realidade, a ciéncia da sociedade partiu do individuo para, em seguida, transferir para a sociedade todas as teorias inferidas pela” ciencia quanto 4 “natureza exterior” em geral e ao individuo em particular. Sucederam-se, dessa maneira, a escola mecanicista, a escola bio- logica (a escola organica, isto é, a escola antropoldgica ou zoolégica) e, posteriormente, a escola psicolégica. Certamente, cada uma delas representou, na realidade, um passo a frente, uma vez que todas clas empreenderam, com a aplicagao dos métodos das ciéncias a que se referiam, o estudo das relagdes entre individuos dissociados, como membros de uma sociedade que s¢ considerava uma maquina ou um organismo; (assim, o homem de Spencer, Schaffle, Lilienfel’d ete., como também o homem Leviathan de Hobbes etc.), A escola psico- Iégica procurou criar uma teoria da psicologia de massa; partiu, € certo, do corpo, mas agindo a partir da sua cabega. A sociologia foi proclamada ciéncia auténoma, porém, foi apenas a aplicagao da sociologia ao. método histérico que, alids. nem sequer ultrapassou o método descritivo e expositive. Por tiltimo, o método comparativo 16. € interessante assinalar que 6 préprio fundador da sociologia. A. Comte, nao a considerou como ciéncia da sociedade, mas como “ciéncia do homem enquanto membro da sociedade”. 26 especialmente 0 metodo estatistico representaram um grande passo frente. Coube a dois homens da envergadura de Marx e Engels intro- duzir neste actimulo de dados e opiniGes uma conclusao extraida das revolugdes burguesas e explicar assim a esséncia da sociedade como um conjunto de fendmenos que mudam e se desenvolvem segundo leis especificas e imanentes préprias. O seu materialismo histérico introduziu um contetido novo no conceito de sociedade. Marx ¢ Engels partiram do simples fato de que o homem foi sempre conhe- cido por nés como membro de um conglomerado de individuos. O que os une em tais agregados? Na luta pela existéncia, para produzir a sua vida material, os homens “estabclecem entre si deter- minados vinculos e relagdes. Sua atuagdo sobre a natureza e a pro- duc&o etc. é delimitada apenas por estes vinculos e relagdes sociais” e a s. Daqui resulta que “as relagdes de produgdo formam no seu todo aquilo a que se chama relagées sociais, a sociedade e, concretamente, uma sociedade com um determinado grau de desenvolvimento hist6- rico, uma sociedade de carater peculiar distinto”. “A sociedade antiga, a sociedade feudal, a sociedade burguesa si0 outros tantos conjuntos de relagSes de produgao, cada um dos quais representa, por sua vez, um grau especial de desenvolvimento na histéria da humanidade”."” Por conseguinte, as “relagdes sociais” destes produtores so 0 que denominamos condigdes sociais da pro- dugao, ou do trabalho. Continuamente, Marx acrescenta a relagio de producio a relagio de froca. Em 1846, numa carta a Annenkoy (sobre Proudhon) escreve: “A um determinado nivel de desenyolvi- mento das forgas produtivas dos homens corresponde uma determi- nada forma de comércio e de consumo. A determinadas fases do desenvolvimento da producéo, do comércio, do consumo correspon- dem determinadas formas de constituigfo social, uma determinada organizagio da familia, das camadas sociais e das classes; numa palavra, determinada sociedade civil. A determinada sociedade civil corresponde determinado estado politico, que nao é mais do que a expressiio oficial da sociedade civil”.'* Todavia, ao falar da sociedade como conjunto das relacdes de produgio e de troca, Marx esclarece que esta sociedade néo € a simples soma das relagGes, mas, ao contrério, é€ mais do que esta soma; 0 processo de produgao e de troca consiste em alguma coisa 17. K. Marx, Trabalho assalariado e capital, em Marx-Engels, trad. port., Editora Acad&mica, 1987. 18. Marx a Annenkov, 28 de dezembro de 1846. Obras Escolhidas, Moscou, II, p. 446. 27 mais daquilo que ¢ puramente social. Por isso o homem, como parte da sociedade, nao € apenas um individuo com inclinagées sociais, porém um “homem social” (vergesellschafteter Mensch): “um homem integrado no processo do trabalho”. Por conseguinte, ainda que se Ppossa encontrar em Marx a palavra sociedade também com outro significado, no sentido de agregado de pessoas, isto significa somente que os homens sdo em geral a personificagto das relagdes de pro- ducdo. Assim, Marx fala freqiientemente do capitalista como perso- nificago do capital e da classe dos proprietérios da terra como personificagao da propriedade da terra. Pela palavra sociedade, portanto, Marx entende, primeiramente, © conjunto das relagdes de produgao © em seguida, o conjunto das relagdes de distribuigao, Como diz Marx, “as relagdes de produgio de cada sociedade formam um todo”; daf resulta que a nossa definicao de direito, que faz mengao ao “sistema das relagdes sociais”, estd plenamente de acordo com a concepgaio de Marx. De inicio, a ciéncia burguesa nao mencionou a obra de Marx, em parte porque néo o compreendeu realmente, mas, sobretudo, porque nao quis compreendé-lo. Todayia, esta situacgio nao durou muito. A teoria de Marx nao era, absolutamente, uma simples teoria contida num livro: era uma teoria viva. Personificada nas massas proletarias, bateu as portas da burguesia. E depois de Marx, sé pode haver seguidores da sua teoria ou revisionistas. E muito interessante constatar que em todo o mundo surgiu, quase simultaneamente, uma ala direita, “traidora”, do marxismo: foi, todavia, um simples reflexo do revisionismo meramenie burgués. A burguesia, que nunca fizera qualquer distingfo entre sociologia e socialismo (como sempre con- fundiu também revolucao “social” com revolugao “socialista”) incre- mentou as noyas tendéncias revisionistas na sociologia. A primeira foi a tendéncia iniciada pelo professor berlinense Simmel que, no prefdcio da sua Philosophie des Geldes, prometeu “construir um novo plano acima do materialismo histérico”, e ter- minou com circulos vazios matematico-sociais e com verdades ele- mentares rodeadas de uma brilhante pirotecnia verbal. Em suma, Simmel definiu o seu objetivo nos seguintes termos: “Uma descticio e€ uma reprodugao (Herleitung) hist6rico-psicolégica das formas (c nada mais) em que se realizam as relagdes mtituas dos homens”. Seguiu-se a escola de Stammler, o mestre das frases ocas, conhe- cido por sua fama, para usar a expressao de Heine. Prometeu cor- rigir a doutrina de Marx, ou melhor, apresentar-se a si mesmo como 19. K. Marx, Miséria da filosofia, trad. port., Editora Academica, cap. I, § 1, 3.8 obs, 28 um novo Marx, sem os erros deste e acabou “legalizando” ou “justificando” a sociologia, além de socializar a jurisprudéncia: transferiu para a teoria da sociedade métodos puramente jurfdicos (ou, mais exatamente, os métodos do burocratismo prussiano), pois definiu todo o tipo de sociedade como uma “coexisténcia dos homens externamente regulada” (duberlich geregeltes Zusammensein), toman- do toda a sociedade humana como o Verein germano sancionado pela autoridade. A terceira corregao, ou melhor, refutagao, surgiu com a corrente psicoldgica que, como ja acontecera na economia politica e na juris- prudéncia, foi regulamentada para criar uma teoria nado fundamentada do individualismo filisteu. Enquanto as primeiras escolas psicolégicas de Tarde, Ward, Le Bon e outros havyiam procurado o fundamento da sociedade na subordinagéo dos mais fracos aos mais fortes, por exemplo, na dependéncia da multidao em relagio ao herdi, e falayam de uma psicologia de massa com os métodos para influenciar as massas, esta nova escola psicolégica partiu da psicologia do individuo “normal”, do filisteu liberal, e somente desta. Na Russia, o seu mais caracteristico representante € o célebre jurista democrata constitu- cional Petrazickij. E neste sentido so caracteristicas as “leis” cien- tificas de Simmel (que, em Altima anélisc, se assemelha muito a esta escola), como, por exemplo, a seguinte: “os interesses sociais constituem, por assim dizer, anéis concéntricos em torno de nds: quanto mais sc estreitam, menor é o significado que tém por si mes- mos”. Os circulos concéntricos nos lembram, ao contrdrio, a teoria da utilidade marginal, mas, em substéncia, a férmula é completa- mente yazia, faltando-lhe todo o contetido,”” 20. Simmel, por exemplo, escreveu: “As relacdes mutuas entre os homens, que se originam dos impulsos (estimulos) mais diversos com relacao aos mais diversos objetos, constituem, no seu conjunto, a sociedade no mais determinado dos sentidos (sensu strictissimo) como forma de existéncia humana, e € diferente de qualquer outro significado deste con- ceito, segundo 0 qual a sociedade é formada por um agregado de individuos que se acham relacionados entre si, tomados com todo o contetido e com todos os interesses que estas relagdes criam”. Veja-se, por outro lado, a opinigo de outro autor totalmente burgués: “Nao se trata apenas de ser a sociedade, como tal, incapaz de pensar, de sentir e de querer, mas antes de nem sequer poder atuar, porque nada lhe pertence fora da corporalidade dos individuos que a compdem. A expresso de um pensamento geral, inclusive, seja ele qual for, sé pode ser obtida individualmente. (R. Schubert- Soldern, cit. em W. Bauer, Die offentliche Meinung und ihre geschichtliche Grundlage. 1914). E num terceiro jurista burgués podemos ler que o pri- meiro tipo de comunidade humana é uma sociedade em que existem obri- gacoes que ng@o tem a sancao de qualquer autoridade. (Del Vecchi Sull'idea di una scienza del diritto universale comperato, Turim, 1909). 29 Voltando ao nosso problema, que trata das relacdes sociais como contetido do direito, temos necessariamente de concretizar o nosso conceito de sociedade. Se comegarmos pela sociedade primitiva, tal como a podemos reconstruir com o auxilio dos dados fragmentdrios da tradigao, partindo do que restou da antigiiidade e dos dados com- parativos existentes sobre © modo de viver dos selyagens, devemos destacar um fendmeno caracteristico das associagdes, conhecido ha muito tempo, que as tribos (grupos gentilicos e clas) ndo conhecem @ propriedade privada ¢ vivem, ao contrério, num comunismo pri- mitivo. O que significa isto? Significa que a associago, a sua so- ciedade, constitui-se e mantém-se unida para que, todos, conjunta- mente, obtenham os meios de subsisténcia, para conseguirem o “usufruto da natureza” em comunidade. Apesar de que, nesta unifi- cacao, o parentesco sangiiineo desempenhe um papel bastante impor- tante, o instinto de perpetuagaio da gens, continua sendo indubitavel que o significado decisivo deste instinto esté nao na teprodugao, mas na conservacio de si préprio e, conseqiientemente, também dos descendentes e, a0 mesmo tempo, também na conseryagao da propria gens. Nesta unido gentilica hd uma certa estrutura econdmica ainda que fracamente organizada, e ha, portanto, também uma certa divisio de trabalho; nao existe, todavia, o direito no atual sentido do termo. Portanto, na base da apropriagao primitiva encontra-se 0 préprio trabalho. A comunidade, em suas mutuas relacdes, dirige-se por habi- to e por costumes,*’ mas esses costumes séo e: encialmente apenas modos técnicos sugeridos pela experiéncia e pelo instinto. O instinto, por outro lado, define Ratzenhofer, é uma qualidade psicolégica do homem (als psychologische Anlage im Menschen), baseada nas expe- riéncias das geragGes anteriores. A tinica coisa que sabemos do ho- mem primitivo 6 a sua caracteristica vivéncia comunitaria mais ou menos desenvolvida. Nao hayia leis nem direito, no sentido atual, mas sim uma sociedade bastante estavel e unida, cuja regulamentagio (no caso de existir) era constitufda pelas leis naturais. Nao h4 dtivida que uma sociedade deste tipo encontra-se sepa- rada da nossa por um verdadeiro abismo. O professor Ténnies (Gemeinschajt und Gesellschaft) denomina as associagdes deste tipo, que surgem “como uma vida real e organica’”, de comunidades (Gemeinschajt) para distingui-las das sociedades “como unificagao ideal e mecanica”. Marx e Engels corretamente nao fazem esta distingdo, e colocam a gens ou a familia no conceito da sociedade, 21. “Em geral, no estado primario (primitiver) de desenvolvimento, direito e costume (ou, mais exatamente, mores: Sitten) coincidem” (Pro- fessor Achelis), 30, pois, para cles estd claro que também nestes casos a base & consti- tuida por relagdes de produgéo. A diferenca fundamental entre esta sociedade primitiva da Idade Antiga ¢ a sociedade burguesa da nossa época ¢ que a primeira constitui um nticleo auto-suficiente de tra- balho ¢ de consumo, ou ento, uma unidade baseada em vinculos naturais de reciprocidade, enquanto na sociedade moderna, a organi- zacao do trabalho e do consumo (a base de troca) se encontra se- parada desses lagos primitiyos ¢ desses vinculos naturais. “Quanto menos desenyolyido estiyer o trabalho, mais a ordem social se en- contra determinada pelas unides dos gentios; mas esta sociedade antiga baseada nessas unides, desagregou-se quando entrou em choque com as noyas classes, ¢ o lugar das unides dos gentios foi ocupado pelas unides territoriais (Ortsverbéinde),* isto &, por uma sociedade na qual a propriedade predomina completamente sobre o vinculo. familiar” (Simmel, Philosophie des Geldes)2> Entre os primitivos meios de produgao, agricultura nfo seden- taria ou ndmade, criagio némade de gado, caga e pesca, fabricagio dos instrumentos necessdrios para essa atividade, apenas o tiltimo (ou seja, a fabricag&o dos instrumentos de trabalho) e seguidamente a criagio némade de gado permitiam a acumulagio e em geral a formagio de armazenamentos (no segundo caso tratava-se por assim dizer de armazenamentos méveis e “a dinheiro”), ¢ os armazenamen- tos significam um certo excedente que torna possivel um primeiro tipo de troca. Esta troca desenyolveu-se, inicialmente, ainda nao entre individuos, mas entre unides dos gentios (de forma “internacional”), por doacao reciproca ou por apropriacao “a titulo gratuito”, isto é, por meio de rapina, guerra ou tributo. Mas, nos primeiros tempos, este excedente foi insignificante. Marx assinala que a condigdo primdria de qualquer forma de explora- ¢40 do homem pelo homem, isto é, de qualquer forma de apropriagao do trabalho alheio ce, em certa medida, mesmo quando se realiza por meio do saque, é a prépria possibilidade desta apropriagao, isto 6, a possibilidade de um certo excedente de trabalho e de produto. “Se o trabalhador necessita de todo o seu tempo para produzir os meios de subsisténcia necessdrios & sua prépria conservagio e a da sua espécie, néo Ihe sobra tempo para trabalhar gratuitamente para 22. ‘A comunidade (Gemeinschaft) ignora o individuo como tal, @ conhece apenas membros isolados, cada um dos quais age por e mediante © todo”. (Micke, Hérde und Famile, Stuttgart, 1895). 23. A Importéncia do principio territorial na formagéo do Estado 6 destacada por Engels, A origem da Familia, da propriedade privada e do Estado, trad. port., Sao Paulo, Ed. Académica, 3L terceiros. Sem um certo grau de produtividade do trabalho nao ha tempo disponivel para trabalhos extras para o trabalhador; sem este tempo excedente no ha trabalho excedente e, portanto, nem sequer existem capitalistas, ou proprietérios de escravos, senhores feudais ou, numa palayra, néo ha uma classe de grandes proprietérios”.?4 Esta condigao primdria ocorreu, pela primeira vez, como fend- meno normal, por ocasiao da passagem 4 agricultwra estdvel, ou seja, quando esta passou a basear-se na alternancia das sementeiras e na plantacio estivel. O cultivo da terra tornou-se possivel gracas a invengao simples mas genial do arado de ponta (tal é, justamente, o significado etimolégico da palavra eslava socha) ou da enxada de madeira com que o némade (ou, mais exatamente, a sua mulher), cavaya ¢ arava o solo para “semear” ¢ depois para cavar um sulco largo, utilizando a forga animal. O arado de madeira (socha) destruiu, pois, 0 comunismo primitivo e tornou possfvel, pela primeira vez, o arado “assalariado” e depois 0 cultivo prdéprio, pois nao sé deu origem propricdade doméstica, ao cultivo de uma certa extensio de terra utilizando a forga da familia, mas, além disso, eliminou também a necessidade até entao insuperdvel de ter os campos em comum (salvo os pastos ¢ bosques comuns e uma certa “ajuda” miitua na colheita). Deste modo se iniciou uma posse cada vez mais duradoura; a principio, pela duragao de uma colheita (por um ano) € posteriormente por dois anos, o sistema dos “dois campos”, por trés, o sistema dos “trés campos” etc. > Com o tempo, as partilhas deixaram completamente de existir e, aos poucos, se originaram a pequena propriedade privada da terra e a familia do tipo moderno. Assim, jé Aristételes afirmava que “a propriedade faz parte da familia (...) e a parte é nfo sd fragio de outro objeto, mas também Ihe pertence por completo” * Antes do aparecimento do arado de madeira (socha), nao se podia falar de uma agricultura séria (refiro-me ao clima temperado da Europa), mas quando surgiu uma agricultura estivel, o arado de madeira (socha) criou também a propriedade privada e minou o comunismo primitivo, deixando sobreyiver uma espécie de semicomu- nismo. “A propriedade livre do camponés, que cultiva a terra por conta prépria, constitui, evidentemente, a forma mais normal da 24. K. Marx, O Capital, 1, 2. 25. Assim, 0 direito romano distinguia entre uma posse por um ano @ uma posse por dois anos, O contrato corrente, pelo qual se concedia a terra, considerou durante multo tempo a posse por dois anos. A lei sdlica dos francos conhecia unicamente a tutela da posse pelo periodo de uma colheita, 26. Aristoteles, Politica, 1253 b, 24; 1254 a, 9-10. 32 propriedade territorial para a pequena explotacio, quer dizer, para um regime de produgfio em que o trabalhador explora economica- mente os recursos naturais de determinada porc&o de terra em seu proprio beneficio (...). A propriedade da terra é tao necessdria para © desenvolvimento completo deste tipo de explotagao como a pro- priedade do instrumento o é para o desenvolvimento livre da indtis+ tria artesanal”2” Esta propriedade privada necessita do fornecimento de matérias-primas (pastos e bosques comuns) e de uma indistria doméstica: isto é 0 que aqui se denomina de semicomunismo. Achamo-nos, contudo, diante de uma sociedade na qual nao ha exploracao do homem pelo homem, mas que € somente o primeiro estdgio de desenvolvimento da propriedade privada: a passagem do comunismo primitivo para a propriedade privada com a conservagio de um certo grau de comunismo. Este sistema da pequena propriedade privada da terra permane- ceu com éxito nfo apenas durante os felizes tempos antigos (antes da passagem & agricultura escrayagista) e particularmente em Roma, mas também na Europa Central antes da passagem para as relagoes de servidio ¢, inclusive, pode-se dizer que também na Riissia, ao menos de certa maneira. A separacao da economia familiar indivi- dualista, com os seus animais e os seus servos (quando existiam), colocou os fundamentos de novas relucdes sociais. Este novo modo de produgao, em terras virgens ¢ incultas, constituiu um grande progresso técnico e todas as crénicas falam do bem-estar do cam- ponés desta época, que possuia excedentes e estoques e que levava uma “vida folgada”. Inicialmente existiam quantidades notdveis de produto excedente, sobre as quais o senhor feudal mostrou ter pretensdes exclusivas. Quer fosse um guerreiro da sua prépria comunidade (o seu chef, com uma guarda pessoal), quer fosse um conquistador de outras terras com tropas préprias, ou um nobre a quem o “soberano” tinha feito uma concessdo, ou, finalmente, uma classe (de sacerdotes, de igrejas etc.), e todas estas formas se desenvolveram paralelamente, tratou-se sempre de uma forca ou autoridade que assumira a posse da terra2* Esta forca “apoderou-se”, pela violéncia, das terras co- muns dos camponeses, ou, mais precisamente, apoderou-se do que, naquele tempo, era ainda posse comum e, contudo, nao alterou em 27. K. Marx, O Capital, 28. Antigamente “poseer” (possuir) (vladet') significava arrecadar o tributo (dan’) e submetido (poddannyi) era o que devia pagar o tributo. Cf. M. N. Pokrovskij, Histéria Russa e Histéria da cultura russa. 33 nada o método de cultivo da terra. Tal como na antiga Roma, também na Europa, geralmente, o grande proprietério comumente nao se dedicou & agricultura, nem por si nem pelos seus trabalhadores: limitava-se a “possuir”, @ arrecadar o tributo, ou seja, todo o exce- dente ou uma parte do mesmo (“a décima”, por exemplo). Inicial- mente, as relagdes de produg&o continuaram sendo as mesmas do passado. A troca, e foi por outro lado uma troca forgada, deu-se apenas quanto ao modo de apropriacdo de uma parte do produto. Com o decorrer do tempo, a gens ¢ o cla, isto é, as suas funcdes sociais, desapareceram ¢€0 mesmo aconteceu com a propriedade social dos pastos e dos bosques. Desapareceram os resquicios do comunismo primitivo e com eles o bem-estar do camponés, pois j4 nao havia lugar para apascentar o gado e havia a obrigacdo de entregar todo o excedente ao senhor feudal, O camponés foi subme- tido definitivamente @ terra, foi adscriptus para que nao pudesse fu- gir, € mesmo os que haviam permanecido livres foram economica- mente obrigados a vincular-se “voluntariamente” da mesma maneira. O niicleo econdmico primério era ainda a familia, a fazenda domés- tica e a forma fundamental de apropriagio do produto adicional da familia foi a renda natural da terra. “Aquilo que necessariamente distingue os tipos econédmicos de sociedade, uns dos outros, por exemplo, a sociedade escravagista da sociedade do trabalho assala- riado, € a forma sob a qual este trabalho excedente € retirado do produtor imediato, do operdrio” 2? As novas “relagdes sociais” j4 encontram-se bastante préximas da escravidao da terra. O senhor feudal, interessado na quantidade do tributo (que geralmente era indeterminado), criou severas medidas para impedir que os seus camponeses cagassem ou pescassem, que destilassem flcool ete., e fez de todas estas atividades um privilégio somente seu. Sabemos que, na antiga Roma, a grande propriedade adquiriu rapidamente a forma de latifiindio escravagista, enquanto na Europa medieval tomou a forma de economia servil. Porém, que significa isto? Somente que a exploragao do homem pelo homem teye conseqiiéncias ainda mais desastrosas na economia. Tudo prova que Os camponeses comegaram, por um lado, a cair em condigdes de extrema miséria e, por outro lado, a revoltar-se. A crescente espoliagdo dos pastos e dos bosques comuns prejudicou gravemente a pecudria por parte dos camponeses e tornou impossivel a fertili- zacgao dos campos, condenados a enfraquecerem- Além disso, as reyoltas de camponeses tornaram-se permanentes ou, como diz Bezold, um historiador moderado da reforma alema, “os camponeses se acha- 29. K. Marx. O Capital. cit. |. p. 164. 34 ram numa situagao de guerra social (Ieia-se civil) continua”. A gran- de revolugdo camponesa, prolongada durante alguns séculos (com as guerras camponesas dos séculos XIV-XVI), terminou por toda a parte (salvo na Suécia, onde venceram os camponeses) com a vitéria dos senhores e da nobreza. Deste modo consolidou-se uma situagao de completa servidio. A forma de exploragdo, no entanto, mudou muito pouco: o iinico elemento novo foi o do aparecimento de um administrador (Meier, villacus, bailif) que geralmente provinha dos escravos da terra, O produtor direto ficou reduzido a coisa, a um mero pertence da terra. Esta foi a fragédia da redugéo do homem 4 escravidao da terra. Parece que o homem havia concluido, desde hé muito, o pro- cesso primitivo de diferenciagio ou separacéo da natureza*? no comunismo primitivo, O resultado da sua “pecaminosa queda” na propriedade privada da terra foi o ter assumido 0 dominio da terra, embora sO uma parte do género humano fosse livre: a classe domi- nante dos proprictérios da terra. Surgiram trés tipos de relagdes sociais: telagdes de producdo entre os camponeses, relacoes de apro- priagao e de autoridade entre estes € os proprietarios e relagSes dos proprietarios entre si. No entanto, tratava-se apenas de um estdgio de iransigao. O tra- balho do escravo e do servo da terra era, de per si, pouco produtivo e, por outro lado, como ja se viu, 0 camponés, privado dos pastos e dos bosques, nao pode dedicar-se A criagéo de gado, que passou para as maos do senhor feudal (para alguns o termo deriva de fiu, animal, e senhor feudal >" significaria proprietdrio de gado), Assim, o senhor feudal tornou-se proprietario do seu gado ¢ dos seus pastos: a primeira forma de produgao em larga escala foi, portanto, a criagao mais ou menos ampla de gado e, deste modo, apareceu uma nova forma de renda: a corvéia (barscina) ** ou renda por trabalho. Os camponeses-servos realizavam um trabalho “adicional” na terra do “senhor feudal” ou “boiardo” (“proprietario do gado”) e o trabalho “necessério” na sua propria terra. Essa exploragao violenta levada ao maximo determinou continues levantes ¢ revolucdes. 30, “O mais significative (Das Bedeutungsvolle) na criacao dos animais e dos homens & a separagdo (diferenciagao) do individuo (des Einzelnen) da vinculagao com o universo (Universum) material na@o vivente como individuo semovente”. (Ratzenhofer, Die soziologische Erkenntniss, 1898). 31. "O estabulo do gado (folwark, Meierei) 6 0 unico meio de pro- ducdo normal do dono da fazenda” (K. Lamprechi, Deutsche Geschichte, Berlim, 1904, II). 32. Corvéla: Trabalho gratuito que os servos prestavam ao senhor feudal durante um certo nimero de dias. (N. T.). 35 Deste modo, consumou-se a segunda fase de desenvolvimento do modo de apropriagéo: a propriedade feudal da terra como base de toda a sociedade feudal. Paralelamente a este processo foi desenvolyido o processo de troca: no comego, era troca dos excedentes do produto natural ¢ depois eram trocas de mercadorias por dinheiro (primeira apenas em parte e depois totalmente), ¢ isto se tornou uma regra geral. Esta tro- ca, 0 surgimento do dinheiro e em seguida o aparecimento do capital comercial, destruiu as bases da economia camponesa e do feudalismo. As cidades comegaram a exercer uma influéncia completamente nova. Desenvolve-se uma ampla divisio do trabalho entre a cidade e o campo. A cidade atrai a si toda a indtistria de transformacio do campo, mas, uma vez mais, prende os camponeses fugitivos, que justamente procuravam ¢ encontravam a liberdade nas cidades, as corporagées de artesiios e outras e, posteriormente, ’s manufaturas, conforme um esquema que vem lembrar a serviddo da terra. Mas © desenyolvimento da economia monetéria no se detém e dele resultam os maiores levantes da histéria: os conhecidos pelo nome de revolugao burguesa. O resultado destas mudangas foi uma sociedade nova, a chamada sociedade burguesa, na qual todas as relacdes se fundam no livre contrato entre pessoas livres (proprietétios de terra e de outros meios de produgio) e produtores (pessoalmente livres mas sem terra ¢ sem meios de produg&o) reduzidos a trabathadores assalariados, A propriedade feudal transforma-se em propriedade capitalista, enquanto a renda em trabalho ou em espécie transforma-se em renda em dinheiro. O possuidor do capital adquire um lucro, quer dizer, uma renda adicional, que 0 proprietirio da tetra nao consegue auferir. E toda a enorme massa de produtores vé-se reduzida, como antes, a receber o produto do trabalho necessirio, mas agora apenas na forma de dinheiro. O produtor converteu-se num trabalhador assalariado. Isto nao Ihe da a liberdade: formou-se uma nova classe livre de capitalistas, mas o trabalhador caiu noyamente na manufa- tura, sob 0 dominio do instrumento de produgao e¢, posteriormente, na fabrica, sob o dominio da maquina. Se antes era “possuido” pela terra e pelo proprietdério da terra, agora converteu-se num “stidito” da fabrica e da classe dos capitalistas, personificagao do capital. Este € 0 terceiro e ailtimo estégio do desenvolvimento da pro- priedade privada: a propriedade capitalista nfo sé da terra, mas também de todos os meios de produgio. Notemos, primeiramente, que no primeiro e no segundo estdgio do desenvolvimento da propriedade privada & patente a predominan- cia das relagdes de producgdo e das relagdes de troca natural, por 36 assim dizer. O problema torna-se, todavia, muito mais complexo no terceiro estégio, quando a troca de mercadorias toma exclusivamente a forma de uma troca social de coisas ¢ quando comega a dominar no mercado uma mereadoria “cuja tinica qualidade é a quantidade”: o dinheiro (Simmel). Contudo, nas relagdes de trabalho, a ilusio sobrepuja a realidade. Alids, os primeiros sinais deste dominio da ilusio sobre a realidade j4 surgem na época da servidio da terra. Como todos sabem, Roma vivia do trabalho dos seus escravos, isto é, de uma forma explicita ¢ evidente de exploracgaio desumana dos mesmos. Todavia, a propria dependéncia da servidéo da terra lhes proporcionava a ficcao e ilusdo, baseadas em suas tradigdes de que eram independentes, como camponeses-servos, por causa de sua indis- solivel vinculagéo a terra.$ Quando a dissociagdo se consumou, apareceu, em seu lugar, uma forma de exploracéo nova e mais sutil. essa € a caracteristica geral da época do capitalismo, Uma vida que se torna cada dia mais complexa leva necessariamente & revolugao burguesa: tal era, por exemplo, a quintesséncia do marxismo legal, do marxismo dos idedlogos puramente burgueses, que figurayam entre as listas dos primeiros marxistas (veja-se, por exemplo, Struve), E, notadamente, para eles, a superestrutura politica e juridica exercia um papel essencial: a seu modo de ver, nao podia adaptar-se a essa vida cada yez mais complicada e que, desde ha muito, j4 os havia desiludido. E indubitavel que todo o sistema dos bancos e de outras instituigées comerciais, com a sua estrutura politica e juridica (normas sobre © comércio e sobre os instrumentos de crédito etc., relagdes diplo- maticas ¢ consulares ete.) formam, realmente, uma excrescéncia que esconde de vez as relagdes mais naturais e mais simples. A Reyolugao de Outubro introduziu nestas relagdes certas mu- dangas radicais. Primeiro, a sua forca real destruiu o poder da burguesia ¢ 0 seu modo de apropriacao, ao abolir a propriedade privada dos meios de producéo (ou, mais exatamente, dos meios de produgio alheia). Mas, ainda que esta obra desiruidora constitua por si mesma um longo processo, 0 processo posterior de organizagao de uma nova produgao (sem falar das condigdes de rufnas do pés- -guerra) é uma obra extremamente lenta, Abre-se uma época de (ransigfo durante a qual, tendo em conta o material social existente, deyemos aplicar conscientemente as leis de desenvolvimento da so- ciedade capitalista, leis que compreendemos ou que estamos quase compreendendo, para mudar as nossas relagGes sociai Esta obra 33. Cf. as conhecidas palavras do camponés-servo da terra: “Somos vossos mas a terra é nossa’. 37 deve orientar-se para uma sintese do comunismo primitivo e de todo 0 desenvolvimento posterior da propriedade privada, isto é, para o socialismo cientifico. Naturalmente, esta época de transigao é tam- bém uma época de predominio de uma classe, classe esta constituida pela grande maioria até agora escravizada, Esta classe modifica todas as relacgGes sociais e torna-as compreensiveis e evidentes para todo: introduz, em vez da artificial complexidade anterior, uma simpliji- cagao natural. Todavia, esta época pelo fato de se caracterizar por uma forma de Estado especifica, o ordenamento soviético, mostra ser ja um ordenamento social préprio, caracteristico e que tem um direito proletdrio, soviético, especifico. A situacao na Russia é particularmente complexa, pois a grande maioria da populagao nao pertence sociedade burguesa pura, pro- letariado ¢ capitalista, mas aos camponeses que apenas conhecem a dependéncia do capital em escassa medida>! Hoje em dia, estamos dando precisamente um passo atrés ou, mais exatamente, estamos corrigindo a nossa linha, demasiado avangada em relagio a uma situagao caracterizada pela existéncia de uma frente vinda de fora que nao tem solugao de continuidade. Na verdade, ainda que se tenha eliminado a propriedade priyada dos meios de produgio, esta- mos, todavia, muito longe de ter harmonizado completamente a nova produgao, e mais atrasados estamos ainda quanto ao trabalho de harmonizagao das relagdes de producgdo. De fato, reintroduzimos ou, mais exatamente, legalizamos a troca privada de mercadorias, e, simultaneamente, por um longo tempo, teremos de nos enfrentar (nao apenas nas relagdes externas, mas também nas internas) com uma complicagao de’ vida que a cada vez nos aguarda. Nao obstante, a nossa tarefa consiste em evilar as excrescéncias artificiais e nao essenciais da nossa sociedade, pois a nossa forga deve consistir na clareza e na evidéncia, nao na hipocrisia e na falta de sinceridade, proprias das sociedades burguesas. Vencemos a classe dos proprieté- trios da terra ¢ a classe da grande burguesia e a nossa tarefa € a de n&o compartilhar o poder, sob qualquer nova forma, nem com uma nem com outra. Este & 0 tiltimo estégio da propriedade privada dos meios de producao: o estagio da sua aboli¢@o, ou melhor, da sua extirpacao. A duragao desta ultima fase depende do grau de desenvolvimento 34. No livro terceiro de O Capital, Marx define o capitalismo na agricultura como subordinagéo da terra ao capital. Apés a nacionalizagio, esta subordinagdo nao sé continua, mas também se complica (e, todavia, simplifica-se a0 mesmo tempo) com a entrada do camponés no quadro do plano econémico geral do Estado. 38 do ¢apitalismo ¢ é inyersamente proporcional ao nivel alcangado por este. Nesta formulagao tomamos 0 contetido concreta € histori- camente mutavel das relacdes sociais que constituem o direito assim como nés o entendemos. A ciéncia burguesa, com as suas abstragdes © generalizagdes, ndo nos oferece nada de parecido. Até um estu- dioso eminentemente burgués, como Wundt, rejeita uma ciéncia que “unifica todas as relagdes reciprocas dos homens, sem excegio algu- ma, em circulos matematicos, sem discriminar as que derivam da produgao das que derivam do consumo, ou, simplesmente, dos jogos de azar etc. Em Simmel encontramos esquemas vazios (reine) que nfo nos proporcionam a definiggo de um determinado resultado, nem conclusées sobre a realidade, em patente contraste com a geome- tria, 4 qual recorre como “modelo” (Wundt, Die Gesellschaft, 1, 37). Era urgente fixar uma definigao da sociedade ¢ das relagdes sociais que estivesse de acordo com a nossa definigao do direito e mostrar o contetido histérico concreto destas relagdes sociais. Mais adiante vamos mostrar como estas relagdes sociais assumem a forma de relacdes ¢ de instituicdes jurfdicas. Aqui, contudo, quisera salien- tar apenas que as relagdes de produgio e de troca sio as relagdes primarias, enquanto as relagdes de apropriacio, isto é, as relagdes juridicas para nao falar das relag6es morais, que de momento nao abordamos, sio unicamente relagdes derivadas; isto nao impede, por outro lado, que desempenhem um papel importante em determinadas condigdes e em determinados periodos histéricos. Para o jurista burgués, estes raciocinios séo incompreensiyeis, pois, em toda parte vé, por um lado, fantasmas de todas as espécies e, por outro, generalizagées abstratas. Ao falar de uma instituigéo juridica imagina um tipo eterno ¢ jmutével de fenédmenos, enquanto nés a consideramos simplesmente como uma forma historicamente mutdével das relagGes sociais. CAPITULO III INTERESSE DE CLASSE E DIREITO Ja se salientou que a caracteristica fundamental do sistema de relagdes sociais, compreendido no conceito de “direito”, é a de que corresponde ao interesse da classe dominante; isso constitui exata- mente a razao essencial da tutela preordenada pelo poder organizado da referida classe. Na yida quotidiana entendemos por interesse “o Util ou o vantajoso para um individuo ou grupo de individuos, em contraposigéo com o yantajoso ou util para outros individuos”, ou ent&o, a medida da participagao de alguém em alguma coisa. Mas, o que é que entendemos por “interesse de classe”? Qual é © significado da prépria palavra “classe”? Marx coloca, como fundamento da sua concepgio da histéria, a luta de classes, que surge das contradigées de classe. Mas, 0 prd- prio Marx, numa carta a Weydemeyer,®> escreve: “Pelo que me toca, nao me cabe o mérito de ter descoberto a existéncia das classes na sociedade moderna nem a luta entre clas. Muito antes de mim, alguns historiadores burgueses j4 tinham exposto a evolugio histérica desta luta de classes e alguns economistas burgueses a anatomia destas. © que eu trouxe de novo foi demonstrar que: a) a existéncia das classes se encontra sempre ligada a determinadas fases histéricas de desenvolvimento da producdo; b) a luta de classes conduz necessaria- mente @ ditadura do proletariado; c) esta mesma ditadura nao é em si mais do que a transicao para a aboligao de todas as classes ¢ para uma sociedade sem classes”** Em outras palavras: Marx criou, pela 35. Marx a Weydemeyer, 5 de margo de 1852 (em MarxEngels, Obras Escofhidas, Moscou, Ed. Progresso, 1966, Il, p. 456). 36. Cunow e toda a social-democracia alema tentam precisamente deixar de lado este aspecto revoluciondrio da luta de classes, pretendendo, contudo, seguir Marx. 40 primeira vez, uma sociologia revoluciondria, uma ciéncia da revolugio social; € por isso que Engels ¢ depois Bebel ¢ outros social-democratas falaram de “socialismo cientifico”. Nesta mesma carta a Weydemeyer, Marx diz: “Na primeira pagina do seu Tratado, Ricardo escreve que “o produto da terra, tudo o que se obtém da sua superficie, gragas ao emprego combinado de trabalho, maquinas ¢ capital, é dividido entre as trés partes da coletividade, isto é, o proprietdrio do terreno, 0 proprietdrio dos abastecimentos ou capitais necessdrios para o seu cultivo, e os traba- Ihadores que o cultivam com a sua atividade. O préprio Marx colocou no fim do seu Tratado sobre o capital um exame detalhado desta idéia, mas a obra ficou inacabada. “O que é uma classe?”, interroga-se Marx, e responde: “(...) a resposta resulta imediatamen- te daquela que dermos a esta outra pergunta: o que é que transforma os trabalhadores assalariados, os capitalistas e os possuidores de terra em constituigdes das trés grandes classes sociais? A primeira vista, € a identidade de suas rendas e fontes de rendas. Trata-se de trés grandes grupos sociais, cujos componentes, os individuos que os formam, vivem respectivamente de um saldrio, do lucro ou da renda da terra, isto €, da exploragéo da sua forga de trabalho, do seu capital ou da sua propriedade agréria. E certo que, sob este aspecto, também os médicos e os seus funciondrios, por exemplo, formariam duas classes, pois pertencem a dois grupos sociais diferentes, cujos componentes vivem de rendas proyindas da mesma fonte, E 0 mesmo se poderia dizer da infinita variedade de interesses e posigdes em que a divisao do trabalho social separa tanto os operdrios como os capitalistas © os possuidores de terra, dentro destes tiltimos, por exemplo, em proprietdrios de vinhedos, proprietérios de terras de cultivo, proprietdrios de bosques, proprietdrios de minas, de pes- carias” 37 (aqui se interrompe o manuscrito do livro terceiro de O Capital). No problema do significado e do desenyolvimento das classes e da luta das classes surgem claramente duas tendéncias: a tendéncia reyoluciondria criada e representada por Marx ¢ Engels e a tendéncia contra-reyolucionaria que, em lugar da revolugao social e da ditadura do proletariado, prega toda a espécie de conciliacdo das lutas de classe, sem que haja solugio de continuidade entre os expoentes puramente burgueses e os sociais-traidores mais recentes, que falam de luta de classes mas que, na verdade, buscam a conciliagao, o compromisso, e coisas & moda da “democracia” burguesa. 37. K. Marx, O Capital, Il, cap. 52, pp. 817-818. AL Ja o americano Carey, na sua polémica com Ricardo, procurou provar que “em vez de serem condigSes de luta e de antagonismo, as condicdes econémicas de classe, renda (propriedade agraria), be- neffcio (capital) e saldrio (trabalho assalariado), devem ser condigdes de unificagdo (de associagio) e de harmonia (Harmonie), Apés a Revolucado de 1848, esta linha inclui toda a burguesia por completo, e depois da Revolugdo de 1917, embora ja também em 1914, quase todos os dirigentes social-democratas do mundo. Contudo, exatamente os acontecimentos de 1917 e de 1914 nada mais fizeram que revelar aquilo que estava incubado na social-democracia e aquilo que, quase sem excecao, viciava toda a literatura marxista; o revolucionarismo verbal alimeniado internamente pelo oportunismo. Anteriormente, em 1948, mesmo os escritores burgueses critica- vam, a mitido e com razao, a sociedade contemporfnea. Para exem- plificar, citarei apenas um deles, Lorenz von Stein, grande jurista, cuja primeira obra, Sozialismus und Kommunismus, apareceu em 1842. Stein advertiu claramente sobre a importfncia que a tutela da propriedade pessoal tem para com a sociedade burguesa. “Em relaco & entidade e ao tipo da propriedade temos duas categorias: a classe social e a forma social (“a ordem social”), A formagio das classes € um processo mediante o qual, gracas 2 distribuigao da propriedade (literalmente da posse: des Besitzes) se produz uma dis- tribuicao dos direitos morais (espirituais), dos bens ¢ das fungdes dos individuos particulares da sociedade”. Em relagfo & entidade da propriedade, Stein faz uma diviséo de toda a sociedade em trés clas- ses: a classe superior, a classe média e a classe inferior (que é a classe dos que nada possuem). Entre estas trés classes existe, por um lado, uma luta continua para aumentar a propriedade e, por outro, a tendéncia de toda a classe social dominante para subordinar a si 0 poder estatal que conquistou; para isto pende, também, a classe dos que nada tém, mediante a revyolugao social. Relacionando as vanta- gens espirituais (0 desenvolvimento intelectual) com as demais van- tagens que a propriedade privada proporciona, Stein define a classe com as seguintes palayras: “Quando estas classes, definidas por ca- racteristicas econémicas, atingem a consciéncia da sua posigao social, © resultado é a idéia de constituir uma mesma classe’, isto é, “um conjunto de individuos que tém uma posigao social homogénea porque sio economicamente homogéneos”. Nas suas obras posteriores, Stein insiste, sempre mais, na idéia de que “a salvacdo esté na conciliagéo destes interesses de classe, para 0 que a classe média (hoje se diria a ‘democracia’) tem um valor decisivo” (Das Ziinglein an der Waage). Nao nos detendo mais nos autores burgueses que tratam das classes, passamos diretamente 4 tentativa de Kautsky para completar 42 a definigdo de classe de Marx. Em certa ocasiao, Kautsky, no n.° 31 de 1902 da Neue Zeit, escreveu: ““O que faz cada uma das classes crescer ndo € apenas a comunidade da fonte de renda mas também a comunidade de interesses que dela deriva e o contraste comum que as opée as demais classes, cada uma das quais trata de limitar a fonte de rendimento da outra para enriquecer (reichlicher, fliessen lassen) a sua propria fonte de rendimento”. Mas Kautsky reconhece ai que o mesmo conflito de interesses existe também entre as ma- nobras internas destas classes, entre os diversos segmentos da indiis- tria, do comércio etc. Deixando de lado a aridez desta definic&o, claramente se ve 0 sentido que ela oculta. Quem examinar tudo o que Marx escreveu sobre a luta de classes, que chega, inclusive, a identificar no livro primeiro de O Capital essa luta com a guerra civil>* diré que Marx nao pode reduzir as contradigoes de classe & aspiragio que tem uma classe de apoderar-se de uma parte da renda da outra, pois para Marx © essencial reside na aboli¢ao completa da classe hostil, e nao pode limitar-se & idéia da restrigao da fonte do rendimento da classe hostil, uma vez que tenta destruf-la completamente. Ha, porventura, melhor prova do que aquela que promove exatamente a luta de classe dos capitalistas de todo o mundo para reduzir o saldrio me- diante a mais ampla redugao dos precos de consumo que tenta alcancar @ custa da reducao do salério? Tal é a sua luta pacifica ou legal pela distribuigéo ¢ pela amplitude do rendimento, ¢ que durante a qual atira na miséria milhoes de desempregados, conde- nando-os & ruina, porque o sew direito Ihes permite. Hoje, a resposta dos operdrios € a greve, uma espécie de greve da fome, que, neste caso, se torna indutil. Para a classe operdria o tinico meio seguro de luta continua a ser uma luta radical de classe, isto é, revoluciond- ria; por outras palavras, a guerra civil2? Esta é hoje ilegal, ou, na melhor das hipdteses, semilegal, mas a vitéria da revolugio legaliza-a. Tal € a critica que hoje a revolugao dirige contra a tentativa oportu- nista de definigao do conceito de classe, encabecada por Kautsky. Porém, ja entao (em 1906) Finn-Enotaeyskij, no seu artigo “Classe e partido”,”° criticou decididamente esta definigao, sa- lientando que a mesma apropriagao depende da existéncia das clas- 28. K. Marx, O Capital, cit., |, p. 238. V. também. p. 235. 38. E se alguns sociais-traideres pragam hoje uma profunda diferenca entre a luta de classes e 2 guerra civil, fazem-no no sé porque nao conhecem Marx, mas também porque nao querem conhecé-lo @, pelo con- trério, servem aos interesses da classe dos capitalistas. 40. Instrucdo n° 12, dezembro de 1906, sec. I, pp. 10-39. 43 ses e dos interesses de classe ¢ nao o contrario, ¢ que o antagonismo, © conflito de interesses, advém para Marx das condigdes da produgao e nao das condicdes da distribui Para confirmar sua maneira de ver apresentou uma série de citagdes de Marx (O Capital, III, 2; Teorias da mais-valia, O 18 Brumdrio) nas quais se yé claramente que para Marx “a dissociagéo da sociedade provém de uma determi- nada forma material de producio”, isto é, de uma forma de producgio social dos meios materiais de existéncia do homem. “A distribuicao dos produtos est determinada pela distribuigao dos elementos da producio”, e “estas relagdes de distribuig&o (dos elementos da pro- dugao) ao contrério, constituem a base de funcdes sociais especificas que, com os elementos das relagdes de produgdo, se destinam a ser os seus agentes especificos (diferentemente dos produtores imediatos). Atribuem as préprias condigdes de produgio e aos representantes destas condigdes o movimento da producao completa e integralmente”. “Quanto & renda da terra, poder-se-ia pensar que é uma simples forma da distribuigao, porque a propriedade imobilidria como tal nao exerce qualquer fun¢cao ou, pelo menos, nao exerce qualquer fungZo normal no préprio processo da produgao (...). O latifundid- rio, contudo, desempenha uma funcfo no processo de produgao capi- talista, nao somente por exercer uma pressio sobre 0 capital e ainda porque a grande propriedade € condigao prévia da produgdo capi- talista; mas, sobretudo, porque é a personificagao de uma das mais essenciais condigoes da produgao (...) As forgas de trabalho da pro- dugo social tém aqui uma forma especifica de desenvolvimento: como forgas independentes do capital opdem-se ao operdrio e, dessa maneira, entram em direta contradigzo com o seu progresso”.‘! “Sobre as diversas formas de propriedade, sobre as condigdes sociais de existéncia ergue-se toda uma superestrutura de sentimentos, ilusGes, modos de pensar e concepgoes de vida diferentes e modeladas de um modo todo especial. A classe, na sua totalidade, cria-os e forma-os sobre a base das suas condigdes materiais e das relagdes sociais correspondentes”."* De tudo isto Finn-Enotaevskij conclui desta maneira: “As classes estio, pois, determinadas pela distribuigdo dos elementos da produgao, pelo antagonismo das classes, pela contradigéo dos interesses deriva- dos das condigdes da produgao e nao pelas condigdes da distribuigao. Qual € 0 fundamento que transforma os operdrios, os capitalistas e 41. Cf. K. Marx, O Capital, Ill, 7, cap. 51 (ed. cit,, pp. 811-815), 42. K. Marx, O 18 Brumdrio de Luis Bonaparte, trad. port., S40 Paulo, Editora Académica, 44 os proprietarios em trés classes sociais? O sew papel, as suas relacdes no processo produtivo”. Isto é certo, mas esta defini¢&o nfo destaca suficientemente o ponto de vista dialético, revoluciondrio, de Marx, que ele préprio indica na carta anteriormente citada e que jd se deduz claramente das suas primeiras obras. Em 1847, numa polémica com Heinzen (Nachlass, y. Il, p. 467 € ss.) censurando-o por negar as classes, escrevia: “E bem possivel” que os individuos particulares nao estejam “sempre” determinados pela classe de que fazem parte, mas a exis- téncia das classes tem suas bases nas condigdes econdmicas indepen- dentes da sua vontade, e, em razao destas condigdes, acham-se entre si em relagdes de claro antagonismo (...). Uma vez que a proprie- dade privada, por exemplo, nao é uma simples relacdo e ainda menos um conceito abstrato ou um principio, mas consiste antes na totali- dade das relagdes burguesas de produgio, falamos da propriedade privada burguesa como hoje existe, e nfo da propriedade privada subordinada e quase em extingao, e, uma vez que todas estas relagdes burguesas de produgio constituem os interesses de classe (...), obviamente a mudanga, ou diretamente a aboligaéo destas relacGes, s6 pode ser conseqiiéncia de uma mudanga das prdprias classes e das suas relagdes reciprocas. E a mudanca das relagGes entre as classes € um movimento histérico, um produto da atividade da so- ciedade em seu conjunto; resumindo, 0 produto de um “movimento histérico” determinado, Proletariado e riqueza sio termos antitéticos. Como tais, formam um todo. Sao formas do mundo da propriedade privada (...). A propriedade privada,"* em si mesma, como riqueza, € obrigada a se manter e, desse modo, ao seu termo antitético, o proletariado. Este ¢ o lado positivo da antitese: a propriedade pri- vada, que se auto-realiza. Em contraposicéo, 0 proletariado, como tal, € obrigado a negar-se a si mesmo e, com isso, ao termo que © condiciona ¢ o converte em proletariado, Este ¢ 0 lado negativo da antitese (...). Se o proletariado vence, nem por isso se torna o fim absoluto da sociedade: unicamente vence superando-se a si préprio ¢ ao seu oposto”. A mesma idéia ¢ desenvolvida por Marx na Miséria da Filosofia, como segue: “A condigéo da libertagio da classe trabalhadora é abolir todas as classes, da mesma forma que a condigao da libertagao do tercciro estado, da ordem burguesa, foi a abolicao de todos os estados e de todas as ordens”."' 43. K. Marx e@ F. Engels, A Sagrada Familia, trad. port., So Paulo, Ed. Académica. 44. K. Marx, Miséria da Filosofia, trad. port. S. Paulo, Ed. Academica. 45 Portanto, Marx considera a luta da classe dos capitalistas contra a classe dos proprietdrios agrarios, isto é, contra o Estado feudal, como uma luta de vida ou de morte. Para o capital industrial (que inclui também o empresdrio capitalista) “a aboligdo da propriedade privada da terra € 0 problema mais importante da apropriagio dentro da burguesia industrial inglesa, e a luta contra as leis do trigo nio significa outra coisa”.!* Esta luta terminou com um compromisso,"* por causa da noya luta que se iniciava entre a classe dos capitalistas e€ o proletariado. E mais uma vez esta luta se caracterizou como uma luta ainda mais dura, pela morte e nfo pela vida, uma yez que esta é “a batalha final e decisiva”. Assim compreendido o desenvolvimento da sociedade burguesa, torna-se mais exata a qualificagaéo desta sociedade como sociedade em guerra civil permanente (ininterrupta). E ¢ exatamente este qua- dro que Marx tem constantemente em vista, inclusive na sua obra mais objetiva, O Capital, quando faz uso da expresséo “guerra civil” para caracterizar a luta pela jornada de trabalho de 10 horas e quali- fica como “rebelido aberta’ a insubordinagaéo em massa da classe dos patrdes perante a lei."’ Fica patente, aqui, que a esséncia do problema é assegurar o papel de cada uma das classes na producao, isto €, no modo de apropriagdo, ou, em outras palavras, na proprie- dade privada, pois a Iuta nao se refere a mudangas na propriedade privada como meio de apropriagdo ou aos limites da propriedade privada, mas @ sua extingdo."® “Ser ou nao ser”. Uma étima formulagéo do conceito revolucionario de classe nos deu Lénin, jé em 1919, no optisculo Uma grande iniciativa: “As clas- ses sio grandes grupos de pessoas, que se diferenciam uns dos outros pelo lugar que ocupam num sistema de produg@o social historica- mente determinado, pelas relagdes com os meios de produgao (rela- gdes que, em grande parte, sao estabelecidas e determinadas por leis), 45. K. Marx e F. Engels. Obras Escofhidas, 2. ed.. Moscou, 1955. v. IV, p. 302. 46. “A renda, segundo Ricardo, 6 a propriedade dos possuidores de terra no estdgio burgués. quer dizer, a propriedade feudal que experimentou as condigdes da produgdo burguesa” (K. Marx, Miséria da Filosofia, trad. port., Ed. Académica, cap. II). 47. K. Marx, O Capital, cit.. |, pp. 226 e 228. 48. “O problema da propriedade, considerando-se o desenvolvimento alcangado pela industria, fot sempre a questdo vital desta ou daquela classe. Nos séculos XVII e XVIII, quando se tratava de abolir as relacées feudais de propriedade, o problema da propriedade foi questao vital para a burguesia. No século XIX, quando se procura abolir as relacées burguesas de proprie- dade, o problema da propriedade torna-se uma questio vital para a classe trabalhadora. (K. Marx, F. Engels, Obras Escolhidas, cit., vol. IV, p. 302). 46 pela sua fungdo na organizagao social do trabalho c, conseqiiente- mente, pelo modo e pela proporgio em que obtém a parte da riqueza social de que dispdem. As classes sao grupos humanos, sendo que um deles pode apropriar-se do trabalho do outro em razo dos dife- rentes lugares que um e outro ocupam num determinado regime de economia social”.“? Se depois de tudo isto falamos de interesse de classe, certamente nao nos referimos 4 simples soma dos interesses individuais; este interesse é antes um elemento que impde a sua marca A totalidade da luta de uma certa classe. E o foco onde se reflete o interesse vital de uma certa classe. Este interesse existe objetivamente, inde- pendente da vontade dos préprios membros da classe, e o grau de consciéncia que uma classe tem do seu interesse € um fenémeno puramente histérico. “Sobre as diversas formas de propriedade, sobre as condigées sociais de existéncia, levanta-se toda uma superestrutura de sentimentos, ilusGes, modos de pensar e concepg6es de vida dife- rentes ¢ formados de um modo especial. A classe inteira cria-os e modela-os na base das suas condigdes materiais e das corresponden- tes relagdes sociais’ 7° Este interesse, consciente ou instintivo, ¢ téo forte que lhering (o qual, no entanto, nao adotou abertamente um ponto de vista de classe) péde dizer, a respeito da interpretacdo judicial do direito, que “também a légica se subordina ao interesse” (Geist des Rémischen Rechts, cit. II, p. 465). Porém, esta consciéncia aumenta aos poucos: mesmo os espiritos mais perspicazes da classe dominante param horrorizados perante o fantasma da destruig&o (¢ 0 que se thes pa- rece) ou buscam a salvagio nos compromissos, enquanto 0 povo acredita cegamente que o seu dominio é eterno. Engels tem, pois, toda a razio quando, no seu Anti-Diihring, escreve:*' “Quando, por acaso, se chega a conhecer a relagio de dependéncia intima das formas de existéncia sociais e politicas de uma época, é, geralmente, porque essas formas estado j4 em parte sobrevivendo a si préprias ¢ caminham assim para a sua rufna’’.?? Quando mencionamos o interesse de classe, referimo-nos, pois, a algo distinto daquilo em que pensamos quando falamos dos inte- resses dos individuos ou dessas coletividades jurfdicas de que falam 49. V. I. Lénin, Obras escolhidas, Buenos Aires, Ed. Cartago, 1965, V, p. 485. (Grifo do autor). 50. K, Marx, O 18 Brumério, trad. port., Ed. Académica. 31. F. Engels, Anti-Déhring, trad. port., Séo Paulo, Ed. Académica. 52. Hegel dissera que “a filosofia tarda em ensinar-nos como deveria ser o mundo. Quando a reflexao o revela 6 sinal de que uma determinada forma histérica ja terminou”. ay Ihering € outros. Para melhor esclarecimento, consideremos resumi- damente os estigios de desenvolvimento da propriedade privada que delineamos no capitulo segundo, procurando definir em cada uma destas fases o interesse que prevalece na classe dominante. Em Roma, a primeira luta de classes se deu entre os patricios (grupo dominante, primeiro, e depois classe) e os plebeus, ¢ objetiva © poder, como meio de se apoderar do ager publicus. Os plebeus Ppagam o tributo pela sua terra, enquanto os patricios nada pagam pelo ager publicus, que monopolizaram para si, A tuta pelo poder leva & igualdade da plebe nos direitos civis e politicos. © prosseguimento da luta de classes concentra-se na luta do capital comercial contra os camponeses: “A luta de classes no mundo antigo (...) toma de inicio a forma de uma luta entre credores ¢ devedores, terminando (em Roma) com a escravidao dos deyedores plebeus”.°* Capital usurdrio e capital comercial sao os primeiros tudimentos do capitalismo em geral. Esta luta de classes ¢ 0 resul- tado direto de um comeco de troca de um determinado surplus, isto €, de trabalho excedente, Observa-se 0 mesmo por toda a parte, desde 0 momento em que os camponeses foram reduzidos & servidio completa, como, por exemplo, se deu na Rtissia com a instituiggo de Zakupnicestvo.*' Descobrimos aqui, entre outras coisas, meios originalissimos de luta de classes como, por exemplo, a abolicao ou anistia das dividas privadas, proposta no projeto de Catilina (0 que Ihe acarretou o édio dos patricios), ou entao toda uma série de leis que cancelam uma parte dos juros acumulados e que limitam a sua quantidade para nao falar das leis contra a usura, em Roma, na Grécia (a lei de Sdlon) etc. (Cf. a lei de Monomaco na Russia; Pokroyskij, Histéria da Russia, cit. Il, p. 92 e ss.). Esta luta termina com a formagdo de uma classe de grandes proprietarios possuidores de terra, por um lado, e de escrayos ¢ servos da gleba, por outro. Mas se, na sociedade burguesa, a classe dos exploradores reproduz constantemente a classe do proletariado, em contrapartida, no mundo antigo, “o latiftindio destruiu Roma”: © trabalho escravizado mostrou-se improdutiyo e, o que é mais im- portante, o camponés livre destruiu o poder exterior de defesa. Roma ficou exposta aos ataques armados ¢ caiu porque as cidades nao conseguiram formar uma forga nova, capaz de ocupar o lugar da classe dos grandes proprietérios de escravos. 53. K. Marx, O Capital, cit, |, p. 93. 54. Forma de servidéo feudal descrita em A Verdade Russa: nela os camponeses obrigavam-se por um contrato a cultivar a terra do senhor, embora conservando a sua liberdade pessoal, recebendo os instrumentos de trabalho e uma compensacao, 48 Com a queda da classe escravagista, em Roma, surgiu uma nova classe camponesa; a ela se opunha uma nova forga: 0 senhor feudal (eclesidstico e leigo). Inicialmente, este agiu sob a forma de credor ou de conquistader (¢ o mesmo fez a Igreja como poder secular). Pelos fins da Idade Média, a terga parte da propriedade da terra encontrava-se na Europa nas méos da Igreja. A cobranga do tributo e a “posse” da terra nao estavam limita- das por qualquer norma. Era isto e nao o aniquilamento da classe explorada, que constituia 0 inferesse de classe dos exploradores du- rante este periodo. Continuamente, os camponeses rebeldes reagiram, procurando abater e destruir inclusive fisicamente os exploradores © os seus castelos, auténticas fortalezas do poder; esta luta terminou com a derrota total do camponés, com a sua redug&o ao estado de escravidao e com a transformagao gradual da renda em espécie em renda em trabalhos, isto é, em corvéia (barscina). A classe dos senhores feudais, vitoriosa perante a classe dos camponeses, caiu sob os golpes de um inimigo novo: a classe dos comerciantes capitalistas da cidade. “Na Idade Média, esta luta ter- mina com a derrota do devedor feudal que, perdendo a sua base econémica, perdia o seu poder politico”.** O capital converte-se em capital industrial, o que, porém, ptessupde, necessariamente, a exis- téncia de uma classe que possui somente a sua capacidade de tra- balho. O interesse da nova classe dos capitalistas industriais € a nacionalizagao da propriedade fundidria, isto é, a destruigio da classe dos proprietarios possuidores de terra; porém, simultaneamente, uma forca nova é constituida e organizada: o proletariado. A burguesia reconcilia-se com os proprietérios de terra e alia-se com eles contra © proletariado, cuja destruigao nao pode desejar, a0 passo que 0 interesse imediato do proletariado consiste na abolig@o de ambas as classes, a dos capitalistas ¢ a dos proprictdrios de terra.® Este répido resumo do desenvolvimento gradual das contra de classe e do carater da luta de classes desde a época do fim do comunismo primitivo, e¢ da passagem da sociedade ao estdgio de propriedade privada da terra e¢ do semicomunismo até & época da revolugio proletdria, mostra nao somente a transformacio histérica das classes e dos seus interesses, mas também 0 carater essencial- mente diverso que a luta apresenta em ambos os pélos. 55. K, Marx, O Capital, cit. 1, p. 91 56. “O proletariado executa a condenacdo que a propriedade privada inflige a si prépria a0 produzir o proletariado” (K, Marx, Engels, A Sagrada Familia, trad. port., Ed. Academica, S40 Paulo). 49 A classe dos exploradores nunca poderd desejar a destrui ou o exterminio da classe que explora.*” Se esquecesse esse princfpio, ela prépria pereceria juntamente com a classe explorada. Daf a adaptabilidade, a atitude conciliadora da classe dos opressores e até mesmo a sua inconsciente condescendéncia para com a classe dos explorados. Todo o processo leva, inevitavelmente, 4 ditadura do proletariado, mas o proletariado, como classe oprimida, nao pode deixar de querer o aniquilamento dos seus opressores.** Com esta vitéria do proletariado, como diz Marx, vai terminar a pré-histéria da humanidade. Semelhantemente, o carater da luta e dos seus métodos tem a sua origem nesta diferenca que mostra o interesse fundamental da classe. “Enquanto os pequeno-burgueses democraticos, depois de te- rem conseguido totalmente as reivindicagdes acima mencionadas, querem terminar a revolugéo o mais rapidamente possivel, os nossos interesses e os nossos esforgos consistem em fazer a revolugdo per- manente, até que seja afastado, em maior ou menor escala, o poderio das classes dominantes, até que o proletariado conquiste o poder do Estado (...). Para nds, nao se trata de reformar a propriedade privada, mas sim de aboli-la; nao se trata de encontrar paliativo para as lutas de classe, mas sim de abolir as classes; nao se trata de melhorar a sociedade existente, mas sim de estabelecer uma nova”’.>? No entanto, este mesmo cardter de luta define também 0 campo dos adversdrios nesta “ultima e decisiva batalha”: “Em todo 0 caso, © nosso tinico adversério, no dia da crise e no dia seguinte, sera a reacdo unida que se reagrupa em torno da democracia pura (...)". 'Vés, milhares de trabalhadores que pereceis, nao vos inquieteis ‘0. Podeis morrer tranqiiilamente. A vossa classe ndo ha de perecer Seré sempre suficientemente numerosa para que o capital possa diziméla sem que a aniquile”. (K. Marx, discurso sobre a livre troca). 58. Trata-se, como 6 claro, do seu aniquilamento como classe, Quanto aes individuos particulares, quanto, por exemplo, aos especialistas, mesmo apés a vitoria da revolucdo, sera necessdrio observar certa prudéncia 59. K. Marx-F. Engels, Obras Escolhidas, |, p. 96. 60. F. Engels, Cartas a Bebel (1889) em K. Marx-F. Engels. Obras Escolhidas, Moscou, 1948, p. 386. 50 CAPITULO IV © PODER ORGANIZADO DA CLASSE DOMINANTE E O DIREITO “Quando Rink perguntou aos nicoborianos quem era o seu chefe, eles, sorrindo, admirados, responderam perguntando-lhe por que acre- ditava que um homem podia ter autoridade sobre muitos’. Esta anedota, que Herbert Spencer atribui a um viajante, expressa mui claramente uma idéia que até hoje nao foi compreendida pelos estu- diosos burgueses, nem pelos seus seguidores socialistas. Mas, qual a razio por que nao a compreendem? Porque se acham demasiado enclausurados na ideologia juridica da burguesia; ou mais precisa- mente, na ideologia da sociedade classista em geral, para compreender © racionalismo ingénuo do selvagem que desconhece as divisoes de classe e, a0 mesmo tempo, o dominio classista de uma minoria de individuos, ou mesmo de um sé indiyfduo, sobre a grande maioria, tal como existe na ditadura da classe dos capitalistas, dos proprieté- tios de terra ou em semelhantes governos minoritérios. O dominio dos opressores sobre os oprimidos, dos possuidores sobre os que nada possuem, € t@o antigo como a existéncia das classes, ¢ criou-se um poder organizado para dominar a grande maioria, isto é, a classe dos oprimidos, dos nao-possuidores. Na definig&o do direito feita por nés, indicamos como uma das suas caracteristicas o fato de ser tutelado pela classe, mediante um poder organizado. Com esta expresso, querfamos fazer referéncia, antes de tudo, ao Estado, embora considerdssemos necesséria uma definicfio mais prudente, que inclufsse elementos transitérios deter- minantes no Estado primitivo, ou seja, as diarquias que, no desen- yolyimento histérico posterior, colocaram ao lado do poder governa- tivo o poder de outra classe, que dispunha de uma forga igual ou quase igual a forca deste, e, por tiltimo, o chamado direito interna- 51 cional. Durante a revolugdo, 0 problema ficou evidente para nds quando, clara ¢ formalmente, esteve em agéo um duplo poder: 0 do governo burgués (ou de coligacdo) e o poder de fato da classe opera- ria e da pequena burguesia, personificado pelo Comité executivo de Petrogrado. A existéncia deste duplo poder foi apontada por Lénin no seu devyido tempo e somente os ignorantes podem desconhecer ou negar a possibilidade de semelhantes situacdes. Ao mesmo tempo, por outro lado, tinhamos presente o fato de ter havido no passado casos — e nos Estados imperialistas ainda os ha — em que uma organizacéo de classe dita normas e diretrizes que, pela sua obri- gatoriedade, concorrem com as leis dos governos. Em geral, trata-se, naturalmente, mais de meras excegdes do que de fendmenos normais, de modo que poderemos empregar seguramente a expressio “poder estatal” (entendendo-o em sentido mais amplo) em vez da expressao “poder organizado da classe dominante”. £ necessdrio, no entanto, dizer que o préprio elemento da coercibilidade do direito tem, entre os juristas burgueses, muitos crf- ticos. O elemento da coercibilidade, como elemento distintivo do direito, ¢ negado tanto por aqueles que véem no direito um mandado de Deus e, por conseguinte, nao admitem que possa ser assegurado somente pela autoridade secular; como por aqueles que véem no direito a realizagio de uma idéia eterna que nao exige nenhuma coercéo externa; ou, mais precisamente ainda, por aqueles que, sendo partidérios das teorias voluntarista ou psicoldgica do dircito, negam que a coercibilidade seja um elemento distintivo deste. Escolhemos uma expressio mais geral ou menos estrita do que € “coercao”, ou seja, os termos “tutela” ou “garantia”, nao porque duvidemos da necessidade da coergéo, mas porque o termo “coercao” corresponde melhor a um estado de fato, pois até 0 momento reyo- lucionério em que uma nova classe demonstra conscientemente o seu desejo de chegar ao poder e de criar um direito novo (um direito seu), 0 direito (que penetrou na consciéncia dos homens e, por assim dizer, se converteu numa segunda natureza) torna-se atual, na maioria dos casos, praticamente sem coercao (por costume, por inércia ou por submissao yoluntaria etc.), ainda que o respeito a autoridade, a possibilidade de tutela, a admissibilidade e a possibilidade de coer- ¢ao continuem vigorando. Nao sei se para nés, que adotamos o ponto de vista revolucioné- rio e classista de Marx ¢ Engels, ¢ necessdrio entrar em pormenores para provar a essencial importancia deste elemento da coergao para uma definigao exata do direito, como defesa de um interesse de classe, pois, diria Engels de outra maneira, nfo se poderia admitir que a enorme massa dos oprimidos se mantenha submissa. Seja como 52 for, citaremos algumas opinides de estudiosos burgueses de varias correntes, que destacam a necessidade deste elemento de coergao. Ihering, que ja citamos, declara explicitamente; “A autoridade (forga) pode existir, se for necessério (cur Not), sem direito, e os fatos o demonstram. O direito sem autoridade é uma palavra vazia, algo gue carece de qualquer realidade” (Der Zweck im Recht, p. 196). Nesta mesma passagem, Ihering revela a sua fisionomia classista, por sinal demasiado abertamente, ao afirmar: “Os tiranos e desalmados, que castigaram os povos com o chicote e os escorpides. fizeram tanto pela educacéo da humanidade no direito como os sibios legisladores que, outrora, ditaram sumariamente as tabuas das leis. Foi neces sério esse primeiro periodo para que pudesse depois aparecer o segundo”. Certamente que tal franqueza e sinceridade sé era pos- sivel na Alemanha dos junkers, com o seu cheiro de estébulo, mas, na realidade, Ihering “disse 0 que aconteceu”. © professor Simmel, também jé citado, afirma, no seu artigo sobre “a sociologia do dominio e da subordinacao” que “o dominio ¢ a subordinagio nao aparecem (stellen sich ein) completamente sé onde ja existe a sociedade; sfo uma das formas (Arten) onde geral- mente a sociedade vem a existir; nao constituem uma causa da so- ciedade, mas precisamente aquilo que significa o termo abstrato “sociedade”.5! “Certamente esta definigio nao é das que podem concordar com as nossas idéias, mas em geral, Simmel esté com a razao quanto a0 papel que a forga tem sobre o direito. E a este respeito é certa a observacao de Ihering de que “segundo a ciéncia juridica, o direito se origina da lei (autoridade legislativa) e somente muito mais tarde, no século XIX, 0 cosiumne e o espirito do povo passaram a ser citados entre as fontes do direito” (Geist des R6- mischen Rechts, U1, pp. 22-29). Também neste caso, todavia, se tem falado erroneamente de idéias de justiga que orientam o Estado, ou, para usar uma pitoresca expres: de Ihering, “a nossa teoria ocupa‘se mais da balanga do que da ‘espada’ da justiga”. Quais so, em substancia, as objegdes formuladas a teoria da coercibilidade do direito? Por um lado, afirma-se que o direito ¢ apenas a atualizagao de uma idéia, do espfrito de um poyo ou de uma vontade suprema, que se realiza sem qualquer coagao. Parece-nos desnecessario dedicar mais tempo a estas teorias. Outros objetam que nem todo o direito necessita de uma realizagio coercitiva, mas 61, G. Simmel, Die Soziologie der Uber-und Unterordenung, in “Archiv fdr soziale Wissenschaften”. XXV, 3, pp. 477-478. 62. Em suma: a balanca da deusa no tinha nenhum significado me- taférico. (Cit. p. 247). 53 ja respondemos anteriormente a isto. Também ja falamos sobre a argumentag&o daqueles, para quem o direito internacional ¢ um di- reito sem organismo de coercaéo, e mais adiante voltaremos a este assunto. Ficam, por ultimo, os que sustentam a mais recente escola psicolégica de Petrazickij. Se o direito € concebido unicamente como experiéncia psiquica interior, entio a “autoridade estatal e a autori- dade social nao sao nem vontade nem forca: nao sao, em geral, nada real, mas simplesmente um fantasma emocional” (Petrazickij), Nao se esqueca de que isto foi escrito por um professor russo “cadeie” durante a guerra, isto é, quando a ditadura da burguesia dominava o mundo como algo perfeitamente real. Mas, como ja foi dito, a maioria dos juristas sérios reconhece, de uma maneira ou de outra, a teoria da autoridade coercitiva, ainda que tais juristas o fagam com a reserva de que o Estado nao é em sie para si uma organizagao da coer¢fo mas que “a organizacio da coercao é, apenas, realizada pelo Estado” (Sersenevic). Todavia, isto nao significa, de modo algum, que todos os juristas tenham a mesma idgia do significado e do carater dessa autoridade. Desde a primitiva concepgao romana do direito “Se in armis jus ferre et omnia fortium virorum esse” (Livio, V, 36), que se refere explicitamente a forca das armas ¢ & lei do mais forte até as diversas concepgdes metafisi- cas do Estado elaboradas pela refinada ciéncia dos contemporineos, 0 sentido do raciocinio € o de que a forca ou a autoridade, ou seja, hoje, o Estado, nao s6 protege o direito mas, inclusive, 0 cria como mero complexo de normas jurfdicas (isto é, de leis). Para os que sustentam estas teorias, mesmo as tendéncias sociol6gicas (como as de Muromcey ou de Menger), ainda que orientadas somente para uma fundamentagao econémico-social do direito, cheiram a socialismo. Num trabalho de 1895 Menger escrevia: “Todo 0 ordenamento juridico é um amplo sistema de relagdes de poder geradas (sich heraus gebildet haben) internamente numa nagao no decorrer de seu desen- volvimento histérico (...). Os interesses das classes dominantes, se seu poder se mantém durante muito tempo (Wenn sie sich behaupten), transformam-se em direitos e normas juridicas aceitas pelos restantes membros do Estado como um dado objetivo, Se estas relagdes de poder mudam em um determinado tempo, os dircitos ¢ as normas juridicas perdem o seu fundamento natural e voltam novamente ao estado de interesses ¢ de luta de interesses”. 63. “O Estado néo € apenas o detentor reconhecido de uma autoridade coercitiva, mas também o detentor nico: o direito de obrigar constitul um monopélio absoluto do Estado”. (Ihering, Geist des Rémischen Rechts, cit., p. 247). 54 Se considerarmos o papel do Estado quanto ao problema do direito, fica fora de dtivida que entre os conceitos de direito ¢ de Estado existe um estreito vinculo. O que existe primeiro, o direito ou o Estado? Qual é o elemento determinante? E o direito que determina o Estado ou € 0 Estado que determina o direito? Se dispensarmos as teorias da origem divina do direito ¢ do Estado, para nao falar das teorias do espirito popular e da idéia eterna, para as quais direito e Estado derivam paralelamente de uma mesma fonte, parece que para a ciéncia burguesa s6 existe uma solucao: o Estado promulga, revoga e protege as leis e, portanto, o Estado, a autoridade, é 0 elemento fundamental. Os juristas mais coerentes, Gumplowicz, por exemplo, colocam o problema nos seguintes termos: “Em razio de sua origem, o direito € sempre e em toda parte uma forma do ordenamento estatal, ¢ exatamente uma forma do dominio de uma minoria sobre uma maioria”. Inclusive o pai da economia politica burguesa, Adam Smith (The Wealth of Nations, Cap. V), es- creye: “Na verdade, o governo burgués foi criado unicamente para a defesa do rico contra 0 pobre ou para defesa dos que possuem algo contra aqueles que nada possuem”’, Porém, esta linguagem é demasia- do sincera para a burguesia de hoje. Por isso a “ciéncia do direito constitucional” criou o conceito de Estado de direito (Rechtsstaat) nao apenas no sentido de que tudo € regulado pelo direito,* mas também (e isto € 0 mais importante) na acepgdo de que o proprio direito é 0 fundamento do Estado, de modo que 0 direito, embora seja na realidade um produto monopolistico do Estado, é, simulta- neamente, o criador, o gerador do Estado. Por conseguinte, a so- ciedade burguesa nao se detém ante estas contradigdes ¢ contra-sensos irreleyantes: introduzindo no ordenamento “democratico” a fiegao do contrato social concede, de boa vontade, todos os direitos ao governo, confiada na sua gratidao classista. Como cantavam os junkers, “Und der Kénig absolut Wenn er unsern Willen tut”. 64. © professor Hessen, por exemplo, escreve: “Chama-se Estado de direito ao Estado que considera as normas juridicas criadas por ele proprio, na qualidade de legislador, como normas que o vinculam na qualidade de governo”, & interessante ouvir a objecdo de uma autoridade como a do professor Laband: “a autoridade do Estado in abstracto nunca esteve vin- culada peles leis, ou soja, que a autoridade estatal pode mudar as suas leis e suspender a sua aplicagao™. 65. O professor Jellinek coloca este problema nos seguintes termos: “O ordenamento juridico é direito para aqueles que se encontram subor- dinados a ele, mas sera porventura direito também para o proprio Estado?” 66. “E seja absoluto o rai, Para que exista a nossa lel”. 55 Mas, como o marxista ira considerar a origem do Estado e o papel desempenhado por este no direito? Engels dé a resposta na sua obra A origem da familia, da propriedade privada e do Estado. Parte da seguinte tese: “O Estado (...) é (...) um produto da so- ciedade, quando esta atinge um determinado grau de desenvolvi- mento; € a confissio de que essa sociedade se envolveu numa irreme- diavel contradigao consigo prdpria ¢ esté dividida por antagonismos irreconcilidveis, e torna-se incapaz de os eliminar. Mas, para que estes antagonismos, estas classes com interesses econdmicos em luta, nao se devyorem a si préprias ¢ nfo consumam a sociedade numa luta estéril, € necessdrio um poder aparentemente maior que a so- ciedade, chamado a amortecer os choques e a manter a sociedade nos limites da ‘ordem’. E este poder, nascido da sociedade, mas que se coloca acima dela e se separa cada yez mais dela é 0 Estado”. No capitulo anterior examinamos detalhadamente o carater ¢ © grau de coercibilidade destas contradigdes de classe; por isso com- preendemos plenamente a necessidade deste isolamento do poder classista que o envolve, nfo s6 a ele préprio, mas também a cada um dos seus funciondrios, por pequenos que sejam, com uma auréola de santidade e de inviolabilidade. Engels detém-se a consi- derar minuciosamente o papel que o Estado desempenha como instrumento de dominio ¢ de exploragao da classe oprimida, e realca que esta “forga publica, que jé nfo coincide diretamente com a po- pulagao, que se organiza a si prépria como poder armado (...), nao constituida sé por homens armados, mas também por outros apara- tos materiais, as prises e as instituigoes coercitivas de todo o género que a sociedade gentilica desconhecia”.“* Todavia, Engels continua como segue: “Contudo, existem excepcionalmente perfodes em que as classes em luta estio (G0 equilibradas que o poder do Estado, como mediador aparente, adquire, por certo tempo, uma relativa independéncia sobre elas”. Neste caso se encontra a monarquia absoluta dos séculos XVI e XVII, do bonapartismo nos primeito e segundo impérios, de Bismarck na Alemanha etc. Todavia, relativa- Mente ao nosso problema, podemos acrescentar que nunca, nem mesmo nestes momentos, 0 Estado violou substancialmente os inte- resses das classes possuidoras, mediante suas leis, e sempre, espon- taneamente, ou & forga, voltou a ser outra vez o poder da classe dominante, logo que terminou a época de transigéo, como, na reali- 5 F, Engels, A Origem da Familia..., S80 Paulo, Ed. Académica. 68. Id., ibid. 69. Id., ibid. dade, sempre o foi.” Por conseguinte, temos de ver rapidamente de que maneira o Estado conseguiu assumir o papel de uma orga- nizagio do dominio de classe (total ou, a0 menos, predominantemente) e por a prova a nossa concepciio das suas funcdes coercitivas, exami- nando as bases organizadoras deste poder. Alguns dos estudiosos burgueses, por exemplo, Ratzenhofer, Gumplowicz e outros afirmam categérica e unilateralmente que a base sobre a qual o Estado se constitui é unicamente a conquista, ou seja, apenas a forga fisica.”' Outros, especialmente os economistas, gostam de apresentar a transigaéo do comunismo primitivo para a propriedade privada e para o dominio de classe como uma “evolu- cao” pacifica da sociedade antiga para a nova, ¢, em particular, consideram as revolugGes agrdrias como um processo imperceptivel”. Na realidade, todas as linguas conservam muitos conceitos claramente vinculados ao comunismo primitivo, transferindo-os para a estrutura social feudal e, inclusive, para a sociedade burguesa que chegam a aparentar, @ primeira vista, que ha algo de verdadeiro nisso. Com efeito, os antigos patriarcas e chefes da gens, da tribo ou do cla etc., surge posteriormente como senhores feudais ou individuos possuido- res de terras e de homens. E indubitével que o tributo primitivo entregue voluntariamente ao chefe da gens, ou do cla, para obter dele ou de seus soldados a protecio contra as agressdes bélicas, foi posteriormente prestado mediante 0 cultivo dos campos do chefe ou dos seus soldados, enquanto estavam na guerra, ou ent&o, entregan- do-lhes uma parte da colheita. Porém, esta fora de dtivida que isto aconteceu somente no principio, e que cedo ou tarde, estas relacdes terminariam por explodir, uma vez que o “apetite” do novo senhor feudal ia crescendo, e, quando adquiriu grandes proporgées, a forga armada alcangou uma importéncia decisiva nas relagdes internas. Nao obstante, tanto a primitiva “conquista” como a sujeigio interna basearam-se no mesmo pressuposto: 0 cativeiro, isto ¢, a redugo & escravidio (dentro do Estado, reduzindo o devedor a es- cravo ou vendendo-o como tal) ou entéo a cobranca de um tributo, se para tanto houvesse possibilidades. M. N. Pokrovskij mostra 70. Naturalmente, pressupondo que o leitor conheca a obra funda- mental de Lénin, O Estado e a Revolucao. 71, “A classe dominante ¢ formada pelos vencedores de uma guerra externa, que se apoderam da terra e que reduzem os seus habitantes (com as suas propriedades) a seus stiditos, ou ento, pela classe dos possuidores que, com a forca do seu predominio econémico, conquistaram (erzwungen) tanker ume influéncia politica”. (E. Zenker, Die Gesellschaft, Berlim, 1899, p. 197| 57 muito bem, na sua hist6ria, que entre nds a expressio “tomar posse da terra” (volodeti) significava ao mesmo tempo “arrecadar o tributo (sobirat’ dan’) dos préprios stiditos” (poddannye), isto é, dos grupos familiares (dvory) que viviam numa determinada terra, ou entio, se esta terra constitufa um territério mais extenso, das gentes etc. O grande Estado romano foi também um “possuidor” deste tipo: reduziu os povos ao cativeiro ou & escravidao ou thes impés um tributo. Este tributo nao era imposto aos indiyiduos, mas a unidades territoriais mais ou menos extensas, sem a menor ingeréncia nos as- suntos internos dos poyos. No livro I de O Capital, por exemplo, Marx descreye longamente como as comunidades indianas ¢, em geral, as comunidades asidticas conseryam realmente as suas relagdes sociais internas, gracas ao pagamento de um tributo, sem conhecerem ou nem mesmo se interessarem, de um modo geral, pela dinastia que as governam.”* Enquanto tais autoridades nao se mostraram demasiado zelosas na cobranga dos impostos e nao se intrometeram nos assuntos inter- nos, mas, ao contrario, reforcaram as instituigdes locais (por exemplo, favorecendo a irrigacdo e a fertilizagdo da terra) resultaram mesmo yantajosas para as comunidades locais, proporcionando-lhes seguranga contra os inimigos externos, gragas 4 autoridade de um Estado po- deroso. Todavia, seria um erro grosseiro concluir disto que nessa época existia uma “situacio legal” maravilhosa. Basta conhecer as incisivas expressdes do vocabulério juridico da antigiiidade para nos convencermos de que foi uma época de violéncia e de rapina, sem piedade. “E possivel que tenha de ir a juizo por ter capturado um ladrao?”,7> diz a antiga lei de Roma. E propriedade o que se “toma com a mao”, e “quando alguma coisa é minha, tomo-a onde a encontro” (ubi rem meam in yenio, ib eam vindico) e, embora, por vezes, 0 tributo fosse considerado lei (lex), € preciso recordar que, originariamente, lex significaya contrato ou acordo (pactum), ou seja, indicava um acordo de cardter interna- sional, quer dizer, um acordo imposto pela forca. Se o tributo & superior ao produto do trabalho excedente, os dominados ficam na miséria ¢ por fim sao reduzidos & escravidao, ficando na impossibili dade de pagar tributo, qualquer que seja. E aqui est4 0 tinico limite 72. K. Marx, O Capital (México, F. C. E. 1966), |, pp. 269-270. 73. “Neque enim qui potest in furem statuere, necesse, habet adversus furem litigare™. Todavia, o fur manifestus, ou seja, o ladraéo apanhado em flagrante delito, pertencia ao autor, o qual tinha todo o direito de matd-lo ou de reduzi-lo & escravidaéo “in mancipium, em propriedade". Em latim, “comprar” {emere) significava *colher”. 58

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