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y Danda Prado O.QUEE FAMILIA 24 edigdo Sio Paulo editora brasiliense ; A Meus agradecimentos A MARIZA FIGUEIREDO que, em realidade, foi coautora deste trabalho. A MARIA JOSE DE LIMA por sua leitura, seus comentarios criticos e apoio. Capyright © by Danda Prado [Nenhuma parte desta publicaséo pode ser gravad, armazenada em sistemas eltrbnicos,Fotocopiada, reproduzida por melos ‘mecinicos ou outros quaisquer sem autorizagio prévia da editora, 1 ediggo, 1991 2+ edgfo, 2011 1 reimpressio, 2013 Dicerora edicovisl: Maria Teresa B. de Lima Editor: Max Weloman Produgio editorial: Adviana FB. Zebinati Producto grifiea: Adviana FB, Zerbinati Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagéo(CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Prado, Danda 1s reimpr da 2* ed, de 2011, ISBN 978-85-11-01050-3 1, amflia 2. Far 1012227 Indices para catflogo diode Barros, 1839 ~ Taeapé ‘Cep 03401-001 ~ Sto Paulo -SP ‘wirweditorabrasilense.com br V - Conclusio . Indicagées para leitura .... SUMARIO [edintroduglos twiivawigguies cde care ee cv IL - Fungbes da familia... 0... ee eee cee ec eens ee ees 41 Ill - Historia da familia brasileira contemporinea Dedico este livro & minha famtlia “de origem”, 4 minba familia “de procriagdo”, a todos os sattit familiares que me rodearam na vida, a todos os ami- ‘gos ¢ amigas que me ajudaram com suas vivéncias | a refletir sobre os mistérios da familia, INTRODUCAO x O que é familia? A historia da humanidade, assim como os estudos antropolégicos sobre os povos e culturas distantes de nds (no espago e no tempo), esclarece-nos sobre o que é a fa- milia, como/existiu ¢ existe. Mostra-nos como foram ¢ sio hoje ainda variadas as formas sob as quais as familias evoluem, se modificam, assim como sao diversas as con- cepgGes do significado social dos lagos estabelecidos-entre os individuos de uma dada sociedade. 12 i Dawpa Prabo Ninguém tem por habito perguntar: “Voce sabe 0 que ¢ uma familia?”. A palavra “familia”, no sentido po- pular ¢ nos dicionarios, significa pessoas aparentadas que a mie ¢ os filhos, ou ainda, pessoas de mesmo sangue, ascendéncia, linhagem, estirpe ou admitidos por adocio. Paradoxalmente, todos sabem o que é uma familia, jA que todos nds somos parte integrante de uma. E uma entidade, por assim dizer, 6bvia para todos, No entanto, para qualquer pessoa é dificil definir essa palavra e mais exatamente 0 conceito que a engloba, que vai além das de- finigdes livrescas. ‘A maioria das pessoas, quando aborda questdes fa- miliares, refere-se espontaneamente a:uma realidade bem proxima, partindo do conhecimento da propria familia, realidade que cré semelhante para todos, ¢ dai acaba ge- neralizando ao falar das familias em abstrato. Os tipos de familia variam muito, como veremos no dlecorrer destas reflexdes, embora a forma mais conhecida evalorizada ainda em nossos dias’seja a familia composta de pai, mae e filhos, chamada familia “nuclear”, “normal” ete, O que tf 13 Base € 0 nosso modelo, que desde criangas vemos nos livros escolares, nos filmes, na televiso, mesmo que em nossa propria casa vivamos um esquema diverso, ‘As familias, apesar de todos os seus momentos de crise e evolugéo, manifestam até hoje uma grande pee cidade de sobrevivéncia e também, por que nito i lo, de adaptagio, uma vez que ela subsiste sob multiplas for- mas, Jamais encontramos, ao longo da Historia, uma so- ciedade que tenha vivido & margem de alguma nogao de familia, isto & de alguma forma de relacio institucional entre pessoas de mesmo sangue, eee Nem mesmo em sociedades que tentaram novas ex- periéncias, como a China, com o questionamento da fe- milia tradicional, ou Israel, com os Aibutzim, onde as mulheres saem para trabalhar e as criangas viver em co- munidade, desapareceu a nogio bisica de familia, Se ge- neralizando dessa forma torna-se dificil definir o que entendemos por FAMILIA, nfo ¢ dificil indicar’o que seria a NAO FAMILIA. neh Entre o individuo e 0 conjunto da sociedade existem 08 varios grupos profissionais, de identidade, ideol6gicos, 14 Danba Prapo . religiosos, étnicos, educacionais etc, Estes néo englobam, no entanto, os individuos enquanto individuos, em toda a sua histdria de vida pessoal. Nao incluem necessaria- mente, como na familia, os recém-nascidos e os ancides, os portadores de deficiéncia e os considerados “normais”. Sao grupos delimitados e temporérios, no tempo € no espago, com objetivos definidos. A natureza das relagdes dentro de uma familia vai se modificando no decorrer dotempo. Com relagao 4 evo- lugo que a familia vem sofrendo, ainda se discute muito o aspecto ligado.ao questionamento da posigio das crian- gas como “propriedade” dos pais. Outro aspecto que ainda é base de muita discussio, mas que jé sofreu grandes transformagées, se nao evolu- gdes, no decorrer, em especial, das tiltimas décadas, rela- ciona-se aos papéis assumidos por homens e mulheres dentro do micleo familiar, 0 que reflete o surgimento de uma nova estrutura social. De fato, nao se podera mudar a instituigio familiar sem que toda a sociedade mude também. Podemos afir- mar ainda que qualquer modificagio na organizagao fa- miliar implicara também uma modificagio nos rigidos ry 0 gue 6 fama 15 paptis de esposa/companheira, mie e, mais recentemente, provedora, assumidos pela mulher. Quanto as criangas, ha algum tempo o Estado in- tervém entre‘os pais e filhos. Na Suécia, por exemplo, os pais sio passiveis de dentincia pelos vizinhos caso punam fisicamente seus filhos. Por meio da escola, do controle sobre os meios de comunicagio, dé médicos e de psicdlogos, o poder domi- nante de cada sociedade impde, mais ou menos sutil- mente, normas educacionais, sendo dificil aos familiares contraria-las. De maneira geral, no entanto, cabe ainda aos pais grande parcela de poder de decisio sobre seus filhos maenores. A esse poder equivalem, por parte dos filhos, i reitos legais em relagio a seus pais, em particular no sis tema capitalista, como: direitos 4 assisténcia, 4 educacio, 4 manutengio ¢ a participagio em seus bens ¢ proventos. Ao inverso do que comumente pensamos, segundo 0 tipo de sociedade da época vivida ou estudada, varia a composigio dessa unidade social, a familia, assim como set’ modelo ideal. Cada familia varia também a sua composigao du- rante sua trajetoria vital, e diversos tipos de familia podem 16 anos PRapo ‘coexistir numa mesma época ¢ local. Por exemplo: casais que viveram numa familia extensa, com mais de duas ge- rages dentro de casa, tornam-se nucleares ou conjugais pela morte dos membros mais velhos ¢, quando os filhos saem de casa, voltam a viver somente como um casal. Paralelamente, podem existir familias naturais em virtude de fatores diversos, isto é mulheres que néo qui- seram ou nfo puderam viver con 0 homem com quem tiveram um filho. Ainda nesse caso, a historia individual pode levar essas mulheres a se casarem num outro mo- mento e comporém uma familia nuclear. Uma mie com filhos sem designacao de um pai — ou vice-versa — constitui, de todo modo, uma familia, se- gundo 0 artigo 25 do ECA — Estatuto da Crianga e do Adolescente (Lei 8.069/1990). Ha ainda os fatores culturais que'determinam o pre- dominio de um tipo de familia nuclear; como é 0 caso hoje em dia, por ser esse © modelo veiculado por determinada cultura, coexistindo com varias familias que, por fatores so- cioeconémicos apresentam grande variedade em sua estru- tura, Por exemplo, nos Estados Unidos encontramos os membros da seita mérmon, que admitem a poligamia, 0 O gue fie 7 que ¢ inadmissivel para os outros grupos religiosos do’pais, Reiteramos: a familia ndo é um simples fenémeno natural, Ela é uma instituigao social que varia ao longo da Historia e até apresenta formas e finalidades diversas numa mesma época e lugar, conforme o grupo social que esteja sendo observado. : Por exemplo: com a Constituicao de 1988, filhos ha- vidos ou néo na relacio de um matriménio passam a ter os mesmo direitos, sendo vedados quaisquer atos discti- minatérios com relagdo a eles. Consequentemente, a par- tir de entio, ficou proibida a uma crianga nascida sém 0 reconhecimento por parté do pai, ter estampado.em seus documentos dé identidade 0 carimbo de “filho’ ilegi- timo”. Podemos citar também a ambiguidade social relativa 4 mulher queda a luz. A primeira vista, tratar-se-ia de uma mie como respectivo filho, No entanto, para ‘ser considerada socialmente mie, nao ter sido suficiente 0 lado biofisiolégico do proceso de gravidez e parto. preciso, conforme a cultura a qual pertenca, que esse pro- cesso tenha se dado segundo os usos e costumes é, até mais rigidamente, segundo as leis de Direito em vigtncia 18 : Dawoa Prapo numa determinada sociedade e num determinado mo- mento. Por exemplo, na Franga, os pais de uma partu- riente menor de idade tém mais poder que ela para decidir’ sobre 0 destino do filho. Isso nos demonstra de modo evidente o quanto o fator social é dominante sobre o fator natural. , A familia, como toda instituigao social, apresenta. aspectos positivos, como niicleo afetivo, de apoio e soli- dariedade. No entanto, expde, ao lado desses aspectos, outros negativos, como a imposicao normativa por meio de leis, usos e costumes, que implicam formas ¢ finalida- des rigidas. Torna-se, muitas vezes, elemento de coacio social, geradora de conflitos e ambiguidades. E frequente termos melhores contatos com pessoas de fora do‘circulo familiar que vemos diariamente, do que com os parentes, a quem nos limitamos telefonar ow visitar de vez em quando ou formalmente. A relagio familiar mantém-se, mas seu contetido afetivo, se empo- brece. 2 Assim, uma divergéncia em relagio a escolha de um cénjuge pode afastar por longos periodos membros muito unidos de um grupo familiar, 0 que nao os impede 0 et feniia 9 de estar presentes na memoria dos componentes alia- dos ou opostos a suas atitudes ou de se.encontrat em reunides comemorativas, eventos familiares etc. Os'cri- ‘tétios de “lealdade” para com a familia de origemiou a de reprodugo muitas vezes sio também conflitantes, Como dizem os termos, familia de origem é.aquela de nossos pais; familia de reprodugio, aquela formada por dois individuos e os filhos decorrentes dessa re- lagio. Apesar dos conflitos, a famflia é tinica em seu Bapel determinante no desenvolvimento da sociabilidade, ‘da afetividade e do bem-estar fisico dos individuos,’ sobre- tudo durante’o periodo da infancia e da’adolescéncia. Talvez porque os lagos de sangue ou de ado¢io crietn ‘um ‘sentimento de dever, ninguém pode se sentir feliz's¢-lhe faltar completamente a referéncia familiar. ‘ ‘Além dos lagos de sangue, ha os compromissos assu- midos, como aqueles existentes entre cOnjuges e também entre ume crianga e um pai “provivel”. Sabemos qué; em principio, s6 a mae pode confirmar a patéridade exita de seu filho. Por sua vez, se nao se recorrer a um teste de pa- ternidade, o homem limita-se a um “ato de fe” naquela 20 Dana Pkapo mulher que diz ser a mie de um filho'seu ou, em normas legais, que Ihe atribuem como seu filho qualquer crianga nascida na vigencia de um casamento, Familias altetnativas Hoje em dia, ha diversas experiéncias substitutivas da familia. Entre elas estiio as comunidades, como alternativa aos problemas enfrentados em razio da redugio das fami- lias contempordneas, por sua mobilidade e por suas difi- culdades em se relacionar com outras de modo estavel. Vale a pena refletirmos sobre essas experiéncias. Trata-se de fendmenos sociais cuja extrema variedade im- pede que sejam assimilados as outras formas de famili Pode-se dizer que uma comunidade nasce da uniao de al- guns individuos adultos decididos a viver num grupo so- cial autossuficiente. Entre as intimeras razGes que levam a essa escolha, hd a tentativa de reencontrar um tipo de relacio existente ou idealizada na imagem da familia extensa, educando coletivamente as criangas e integrando os demais de qualquer 0 gue & foie at idade. Trata-se da recusa do isolamento em que vive a fa- milia nuclear, Hi também uma origem mistica ou religiosa iaéssas comunidades, em particular naquelas que se formaram em tempos remotos. No mundo contemporaneo, notam: se certas motivacdes de cardter politico ou ideoldgico, que se impdem como uma tentativa revoluciondria de re- cusa aos sistemas socioeconémicos e morais em vigéncia, assim como as formas de produgZo e ao consumo, No século XIX, no Brasil, tivemos uma comunidade anarquista chamada Colénia Cecilia, romanceada por Afonso Schmidt, composta de imigrantes italianos, Nos anos 1960-1970, tivemos os casos de comunidades, :como por exemplo as dos hippies, sobre as quais grande parte dos meios de comunicacéo divulgaram somente aspectos pejorativos. ‘As comunidades variam muito em sua composigio ¢ regtas de vida. Em algumas, mantém-se a monogamia como forma de ligagdo entre os seus membros, Em ou- tras, hé experiéncias de amor livre ou de “monogamias sucegsivas” entre todos os elementos do grupo, inclusive entre pessoas do mesmo sexo, 2 Dana Pravo ‘As formas de relacionamento sexual diverso da fi- delidade tradicional constituem uma aventura dificil, pois as relagSes afetivas entre os individuos se intensi cam ¢, particularmente em nossa cultura, fomos condi- clonados a um agudo senso de propriedade em relagio a NOSs08 parceiros sexuais. Além disso, os membros de algumas dessas comunida- des so obrigados a viver clandestinamente na maioria dos paises (disfargando o fato de nao viverem como casais esta- belecidos), pois sio passiveis de incorrer em virios delitos Segundo o Direito vigente. A repressio torna-se particular- mente grave com a presenga de criangas que, por motivos * _ ideologicos, nfo frequentam o sistema escolar institucional, e quando existem infragdes aos costumes locais as palavras so consideradas muito drasticas, como nos casos de vincu- los homossexuais, da pratica de amor livre etc, Em termos econémicos, nessas comunidades cada individuo tem suas proprias fontes de subsisténcia ou se dedica coletivamente a atividades cooperativas, como agricultura, artesanato e outros. Todas essas formas de relacionamentos posstveis de exis- tir nessas comunidades jé ocorreram em outras sociedades. 0 que & familia “23 Entre os gregos, por exemplo, a monogatnia sé era legal- mente exigida por parte das esposas. O matido podia ter uma ou mais concubinas e mesmo manter relagdes ho- mossexuais. i Ainda hoje’entre os Baruya da Nova Guiné, 69 as sto monogimicos em relagéo a’ reprodugio e'a deterinina: dos servigos prestados pelas mulheres aos maridos, e vice- -versa, Assim, cada marido entrega a sua esposa, e'a ela somente, algumas partes da caga, enquanto'ela cozinha somente para ele, Mas a moradia de ambos os sexos, riesmo apés 0 casamento, € separada, As mulheres moram cm os filhos (os meninos, até a puberdade). A vida afetiva e sexual entre individuos do mesmo sexo é tolerada. O relacionatiiento sexual da mulher com o marido realiza-se cercado de intinieros rituais ¢ tabus, 0 que dificulta sua ocorréncia: ‘ Nas ilhas Marquesas (Oceania), a esposa presta servi- gos sexuais ao marido e aos outros homens de seu grupo de residéncia, mas os filhos nascidos pertencem todos a marido. Entre 08 esquimés persiste 2 monogamia, mas a esposa presta servicos sexuais aos héspedes do marido. A familia poligamica existe ainda hoje, de forma ins- titucionalizada, em varias culturas. Um homem, nesse Ab 4 ‘Dana Papo caso, vive maritalmente com varias mulheres ao mesmo tempo,'que lhe prestam os mais variados servigos, além de lhe dar filhos. O direito a ter varias esposas nunca foi de todos os individuos numa certa sociedade. Uma sim- ples raziio € que o ntimero de mulheres nuiica foi muito. muaior do que o de homens, exceto em casos de guerra ow emigtagiio maciga. Nas regides agricolas africanas, a0 sul do Sara, 1/3 da populagéo masculina teve ou tem mais de uma mulher. Os restantes 2/3 vivem com uma s6 ou, em alguns casos, nem se casam. Em geral, a poligamia institucional s6 é acessivel a0 homem pertencente ao grupo dominante, aquele que usu- frui de prestigio e/ou poder econémico. A primeira es- posa quase sempre tem uma posigéo hierérquica superior A segunda e, de modo geral, cada esposa e os respectivos filhos moram numa unidade residencial separada. O trabalho dessas mulheres no campo, que nfo é remunerado pelo marido, permite que se aproprie de intimeros lotes de terra, assim enriquecendo. Com o avango da industrializagio em todas as regides, € hoje comum encontrar um casal, em uma grande cidade afri- cana, que aparente viver 0 modelo ocidental de familia 0 gue é familia. 25 nuclear, mas que, em realidade, se mantém a custa das ‘outras esposas do marido, que ficaram no campo. E isso se passa sob o abrigo da legislacao local. oe c Além das experiéncias de vida em comunidades, existem ainda outras formas de familias que nfo cabem ios conceitos classicos de familia. Elas tém surgido ¢ se desenvolvido nas sociedades mais adiantadas do mundo moderno e, portanto mais tolerantes, que se enriquecem com essas novas formas. Séo indicativas de experiéncias ou de abordagens cientificas do comportamento humano e influem diretamente na evolugao e na transformagio dos costumes. Seria dificil tentarmos aqui distinguir as principais caracteristicas que as diferenciam das formas tradicionais. Destacaremos algumas: a) A familia criada em torno a um casamento “de participagio”: trata-se de ultrapassar os papéis sexuais tre- dicignais. O marido ¢ a mulher participam das mesmas tarefas caseiras e externas. Surgida a partir das manifesta- 6es feministas, essa ¢ uma familia que vem cada vez-mais ganhando espago nas sociedades modernas. A niulher, embora ainda ganhe menos que o homem, tem ocirpado postos de trabalho cada vez mais importantes e, muitas de 26 DaNoa Peabo. yezes, se transformado no arrimo da familia, O homem, por sa vez, também tem colaborado mais com sua par- ticipagiio nas tarefas didrias — embora ainda, muitas ‘yezes, nfio suficientemente. 4) © casamento “experimental”: consiste na coabita- gio durante algum tempo, s6 legalizandojessa situagao. ap6s 0 nascimento do primeiro filho, Esse tipo dé rela- clonamento, que nao constitui em sua primeira fase uma “familia”, redundara para o casal e seus filhos, mais tarde, em uma familia nuclear, Encontram-se muitos exemplos desses habitos no pasado, De certa forma, pode-se justificar esse costume para se evitar o desperdicio de uma ceriménia nupcial ou um caso de infertilidade no casal. O casamento diante do “fato concreto” da gravidez é também utilizado pelos jovens quando estes ainda nfo tem condigdes econdmicas para sustentar uma familia, c) Outra forma de familia seria aquela baseada na “unido estavel” ou “unido livre”: em alguns aspectos, € semelhante a escolha anterior, mas caracteriza-se pela in- tengo de recusar a formalizagio religiosa ¢ a legalizacéo civil, mesmo com a presenca de filhos. A unio estivel 0 que fem aq pode ser um casamento monogamico cuja interpretagio da continuidade diverge da forma tradicional: antes, a unido, por definicio, tinha como objetivo ligar duas pes soas “para toda a vida”, S6 seria questionada em caso de desavencas ou conflitos graves, quando hayeria recurso a0 divorcio, Nesse novo tipo de uniio, a sua permanén- Gia estaria vinculada 4 duragio de um afeto.e interesse teal ¢ vivo entre o casal, Ambos estariam preparados, a0 menos materialmente, para terminar a relagdo que se tor- nou insatisfatéria no decorrer do tempo. A uniio estavel foi reconhecida pela Constituiga0 Federal de 1988, que a equiparou ao casamento, com 0 fim de preservar a familia. Direitos ¢ deveres, portanto, adquiridos com a uniao estavel hoje sio bastante se- melhantes aos do casamento. Certos tipos de familia sio vistos como caracteristi- cos de paises no industrializados, reproduzindo-se com grande frequéncia na América Latina, Mais comum nas camadas de baixa renda ¢ 0 casamento “de fato”, e no o “de direito”, que € a familia juridicamente constituida segundo as leis vigentes em cada sociedade, Surge mais como uma “estratégia de sobrevivéncia” do que como 2B [Dana PRADO uma inovagio contestatéria a costumes antigos, como no caso da formula acima referida de “unifo estavel”. Isso porque, nto tendo bens a transmitir aos herdeiros, ou tendo somente a casa onde vivem, nao recebendo do Es- tado uma ajuda substancial, nada justifica o recurso a le. galizagiio desse relacionamento. Nesse nivel de subsisténcia, em realidade, ora o homem abandona a mulher, mesmo grivida ou com filhos, ora ela nao quer sustentar um homem que nio tem pers- ” pectivas de Ihe trazer alguma vantagem social ou econd- mica. Essa uniao aparentemente sem compromissos * facilita uniées sucessivas, sempre em busca de um com- panheiro que divida com ela as responsabilidades domés- ticas, segundo o modelo idealizado da burguesia. Os defensores da unio estivel creem que este ser o modelo do futuro, tinica forma de salvar 0 casamento monogimico, adaptando-o a época atual. d) A familia homosexual: ocorre quando duas pes- soas do mesmo sexo vivem juntas, com ou sem criancas adotivas ou resultantes de unides anteriores, ou ainda, no caso de duas mulheres, quando se decide por filhos com inseminagio artificial. Isso vem se tornando possivel 0 que fama - 129 nos paises onde essa op¢io de vida deixou de ser obsté- culo legal 4 convivéncia com criangas, como nos Estados Unidos e mesmo no Brasil. i Uma familia é nio s6 um tecido fundamental de re- lagées, mas, também, um conjunto de papéis socialmente definidos. A organizagio da vida familiar depende do que a sociedade, por meio de seus usos e costumes, espera de um pai, de uma mae, dos filhos, de todos seus mem- bros, enfim, Nem sempre, porém, a opinido gefal é und- nime, o que resulta em formas diversas de familia além do modelo social preconizado e valorizado. Por intermédio da familia — menor célula organi« zada da sociedade —, 0 Estado pode exercer.controle sobre os individuos, impondo-lhes diferentes responsa- bilidades, conforme cada momento histérico, Sem dit- vida, nossa instituic&o familiar ¢ patriarcal, autoritaria monogimica. Mas cabe a cada um encontrar’os subterfi- gios, os modus vivendi, dentro das normas em vigor. A atuag&o do Estado exerce-se também indireta- mente, pois este tem o controle de todos os mecanismos sociais existentes, Assim, durante as duas Grandes Guerras Mundiais, por exemplo, as mulheres foram estimuladas a 30 DanDA FRabo sair de seus lares e a trabalhar, em razio da auséncia da mio de obra masculina. Uma série de medidas foram pos- tas em prdtica para poder liberar as mulheres casadas de suas responsabilidades tradicionais junto aos filhos ¢ 4 casa, Foram criadas creches, os salarios melhoraram, os empregos “masculinos” tornaram-se acessiveis a elas etc. No fim das guerras, modificou-se novamente a ideo- logia, e houve motivagao para que as mulheres retornas- sem a suas atividades no lar. Com isso, foram liberados os empregos, 0 que garantiu a reinsergao social dos ma- ridos; por sua vez, houve grande estimulo para que as mulheres tivessem mais filhos, como forma de repor baixas de guerra, Em certas épocas, acentua-se a importincia da proxi: midade permanente da mie junto aos filhos, para garantir 6 equilibrio emocional deles. Em outros periodos, valo- riza-se a educagao coletiva das criangas (como em Israel). Dentro de um mesmo Estado, ha também interesses opostos, O setor industrial pode necessitar de mao de obra feminina para aumentar 0 padrio de consumo de produtos industrializados com o acréscimo na renda fa- miliar, enquanto o setor social pode recear o desemprego 0 gue & farilia 10h masculino decorrente desse fluxo de mio de obra femi- nina no mercado de trabalho. ‘i A familia serve, também, de valvula de seguranga das revoltas e conflitos sociais. & muito comum qite a mulher, que conhece mais de perto as necessidades da casa e dos filhos e para manter'o equilibrio da célula far miliar, sirva de contengao as revoltas ocortidas dentro dela e com frequéncia de “bode expiatério” para suas frustragSes, angitstias ¢ conflitos irresoliiveis no mundo exterior ao lar. i : Interessa, portanto, ao Estado canalizar todas as cenergias individuais ou coletivas para a esfera domés- tica, desviando-as da contestagao e de reiviridicagée' so- ciais. Algumas perspectivas sobre o fututo da instituigao familiar Um dos primeiros objetivos na evolugio da institui- io familiar seria transformé-la numa célula mais aberta para o exterior ¢ capaz de partilhar com outras familias 32 : Dana Paavo uma parte das tarefas domésticas e educativas, Esta, alis, como vimos anteriormente, é uma das razées pela qual se ‘organiza as comunidades, Para atender a esse aspecto positive, contornando o risco do fechamento desse grupo, existiria a tentativa de‘ revitalizar certas fungdes familiares baseadas na solidarie- dade da vizinhanga, Por meio de creches e do encaminha- mento das criangas as escolas ou da compra coletiva de aparelhos eletrodomésticos e de limpeza, uma relativa co- letivizagao seria alcangada, o que nao implicaria viverem todos sob o mesmo teto, mas manter, cada unidade fami- liar, sua moradia propria. A familia, hoje em dia, esta arriscada a se tornar uma engrenagem funcional cada vez mais dependente do Estado. Hoje, os lagos entre os membros da familia nu- clear se enfraquecem, porque a responsabilidade cole- tiva da familia como nticleo pelo qual se realizam projetos em comum diminui cada vez mais. Isso tam- bém acontece porque seus membros so absorvidos por suas proprias atividades, num meio ambiente especifico (0 ambiente das criancas, dos jovens, dos casais etc.). Colénias de férias e saidas coletivas em fins de semana gue é fia 33 e férias substituem as reuniées dominicais com 6s pa- rentes ou viagens familiares, As decises relativas ao futuro e as condigées de vida das familias sio tomadas em um Ambito tecnocritico apoiado numa rede de informacées eletrénicas, que aus mentgm a eficiéncia dos dispositivos do Estado, para um controle individual e familiar, Para Shorter: “A familia contemporinea caminha para o desconhe- cido e sem rumo. Pode orientar-se em trés diferentes dire- Ges, € até hoje sem precedente historico: 1) 4 ruptura definitiva dos lagos que uniam as velhas geragdes is mais novas: a indiferenca que manifestam‘os adolescentes pela identidade familiar e pelo que ela possa representar e defender e que se rompe na descontinuidade dos valores entre pais ¢ filhos; 2) A maior instabilidade dos jovens casais, tte s¢ re- flete no aumento vertical da curva de divércios; . 3) 4 destruigao sistematica, por meio da ‘liberacéo” da mulher, do conceito ‘lar/ninho’ em torno do qual foi construida a vida da familia nuclear”. Paralelamente a esse avanco dos poderes'de uma sociedade tecnocrética, surge uma nova corrente de A 34 DANA PRADO pensamento: aquela que pensa que.a familia poderd se constituir numa tentativa para reinventar espagos. de livre escolha. Nesses espacos, a célula familiar pode atuar em ni- veis variados, como buscar mais tempo livre e mais recur- sos para utilizar esse tempo livre até a diminuigio do controle social, exercer livremente sua sexualidade, exigir a liberdade de educar as criancas como cada um bem en- tender etc. Essa grande reivindicagio de autonomia e de con- trole de seu proprio espago social por parte das familias pode assumir uma forma “coletivista”. Nesta, dar-se-ia énfase A organizagio e a um importante desenvolvimento de servicos coletivos, de redes associativas, mas descen- tralizadas, permitindo assim uma autogestio por parte dos proprios usuarios. As familias também poderiam assumir uma postura “anarquista”, com a extensdo das formas familiares co- munitérias, incluindo, as vezes, a producao de bens de consumo, baseada essencialmente nas relages informais, com um minimo de recurso voltado as estruturas admi- nistrativas. O que é feria 35 Expectativa em relagao ao futuro da familia No fim da década de 1980 e comeco da de 1990, a situagéo econémica mundial refletiu no modo de vida, fazendo com que o papel da mulher dentro do mfeleo familiar fosse repensado, Com dificuldades financeiras, a mulher viu-se cada vez mais obrigada a sait do lar e bus- car uma colocago no mercado de trabalho.’ Em principio, esse movimento nio quis parecer ‘uma competi¢ao corpo a corpo entre a capacidade femi- nina versus a masculina. Ao contririo. As mulheres en- traram no mercado de trabalho em desvantagem: tinham os piores postos e-ganhavam menos que os hontens, mesmo ocupando cargos semelhantes (0 que de certa forma, ainda ocorre hoje em dia). Mesmo assim, necessi- tavam se mantér no trabalho para que pudessem equili- brar as finangas familiares. * Isso sem contar que o fato de estar inserida no.mer- cado de trabalho nao significava que houvesse alivio em suas outras tarefas: de esposa e dona de casa: Houve'sim, um actimulo de fungGes, uma vez que, ainda hoje, muitos homens se recusam a partilhar as tarefas domésticas, por 36 ; DANA Prapo ainda acreditarem que se trata de algo que faga parte do universo meramente feminino. No entanto, a tendéncia é que, aos poucos, esse pen- samento também mude, Cada vez mais as mulheres estio 4 frente de cargos/postos que, até pouco tempo atras, fa- ziam parte exclusivamente do universo masculino. Cada yez mais, mulheres se tornam chefes de familia, susten- tando sozinhas seus filhos e sua casa. Cada vez mais, mulheres desdobram-se para dar conta das diversas tare- fas acumuladas no dia a dia. E aos poucos, ainda timidamente, os homens perce- bem que precisam mudar sua postura e agregar mais ta- refas domésticas para si mesmos, igualando-se também nisso as mulheres. Sabe-se que é muito dificil existir a igualdade con- creta entre homens e mulheres que permita uma transfor- magio total das relagées sociais, enquanto seguirmos vivendo numa sociedade patriarcal — e, portanto, discri- minativa das mulheres (sexista) — e dividida em classes. Sera que a andlise das pesquisas de opiniao permiti- ria de forma mais objetiva conjecturar sobre o futuro da instituigo familiar? O gue é fariia o37 Pensamos obviamente que nfo, j4 que.as,modifica- ges € a sua evolugio nao sio o simples resultado de.pro- jetos elaborados conscientemente ou de acordo com planos ¢ escolhas racionais. O que se poderia tentar buscar por meio dessas sons dagens seriam as diferengas existentes entte os diversos modelos familiares e quais, entre eles, estariam, evo- luindo de forma dominante. Ou ainda, buscar quais,as condigées atualmente favoriveis ou desfavordveig em cada extrato social para a evolugio ou transformagio.da familia, ; fi," As estatisticas tém registrado certos fendmenos, de maneiza mais ou menos acentuada, em todos os paises. Assim, 0 divércio est4 cada vez mais frequente,.em_espe- cial, nos paises industrializados; hi o aumento crescente de mulheres que trabalham fora de casa; as taxas de ne- talidade em paises-mais ricos industrializados esto em franca diminuicio, Se pusermos lado:a lado essas afirmagoes estatisti- cas universal mente mais evidentes, as reivindicagdes dos jovens e das mulheres, assim como as tentativas de for- mas alternativas elaboradas por homens e mulheres 38. Dawoa Prapo unidades, familias “originais” etc.), veremos que turin coincidéncia em suas formulacées. Gerla fell concluir, apos as premissas acima, que ca- Iminhiamos nessa ditegio, Ora, deixamos de ado justa- mente aquelas correntes de pensamento que detém um grande poder nas sociedades atuais, as crengas religiosas ‘@ suas respectivas igrejas. Um dos campos de atuacao fun- damental de suas doutrinas ¢ 0 da normalizacao das re- lagées entre os sexos, a “moral”, Para essas, as propostas que alinhamos no decorrer _ste trabalho, e que tentam manter os lagos familiares com seus aspectos positivos, sio justamente os aspectos mais condendveis das experiéncias modernas. Acusam- -nos.como sendo os sintomas de “crise” na familia, de sua “decadéncia”. Representam as forgas tradicionais. Defendem a ma- nutengao de uma estrutura rigida, com paptis definidos “para homens e mulheres, ignorando os fatos abjetivos, isto 6, a grave insatisfacio existencial das sociedades con- temporiineas, Confundem causas e consequéncias. Afinal, esse modelo de familia centralizado na autoridade pa? terna vigorou por tempo suficiente para ser avaliado. O gue ania 0 Exemplo disso é a fuga dos jovens a partir do consumo de entorpecentes, fato esse presente em todas as familias, inclusive naquelas que procuram manter-se, contra ventos e marés, numa hierarquia autoritaria, em que o poder de escolha, de deciséo, de orientagio cabe sempre aos mais velhos, Por outro lado, a Historia recente nos demonstra’ que tum dos pontos de apoio de filosofias e de regimes atitori- thrios sempre foi a rigidez dogmatica de usos ¢ costumes re- ferentes ao inter-relacionamento entre homens e mulheres. Stalin fez retroceder aos anos 1930, com o decreto de 1940, o caminho de uma estrutura familiar liberal que germinava nos ideais da revolucio soviética. Hitler pre- conizava a teoria dos trés “Ks” — Kinder, Kuche, Kirche (criancas, cozinha, Igreja) — como tinico destino das mulhe- res patriotas, na Alemanha nazista, O integralismo e¢ o fascismo fundamentam na constituigao da familia sua fora, assim como assistimos as Iutas de um: islamismo “obscurantista, nto Ir4, que pune hoje com a morte uma it~ fidelidade conjugal, por exemplo. ‘As formas alternativas de vida familiar expostas neste texto, que se confundem com novas atitudes em ow 49 COCOCC CHOCO CEC OCOHOOOOO CELE FEF OGSOOOHH EEE EEE ECHEEEECHE 40 Dana PRADO relacio 4 produgdo e ao consumo, nao sao talvez mais «nD do que os indicios precursores de uma transférmagio profunda da vida cotidiana, tinica estratégia, sem duvida ~ alguma, para sabotar, a longo prazo, formas arcaicas € | roncoxf of axcnaa w petigosas de organizagéo social. As fungdes de cada familia dependem em grande | parte da faixa que cada uma delas ocupa na organizacéo social e na economia do pals ao qual pertence, E preciso distinguir as expectativas sociais em relagéo a familia e aquelas que ela propria preenche em relacio aos elementos mais indefesos da sociedade: criancas e potta- dores de deficiéncia em todas as idades. Com frequéncia, algumas dessas fungdes so complementares; outras, che- gam ase contradizer, quando a familia nao esta adequada 20 modelo preconizado por aquele grupo social. ae eceeeeseeceecereneeoarer ©e€F€ 42 DAND4 Prapo Toda e qualquer familia exerce sempre intimeras finges, nas quais sendo que algumas recebem apoio e in- terferéncia de.instituigdes sociais, enquanto outras fun- G6es sao assumidas com exclusividade. Por exemplo: a socializagao das criangas é dividida pela familia e pelas instituiges educacionais, A satide dos membros da familia ¢ também hoje complementada pelas instituigdes de sate publica, além da atuagao da fa- milia, que é solicitada a cumprir regras de higiene, de cui- dados no tratamento etc. Entre as indimeras fungGes da familia que correspondem a uma expectativa social, temos a fungdo de identificagio so- dial dos individuos, de reprodugio, produgio de bens (ali- mentacio, vestuario, brinquedos, remédios etc) ¢ consumo. Nas expectativas das criangas e dos portadores de de- ficiéncia em relagao a familia, estio a protecao de jovens, a educagio ¢ a socializacio da nova geragio, os servigos domésticos de toda ordem (higiene, cozinha, costura etc.), 0 cuidado aos velhos quando deficientes. E entre as « expectativas sociais e dos individuos, tem-se as atividades de lazer (Festas, passeios etc), civis, religiosas (transmissio e cumprimento de crengas e preceitos), de fiscalizacio de € CH OHOPOHOHOHEEEC EEE EO EEFEEE! 0 que éfemilia 243 comportamentos de obediéncia a hierarquias ¢ autorida- des, entre outras. Nas familias antigas, a maior parte dessas funigSes era exercida somente pelo grupo familiar, embora contas- sem com a ajuda de terceiros num regime de troca dé'éer- vigos entre os membros de uma mesma comitnidade Durante a Idade Média, por exemplo, criangas eram ee tregues a outras farnilias que nao as de origem, nas quais fae ziam sua aprendizagem profissional ou mesmo social, como a aquisicao de “nhaneiras”, hdbitos e costumes necessétios a as- Pirantes a damas ¢ cavaleiros, nos casos das familias nobres. Com.a industrializagio e a produgdode bensiem grande escala (roupas, produtos alimentarés; lazer acess{- vel a grandes massas, como 0 radio e a televisio eta); as fungdes exclusivamente familiares foram: se transfor. mando e s¢ restringindo, e hoje ainda podemos indicéslas coitio prioritérias e exclusivas: : Reprodugiio : A possibilidade de, se reproduzir uma condigao indispensivel 4 mera distingéo entre um grupo de indi viduos ¢ uma “sociedade” propriamente dita. Esta tem COFCEEHEOCFCE COFFEE EEE E FFE EEE 44 : Danpa Prapo de contar com a reposigao permanente de seus membros inutilizados ou extintos. A reprodugao em si é um fend- meno animal e humano, natural, biofisiolégico, presente entre todos os seres vivos. No entanto, se encontramos casos em que o macho limita-se a liberar seu sémen na Agua (com fazem os sapos ¢ os peixes), que por sua vez & captado pela fémea sem nenhum contato direto entre eles, assim como casos em que a fungéo do macho inclui, alémn da fecundagio direta da fémea, a prestagio de ser- vigos aos filhotes durante certo perfodo ap6s o nascimento (por exemplo: o cavalo-marinho macho termina a gestacio do filhote em seu proprio corpo; intimetos péssaros ma- chos trazem alimento e transportam sua prole até que possa voar), Encontramos um sem-néimero de outros com- portamentos ligados a fecundagio ¢ a reprodugio. S6 entre os humanos encontramos a constitui¢io de niicleos familiares que em principio se mantém por todo © ciclo de vida de seus componentes. A familia “natural”, mie e filhos menores sem nenhuma ligagio entre estes € 0 pai biolégico, € 0 caso de quase a totalidade dos animais. No entanto, entre os seres humanos nao existe grupo social historicamente conhecido que nao tenha o 7 €eeeeee O gue é ait 45 processo da reproducdo regulamentado e codificado de forma bastante rigorosa. A identificagao de um pai'(so- cial) & regra geral, quase uma condigio de sobrevivencia ede insergio do recém-nascido em seu meio, no caso das sociedades patriarcais. Por exemplo: em certas cultura’, a crianga sem pai identificado € morta ao nascer. Foi frequente o fendmeno denunciado por antropé- logos, do rapto de mulheres jovens. Isso se dava quando individuos pertencentes a grupos dizimados decidiam fandar uma nova sociedade e raptavam, para esse fim, mulheres de grupos, para perpetuar, seus proprios grupos. © Rapto das Sabinas & uma ilustragio conhecida desse fato, que, alis, ¢ ainda muito frequente hoje em idia @ causador de guerras tribais entre os indigenas da América do Sul. ‘As mulheres raptades assumem claramente a fungao de simples “reprodutoras”, nao participando da criagio dessa nova sociedade, jé que sua propria tradigio cultural é desnecessaria ao novo grupo. O fendmeno equivalente ¢ oposto teria sido a cons- tituigao da sociedade das amazonas (Europa central) no ano 1600 a.C,, conforme descrito por Justino, historiador SCT tS eee ee eS eeeneenverce eeeeoeoaoerrere 46 Dawpa Prabo latino, Os homens teriam sido excluidos por sua vez (em! reagdo A sua atitude de'dominacao das mulheres) de uma efetiva participagdo na sociedade. As familias eram constituidas de mulheres que, para se reproduzir, man- tinham contatos esporadicos com grupos de homens es- trangeiros. Elas viviam exclusivamente entre si e com seus filhos. Identificagio social A importancia, em nossa cultura, de estabelecer “quem é filho de quem”, € subestimada ou ignorada pela maioria, No-entanto, em todas as camadas da populagio, esse é um elemento essencial de nossa inser¢do social. Se- gunido alguns socidlogos, essa funcao da familia seria a mais importante, ja que é ela quem determina 0 grupo fa- miliar propriamente dito em oposigéo a familia “natu- ral”, que simplesmente reproduz individuos. A “filiacdo” @ um quesito indispensavel em nossos documentos civis, fonte de deveres, obrigagées e privilé- gios (herangas, cargos e honrarias, responsabilidades em caso de satide etc, € FECOCEEE 0 que & famtia At Socializagio * i por meio dé propria familia que a crianga se inte gra no mundo adilto: & nesse meio que aprende a cana- Tizar seus afetos, @avaliar e selecionar suas relagbe8. Ore, toda familia visa, primeiramente; reproduzir-se enti todos ‘ séntidos: seus. habitos, costumes ¢ valores que traris- mitirdo, por sua vez, as novas geragoes. na familia aiftda, que a crianga recebe otientagio, ce estimulo para ocuipar um determinado lugar na socie= dade adulta, em fungdo de seu sexo, sua etnia, suas cren- cas religiosas, seu status econdmico e social. Os jovens aprendem e assumem (questionam eventualmente) as ati- tudes e paptis do pai e da mie, Isso se torna clard quatito observamos a educagao diferenciada das‘criangas con- forme 0 sexo, No seio familiar, marido e mulher exercem fungdes diversas, as vezes, e complementares. Em regra, 0 matido & 0 provedor de bens materiais. Exerce uma profissio, que é 0 critério mais importante para determinar 6 status de sua familia na comunidade, Ser 0 ganhe-pio dos seus’ & 0 ideal ov, em termos de expectativa, o papel priotitar do homem adulto em nossa sociedade. Dai decorre que FETE CE CHET SEES ‘ COFCCERCECOECEEOEEFES rr Fs 48 ‘ Dawoa Prabo a participagao do marido nas tarefas doméstica seja ainda minima, cabendo a mulher a criagio dos filhos e os cui- dados do lar. Essa bipolaridade dos papéis em funcdo do sexo pode ser determinante para a formacio da personalidade da crianga. O menino identificar-se-4 com o pai, A me nina aproximar-se-4 da mie e representaré com ela o Papel prioritério nos assuntos internos, emocionais ¢ do- mésticos, No entanto, essa € uma caracteristica que esta mu- dando. Cada vez mais, a mulher, desde cedo, vem sen- tindo a necessidade de buscar uma Profissio, como forma de sobrevivéncia, inclusive de sua familia, em muitos casos. Portanto, a ideia de que a mulher deva ser criada para a vida doméstica, vem aos poucos se transformando. Em alguns locais, ainda & comum que a filha seja educada e destinada para um casamento como meio de inser¢io social, o que vai se refletir depois na propria fi milia, Nesses casos, so bastante comuns as aliancas ma- trimoniais que reforgam interesses e circulos de relacées, assim como, ao inverso, familias se “degradam” pelas novas aliancas. € € fece O que £feniia 49 Uma das maneiras mais seguras de perpetuar os pri- vilégios de classe é 0 casamento homégamo (com. seus iguais). Esse tipo de casamento & dominant, tanto, em sociedades ocidentais como nas sociedades orientais e, sobretudo, nas tribais. Quanto a0s filhos de sexo masculino, sua socializago é feita visando a Ihes dar, principalmente, uma profissio, O nepotismo familiar é conhecido principalmente em Areas profissionais. Verdadeiras dinastias se cridrain em certas profissdes (como nos caso dos tabelionatos bra- sileiros até pouicos anos atris). De pai para filho, perpe- tuase 0 acesso 4s universidades e a diversos cargos. No entanto, no Brasil 0 nepotismo pode vir a ser punido, quando se trata de cargos puiblicos, ¢ esté sendo proibido em diversos setores, como forma de se buscar a moralizacao do-trabalho, Todo grupo social aciona essas estratégias de socia- lizagao a fim de transmitir & geragdo seguinte o§ poderes ¢ privilégios iguais ou superiores aos proprios, herdados ou constituidos, Nos Estados Unidos, existem clausulas especiais que protbem 0 recrutamento de membros da propria familia 2.227 ees ses Ss eeF Cer ce ee ereerrerree 50. 7 Dawpa Paavo dentro de universidades, de certas empresas e de grandes organizacdes internacionais. Nosso intuito aqui ¢ expor fatos e nfo julgilos. Mas & impossivel deixar de observar 0 quanto a educacéo di- ferenciada de meninos e meninas, assim como os habitos de nepotismo ¢ de homogamia social — praticas ainda presentes na sociedade, no primeiro caso, nas familias das classes privilegiadas, no segundo — dificultam 0 ca- minho para uma democracia econémica ¢ social. Essas praticas acentuam a discriminagio entre homens e mulhe- res e entre os homens da classe que detém o poder e os de outros extratos socioecondmicos. Econémica Sendo impossivel descrever em detalhe as fungSes especificas relativas aos meios de subsisténcia de cada tipo de familia, escolhemos uma familia da pequena burguesia comerciante como exemplo. Nossa escolha recaitt nese modelo porque é sem divida, a categoria social que tem sido menos estudada, As familias de classe média ou alta contam com uma vasta produgio bibliografica, cinematografica ¢ teatral a Fee E EEE EE CCE 0 que fila SL seu respeito, tanto na ficgdo como nas pesquisas sociolé= gicas, Em menor escala, mas ainda de forma significative, a classe operiria ¢ também cada vez. mais estudada, negécio comercial em pequena escala é ainda, fandamentalmente, propriedade de uma s6 familia, nele , trabalhando seus proprios membros. Inclui-se nessa cate: goria a “biboca” da favela, a “venda” que atende aos ope térios numa nova.4rea de construgio, os armazéns dos baitros residenciais, as lojinhas dos modernos conjuntos habitacionais, a quitanda, o botequim etc. Esse pequeno comércio exerce um importante papel social, por seu contato com toda a populacio local, quase cotidiano. Em geral, séo os proptios membros da familia que tratam com os clientes. Cada um deles exerce um papel diferente no negocio. Numa primeira etapa, os pais trabalham no negécio mais do que consomem. Quando envelhecem, prevése que vio consumir mais do que pro- duzirio, jA que vio aposentar-se da atividade, Em compen- sagdo, os filhos recebem durante seus anos de formagio e retribulirio aos pais quando assumirem 0 negécio. As filhas, em algumas comunidades e classes, ainda, séo destinadas ao casamento, mas ajudam no trabalho’ Meee Rice 52 Dawoa Prabo doméstico antes disso; por esse motivo, s6 assumem par~ ticipagdo no trabalho assalariado fora de casa quando ha insuficiéncia de filhos homens. A divisio do trabalho fica evidente: a esposa se espe- cializa na tarefa doméstica e na organiza¢io e funciona- mento do comércio; 0 marido e os filhos adultos se dedicam a trazer dinheiro de fontes externas; os filhos menores ajiidam; a mie e as filhas se incorporam & ativi- dade econémica externa somente quando nfo ha lucros suficientes para garantir 0 funcionamento do negécio. Os pais do casal colaboram com a esposa no trabalho doméstico e no atendimento do comércio. A divisio sexual do trabalho na familia definese em _ fango de quem sio os encarregados de trazer o dinheiro de fora ou de gerar dinheiro pelo trabalho doméstico. Em alguns casos, a tiltima pessoa a trabalhar fora de casa 6a esposa, pois seu papel fundamental é o de garantir a ‘continuidade do armazém. Ai permanece durante toda a historia familiar, enquanto os outros membros podem participar — ou nfo — transitoriamente. © ponto que marcaria o limite da produgio das re- laces pequeno-burguesas na familia, isto & antes que a O gue § fie : 153 familia inteira se proletarizasse, seria aquele no qual a es- posa comega a trabalhar fora de casa. Isso implicaria, se gundo 0s resultados de uma pesquisa realizada hé alguns anos, 0 fracasso do objetivo familiar. Ao contrario, a plena insergio de todos os membros masculinos no ne- gocio e da mulher na atividade éxclusiva de dona de casa, representa, subjetivamente, 0 sucesso do negdcio. ‘A mulher, a mae de familia, poderia ocupar-se do bemestar dos seus, enquanto marido e filhos teriam um trabalho “por conta propria” e economicamente rentivel. ‘A familia, portanto, tem entre suas fungdes a de fixar 0 status,social de seus membros. Trabalhar s6 como dona de casa é identificado como uma forma de ascenséo social, jA que trabalhar em outra atividade € prova de pobreza ¢, nesse caso, da incapacidade do homem em gerar recursos satisfatorios. Quanto mais a mulher se afasta fisicamente do Ambito doméstico, menos valorizado ele se sente, ¢ ela, por extensio (a esposa). Na hipdtese do comércio, a atividade na Loja da qual 0 casal é proprietario € 0 mal menor do ponto de vista’ da es- posa, pois a sua proximidade fisica Ihe garante ndo ter de aban- donar seu “papel natural” sexual e especifico de dona de casa. PPP RP FFARR HH AA BH AER HHL RP SHB PR HPP RP Pere Frere n Ree nee 54 Dana Prapo No entanto, é preciso nfo esquecer que a tarefa de cuidar do negécio implica um grande esforgo sem nenhum incentivo, pois ndo hé uma “remuneragio pessoal” pelo trabalho, como existe em qualquer atividade exercida fora da familia. Essa alienacio tem como elemento central a concep- fio de que a esposa jé.cumpre seu proprio trabalho e, assim, a familia néo considera que trabalhar seja uma autorreali- za¢do, mas somente um beneficio para a propria familia, © trabalho no comércio familiar é para a esposa, uma prolongacdo do seu tempo de trabalho doméstico no remunerado, expresso ne inexisténcia de um salario ou retribuico monetiria direta. Os pagamentos recebidos so automaticamente transferides ou cedidos a familia, no caso do trabalho no negécio familiar. Essa transferén- cia nao é mediatizada por um ato de apropriacio prévia, © que a transforma num fato invisivel. Diz uma dona de casa que trabalha num botequim: “Sempre estive encarregada da venda, mas ela esta em nome de meu marido, ele é que é o proprietario, As vezes ‘roubo’ um dinheiro do caixa para comprar alguma coisa extra”, 0 gue fen 55 Em qualquer grupo socioecondmico, existe a respon sabilidade moral da familia de insergio profissional das novas getages. A propriedade de uma pequena ou média empresa ¢ hoje uma excecio, mas a ajuda para obtet um emprego assalariado atravessa todas as classes sociais: desde © operliio que recomenda o filhio na fabrica ou a baiana que “passa” seu ponto de venda de acarajé para a filha ou afilhada, 20 presidente da multinacional que indica 0 filho recem-diplomado para uma firma similar & sua. Na classe média, essa ajuda supera muitas vezes 0 valor da heranga transmisstvel por morte dos‘pais. Na epoca durea dos paises socialistas, onde foi abolida a pro- priedade privada dos meios de produgio ¢, portanto, a hheranga, o acesso a empregos por parte dos familiares era uma prati¢a dificil de ser contornada, Além do mais, em varias sociedades, os, seguros sociais, de aposentadoria & satide, nao suprem, em lugar algum, as necessitiades reais, O recurso a assisténcia familiar econdmica persiste, Em geral, essa responsabilidade recai sobre as mulhe- res, que abrem mio de alguma atividade rentével para substituir, junto ao patente necessitado, os servigos de enfermagem carentes na sociedade. e eoreeoerrrerr ener er PRP Re RP RP RP RRR eR RP HB Oe Rn we Cen Te nee a4 east fafsiia Podemos facilmente encontrar a historia da palavra FAMILIA. Jé no podemos dizer o mesmo da hist6ria da instituigdo familiar. t O termo FAMILIA origina-se do latim famulus, que significa: conjunto de servos e dependentes de um chefe ou senhor, Entre os chamados linha dependentes, inclui- se a esposa ¢ os filhos, Assim, a familia greco-romana compunha-se de um patriarca e seus famull filhos, servos livres e escravos. esposa, O que fama 57 A respeito da instituigio familias, s6 podemos reite- rar que de modo universal hé uma afirmacio crescente da familia nuclear. Mesmo nos paises onde até hoje vigora a tradicional familia extensa, monogimica ou poligt: mica, o,nimero de familias nucleares € cada yez maior, notando-se essa transformagio principalmente nos gran- des centros urbanos em evolugio na india, China, ¢ Africa. Cada uma das atuais formas de familia viveu hist6- rias ou conjunturas sociais bem diversas. Muitas emigra- ram do campo para as cidades, em busca de novas perspectivas de trabalho, de vida, por raz6es sociais, ‘po- Iiticas, deixando atras de si varias geragSes em esquemes familiares bem diversos daqueles que tém possibilidades de vivenciar em seu novo meio. i desenvolvimento industrial contribuiu em grande parte para precipitar esse processo migratorio ¢ de ato- mizacio das familias tradicionais. No entanto, ele niio pode ser apontado como causa tinica das mudancas que se operam nessa instituigao. 8 58 Dawo4 Prapo. - Teorias sobre a familia De uns quarenta anos para c4, 0 interesse pelo estudo da FAMILIA tem crescido em todos os setores do conhe- cimento, Cada ramo cientifico aborda-o por outro angulo. Assim, os economistas preocupam-se, entre outros, com 0 consumo doméstico; os etndlogos, descrevem as estruturas de parentesco; os juristas, analisam as leis relativas A familia A luz de uma nova realidade social; os socidlogos, pesqui- sam 0 seu funcionamento contemporaneo; os psicdlogos, os efeitos sobre os individuos das relag6es inter e intrafa- miliares; 0s demégrafos, interpretam o crescimento ou a queda de natalidade; os antropélogos, interessam-se pelos sistemas familiares em diversas culturas e assim por diante. Esses estudos que decompéem a familia em seus di- versos aspectos nao respondem, no entanto, a uma cu- tiosidade mais ampla. Permanece a tentativa, que vem do século XIX, de elaborar um estudo que compreenda a fa- milia como um todo — tratando-a por meio de grandes teorias —, como foi feito por alguns autores, sendo Engels o mais conhecido e divulgado, com seu classico trabalho a esse respeito. fa 59 Para esse estudioso, a instituigao do casamento € da familia faz parte da sociedade vista como um organismo total, Engels analisa a instituigao familiar nas diferentes regides'do mundo, e as mudangas que as afetaramt no de- correr dos séculos, Interessa-se também pela interagio entre a familia e as outras instituicdes sociais € culturais, como o significado da monogamia, as relagdes entre ho- mens ¢ mulheres, o modo de produgio, a propriedade dos bens de producio etc. 7 O matriarcado teria existido » antes do patriarcado? Antes de qualquer coisa, esclareceremos esse titulo. Denomina-se familia matrilinear aquela que identifica 0 individuo somente pela sua origem materna, Existem sis- temas patriarcais nos quais o nome dos filhos segue a linha materna (matrilinear), mas o pai é identificado e mantém estreitos lagos culturais de todo tipo com os filhos. . Patriarcal é aquela estrutura familiar que nao somente identifica 0 individuo péla origem paterna (patriliniear), ay 60 Dawos Peabo mas ainda dé ao homem o direito prioritario sobre o filho eo poder sobre a pessoa de sua esposa. Em verdade, mal- grado desconhecermos detalhes sobre os sistemas matriar- cais existentes em eras remotas, sabemos que os resquicios dessas culturas subsistem ainda em certas sociedades pa- triarcais (0s israclitas atribuem mais valor & linhagem ma- terna, ¢ alguns grupos sociais africanos dao prioridade as mulheres em certas decisdes etc.) Encontram-se na Historia também indicagées de violentos choques entre as duas concepsées: patriarcado- e matriarcado (por exemplo, as Amazonas na Europa cen- tral; Wlasta, rainha na Boémia no século VIII etc.). As religides monoteistas (todas elas identificadas com o sistema patriarcal) impuseram-se pela forga, pot sangrenta repressdo a costumes tradicionais vigentes, di- zimando povos que cultuavam deusas, crengas politeistas, e seguiam costumes matriarcais, tais como a nao atribui- cdo da paternidade institucional a cada crianga nascida. No se pode, no entanto, opor um sistema ao outro como simétrico. No matriarcado hayia 0 culto ao poder reprodutivo feminino, por parte de homens é mulheres, que nele viam : 0 que familia 61 um sinal de fertilidade da natureza, o leite de sua subsis- téncia, No patriarcado, ha uma apropriacio do corpo fe- minino pelo poder masculino, Um homem pode.impot A mulher um grande ntimero de gravidezes a fim de gerar mio de obra abundante em seu proprio beneficio. O in- verso nao é factivel. - Engels descreve essa passagem de um matriarcado para o patriarcado atribuindo-a a novas formas e modos de produgio, decorrentes de inovagdes tecnoldgicas. Se- gundo ele, esse momento situa-se na Pré-Hist6ria, na Era Neolitica, caracterizada pela invengdo da agricultura e da criagio de animais. Nessa fase, a humanidade, em vez de apropriarse das plantas selvagens e da caga de animais, comeca a plantar em certas 4reas ¢ a criar animais junto a seu local de residéncia. i No entanto; a agricultura era limitada a pequenos lotes de terra, que eram monopélio das mulheres. Os ho- mens continuavam nas atividades de caga ¢ pesca como no passado. A contribuicdo das mulheres para essas inveng6es f6i imensa, pois recolhiam filhotes recém-nascidos e davam- -lhes 0 proprio seio’e, assim, domesticavam os animnais. 30 62 Dawoa Prapo Em sua tarefa de colheita, observavam como germinavam as sementes e se reproduziam as raizes dos vegetais, Pouco a pouco, selecionaram as plantas mais apropriadas a0 cul tivo, Ao mesmo tempo, esse cultivo de cereais exigia, para preparo e conservacao de alimentos, 0 uso de recipientés capazes de resistir a0 calor do fogo e de guardar liquidos om gtandes quantidades. As mulheres inventaram, para isso, a cerdmica, Nesse mesmo periodo surgiu ainda a arte da tecela- gem, igualmente exercida pelas mulheres. Todas essas téc nicas exigiram um extraordinario actimulo de experiéncias, de dedugdes, de troca de informagées. As mulheres, domi- nando o conhecimento dessas novas técnicas, tinham tam- bém que transmiticlas as mais jovens. A menina ajudava a mae a modelar 0 barro, obser- vava os detalhes, imitava-a e recebia dela orientacio. Um verdadeiro sistema de aprendizagem preside assim desde os tempos neoliticos a transmissio das artes e oficios. As ‘mulheres exerciam o controle das principais técnjcas de sobrevivancia, nos primérdios do néolitico ¢, por isso, _ detinham um grande poder. Dai o sistema matilingar da estrutura familiar. | 0 que é fama jus 6a Durante milhares de anos a Deusa Mae fora.o tinico. objeto de veneragio. Na passagem 2o sistema, patriagcal, comecaram a surgir representagdes masculinas em estatue- tas e 0 simbolo masculine: o falo € modelado em barro ¢ gravado na pedra. Segundo Engels, esses simbolos impli, cam o reconhecimento do papel masculine na proctiacio, no surgimento de divindades masculinas, e também 9 ens, Fraquecimento progressivo das bases ideologicas do ma- triaicado, num periodo em que o arado conduzido, pelo homem substitui a enxada, manejada pela mulher, ¢ des: tr6i os fundamentos econdmicos do matriarcado. No inicio! da humanidade, o-comunismo primitive — singnimo de austncia da propriedade privada — constitufa. um estado social no qual iniimeros casais coexistiam com seus filhos no seio de um lar “comunitizio”. Esse lar, cuja diregéo era garantida pelas mulheres, constituia também uma ativi dade piblica de producio, socialmente necesséria (em con- sequéncia das atividadles exercidas pelas mulheres tecelager, cerimica etc,), assith'comio o abastecimento de viveres bus- cados pelos homens cBin a caga ea pescar Feu. Foi com a familia:patriarcal (ou individual,-com- posta em torno de um s6 individuo), contemporénes do BL 64 Danpa Pravo desenvolvimento da propriedade privada, que a chefia do lar perdeu seu carater piiblico e se transformou em pres- tagio, pela mulher, de servigos privados para um homem. A mulher tornowse sua primeira servente, afastada da participagio da produgio social, ainda segundo Engels. Logo, a familia individual moderna fundamenta-se na escravidéo doméstica confessa ou dissimulada da mulher. O homem de nossos dias deve, na grande maioria dos casos, ganhar o suficiente para alimentar sua familia, pelo menos nas classes de maior poder aquisitivo. Isto lhe d uma posi- do de supremacia moral e econdmica em relaco a esposa. O tigido evolucionismo de Engels est ultrapassado, mas sem dtivida ainda hoje persiste a interdependancia de certas legislagdes familiares com o modo de transmissio da propriedade privada aos seus descendentes, No Brasil, observa-se que filhos ilegitimos eram excluidos da he- ranga de seus pais, assim como um dos argumentos pata recusar uma lei de divércio era a protecdo aos “bens de familia”, que nao deviam ser divididos. Grande parte dessas teorias de Engels teve de ser dei- xada de lado diante de estudos mais recentes. Entre outras de suas afirmagées, suas ideias sobre a “promiscuidade O que 6 femitia 65 \ primitiva”, que assim se sefere a uma época em que 0 pai nao era identificado institucionalmente. Hoje se verifica que essa é uma opgio alternativa de vida, sem carter negativo em si, Também faz a associagio da “propriedade privada” com a “opressao das mulheres”, o.que nao corresponde & realidade. Constatowse que, em grupos nos quais reinava o sistema do “comunismo pri- mitivo” em relagio a bens e valores, ja se encontrava uma divisdo de tarefas entre os sexos, privilegiando os homens em detrimento das mulheres. Essa visio histérica/evolucionista marcou profun- damente a reflexio mundial sobre a familia, em particu- lar quando se referia as mulheres ¢ as criangas, Fala-se na atual “liberdade” das mulheres, quando estas j4 viveram em outros tempos com maior autonomia. As criangas também passaram por épocas em que cram proptiedade exclusiva de seu pai. Este podia vendlé- clas, escravizilas, tendo direito de vida e morte sobre elas. Lembremo-nos da Biblia, onde Abrado, obeiecendo.as ordens de Deus, oferece-lhe o sacrificio de seu filho Isaac. Em épocas anteriores, no entanto, as criangas tinham usufruido de status mais liberal. 32 ‘DanDA PRADO yezes nilo ouvimos referéncias a “crise” por id passando a familia em nossos dias? No en- olharmos a evolugio historica dessa instituigao, ataremos que grande ntimero de comportamentos vistos Como excegdes se tornou regra, e vice-versa, Regras rigorosas passaram a set vistas como excegdes. Nao h transformacio numa s6 direcio, Conforme os interesses socioecondmicos de uma sociedade ou o des- taque que ela dé a certos valores, as estruturas familiares vio se modificarido. Fala-se muito em “crise” da familia, mas esquecemos que toda e qualquer mudanca ou estado de evoluio permanente de qualquer fendmeno social implica transformagao constante, Isso leva a diminuir o significado do passado, e passamos entio a observar tudo, aanalisar e a julgar exclusivamente sob a visio e compre- ensao atual ou contemporanea. Outra deformagio frequente consiste na atitude posta, ou seja, numa fuga para o passado que nos apa- rece como fixo e evidente, pois certos acontecimentos e i foram resolvidos; bem ou mal, Quanto a0 0 gue & fit 6 presente, este nos parece incompreensivel, ¢rios inqui J& o passado, estavel, parece como de compreensio evi- dente. Com frequéncia ele até nos seduz por sua simplici- dade, despertando saudosismos com desejos ou espera as de-voltar no tempo. No entanto, na maiotia das vezes, esse passado-nio foi aquele vivido em nossas proprias fa- milias, ¢ sim aquele que idealizamos por meio da litera- tura, das lendas, da hist6ria e das lembrancas.alheias. ; Essa “crise” seria 0 resultado apenas das transforma cs industriais? Ser duvida alguma ha certa convergéncia entre as formas familiares eas diversas zonas geograficas ¢ culturais. : i sik Isso se evidencia com clareza no caso dos novos paises que se constituem torna ando-se independentes ¢ de suas an- tigas metrépoles, como na Asia e na Arica, Anterior mente dominados por colonizadores que haviam imposto seu proprio sistema familiar, independente dos tam Te ‘costumes ali encontrados, revoltam-se agora ¢€ viver, num nacionalismo alienado da nova ‘tealidade mundial, formas antigas de familia. Assim, por exemplo, na Argélia. Quando conquistaram aos franceses sua PSHSHSHSHSSHSHHHHESHEHSSHSHHSHHEHHHHOHHSHHEHOHHEHEHHHHEHREOHHOD 68 ‘DANDA Prado. Independencia (1962), os argelianos quiseram retornar a antigas tradig6es em telago as mulheres, que h4 muito hiuviam adotado os costumes ocidentais de seus coloniza- ores Isso gerou imimeros conflitos familiares, eo nu- ‘mero de suicidios e de fugas entre as jovens aumentou de forma alarmante, A presstio das religides foi a estratégia utilizada para impor uma nova e “verdadeira moral familiar”, de que ela seria a portadora, Assim, os missionrios catélicos im- puseram, drasticamente muitas vezes, o fim da poligamia do infanticidio, a exigéncia da virgindade, o uso de rou- pasa fim de esconder as partes sexuais do corpo etc. Essas sio somente algumas entre as intimeras ilustra- 66es possiveis da multiplicidade de influéncias rectprocas ‘e complexas que ha no tocante a familia, Estas, por sua vez, se exercem em sentido contrario, ou seja, sobre as Outras instituigdes e sobre a sociedade em geral. Assim, a chamada “crise” da familia esta sempre inscrita num con- texto amplo de transformagées sociais. Poderiamos dis- tinguir de modo geral duas formas de crises familiares resultantes de duas etapas diversas da evolugio social na historia recente: 0 que &femlia Cs a) A primeira estaria ligada 4 Revolugio Industrial, que transformou profundamente, no século XVIII, alguns paises, e afeta ainda hoje outros que estiio em vias de rea- lizar a mesma revolugio, b) A segunda'concerne aos paises que atingiram atualmente um alto estagio de desenvolvimento técnico e econdmico. © Brasil, por exemplo, seria um pais entre essas duas situagbes extremas (conforme a regido anali- sada), ; ‘A Revolugio Industrial gerou uma série de mudan- cas, em particular de ordem técnica e econémica, que transformou profundamente a vida social. Jé foi afirmado, ¢ sem exagero, que o grande’ im- pulso cientifico que marcou o fim do século XVIII ¢ 0 conjunto do século XIX na historia da humanidade nio teve precedentes. Nao foram téo-somente as condigées materiais da existéncia que se transformaram, mas, por extensio, 0 conjunto de conceitos filoséficos, ideolégicos, étnicos ¢ politicos. A Revolugio foi de tal importincia que os valores - culturais mais enraizados, aqueles que durante séculos cimentaram 0 comportamento dos individuos, foram m2) @eeeee CCCSCHESEEECHEEEEEEEEEE EHEC EEERCE EEK H ROO EEE 70 : DANDA PRADO ptofundamente abalados e questionados diante da pres- sfio do que se pode chamar “o mundo moderno”. A familia tradicional A familia, a instituigéo mais “s6lida” desde os prine{pios da era crista, reforgada em sua antiga forma patriarcal pelas religides ocidentais, conheceu desde entio grandes transformagées que até hoje néo con- quistaram unanimidade similar 4 daquele tipo de so- ciedade repressiva e autoritaria de ent&o (séculos XVIII XIX). , Hoje essas mudangas atingem os paises em desen- volvimento e mesmo as populagdes que vivem totalmente A margem da “civilizacio” branca ¢ ocidental. E preciso nao esquecermos que as revolugées técni- cas da producio nao se deram de uma hora para outra nem simultaneamente, Em uma grande familia, um filho podia emigrar para a cidade com sua mulher, enquanto seus parentes mantinham as rigidas tradig6es patriarcais em suas terras.de origem. 0 gue t fata a ‘A maioria das*sociedades pré-industriais baseiase nuina economia ‘essencialmente agricola ¢ cothercial, Sua populacio, caracterizada por alto indice de natalidadé ¢ de mortalidade, varia pouco, assim como suas estruturas sociais se mantém estiveis e pouco complexas. O tipo familiar dominante encontrado nessas socie- dades foi chamado tradicional, extenso, patriarcal € ‘do- méstico, entre outras denominacées menos difundidas, Nas classes sociais abastadas, encontrava-se esse grupo vivendo numa s6 grande residéncia, numa proprie dade extensa, Nas outras classes, os membros de“uin mesmo grupo familiar ocupavam, na maioria das vezés, casas contiguas, reunindo-se com frequéncia e part pando de atividades em comum. Esse tipo de familia era capaz de assumir, tanto ém relagio aos seus proprios membros como em telagid’a sociedade, uma grande diversidade de fungdes. Seu papel também era preponderante do ponto de vista da reprodu- cio € da educagio, assim como da religiio e da’ politica. Quanto ao fator econdmico, ocupava um ugar déter- minante pelo fato de transmitir no interior'de proprio grupo uma verdadeira divisio de trabalho qué beneficiava 35 2 Dana Prapo © patriménio comum,. Essa estrutura extensa era, alids, condigio size qua non para a ctiagio e transmissio de bens, titulos ¢ direitos, o que permitia manter e reforgar os lacos internos. O papel protetor do grupo em relagao aos seus mem- bros é salientado com frequéncia, sendo de relevante im- portdncia nos casos de velhice, quando h4 a necessidade da manutengio dos lagos com o passado, perpetuando tradigdes indispensdveis & meméria historica do grupo. As unides matrimoniais eram decididas pelas respec- tivas familias, segundo suas conveniéncias. Numa socie- dade muito estruturada e limitada a um numero restrito de camadas sociais, a propriedade privada e a posigao nos grupos familiares dependiam em grande medida dos lacos matrimohiais contratados. Muitas vezes, os cOnjuges vinham a se conhecer so- mente no dia do casamento. A paixio amorosa atriscaria ligagbes pouto desejadas pelo grupo familiar, pondo em risco o principio da fidelidade, e os, interesses pessoais poderiam ultrapassar os interesses do, grupo. A castidade da esposa era escrupulosamente 'prote- gida a fim de garantir herdeitos legitimos ao marido. \ 0 aque é familia B Alem da virgindade da esposa, tinke-se que levar em conta sua condigéo familiar e a educagio recebida que deveria preparisla adequadamente para seus paptis de es posa e mie. a A hierarquia familiar era extremamente rigida, apoiando-se nas diferencas mais elementares: biolbgicas, de sexo, de idade-e de geracio. As mulheres subordina- vamese aos homens, assim como os jovens aos mais ido- sos; 0 homem mais velho era, portanto, 0 personagem que detinha as mais altas dignidades (status) ¢ a maior autoridade sobre o resto da familia da qual ele era 0 pax triarca. : Basa familia-padrio tinka um papel socioeconémico essencial na sociedade pré-industrial, O prestigio social dos individuos decorria ao mesmo tempo de sua origem na sociedade e de sua posi¢ao no interior da familia, Suas perspectivas de agdo e promo¢io dependiam fundamen-: talmente de seu nascimento, sua origem. Em algumas sociedades menos complexas, com menor niimero de formas institucionais, a familia era, as vyeres, a tinica ou a principal organizagio intermediaria entre oin- dividuo e a instituigio politica mais alta. A tradicZo € os PSSM HSHSSCSCHASHHSHSHSHHH SOAS SHESOFSOSOHCEECEHESCBCSOOCS OE ae SSSHSHSSOSCHOHSSHSSSESSSHSSHSSESSEHOSSESESSEHHOOOHHESEBE 74 ; DANDA Prabo. costumes impunham ao individuo dedicagao a sua familia cao cla, O grupo familiar de tipo patriarcal retinha o indi- viduo ao longo de toda sua vida e intervinha na quase to- talidade de suas atividades educativas, profissionais etc. Numa sociedade pré-industrial, é inconcebivel disso- clar familia ¢ religiio, Tanto no plano social como no individual, tudo 0 que toca a vida organica da familia conta com 0 apoio e é controlado pela réligido, Em troca, a instituigao religiosa € sustentada pela familia, que lhe fornece apoio insubstituivel, colaborando de forma pri- mordial a transmissio das crengas, ao cumiprimento das praticas religiosas, a aceitacéo das punicées impostas. Dessa forma, a Igreja, que é tanto ou mais tradicio- nalista que a familia, sacraliza as principais manifestacdes da vida familiar, como o nascimento, o casamento, a morte etc., e condena (punindo conforme o caso) a interrup- ho da gravidez, o divércio, 0 exercicio da sexualidade livre etc. Toda infragao as normas é sancionada. Os deu- ses, com frequéncia, apresentam um modelo eterno ¢ su- premo de familia extensa e patriarcal. 0 que é fone . 75 Aparéncia e realidade Descrevemos, acima, as caracteristicas gerdis da fa- milia tradicional e patriarcal. Varios autores, porém, tém dtvidas sobre a éxatidio dessa apresentacéo esquematt- zante. Podemos éncontrar na literatura de épocas passa- das, personagens € situacGes que divergem desse esquema apresentado, ¢ tamnbém filésofos e pensadores que denun- ciaram conflitos na vida familiar de outrora. Gerd que de fato tudo se passava assim da forma des- crita nas familias tradicionais antigas? Nao estarlamos diante de uma série de deformac6es originadas de uma informagio fragmentada a respeito de épocas mais ou menos remotas? E preciso também notar que essas descricdes se refe- tem a certas camadas sociais privilegiadas economicamente. Tendo sido:pouco registrada a vida das camadas po- pulares, isso induz o historiador ¢ seus leitores a erros muito frequentes de interpretagao da Histéria. Assim, a informagao sociolégica segura ¢ universal pode referirse somente a algumas pessoas, familias ou setores privile- giados, e nao as classes sociais mais amplas. Pt 76 Dano Paavo. Anilises desse tipo induzem a erros mesmo se coin- cidentes com 0 modelo cultural adotado pela classe do- minante, J afirmamos anteriormente que nas sociedages an- tigas, baseadas num sistema patriarcal, algumas familias, aquelas que detinham o poder econdmico, podiam corres- Ponder ao modelo ideal de familia, modelo esse propa- gado pelo grupo ¢conomicamente dominante. As outras Se organizavam em células conjugais e/ou nucleares, Para uma familia patriarcal extensa subsistir era ne Cessério que possuisse um patrimdnio. E este nio erao caso da grande maioria da populagao, em sociedades nas quais as desigualdades sociais eram flagrantes e nas quais & maioria das pessoas s6 podia contar com sua forca de trabalho para garantir a propria sobrevivéncia Seria ainda preciso desmistificar a ideia de que as formas familiares do Passado teriam sido estaticas, Ao contrario, elas evoluiram juntamente com os movimen- tos sociais, Seria preciso, para tragar as mudancas histbricas da familia, conhecer a historia de cada modelo familiar, Assim, por exemplo, tomar uma sociedade no século 4 que & fama a7 verificar qual 0 modelo familiar preconizado pelo grupo social dominante naquela época e acompanhar ao longo dos séculos seguintes, quais as mudangas constatadas na- quele modelo particular. Resumindo, diriamos que néo se pode falar em HISTORIA DA FAMILIA, mas sim em HISTORIA DE CADA GRUPO FAMILIAR. CEC CCECCESCE SEES CEEECEEEEECEEEEEEECEEEEEEEEK HOE OOO 4 AFAMIIIA ILEIRA CONTEM. EA Como jé dissemos, talvez pela primeira vez na His- téria mundial, o mesmo conjunto de influéncias — as for cas sociais da industrializacdo e da urbanizacao — esteja afetando todas as sociedades conhecidas. Essa transformagao se d4 em ritmos diversos, com, avangos € recuos, mas sempre num sé sentido, ou seja, a caminho da generalizagao do tipo de'familia nuclear. Igual fendmeno também pode! ser observado no Brasil. Hé certa nostalgia com relagio.a imagens classicas da familia burguesa, a qual em realidade foi numericamente gue fain np pouco expressiva, Essas imagens refletem mais um mo- delo idealizado ¢ trazido pelos imigrantes dos diversos paises europeus em passado mais ou menos recente, do que'um modelo surgido aqui mesmo em nosso pais. Com os portugueses, vieram para o Brasil suas nor- mas juridicas, costumes e tradiges relativos 4 sua vida familiar, Doutra parte, as populagdes indigenas mantive- ram suas proprias tradigbes, que os missiondrios da época tentavam converter para hébitos cristéos. Por outro lado, havia a populagio africana importada como escrava, Esta foi brutalmente impedida de manter suas prOprias tradi- ges, ¢ em relagio as familias naturais (maes e filhos) as decisées variavam conforme o proprietario da mae-es- crava, As normas gerais em vigor modificaram-se a0 longo dos tempds, A Lei do Ventre Livre foi o primeiro passo no sentido do reconhecimento do direito da mie negra 2o seu filo, que néo mais poderia ser negociado. Referimo-nds, portanto, aqui ao grupo da populax cdo brasileira maig.amplo, resultante dessa miscigenacéo entre imigrantes evropeus brancos (portugueses, em prin- cipio, holandeses no Nordeste, a partir do século XIX os italianos, alemaes, orientais, estrangeiros de diversos paises SPOEHREHHEEKCEEECEEEHGEREEEECHEECEEECEECSESCOHCECECHEEECEECEHOEHBE 80 Dawpa Prapo do Oriente Médio etc), indigenas “civilizados”, isto é, aque les que se incorporam as zonas urbanas, e negros libertos. Sem dtivida, formaram-se alguns miicleos que reforcam ainda hoje suas tradigdes de origem (japoneses, sitio-liba- neses, por exemplo), mas devem submeter-se 4 nossa Cons- Lituigdo ¢ ao nosso direito em todas as suas jurisdigdes. Apesar dé toda essa variedade de origens, pode-se afirmar que existe um consenso em torno a certos mode- los familiares. Assim, descrevem-se “aqueles tempos” em que existiria‘um patriarca, o chefe da familia em todos os sentidos, exercendo autoridade moral e econémica sobre a mulher, os filhos e empregados. Havia uma divisio de tarefas rigidamente estabele- cida entre os miltiplos membros da familia, diviso essa que néo deixava margem a diividas nem conflitos, pois também eram bem delimitados os direitos e deveres de cada membro da familia para com todos os outros. Essa familia-modelo tinha diversas fungées: fonte de estabilidade econémica, base religiosa, moral, educacio- nal e profissional. Os jovens eram educados para respeitar a fidelidade no casamento, ¢ as mogas deviam manter-se virgens até essa data. 0 que é familia gl Uma ver casados, os filhos moravam o mais proximo poss vel dos pais com os quais trabalhavam, herdando, posterior mente, as terras, 0 negocio comercial etc, O divércio, a separagio era impensdvel, pois 0 ideal do casamento era “ani- dos até que a morte os separe”, formula de origem catblica, ‘As pessoas menos saudosistas, as “progressistas”, vem no presente um avango, ¢ nfo uma regressio diante desse passado acima descrito. Com frequéncia reconhe- cem também a existencia desse esteredtipo, mas descre- a, vem 0 pasado com uma conota¢io emocional di Dizem que progredimos, pois passamos do poder ar- bitrétio dos mais velhos, para uma liberdade maior para os jovens; de casamentos convencionais resultantes de interes: ses, de aliangas, para unides baseadas numa escolha afetiva; de barreiras de classe ¢ raga, para um sistema mais aberto de relacionamento interpessoal; da submissio das mulheres, uma relagdo de maior companheirismo na busca de uma relagdo mais igualit&ria; da repressao das emogdes das crian- as, para a compreensio dos impulsos infantis. O mito da “grande familia unida e de solidos princi- pios”, de antigamente, é, como a maioria dos esteredtipos, fruto de valores idealistas. Quando nos aprofundamos no SSESSSSEECKEECEEEHEEKEKEECECHEKCEEEEHEEESEEECEHEECHCHHOHEHOD MO 82 Dans Prapo conheciments da historia social do pais, verificamos que houve um niimero minimo desses exemplos de familia “tradicional”. | Poucas stio as familias que se mantiveram reunidas por muitas geracdes ou englobaram um parentesco extenso de miltiplos graus. A maioria das casas era pequena. Se hoje em dia vemos ainda um certo ntimero de casas antigas muito grandes, é porque essas casas foram provavelmente mais bem construidas, resistindo assim ao tempo. E verdade que o divércio nio existia, mas no temos nenhuma prova de que a unido dos casais era perene, sendo ‘pelas aparéncias que mantinham. Na geragio de nossos avés, eles jé se referiam por sua vez a uma época anterior 4 deles onde a vida familiar teria sido ainda melhor ¢ os individuos mais responsdveisi A realidade familiar no Brasil Nao varia muito de uma camada social para outra 0 ideal referente a familia, aos lagos que af sio valoriza- dos (amor entre 0 casal, compreensio e amizade entre | 0 que é fama 83 pais e filhos), ao comportamento esperado entre seus membros (responsabilidade econémica do marido, in- fraestrutura doméstica e afetiva pela mulher, obediéncia as diretivas paternas) ¢ a expectativa dos papéis sociais que deverdo ser cumpridos por cada um. Hi, porém, diferencas concretas entre as familias de diversas classes sociais. Por exemplo: a preméncia econd- mica impele as classes baixas a uma grande mobilidade geografica. Também entre as novas geracées, a migracio elevada é uma caracteristica de maior parte do nosso pais, entre o interior e as capitais. O jovem (a moga) deixa’seus pais.e vai estudar numa cidade maior. Isso aumenta a im- portancia dos lagos decorrentes de uma mesma origem geogrifica, reforcados ainda por relagdes de parentesco, mesmo distantes. Os lagos de solidariedade, a expectativa de apoio re- ciproco, os sistemas de obrigacao e de lealdade ligam em grandes blocos os individuos de uma mesma regio oti es- tado, Nao so os descendentes da mesma familia que ocu- pam todo um conjunto habitacional, mas os grupos de moradores na maior parte das vezes de mesma classe so- cial que ai se sucedem. SLOSS SHSOSHOHSSHEHSSSSHHSOSSSHESSESESSESSSSC CCC CHC CECE ELE: AY 4 DANDA PRADO Entre o proletariado, encontramos muitas familias nucleares em que 0 casal néo é unido por lagos legais, assim como encontramos também um grande numero de familias chefiadas por mulheres, no somente em vit- tude da austncia do marido (mies solteiras, separagio, viuvez), mas também porque cada vex mais frequente que a mulher trabalhe e assuma as responsabilidades ma- teriais do lar e da familia, Na classe média, a familia tende a ser nuclear e, ainda, mergulhada numa vasta rede de parentesco. Na classe alta, a familia se mantém ainda numa forma mais “extensa” que nas outras. £ patriarca quem ‘detém o controle dos meios de produgio, do patriménio e da renda familiar e sua autoridade & predominante ¢, na maioria das vezes, indiscutivel. No entanto, em todas as classes, seguese, ainda que de modo relativo, os padrdes patriarcais da familia de classe-alta. © chamado complexo de virgindade-virilidade marca as posigdes diferentes da mulher e do homem na organizacio familiar: 20 homem sio ‘permitidas ¢ valori- zadas as aventuras ¢ a infidelidade conjugal; ja a mulher (tanto antes quanto depois do casamento), deve manter 0 que é fama 85 uma atitude de recato pudor. Isso significa um duplo padrio de comportamento. A valorizagio e o significado desse padrio implicam a existéncia de uma subordinagio especifica da mulher em relagio ao homem que ¢ refor- cada pela cultura patriarcal. Os parentes tém a funco de preservar as relacdes primérias, tornando-as assim um velor cultural’ funda- mental para o'individuo, que garante seu entrosairento social em moldes tradicionais. Pode-se dizer que vivemos ainda numa sociedade de primos e néo numa sociedade de cidadaos; isto 6 obte- mos ainda maiores vantagens por meio dos parentés do que da sociedade. As aliangas, as lealdades, criaim-se ¢ sio desenvolvidas entre parentes consanguineds, ow por afi- nidade e escolha (compadrio) ou unio. O parentesco compéese tanto dos descendentes de linha materna como paterna, O aumento da-importancia dos parentes corresponde a uma diminuigao do podér patriarcal, Umi jovem pode encontrar no’ “tio que'emi- grou para a cidade grande” a orientacZo, 0 apoio que s6 seu pai Ihe datia noutros tempos. Sem, com isso, infrin- gir regras de lealdade familiares. SSSHSSCHOCHOOOOCSCHSSSSSSHSSEESS SEES SSSSeeeeeeeeceeceeoece A4d 86 Dawoa Prapo A presenga da mulher no perfil atual da familia brasileira ’ A presenga feminina na esfera do trabalho é cada yer mais frequente, ¢ esse fato esté mudando o perfil fa- miliar brasileiro, pois reflete, inclusive, em quem assume atualmente o papel de chefe de familia. Segundo dados do IBGE de 2000, mais de 24% dos domicilios brasileitos eram chefiados por mulheres ¢, em- bora esse seja um perfil que atinja todo o pais, essa carac- istica era mais presente no Nordeste. Trata-se de um fendmeno tipicamente urbano, que atinge familias monoparentais, As chefes de familia sio, em sua maioria, mulheres mais jovens, separadas, negras, de classes mais baixas e com baixo grau de escolaridade. A miséria, a necessidade de colaborar com o parceiro para a manutengio da casa ou de manter a subsisténcia de sua familia, quando se encontram sozinhas, fazem com que as mulheres deixem os afazeres de casa em busca de em- pregos ou subempregos no mercado formal ou informal — muitas vezes o mais procurado, em razao da falta de es- pecializacdo e escolaridade. j . 0 gue éjemitia a7 A questo que se levanta é até que ponto essa mu- danga no perfil da familia colaborou com a,emancipacio da mulher. Sera que a mulher s6 foi em busca de um lugar no status familiar por necessidades contingenciais? Se pegarmos a Historia recente, veremos que, em certa medida, ambas as coisas caminharam paralelamente. A mulher ja ha tempos buscava um lugar melhor na sociedade. Por sua vez, as necessidades econdmicas ¢ so- ciais abriram as portas para que as mulheres pudessem fi- nalmente libertar-se de algumas amarras, rodeadas de preconceitos, a fim de buscar seu lugar ao sol, ‘Aos poucos, as mulheres, de todas as camadas so- ciais, comecaram:a buscar uma melhor coloca¢io na sociedade e no nucleo familiar. Mesmo’em classes mengs abastadas, cada vez mais, a mulher estuda, se es- pecializa, Cargos ¢ profissées antes essencialmente masculinos estio cada vez mais sendo ocupados por, mulheres, Em- bora essa situagdo apresente melhoras significativas, ainda ha varias batalhas a serem percorridas como os salarios, que continuam desiguais e o preconceito enraizado na propria sociedade, onde muitos homens ainda se recusam SOHO SCHOCHCHEHOHSSEHSESOECSESSSEESEEEH SHEP ECCCCCHTCOCCOC® 43. weuewewevuevuevvevvVvve se vewwvwvwvevvewevvv 88 Dana Paavo a'partilhar os afazeres domésticos com suas parceiras, so- brecarregando-as em demasia. Normas do Diteito Civil Brasileiro relativas A familia © Cédigo Civil é a principal lei brasileira que rege 2 instituigio familiar no pais, ditando regras sobre o ma- triménio, filiagéo, parentesco, entre outros. Hé também outras legislagdes ordinérias, que surgem conforme a ne- cessidade de se.adaptar a instituigao familiar ao contexto histérico e social presente. Isso no garante que as leis sejamt um espelho da rea- lidade, Como se disse acima, as normas do Direito, par- ticularmente no caso daquelas que atingem a familia, vio se ajustando 4 medida que os costumes se modificam. Com o intuito de proteger a familia, a Constituigéo Federal de 1988 criou uma strie de figuras juridicas, o que equiparou algumas situagdes existentes as civilmente pre- vistas, como no caso da unio estivel, em que a mera con- vivencia ja garante direitos e deveres entre companheiros, O que é fot 89 © A equiparacio dos filhos adotados aos legitimos:para fins de direitos de heranga, por exemplo. © Cédigo Civil de 2002 veio a consagrar o que ja es- tabelecido constitucionalmente ¢, com 0 intuito de:pro- teger ainda mais a familia, ctiow outras figuras juridicas com o fim de facilitar a equiparagio de quem meramente conyivia sob 0 mesmo teto ao cdnjuge, criando uma série de protegSes antes nem imaginadas. Eo legislador brasileiro vem tentando acompanhar as rapidas modificagées por que a sociedade tem passado, assim como tem procurado facilitar a vida dos cidadaos, na medida do possivel. Esse & 0 caso, por exemplo, da Lei 11.441/2007, que prevé a possibilidade de separacio extrajudicial, ou seja, diretamente no Cartério sem que se passe pelo Judiciario, desde que no haja menores envol- vidos e de qué a separacio seja consensual. Esse nao é ainda o ideal, pois contempla somente alguns casos, mas é um paso para que se comece a pensar em solucdes mais adequadas para as antigas “dores de ca- beca” causadas pela legislagao relativa & familia, Se por um lado “caminhase para frente”, por outro ainda encontramos os resquicios do passedo a brigar com cc ee ee me Ta ae ae eae gr Pe ene een eee 90 Dawps Peabo o futuro. Por exemplo, ainda existem casos em que a gra- videz em menores advindas de relagdes sexuais incestuo- sas, muitas vezes mediante estupro, ¢ abafada pelo proprio nécleo familiar, quando a av6 do recém-nascido “adota-o” como seu proprio filho a fimn de manter a “apa- réncia” de um lar bemeestruturado. E isso, a despeito da promulgacio, em 1990, do Estatuto da Crianga e do Ado- lescente, que prevé o dircito de criangas e adolescentes 4 familia e A sua dignidade, » Além. disso, as mulheres, ainda hoje, deixam de re-_ cotter 4 Justica quando brutalizadas pelos maridds, por medo ou para resguardar a imagem da familia. Isso mesmo depois de 1985, quando foram criadas as primei- ras Delegacias da Mulher e de 2006, quando foi promul- gada a Lei 11.340, mais conhecida por Lei Maria da Penha, que protege as mulheres vitimas de violéncia do- méstica, : Apesar de avangos e retrocessos, 0 certo é que o le- gislador, depois de 1988, tem buscado acompanhar as mudangas sociais com mais cuidado do que antes de pro- mulgada nossa Constituicao. E isso, bem ou mal, é-um grande avango. O gue familia a A familia indigena brasileira Como jé dissemos, existem no Brasil varios tipos de familias cujas normias nfo séo reguladas pelo nosso sis- tema juridico. Sao as familias indigenas. Elas coexistem conosco e fazem parte da realidade nacional, mas sio so- mente codificadas por usos e costumes que variam de um grupo indigenta para outro e que também evoluem em suas formas no decorrer dos tempos. Essas familias também seguem normas € regras pre- cisas que estabelecem suas prioridades, principios e fun- c6es, incluindo punigdes aos infratores. Com a Constituigio de 1988, o indigena brasileiro passou a ter sua cultura protegida, Portanto, seu usos € costumes relacionados & familia esto protegidos e devem ser respeitados. f Os contatos com as diversas culturas brasileiras re- fletem-se a cada passo em seus costumes. Também entre 68 indigenas, os jovens sio acusados pelos mais idosos por no respeitarem as tradicdes de seus pais. Obedecem menos, usufruem de maior liberdade, desrespeitam a moral sexual tradicional ete. ' AS 92 Davos Peabo A nosso ver, uma das razdes do interesse da anélise do sistema de familias indigenas reside na observacio de como evoluem suas estruturas e em quais diregdes, bem como nas possibilidades ou nfo de uma integracao aos usos ¢ costumes da populagio branca. Existem no pafs inumeras populacdes indigenas, com uma grande diversificagio em suas estruturas sociais e econémicas. Podemos ainda acrescentar que se tem verificado entre diversos grupos indigenas uma gradual transforma- ‘gio de seus sistemas em familias nucleares. Isso se dé cada vez com mais frequéncia quando o indigena é atraido pot atividades nfo usuais a eles que surgem em sua Area, como o garimpo, por exemplo. Pouco a pouco o indi- gena vem buscar mulher e filhos para viver somente com ele numa casa individualizada perto do seu local de tra- balho, afastando-se, assim, de sua aldeia e criando novos habitos de consumo, Modificam-e, em consequéncia, pa- drées familiares. © pai passa a ser a tinica fonte de sub- sisténcia ¢, uma vez modificados seus costumes tribais, 0 retorno sera cada vez mais dificil, aumentando o ntimero dos que se instalam na periferia das cidades dos “brancos”. O que é fannie 3 A familia negra brasileira no século XX A familia negra brasileira contemporinea nao apre~ senta caracteristicas especificas que a distingam das fami- lias brancas, segundo os diferentes extratos sociais, ‘Entretanto, em passado nfo muito remoto e, sobre- tudo, nos niicleos negros rurais ¢ litoraneos, destacava-se, e encontramos ainda, a familia matrifocal extensa. Essa familia, segundo alguns autores, seria a sobre- vivéncia da familia afrodescendente que se caracterizaria pela troca objetiva entre as vantagens econdmicas ofere- cidas pelos homens e os servicos sexuais prestados pelas mulheres, além de conferir aos homens o diteito de pro- priedade sobre a prole. Nesse tipo de familia haveria também certa proemi- néncia da poliginia, que significa a relagio de um homem com varias mulheres, embora fora do casamento, 0 que a distinguiria da poligamia (onde um homem tem varias esposas legalmente). Outros autores, ainda, afirmam que o aparecimento de uma familia negra, com caracteristicas patriarcais como a maioria das familias, destacava-se pela matrifocalidade e ecrerennenenrecectececercecearneeecnrrtereevneeeneeneaaneneeaeeneaeeee@ ANG f€CCCeObGCCCCCHCECCECEEeELeCCECeHeLeReCLeCCeCHO LOL CCL OE OC Cee 94 Dan PRADO por um poder econémico acentuado por parte da mulher adulta, Ainda segundo os mesmos autores, essa situagio seria o resultado de trés fatores conjugados: a) A escravidio teria separado as mulheres e os ho- mens negros, jé que os contratos do trafego proibiam a inclustio de mais de 1/3 de mulheres em cada lote de es- ’ cravos, . b) Os senhores aproveitavam-se de seu poder para exer- cer a exploragio sexual sobre as escravas de sua propriedade, seja em uso proprio ou de seus amigos, seja explorando-as indiretamente por meio da prostituigao nas ruas. c) Essa situagio ocorreria por causa da apropriacio pelos donos de escravos da prole das mulheres negras. Por ocasiao da libertacdo parcial, muitos escravos ho- mens dirigiram-se para os centros urbanos procurando exer cer ali alguma profissio de artesio, enquanto as mulheres continuavam nas fazendas ¢ eles acabavam por constituir novos nicleos familiares, Por outro‘lado, como os negroé livres mantinham relagdes com as mulheres escravas, isgo teria criado uma possivel “tradicio” de poliginia que teria reforgado e mul- tiplicado a formagio ea tradigao das familias matrifocais 0 gue é familia 95. entre eles (isto é, familias que se constituem ao redor de uma mulher e seus filhos e netos). Essas familias constituiriam uma forma de organiza- cao bastante funcional, jé que se tornaram a tinica garan- tia de subsisténcia e de sobrevivéncia das criangas e dos velhos, como veremos mais adiante. Para Roger Bastide, “é indubitavel que a familia negra urbana seja o produto de um duplo pfocesso de desagregacao dos modelos africanos; 0 primeiro, remon- tando a promiscuidade sexual da escravido e o segundo, a debandada que se seguiu a emancipagio e.que levou 0 negro a viver nas cidades longe do controle de qualquer grupo social”, A existéncia, no entanto, dessas familias negras ma~ trifocais extensas, no seria o resultado de uma “desorga- nizagio social”, como se poderia crer numa primeira anilise, salvo se admitirmos que a familia nuclear e pa- triarcal (modelo das classes dominantes) seja o nico mo- delo valido. Embora haja uma tendéncia geral em considerar a familia “incompleta” como indicio dessa “desorganiza- cio social”, a ‘realidade & que ela também pode ser vista ax CHOOKSSCCCBOSHEGeEGCCeCLCeCHeECOHEHeELLC CeCe C Cer eLeCHeeeeee 96 : Dana Paavo e compreendida como um modelo cultural em certos meios sociais e em certas épocas. Essas familias correspondiam, na realidade, a organiza- ges bastante funcionais dentro de determinados contextos, como o dos meios pobres e rurais ou litoraneos e o do sub- proletariado urbano, nos quais a nogo do casamento legal ¢/ou seligioso nfo era um valor em si, mas representava um valor de classe ¢ uma possibilidade de ascensio soc Nos paises mais pobres e subdesenvolvidos, as fami- lias matrifocais funcionam como espécies de cooperativas entre seus membros, ou “rede de ajuda miitua”, capaz, bem ou mal, de remediar a auséncia de responsabilidade familiar dos homens e de atenuar também as deficiéncias da infraestrutura social do sistema capitalista, No entanto, os lares matrifocais tm, em regra, um nivel de vida econémico forgosamente inferior ao das fa- miflias nucleares, visto que, nos primeiros, sio as mulheres as verdadeiras chefes de familia. Elas no s6 ganham sala- tios inferiores aos masculinos como também tém menores possibilidades e maior dificuldade de acesso a carreiras, além de nesses lares pouco ou nada se contar com a par ticipagio econémica masculine, 0 que fentlia 7 Para Maria Isaura Pereira de Queiréz, as unies con- sensuais que dio origem aos niicleos matrifocais seriam um género de unio constituindo uma “poligamia suces- siva®, na qual a mie &a referéncia e o sustento principal. Revendo certos conceitos, como os de marginal dade, de norma e de desorganizacio social, poderemos entender melhor o sentido das familias matrifocais, Sempre, segundo Roger Bastide, pode-se falar em “marginalidade cultural quando individuos ou grupos pos- suem uma heranga cultural dupla e no aderem a nenhuma das duas”, Esse seria 0 caso dos negros que, tendo assimi- lado pela retransmissio oral usos, costumes e crengas dos es- cravos, seus antepassados, tiveram de adquirir e empregar paralelamente usos, crengas ¢ costumes de uma sociedade branca, ocidental e dominante na qual estavam inseridos. Por isso, afirma-se com frequéncia que qualquer tipo de familia fora do modelo nuclear seria “anormal”, visto ser ele o modelo majoritdrio, valorizado e dominante em nossa sociedade. Isso, porém, néo nos permite afirmar que a familia matrifocal extensa corresponda a uma “desorganizacao so- ', pois essa organizacio, ainda que minoritaria, possui 4s SOHOHSSHKSSHESEHEHHHHHHHHCCOHEEHEHHEEHHE KOCH OC OH ECC eOe 98 DANA PRADO O gue é fala 99 fungdes especificas, sendo fruto de numerosos fatores, * Afirmar, entretanto, que somente as familias negras como vimos anteriormente. sdo matrifocais ¢ extensas, ou que todas elas 0 so, seria” Um grupo mais extenso que a familia nuclear tem um erro, pois no seio de grupos no negros, onde a po- por papel ndo sé compensar a instabilidade do marido breta é similar e onde o impacto da economia dominante ou companheiro, conforme ja mencionamos, como tam- cria a falta de oportunidades de emprego e de carreira * bém permitir o estabelecimento de uma ordem ilegitima para homens ¢ mulheres, encontraremos as mesmas estru- sem perigo de destruir a organizacao social e econdmica turas familiares com uma tipologia comparativa a dos de um grupo ou de uma localidade. grupos negros mencionados, Para varios autores, a familia negra ¢ uma institui¢ao derivada, estabélecida sob a forma de cooperativa econd- mica na qual entram, em certas épocas da vida, aqueles i que jA no podem mais atender a suas necessidades. ‘Assim, & ai que virdo se refugiar os homens em caso de desemprego, doenca ou aposentadoria; € al onde os filhos naturais encontrardo abrigo e alimento; ¢ € ai ainda onde as mulheres mais jovens poderdo encontrar 0 epoio a solidariedade do grupo familiar feminino ao estabe- «+ lecerem suas primeiras unides consensuais. Assim como podemos encontrar familias negras na burguesia brasileira vivendo uma estrutura nuclear tradi- cional, encontramos o tipo de familia matrifocal entre a i populagio negra. : 49 i co. sAO A mudanga — em questées sobre a familia, como em todos os outros campos humanos ~ impée-se aos ho- mens de hoje. ff preciso reconhecer, no entanto, que a familia pa Tece-nos uma instituicéo bem mais estavel do que muitas Outras, Nao evolui no mesmo ritmo: a mudanga é muito mais lenta em suas formas. A evolucio nfo pode, sociologicamente, set evitada, mas os atores sociais podem orientéla, Nesse caso, os ho- mens ¢ as mulheres poderiam tentar satisfazer da melhor 0 que & fume . 101 forma, em novos modelos familiares, suas permanentes necessidades de afeto, de comunica¢ao e uniao entre os Sexos € as geragdes. _ Os-valores da felicidade e do desenvolvimento do individuo, seja qual for sua idade, sexo, raca ou status so- cioprofissional, devem se substituir aos valores de expan- so industrial a qualquer prego, da produgio e do consumo de bens supérfluos. A familia nuclear, isolada entre as quatro paredes de um apartamento urbano, éum. ésquema funcional que atende aos interesses da sociedade industrial, seja do leste ou do oeste do mundo. Sua divisio de tarefas entre marido e mulher, sua fa- cilidade de locomogo, acompanhando as mudancas geo- graficas das empresas nas quais o chefe de familia é assalariado, sua alienacao da problemitica social, sua mo- tivacao tinica e exclusivamente dirigida pelos meios de comunicac4o para o consumo, constituem uma estrutura ideal para ser manipulada em todos os niveis, do operirio manual ao diretor-presidente da empresa nos interesses de um poder central. Pensamos, portanto, ser preciso evitar atitudes e so- luges muito dogméticas ¢ normativas, a fim de que as PHSSSHSSSHSHSOHTHHOHHOHHHOHHEHOHOOLHOLOHLEOE 60 278 @20#0000000008680860088 102 DaNDA PRADO aspiragdes dos individuos possam, eventualmente, ser vi- vidas e institucionalizadas de novas maneiras, j& que as formas antigas no mais permitem a satisfacdo dessas as- ; piragbes, | INDICACOES PARA LEITURA BASTIDE, R. La femme de couleur en Amérique La- tine, Paris: Anthropos, 1974. BLAY, Eva Alterman. “Trabalho, familia e classes so- ciais em Sao Paulo.” R. Inst. Est. Bras. Sio Paulo: Funde- 40 Carlos Chagas, 13: 87-99, 1972. DURHAN, Eunice. A caminho da cidade: a vida rural ) ea migragio para Sao Paxlo, Sio Paulo: Perspectiva; Edusp, 1973. (Debates, 77) ENGELS, F. Origere da farmtlia, da propriedade privada edo Estado, Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, s/d. ot 104 Dawpa Prapo FIGUEIREDO, M. “O papel socioeconmico das mule heres chefes de famflia numa comunidade pesqueira do li toral norte da Bahia”, Caderno de Debates n. 6, Brasiliense. FREIRE, G. Cava grande e senzala. Rio de Janeiro: Editora Record, s/d. FUKUI, L. Sertao e bairro rural, Sio Paulo: (Col. Ensaios 58). MICHEL, Andrée, Soilogie dela famille et du mariage, tica, Paris: Presses Univ. de France, 1972, PRADO, D., FIGUEIREDO, M., NEVES, A. “A es- trutura familiar na opressio feminina”, Cadernos de Debate n® 6, Séo Paulo: Brasiliense, 1980. REICHEL DOLMATOEF, I. “Aspects de la vie de la femme noire dans le passé et de rios jours en Colombie”, Citado por Bastide, R. La fomme de couleur en Amérique Latine, Paris: Anthropos, 1974, SCHMUKLER, B, La mujer y la familia en la re Produecion de la pequeia burguesta, Centro de Estudios del Estado y Sociedad, Cedes. Este capitulo é 0 resumo dessa pesquisa, SHORTER, E. Naissance de la famille moderne, Pasis: Seuil, 1978, Oqne ¢ famtlia 105 WOORTMANN, Klaas. “Grupo doméstico ¢ paren- tesco num vale da Amazénia.” R, Mus. Past, Sio Paulo, 17: 209-377, 1967, Fd SOBRE A AUTORA A leitura do Deuxiéme sexe, de Simone de Beauvoir, foi para Danda Prado uma tébua de salvagao. Suas per cepgies foram justificadas por personalidades que adqui- riram autoridade no séio dos que contestam o colonia- listho e 0 imperialismo ¢ que, ao mesmo tempo, contes- tavam a opressiio dis mulheres. Todas as tentativas de discussdo sobre as contradi- es vividas por ela como mulher eram taxadas de rea cionarias pelos, de esquerda ¢ de comunistas pelos de direita. 0 gue é fein 107 Apés terminar o curso de Pedagogia na Universi- dade de Sio Paulo, divorciada e com trés filhos, quis voltar a psicologia. Inscreveu-se na Universidade de Columbia, em Nova York, em 1967. A experiéncia mais extraordinaria que teve nos Esta- dos Unidos foi o contato com uma clientela negra do Harlem. Nao tinha nenhuma experiéncia no problema dos afrodescendentes visto internamente. Isso lhe permi- tiu compreender como funciona o determinismo social, nio somente em relagio a origem de classe de cada um, mas também em relagao a cor da pele. Foi para a Franta em 1970 e, preparando um doutorado, aprofuindou suas reflexdes sobre os condicionamentos ‘da. mulher, de forma mais estruturada. Defendeu sua tese sobre esse tema em 1977, na Universidade de Paris VII. Encarou todos os comportamentos considerados femininos como © resultado de um condicionamento socialmente deter- minado.

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